1 ARMANDO A PERSPECTIVA PARA VER
Em tempos de desmonte planejado do sistema educacional brasileiro, de negação da ciência, de desprezo pela “coisa pública”, de recrudescimento do conservadorismo e de hegemonização de interesses defendidos por grupos ultraliberais, investir e apostar na construção de uma política institucional de formação de professores da Educação Básica gestada em uma universidade federal pública não deixa de ser um ato de resistência. Afinal, afirmar o entendimento de universidades públicas como lócus de formação do profissional docente desse nível de ensino, embora não seja uma novidade, é, sem dúvida, um desafio político-epistemológico cujo enfrentamento é cotidiano no âmbito da cultura universitária, exigindo posicionamentos nas lutas pela significação da docência em meio às relações de poder assimétricas que a configuram.
A escrita deste texto tangencia um exemplo desse tipo de ato de resistência. Não se trata de uma análise sobre os seus alcances e limites. Seu propósito é menos avaliar a política do que dar visibilidade às estratégias político-teóricas mobilizadas para a sua concepção e operacionalização. Para tal, opero com as teorizações pós-estruturalistas, em particular as que se inscrevem na abordagem pós-fundacional (MARCHART, 2009), apostando tanto na sua potência analítica quanto na leitura política do social que ela oferece. Entendendo, pois, que o investimento teórico é igualmente uma forma de entrar no debate político, a postura epistêmica e o ângulo de ataque escolhidos reforçam a inscrição das reflexões aqui desenvolvidas nas disputas em torno de um projeto de sociedade, de universidade, de escola; enfim, de um mundo no qual vivemos.
Entre as potencialidades da perspectiva pós-fundacional, destaco, para fins da análise pretendida neste texto, a sua filiação ao movimento que vem sendo nomeado de “virada ontológica”, o entendimento da interface discurso-hegemonia e a diferença estabelecida entre os significantes político e política. A primeira remete à radicalização das críticas às perspectivas essencialistas e deterministas a partir da negação da ideia de um fundamento último que ocuparia o lugar de um centro fixo nos processos de significação. Sem defender uma pauta antifundacionista, a abordagem pós-fundacional desestabiliza o status ontológico do fundamento absoluto e metafísico, reconhecendo a força da contingência e a incompletude na definição do Social. Este último, grafado propositadamente com a letra ‘s’ maiúscula para significar o campo infinito da diferença e da multiplicidade, não pode ser acessado de forma imediata, sem a mediação do discurso, reafirmando nos debates epistemológicos o entendimento da linguagem como instituinte do mundo. Não é por acaso que, nessa abordagem, toda configuração social é discursiva. Nessa perspectiva, o significado de discurso extrapola o domínio da fala e da escrita sendo da ordem do material e desestabiliza a ideia de uma totalidade fechada que pudesse ser plenamente acessada em sua “essência” ou verdade última.
Nessa abordagem, as fixações de sentido são percebidas como resultantes da intervenção entre duas lógicas - a da equivalência e a da diferença - que intervém de forma articulada, provisória e contingencial. A primeira age no sentido de diminuir as diferenças, produzindo, assim, uma cadeia equivalencial entre elementos distintos mobilizados pelos diferentes grupos de interesse que participam das lutas pela significação de um significante. A segunda intervém na fronteira do que está sendo e do que não está sendo provisoriamente definido por meio do corte na cadeia de equivalência e simultaneamente da produção de um “exterior constitutivo” (LACLAU; MOUFFE, 2004) que passa a ocupar o lugar incontornável do antagônico nos processos de significação em jogo.
A Teoria do Discurso de Ernesto Laclau e Chantal Mouffe (2004), também conhecida como teoria da Hegemonia, opera justamente com essa interpretação, permitindo significar o processo de hegemonização como a universalização de um particular, em meio ao campo infinito da discursividade. Nessa dinâmica relacional, a disputa dá-se em torno do significante com potência para ocupar a função discursiva de “ponto nodal”, capaz de condensar e controlar, ainda que contingencialmente, os processos de significação. Dito de outra maneira, capaz de hegemonizar um sentido particular a partir da intervenção das práticas articulatórias anteriormente descritas. Com efeito, é por meio dessas práticas que sentidos são provisoriamente fechados, suturados de forma sempre precária e incompleta, deixando simultaneamente entrever a possibilidade de outros arranjos discursivos, da produção de outros antagonismos.
