1 INTRODUÇÃO
A crise atual na educação brasileira tem se estabelecido como consenso entre as entidades que representam as Instituições de Ensino Superior. Após os avanços vividos nesse campo nos últimos anos, como a aprovação de leis que implementaram o ensino da história indígena, da afro-brasileira e da africana, entre outros avanços - que fazem uma justiça histórica a populações tão violentadas e excluídas historicamente - , a educação, especialmente quanto ao ensino de história, coloca-se diante de um importante desafio: habilitar-se a trabalhar, de modo competente, a diversidade cultural. Contudo, atualmente, os profissionais da educação estão submergidos por uma política conturbada, sobretudo aqueles comprometidos em contribuir com necessárias mudanças no ensino. Somos contrariados pela possibilidade de uma reforma educacional, de caráter político tenebroso, em que se ameaça colocar em “xeque-mate” muitos avanços alcançados por meio de conquistas dos movimentos sociais e das discussões e produções dos que fazem a educação no Brasil.
Desse modo, entendemos ser as reflexões aqui realizadas de grande pertinência na atual conjuntura da educação nacional, e que também se tornam um desafio, principalmente quando os educadores são surpreendidos por certas notícias, como a de projetos de leis limitadoras do fazer docente, que por meio da pregação de uma “pseudoneutralidade”, tornam-o inerte, como defende o projeto de lei Escola Sem Partido. É notório que há um processo instaurador de fortes tensões para com a educação, sobretudo no que se refere aos cortes de verbas para pesquisas em ciências humanas, defendidos em discursos por setores políticos que desvalorizam nosso campo de atuação e que o tratam como um campo subalterno e desnecessário para o desenvolvimento do país.
Nessa perspectiva, dispor-se a falar sobre um ensino de reconhecimento à diversidade, e mais fortemente no que tange às minorias, parece ser desafiador não apenas para quem o faz, mas também para a própria sociedade. Diante desse desafio, apresentamos uma proposta didática para o ensino de história indígena, que encontrou na literatura um meio mobilizador da criticidade dos estudantes, numa perspectiva intercultural para com essa minoria perversamente atacada no atual cenário brasileiro. Para isso, consideramos os pressupostos teóricos abordados na discussão de educação intercultural, como propõe Vera Lúcia Candau (2008, 2012, 2016), ao mapear o conceito de educação intercultural, e Reilnaldo Fleuri (2003), ao apontar a importância dos movimentos sociais na construção de uma educação que supere a intolerância. Além da professora e historiadora Júlia Castro e do filósofo e historiador Jörn Rüsen, que atribuíram relevância à interculturalidade como categoria da consciência histórica na formação dos futuros cidadãos. Assim, refletir sobre a educação intercultural e o ensino de história indígena é, sem dúvida, relacionar duas temáticas em si entrelaçadas.
Na América Latina, os estudos com propostas de trabalho sobre o que é intercultural iniciaram-se a partir dos movimentos de reivindicações das populações indígenas na defesa de seus direitos, como asseguram Candau (2012, 2016) e Fleuri (2003). Nesses estudos, destacou-se a necessidade do desenvolvimento de políticas públicas que considerem o urgente olhar para a relação entre igualdade e identidade na construção de projetos que visam à consolidação da democracia. Portanto, a escola é a instituição central na implementação dessas políticas e desses projetos, na busca pelos avanços sociais dos grupos vulneráveis.
Entretanto, Candau (2016), junto a outras pesquisas de François Dubet (2011) e Diane Ravitch (2011), aponta que o modelo pelo qual se constituem a escola, o currículo, a gestão e as avaliações, em especial as de larga escala, suprime o debate sobre os sentidos da educação a partir de seus atores e contribui para uma tendência segundo a qual ensinar é instruir a passar em testes, e não educar. Assim, faz-se um alerta para esse modo de operar em prol da padronização’:
Parece que há uma única e verdadeira maneira de se pensar a escola, seus espaços e tempos, sua lógica de organização curricular, sua dinâmica e, até mesmo, sua decoração e linguagem visual. Tudo parece concorrer para afirmar a homogeneização e padronização (CANDAU, 2016, p. 807).
Vera Lúcia Candau (2012), que tem se dedicado sistematicamente ao tratamento do conceito de interculturalidade, desde 1996, destaca três perspectivas: a primeira, que diz respeito à superação das desigualdades a partir do reconhecimento dos diferentes grupos sociais e seus direitos humanos; a segunda, que defende a articulação entre políticas de igualdade e identidade considerando a interculturalidade, denominada também de multiculturalismo interativo1 numa perspectiva crítica, pois “concebe as culturas em contínuo processo de construção, desestabilização e reconstrução”; e a terceira, que convoca a inserção da escola e do pensar nas práticas educativas em novos formatos. A partir dessas perspectivas, promove-se uma educação intercultural. Uma educação valorizadora das diferenças em prol da descaracterização de uma escola homogênea, e que obriga a pensar no “outro” para além de uma cultura dominante.
O processo de colonização das Américas foi determinante para construir um padrão de cultura dominante, concebendo os europeus como os “desenvolvidos” e os “civilizados”, e os nativos como “bárbaros” e “selvagens”, não sendo considerados relevantes os saberes, atores e estruturas culturais dos indígenas que já habitavam o continente. Por isso, não se deve deixar de relevar a emergente necessidade em se trabalhar intensivamente no sentido de desconstruir a prática pedagógica nas escolas de tratar com superficialidade a cultura e a história dos mais de trezentos povos indígenas existentes no Brasil. Essas ideias reproduzidas nas escolas são, quase sempre, genéricas e folclorizadas, nas quais se entende que todas as comunidades indígenas têm cultura e política homogêneas, tratando o “índio” afastado de sua verdadeira realidade2. Assim sendo, enquanto essa representação do índio persistir no imaginário de nossos estudantes, mais difícil será a compreensão da cultura como dinâmica, o reconhecimento desse dinamismo como legítimo dos povos indígenas e o diálogo necessário entre os grupos sociais, que pressupõe uma democracia.
Construir estratégias didáticas no ensino de história, na perspectiva de promover uma educação intercultural, de modo a promover o diálogo com as culturas indígenas tem sido um desafio aos professores, sobretudo para aqueles que não tiveram acesso a essa discussão em sua formação. Com o objetivo de contribuir com essa lacuna, apresentamos uma sequência de atividades sobre o trabalho com a história indígena dos tupinambás. Todavia, a reflexão traçada sobre educação intercultural é parte de um projeto ambicioso de mudança estrutural do pensamento, da escola e da sociedade. Elucidou-se então, uma problemática de outra complexidade, a necessidade de avaliar essas práticas e a eficácia de seus objetivos.
Ou seja, é possível ser um professor bem sucedido em práticas inovadoras que propõem um novo olhar e visam diminuir as tensões perversas existentes no imaginário para com um grupo social, na contramão de uma sociedade que historicamente e epistemologicamente sustenta uma visão marginal desses grupos? Logo, concluímos não ser suficiente apenas propor as estratégias para sala de aula, mas é urgente analisar sistematicamente essas estratégias à luz dessas considerações, percebendo suas potencialidades e fraquezas quando nos propomos a trabalhar em prol de um projeto que pretende trazer mudanças tão significativas.
2 METODOLOGIA E ABORDAGEM TEÓRICA
Este trabalho volta-se à análise e ao relato de experiências realizadas com turmas do 7° ano do ensino fundamental em escola da rede privada do Recife. Buscamos perceber em que medida se estabeleceu um diálogo por meio dessa prática entre os(as) educandos(as) e a temática indígena, bem como suas concepções sobre esse universo cultural. Nesse sentido, concordamos com Giddens (1978, p. 171), quando afirma que cabe às ciências sociais:
a) A explicação hermenêutica e a mediação das formas de vida divergentes dentro das metalinguagens descritivas da vida social;
b) A explicação da produção e reprodução da sociedade como resultado executado pela atuação humana.
Para isso, por meio dos desenhos produzidos pelos(as) educandos(as), estabeleceu-se um contraponto com a representação do “índio” enquanto elemento de construção social de uma elite colonial e catequizadora, tendo por finalidade perceber as mudanças e as permanências no processo de construção dessa representação. Entendemos aqui que o indígena é personagem singular no imaginário social ontem e hoje. Portanto, a compreensão desse processo, por meio do viés comparativo, proporcionou o estabelecimento de critérios construídos com base na leitura simultânea de literatura especializada e da observação dos desenhos.