A terceira potência analítica da abordagem pós-fundacional, anteriormente mencionada - a diferença ontológica entre os termos política e político - remete aos efeitos do reconhecimento da aporia da impossibilidade e da inevitabilidade de qualquer processo de significação na leitura política do social. Essa diferenciação pretende justamente dar conta da ideia de que o ato de nomear é um ato político em meio à contingencialidade dos processos de estruturação de uma ordem social específica. Afinal, como afirma Laclau (2011), o político é o ontológico do social; é, assim, o momento de negociação entre as lógicas da equivalência e da diferença (SOUTHWELL, 2008), da irrupção da contingência inerente à qualquer processo de significação que não nos deixa esquecer a possibilidade sempre aberta de reativação de outros sentidos nas disputas pela definição de um termo. O termo “política”, por sua vez, nomeia as tentativas de controlar a força dessa contingência por meio de diferentes dispositivos que intervém com o intuito de reafirmar e/ou desestabilizar operações hegemônicas.
A introdução dessas contribuições teóricas no campo do Currículo tem permitido leituras políticas que, embora dialoguem com diferentes autores (LACLAU; MOUFFE, 2004; MARCHART, 2009; RETAMOZO, 2012; BUTLER, 2014) e utilizem diferentes recortes e/ou privilegiem focos distintos, convergem no que diz respeito à produção de interpretações sobre temas que atravessam a problemática educacional de um outro lugar epistêmico. Não é por acaso a proliferação de sentidos fixados para o próprio termo currículo ou de leituras desconstrucionistas sobre categorias-chaves para as análises desse campo, como, por exemplo: “sujeito”, “conhecimento”, “ciência”, “razão”, “escola”, “docência”, “universidade”, “emancipação”, “políticas de currículo”, “formação de professores”, até época recente hegemonizadas nos quadros da inteligibilidade moderna iluminista positivista.
A incorporação da virada ontológica no campo educacional, mais particularmente no campo do Currículo, tem colocado para os pesquisadores da área o desafio de continuar pensando politicamente após à radicalização dessas críticas e seus efeitos nas teorizações curriculares críticas e tradicionais.
Este texto inscreve-se nos estudos curriculares pós-estruturalistas/pós-fundacionais, tendo como recorte a interface currículo e formação docente e como foco o significante “comum” mobilizado em meio à construção de uma política institucional de formação inicial e continuada de professores da Educação Básica que incidem e mobilizam fluxos de sentido tanto de “currículo de licenciatura” quanto de “currículo escolar”. Interessa-me, mais especificamente, focalizar, nesses debates, as estratégias discursivas que mobilizam o significante “comum”, traduzindo, assim, os diferentes interesses em jogo.
Na contramão das interpretações mais recentes produzidas no campo do Currículo sobre os sentidos e as mobilizações desse termo, apresento, aqui, uma leitura produtiva do significante comum, em diálogo com as contribuições teóricas de autores como Dardot e Laval (2015, 2017). Segundo esses autores, assistimos, nos últimos anos, a uma explosão do uso do “comum”, tanto no campo das práticas quanto no da reflexão intelectual. Com efeito, o uso desse termo pelos movimentos sociais acrescenta à sua historicidade condensada um novo sentido particular que precisaria ser explorado ao tentarmos contextualizá-lo em nossa contemporaneidade.
O termo “comum” emerge nos discursos e nas demandas formuladas no seio desses grupos, como uma resposta simultânea ao Estado e ao Mercado, permitindo a problematização de polarizações entre as interfaces público-Estado e privado-mercado que participam das cadeias de equivalência mobilizadas na produção e na hegemonização de sentidos particulares desse significante.
A tese defendida por esses autores em relação à importância do reconhecimento da potência política do termo “comum” parte justamente da constatação da falência do Estado Nacional, no momento atual de acumulação capitalista, como protetor das populações em relação à lógica concorrencial dos mercados financeiros e a seus efeitos nas relações sociais e nos processos de subjetivação. O fim das “[...] crenças e esperanças progressistas depositadas no Estado” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 15) faz emergir o imperativo da reinvenção do “comum”. Não se trata, pois, como sublinhado por Dardot e Laval (2017), de uma reatualização de sentidos hegemonizados desse termo, mas, sim, de lançar outros sentidos ou melhor explorar outras possibilidades abertas.
Nessa perspectiva, a ideia de construção de um comum apresenta-se como possibilidade de politizar o campo superando binarismos e reconhecendo a força e o papel crucial da contingência nessas disputas. Entendido como um princípio político que nos permite desestabilizar a lógica neoliberal de seu lugar hegemônico, a construção de um comum, tal como defendida por esses autores, abre pistas teóricas para “esgarçar a normatividade” (MACEDO, 2017, p. 521) produzida e estabilizada em meio às políticas curriculares. Ao deslocarem o sentido de “comum” do domínio exclusivo do jurídico para o domínio do político, Dardot e Laval (2015, 2017) redimensionam os processos de significação desse termo, permitindo pensá-lo de outro lugar epistêmico. Interessa-me, aqui, explorar os efeitos desse deslocamento nas reflexões curriculares.
O texto está organizado em duas seções. Na primeira, apresento alguns usos do significante comum que tendem a ser hegemonizados nos estudos curriculares mais recentes. Ainda nessa seção, em diálogo com os autores mencionados, exploro outras leituras possíveis, destacando o deslocamento dos processos de significação desse termo. Em seguida, na segunda seção, tendo como empiria uma política curricular em fase de implementação2, sublinho a potência heurística de um entendimento de “comum” que tem ajudado a operacionalizá-la.
2 SENTIDOS DE COMUM EM DISPUTA NO CAMPO DO CURRÍCULO
Basta uma análise não sistemática sobre a produção acadêmica da área educacional, das últimas três décadas, para confirmarmos a intensificação da mobilização do significante “comum” nos debates sobre políticas de Currículo. Desde os anos de 1990, com a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais, esse significante tem servido de estopim para as lutas pela significação de uma “educação de qualidade”, trazendo à tona as disputas entre os diferentes grupos de interesse que participam do processo de significação dessa expressão. Esse conjunto de textos é aqui tomado, de forma indiscriminada, como representante de discursos produzidos em contextos específicos nos quais os sujeitos se posicionam e são posicionados como estudiosos e militantes do campo educacional, participando, desse modo, da construção, da estabilização e/ou da desestabilização de sentidos particulares de diferentes significantes que habitam a discussão curricular, entre eles do significante “comum”.
Mais recentemente, esse termo tem sido utilizado como um dos adjetivos, juntamente aos significantes “nacional” e “curricular”, do termo “base”, redimensionando o lugar que lhe é atribuído nos debates contemporâneos do campo do Currículo. Ora utilizado para apoiar e/ou justificar a necessidade da construção de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ora para criticar não apenas essa base curricular específica, mas também e sobretudo para problematizar o argumento que sustenta a necessidade e a pertinência de qualquer base, o significante comum tem estado na berlinda, exercendo, nessas disputas, as funções discursivas de exterior constitutivo e de ponto nodal.
Para os defensores da necessidade e da pertinência de uma base comum, esse significante ocuparia a função discursiva de um ponto nodal na medida em que condensa as demandas de justiça social encabeçadas pelos movimentos sociais, mas também pelo setor público-estatal. Simultaneamente, ele é percebido como o exterior constitutivo de termos como “exclusão”, “desigualdade”, “privado” e “particular”, reatualizando discursos, sobre a interface estado-público, que investem e apostam na função política dessa instituição de guardiã das conquistas sociais. Trata-se, nessa argumentação, de reforçar a importância de uma base curricular comum para a construção de uma escola pública democrática de maneira que “todos” tenham o direito de aprender conteúdos mínimos, de modo a assegurar a formação básica comum (BRASIL, 2017). Uma formação de base comum é vista, assim, como uma estratégia para garantir a equidade nos processos de ensino-aprendizagem em uma sociedade desigual, injusta e plural, por meio da definição de um conjunto de elementos - competências, saberes, valores - considerados como imprescindíveis e validados como objetos de ensino para garantir as aprendizagens essenciais (BRASIL, 2017) na Educação Básica.
Já, para aqueles que sustentam argumentos contrários à ideia de uma política curricular centrada na ideia de uma base comum, esse termo tende a ser associado ao adjetivo “nacional”, que qualifica igualmente a base curricular ocupando o lugar do ponto nodal em torno do qual são reativadas tensões clássicas ao campo do currículo como as que se manifestam por meio da ratificação de binarismos como universal/particular, igualdade/diferença, individual/coletivo que o atravessam. Nessa linha argumentativa, o significante comum inscreve-se na cadeia equivalencial da qual participam termos como “único”, “idêntico”, “padronização”, “homogeneização”, expelindo termos como “diferença”, “desigualdade”, “diversidade”, “pluralidade”, “singularidade”, “heterogeneidade”, que passam a ocupar o lugar de seu exterior constitutivo.
Essas últimas articulações são igualmente mobilizadas pelos grupos defensores da mercantilização da educação. Como apontam as críticas a essa percepção, a articulação comum-idêntico-homogêneo permite operar com a ideia de um conteúdo universal passível de ser mensurado e avaliado em termos de eficiência de seu aprendizado, de classificação e de ranqueamento no mercado educacional. Do mesmo modo, essa perspectiva nega as singularidades das trajetórias individuais dos sujeitos posicionados como alunos/as da Educação Básica bem como de seus pertencimentos culturais.
Macedo (2014, 2015, 2016, 2017) tem apontado como esses debates em torno da BNCC são atravessados por dois conjuntos de demandas - demandas neoliberais por accountability portadoras de interesses mercadológicos e demandas críticas por justiça social, que ora se aproximam e ora se distanciam, em função das oscilações da força política dos grupos de interesses. Para a autora, a articulação em uma mesma cadeia de equivalência definidora de comum entre demandas formuladas no seio de grupos de interesses antagônicos explicar-se-ia pela produção de um exterior constitutivo que se manifesta por discursos que se sustentam “[...] em oposição à imprevisibilidade da ação docente e em defesa do controle do currículo” (MACEDO, 2017, p. 509). Nessa lógica, o “comum”, mobilizado seja para defender a justiça social, seja para favorecer a lógica do mercado com a qual operam, por exemplo, as avaliações de grande escala, é compreendido como aquilo sobre o qual é preciso prever e é possível exercer o controle.
O estreitamento do diálogo com as contribuições de Dardot e Laval (2017), em particular com a aposta desses autores na reinvenção de um comum, tem permitido buscar ferramentas para continuar apostando na potência política-teórica desse significante, de forma a explorar a aporia da impossibilidade e da inevitabilidade dos processos de significação, mencionada anteriormente. Não se trata, portanto, de definir nem “o”, tampouco “um melhor” significado para esse termo. O que está em jogo, no recorte aqui privilegiado, é entrar na disputa pelo termo “comum” para desequilibrar a balança a favor do reforço das demandas que se articulam em torno de justiça social. Afinal, ainda que inscrita no “princípio da irrealizabilidade” (MACEDO, 2015, p. 905) e, portanto, não podendo ser vista “como uma promessa a ser cumprida”, a justiça social ainda ocupa um lugar potente como devir, como horizonte de expectativa e, como tal, “ela precisa ser constantemente perseguida” (MACEDO 2015, p. 905).
A argumentação central deste texto gira em torno do reconhecimento da potência analítica do deslocamento proposto por esses autores em relação à definição do comum, do registro jurídico para o registro político como uma possibilidade de sustentação no debate contemporâneo de uma ideia de justiça social. Isso pressupõe, em vez de continuarmos investindo na cadeia de equivalência que articula o termo comum à ideia de apropriação-pertença (bens e direitos), investirmos em processos de significação que associam esse termo a ideia de “apropriação-destinação (relação de finalidade dessa apropriação)” (DARDOT; LAVAL, 2015, p. 269). O primeiro tipo de associação - a interface comum-apropriação, historicamente construída no mundo ocidental capitalista em torno da ideia de propriedade individual e/ou - coletiva se acirra, sem dúvida, com a hegemonização da lógica neoliberal que a partir dos anos de 1980, “com o auxílio de todo o arsenal das políticas públicas”, impôs uma via diferente que resultou em “[...] um novo sistema de normas que se apropria das atividades de trabalho, dos comportamentos e das próprias mentes” (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 12). Para os autores:
No fundo paradoxalmente, foi o próprio neoliberalismo que impôs a virada do pensamento político para o comum, rompendo com a falsa alternativa especular entre Estado e mercado mostrando que é inútil esperar que o Estado “volte a encaixar” a economia capitalista no direito republicano, na justiça social e mesmo na democracia liberal (DARDOT; LAVAL, 2017, p. 15).
A articulação comum-apropriação-destinação, defendida por esses autores, investe na desestabilização de um sentido particular de “comum” fixado hegemonicamente em torno da ideia de “propriedade como direito”, colocando no jogo político o argumento do “imperativo social do uso comum”, isto é, do “exercício de direito de uso coletivo”. O “comum” passa a ser percebido como um princípio político a ser aplicado e não mais apenas como uma qualidade de pertencimento a ser instituído. O que está em jogo, nesse caso, é menos a defesa de um “direito comum” do que o “direito do comum” ou de “comuns”. Como afirmam Laval e Dardot (2016),
[...] é preciso por um lado evitar entender o comum no sentido restrito de bens comuns e, por outro, desenvolver um direito do comum como um novo tipo de direito de uso, onde apropriações se distinguem dos usos proprietários e levem a criação de instituições do comum (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 1).
Essa argumentação é tanto mais importante quando constatamos que os discursos no campo do currículo, incluindo as teorizações curriculares críticas, tendem a reafirmar e cristalizar sentidos particulares desse termo, hegemonizados historicamente no domínio jurídico como, por exemplo, “bem” ou “direito”. As demandas de conhecimento articuladas às de cunho identitário que interpelam as escolas e as universidades em nosso presente mobilizam processos de significação em torno do significante comum que tendem justamente a reforçar e a estabilizar sua inscrição no registro jurídico. A defesa de uma justiça social cognitiva sustenta-se na afirmação de que o conhecimento científico e/ou escolar é um “bem comum” a que todos - a despeito de suas singularidades - têm o direito de ter acesso.
De modo semelhante, tanto nos argumentos contrários quanto nos favoráveis à BNCC, e independentemente da dimensão - positiva ou negativa - enfatizada, no conjunto desses textos, a mobilização do termo comum se restringe, igualmente, ao registro jurídico, remetendo a algo que pode ou deve ser apropriado e/ou controlado, seja de forma individual ou coletiva, seja no âmbito do espaço público ou privado. A redução da inscrição desse termo ao registro jurídico, e mais especificamente à tradição jurídica da propriedade, tem sido um movimento hegemônico tanto no campo político da “esquerda” como no da “direita”.
Ao colocarmos o foco da análise nas políticas curriculares, e mais diretamente naquelas que envolvem a formação inicial e continuada de professores da Educação Básica, o desafio consiste, pois, em abrir caminhos teóricos para que outros sentidos de “comum” possam participar das lutas pela significação que as atravessam de forma a instituir um espaço público de formação sem que isso signifique o apagamento das diferenças das comunidades acadêmica e escolar, tampouco a valorização da neutralidade do conhecimento validado como objeto de ensino-aprendizagem nos currículos da licenciatura e nos da educação Básica.
A seguir, exploro a potência analítica e os efeitos desse deslocamento a partir da análise de uma política institucional em plena fase de implementação.
3 CONSTRUINDO UM COMUM INSURGENTE
De fato, a lógica de agrupamento não deve ser confundida com a busca por unanimidade, harmonia e consenso como algo absoluto. Ao invés disso, ela procura superar os conflitos através da coprodução de normas e não através da abolição imaginária de conflitos que são necessariamente uma parte de toda vida coletiva. Esse ponto precisa ser enfatizado: conflito não é ruim por si; ele não é de modo algum a semente da guerra civil; pelo contrário, ele é seu antídoto desde que tenha uma expressão institucional (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 7).
A análise que se segue pode ser vista como uma tentativa de fazer uma pausa no meio do caminho de uma suspensão do tempo frenético de um cotidiano profissional marcado pelo ritmo exigido pela implementação de uma política institucional envolvendo todas as licenciaturas de uma das maiores universidades públicas do país. Sem cair na tentação da apologia de uma experiência de formação de professores com a qual me encontro profundamente envolvida, tampouco de realizar o balanço de uma experiência em curso, proponho-me, nesta seção, produzir uma narrativa après-coup de seu processo de construção por meio da análise de documentos que vêm sendo elaborados pelos diferentes sujeitos envolvidos, bem como da minha vivência nesse processo. Interessa-me destacar as estratégias de resistência que vimos adotando e que envolvem o deslocamento do sentido de comum tal como discutido na seção anterior.
Como política institucional de formação inicial e continuada dos professores da Educação Básica gestada no âmbito de uma universidade pública, essa experiência em curso tem enfrentado os desafios que se colocam tanto para os currículos acadêmicos quanto para os escolares. Entendidos como espaços híbridos resultantes de fluxos de sentido que atravessam contextos de formação distintos - universidade e escola -, os currículos de licenciatura tornam-se um terreno propício para a problematização do comum ou, se preferirmos, para a construção de um comum cujo sentido extrapola o registro jurídico pautado pela ideia apropriação-pertencimento de bens e/ou direitos.
Essa afirmação mostrou sua pertinência já no início das discussões e das negociações para a construção da política em foco. Ficou claro que, não apenas em termos de saberes, mas igualmente de territórios e de sujeitos, a questão da construção de um comum era um desafio político e teórico cujo enfrentamento era indispensável para o seu êxito.
O eixo norteador de nossas discussões foi, desde o início, a construção do que estudiosos do campo de formação de professores (ZEICHNER, 2010; SARTI, 2012, 2013, 2019; NÓVOA, 1995, 2017; SHULMAN, 1997, 2004, 2005) apontam como um giro epistêmico importante nas políticas de universitarização, que dizem respeito ao lócus da formação desse profissional. Não é por acaso que a ideia da construção de um “terceiro espaço” (ZEICHNER, 2010), resultante da hibridização das incompletudes dos diferentes contextos formativos envolvidos - universidade e escola - na profissionalização docente, marcou e marca o desenho institucional que vem sendo delineado para essa política. O que estava em jogo era dar forma a um espaço que se institui na lógica de rede a partir de três princípios - horizontalidade, pluralidade e integração -, tais como explicitados no termo de compromisso produzido coletivamente pelas diferentes instituições parceiras envolvidas nessa proposta.
Ao longo das negociações, foi ficando claro que paradoxalmente o mesmo movimento que reconhece o papel crucial da universidade pública no processo de formação dos docentes da Educação Básica implica a ampliação, ou melhor, a reconfiguração do lócus de formação desse profissional para além dos muros universitários. Trata-se, pois, de uma política de reconhecimento da importância do universo acadêmico na formação do professor e, simultaneamente, da compreensão de sua impossibilidade e de sua incompletude para assumi-la sozinha. Uma política de compartilhamento de territórios e saberes, que envolve múltiplos sujeitos. Uma política de deslocamentos e de desestabilizações de discursos hegemônicos sobre “universidade”, “escola”, “docência”, “formação” e, sobretudo, sobre o significante “comum”.
Não se tratava de “inventar a roda”. Não tínhamos consenso sobre tudo, mas concordávamos que era preciso construir coletivamente um “comum” cujas regras de uso fossem estabelecidas no jogo democrático da política universitária. A produção desse “comum” passou, portanto, a nos orientar politicamente e, aos poucos, fomos fortalecendo a ideia de que não se tratava de uma política de homogeneização ou padronização das múltiplas experiências singulares de formação inicial e continuada de formação docente, mas, sim, de pensarmos juntos algumas linhas de força em torno das quais pudéssemos significar o termo “comum” inscrito em uma política institucional.
Assumir essa postura não foi e não é tarefa fácil. As disputas mais ou menos acirradas entre as diferentes unidades acadêmicas em torno da legitimação desse processo de profissionalização, as múltiplas concepções de docência e de escola que circulam e orientam as reformas curriculares dos cursos de licenciatura, o desprestígio das licenciaturas no seio da cultura universitária, são exemplos de realidades tangíveis que se manifestavam nos mais variáveis gestos acadêmicos.
O reconhecimento da universidade pública como o lócus de formação do professor da Educação Básica representou tanto desestabilizações de discursos hegemônicos sobre a formação desse profissional quanto a produção de outros antagonismos no processo de significação desse ofício. Com efeito, o processo de universitarização, ao trazer para o centro da reflexão a pertinência e a importância da imersão na cultura universitária do sujeito posicionado como futuro professor, tende a desestabilizar os discursos sobre a formação docente que priorizam as demandas e as singularidades epistemológicas do lugar incontornável da prática na atuação desse futuro profissional.
A hipótese na qual vimos apostando consiste em afirmar que esse movimento de desestabilização resultante da consolidação do processo de universitarização traduz menos uma disputa pelo “lócus” mais adequado para a formação do professor do que um posicionamento na luta pela definição e pela legitimação dos saberes fixados nos currículos com os quais esse futuro profissional se relaciona ao longo do seu percurso formativo. O que está em jogo é, portanto, menos a escolha de um ou outro contexto formativo do que a legitimação dos conhecimentos neles produzidos.
Os efeitos dessa afirmação devem ser redimensionados quando sabemos que essas escolhas e legitimações são feitas em meio a um sistema hierarquizado de saberes historicamente construído, reativado nos debates sobre formação docente, reforçando visões dicotômicas que colocam em polos opostos teoria e prática, bacharelado e licenciatura, pesquisa e ensino, cultura universitária e cultura escolar. Entrar na disputa pela definição de uma política de formação docente, deslocando a fronteira do que define, ainda que contingencialmente, o que está sendo e o que não está sendo uma formação docente de qualidade, intervindo por dentro dos currículos de licenciatura, significa borrar as linhas divisórias hegemonicamente fixadas, demarcar outras fronteiras e produzir outros antagonismos.
Importa sublinhar que a defesa do sentido de comum como orientação política tal como defendido ao longo do processo não nega a existência de um “bem comum”, mas o desloca em termos de sua definição e funcionalidade discursiva no debate político. “[...] todo comum que é instituído é um bem, mas nenhum bem é por si comum” (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 4, grifo dos autores). Essa compreensão desnaturaliza o sentido “de bem comum” como se fosse algo “naturalmente intrínseco a certos tipos de ‘bens’” (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 4). Um bem comum é um bem que é instituído em meio às lutas hegemônicas e que, uma vez instituído, deixa de ser propriedade de alguém ou de algum grupo. Afinal,
[...] o que está em questão não é a apropriação do comum para o que ele se destina, mas apropriar-se da conduta dos membros do coletivo. O objetivo é garantir, através de normas de uso coletivo, que o comportamento de apropriação predatória não desvie do objetivo de uma específica destinação social em comum. Em outras palavras, o objetivo é regular o uso do comum sem precisar fazer-se seu proprietário, isto é, sem conceder a si o poder de dispor dele como seu dono supremo (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 7).
Desse modo, agir politicamente em termos de formação dos professores da Educação Básica significa menos a adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, do que a participação na produção das normas e da gestão das atividades ou tarefas que a constituem. Nessa perspectiva, não cabia mais pensar os currículos de licenciatura a partir de dosagens maiores ou menores de saberes teóricos ou práticos, de cultura universitária ou cultura escolar, de pesquisa ou ensino. Tampouco de apoiar discursos bastante recorrentes, em diferentes áreas do conhecimento, que insistem em defender a necessidade de um currículo de licenciatura que se articule com o currículo de bacharelado por meio da incorporação e do compartilhamento de um “tronco comum” formado apenas por disciplinas desse segundo curso.
Nesses casos, a defesa do “comum” tende geralmente a ser uma estratégia para manter o binarismo entre bacharelado e licenciatura, na medida em que a interpretação desse conhecimento disciplinarizado, visto como um bem-comum a ser compartilhado entre esses dois cursos, é a universalização e a hegemonização dos conteúdos legitimados e validados nos currículos dos cursos de bacharelado, negando as particularidades de um currículo de licenciatura com identidade própria. A ideia de um tronco ou base “comum”, nesse caso, reafirma a inscrição desse significante no registro jurídico, naturalizando não apenas a ideia de conhecimento como um bem apropriável, mas também a sua hierarquização. Esse entendimento distancia-se do sentido de “comum” como princípio político, isto é, como ato instituinte de um comum, resultante da negociação permanente de diferentes interesses em jogo, fortalecendo, portanto, a sua articulação com a interface apropriação-pertencimento.
No que diz respeito ao diálogo com a cultura escolar, os desafios não foram menores. Se a importância atribuída à escola pública, laica e democrática bem como aos profissionais que nela atuam no processo de formação dos licenciandos era algo inegociável na construção desse espaço comum, o entendimento do papel da escola pública nesse processo formativo estava longe de ser consensual entre os vários sujeitos envolvidos. Não se tratava somente de articular com a escola, mas também e sobretudo de qualificar, de outra forma, essa articulação de modo a deixar claro que ela deveria ser feita com esses profissionais e não para eles.
Esse entendimento amplia o sentido de escola para além de um espaço com funções de qualificação, de subjetivação e de socialização (BIESTA, 2013), voltado para crianças, jovens e adultos escolarizados na Educação Básica. Na perspectiva da construção de um “terceiro-espaço”, como lócus de formação inicial e continuada de professores, isto é, um entre-lugar situado entre universidade e escola, essas funções, ou melhor, os sujeitos sobre quem essas funções se exercem são redimensionados, passando a incluir os futuros professores em formação. Com efeito, significada também como espaço de formação e lócus de atuação profissional, a escola e os sujeitos que nela atuam ocupam um lugar de protagonismo na política em questão, rompendo com as hierarquias estabelecidas entre essas instituições. Outra implicação desse entendimento para o diálogo com as escolas nesse processo foi o deslocamento do vínculo estabelecido para a formalização das parcerias, do indivíduo-professor/a para a escola como instituição. Dito em outras palavras, significava assumir em toda a sua complexidade a afirmação de uma formação docente por de dentro da profissão (NÓVOA 2017).
Em termos do desenho institucional, foi preciso pensar na configuração político-pedagógica de algumas instâncias-chaves para a dinamização dessa política de forma que sua composição e atribuições permitisse os deslocamentos de fronteira nos processos de significação de formação docente e respeitasse os princípios pactuados coletivamente. Era preciso redesenhar um espaço nas diferentes licenciaturas que desse conta do novo arranjo institucional pretendido. Um espaço capaz de articular sujeitos, territórios e saberes em torno de uma pauta comum sobre as questões que envolvem a licenciatura de uma área disciplinar específica e que se inscreve entre a universidade/curso de licenciatura e o grupo de escolas com o qual essa licenciatura estabelece parceria; entre a cultura universitária e a cultura escolar.
Para tal, está sendo criado um espaço de referência institucional em cada licenciatura - Núcleo de Planejamento Pedagógico das Licenciaturas (NPPL) - de cunho consultivo e responsável pela gestão das demandas que interpelam esse contexto de formação, reunindo representantes das três diferentes atividades acadêmicas - pesquisa, ensino e extensão -, que configuram os currículos das instituições do Ensino Superior, coordenadores de programas governamentais voltados à formação inicial e/ou continuada dos professores, licenciandos e professores da Educação Básica que atuam nas escolas parceiras, responsável pela gestão das demandas que interpelam esse contexto de formação. Esses núcleos integradores têm como intuito contribuir para que a universidade logre “[...] em garantir uma formação docente realmente universitária” (SARTI, 2012, p. 331) e, simultaneamente, envolva os professores da Educação Básica “na produção de seu novo lugar profissional” (SARTI, 2012, p. 329). A presença das escolas parceiras ao longo de todo o processo de formação inicial docente, por meio de sua representação nesse novo lugar institucional, foi uma das estratégias encontradas para os professores da rede deixarem de ocupar “o lugar do morto”, ou do “referencial passivo” (NÓVOA, 1995; SARTI, 2012) na formação de seus futuros colegas de profissão.
Além disso, outras ações político-pedagógicas vêm sendo implementadas para dar materialidade e visibilidade a essa rede interinstitucional de formação docente. Entre elas a criação de um espaço virtual interativo, atualizado a cada semestre letivo, indicando para todos os sujeitos envolvidos e interessados os diferentes percursos de formação inicial e continuada possíveis e disponíveis.
4 ARREMATES E FIOS SOLTOS
Entre os desafios enfrentados na construção de um comum insurgente como proposto nessa política, destaca-se a força das marcas da tradição que se manifesta em demandas de diferentes naturezas. Deslocar a ideia de “comum” nos moldes aqui apresentados significa desestabilizar status e prestígios de áreas de conhecimento, ações acadêmicas, contextos de formação. Significa, igualmente, problematizar processos de identificação pautados em pertencimentos e apropriações de um bem-comum naturalizado como tal. Significa, também, reconhecer e operar com o papel da contingência na produção de Currículo, entrando nas disputas, assumindo fechamentos provisórios, puxando outros fios. Nesse movimento, são vários os arremates e os fios soltos que ficam - sempre - a espera por costuras ou outros entrelaçamentos.
O receio da perda da autonomia por parte tanto de sujeitos quanto de unidades acadêmicas é um desses fios que participam da trama. Essa política vista, por alguns, como uma ameaça, tira todos que dela participam do seu lugar de conforto. Se a fragmentação e o isolamento da formação docente em cada unidade ou em cada sala de aula é objeto de crítica, ela tem como vantagem evitar o olhar do outro. Trabalhar e decidir no coletivo, como instiga e exige tal proposta, é expor também nossas fragilidades, nossas inseguranças. É diminuir nossa prepotência, exercitar a escuta, reconhecer nossas incompletudes.
Esses enfrentamentos fazem parte do jogo político. Afinal, a instituição de um comum não pressupõe a negação dos conflitos, mas, sim, a coprodução das normas que regulam o seu uso coletivo. O que importa é menos o direito de propriedade de um bem comum do que a participação democrática coletiva - com toda a sua conflitualidade - do uso desse bem instituído como comum. Não se trata assim, de apropriar-se de algo, seja de um bem ou de um direito, mas de “instituir o inapropriável” (DARDOT; LAVAL, 2017). Dessa forma, “[...] uma vez instituído, um comum não é alienável; a partir de então ele se instala na esfera de coisas que não podem ser apropriadas. Isto significa que ele escapa da lógica proprietária em qualquer de suas formas (privada ou estatal)” (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 5).
O ato de instituir o(s) comum(ns) é, por sua vez, a possibilidade de refundar ou reinstituir, em permanência, o Social de forma que o comum (como um princípio) não seja confundido com aquilo que é comum (como um atributo ou característica de certas coisas). Desse modo, agir politicamente significa menos a adesão a uma determinada comunidade, por mais amplo que isso possa ser, do que da participação na produção das normas e da gestão das atividades ou tarefas que a constituem.
Parafraseando Masschelin e Simons (2015), se a escola e a universidade são lugares nos quais o mundo comum é tornado público, visível para as novas gerações, o desafio consiste, então, em disputar a fronteira sempre aberta entre aqueles que participam e os que não participam ativamente do controle da coprodução das normas que fazem a gestão do que é validado como digno de visibilidade.
Esse movimento exige a reinvenção de “[...] instituições que funcionem explicitamente no sentido de impedir a apropriação por uma minoria, de proibir a deturpação de suas propostas e também de prevenir a ‘ossificação’ de suas normas” (LAVAL; DARDOT, 2016, p. 8). Essa exigência pode servir de eixo orientador para mantermos o termo “comum” como elemento potente em nossas reflexões do campo educacional e continuarmos assim, pensando politicamente, com ele, uma linguagem de possibilidades para o enfrentamento dos desafios postos na atualidade para a formação inicial e continuada dos docentes da Educação Básica.