Nessa perspectiva comparativa, analisamos também as narrativas produzidas pelos(as) educandos(as), buscando perceber padrões que se relacionassem ao desenvolvimento de certa criticidade em suas percepções históricas, o que pode revelar, ou não, a presença do diálogo sociocultural proposto pela prática.
A abordagem escolhida para analisarmos as respostas dos(as) participantes consistiu na Teoria Fundamentada nos Dados, também chamada de GroundedTheory. Esta é uma metodologia surgida há mais de trinta anos, de caráter interpretativo, que foca no indivíduo (sujeito) evidenciando o contexto, cujo objetivo final é de formular uma teoria. Essa abordagem consiste na comparação constante dos dados, formulação de conceitos com base na criação de categorias (propriedades), definidas por uma descrição densa, e na relação entre conceitos e conjunto de conceitos, permitindo a interação e criatividade do investigador, estabelecendo e/ou percebendo padrões nos dados estudados. Como explicam Fernandes e Almeida (2001, p. 55):
Teoria é diferente de uma descrição de dados, construindo-se com base num conjunto de procedimentos e conceptualização(ões) no estabelecimento de relações plausíveis entre conceitos e conjunto de conceitos [...] O método groundedtheory tem como objetivo último gerar teoria que é constituída com base na recolha e análise sistemática e rigorosa dos dados e na orientação dos investigadores através de um processo indutivo na produção do conhecimento. Com efeito, se por um lado os procedimentos groundedtheory são bem definidos no sentido de conduzir uma interpretação com rigor e precisão, por outro permitem a criatividade [...].
Muitos dos estudos em educação histórica que utilizam essa abordagem têm sido orientados pelas reflexões teóricas epistemológicas trazidas por Jörn Rüsen (2007,2011). Esta abordagem nos permite perceber os padrões desenvolvidos pelos(as) educandos(as) em suas narrativas ao construir ou eleger conceitos orientados pelos princípios da educação intercultural, que são utilizados como basilares para a construção das propriedades do conceito. Nessa abordagem, o processo de análise dos dados brutos e da construção das categorias para uma conceptualização é denominado de codificação aberta. E esses foram os procedimentos que utilizamos para perceber a contribuição desta prática com relação à Educação Intercultural, elegendo a criticidade como conceito.
Amostra
Integraram como participantes deste estudo 25 educandos(as) do 7° ano do Ensino Fundamental de uma escola da rede privada do Recife.
Método
Como proposta de avaliação da prática, desenvolvemos a leitura coletiva de documentos produzidos por europeus nos séculos XVI e XVII. Realizou-se a atividade com papel e caneta, e nela os(as) estudantes deveriam argumentar sobre práticas, concepções e termos que envolviam os tupinambás. Com base na transcrição literal das respostas, foram analisadas as narrativas construídas na perspectiva rüseniana. De acordo com a análise dos dados, procuramos identificar os padrões relacionados à ideia de criticidade, propostos pela matriz conceitual de consciência histórica crítica de Rüsen.
3 O ENSINO DE HISTÓRIA E A INTERCULTURALIDADE
Júlia de Castro (2009, p. 226) tem se dedicado a pesquisas no âmbito da consciência histórica e das metodologias no ensino de História. Ela aponta que “[...] conceitos como os de relação, diversidade e universalidade são construtos centrais na matriz intercultural”. Pensar na intercultura, nesse sentido, é reconhecer que em determinados momentos da história, ideias com perspectivas universais foram incorporadas às demandas políticas. Um exemplo é a catequização dos indígenas na colonização portuguesa, que por meio de um projeto cristianizador visou eliminar as formas, os costumes e as identidades nativas para sua dominação, elegendo o “padrão cristão” como universal. Nos processos que visam homogeneizar comportamentos, e principalmente identidades, sempre é eleito um padrão superior, e, a partir da imposição desse padrão, começam a surgir os dualismos sociais conflituosos. Ao falar que, por muitas vezes, a escola tem reproduzido essa versão de um padrão cultural superior, Fleuri (2003, p. 18) elenca esses dualismos e alerta sobre a visão que essa versão passa daquelas culturas que não se encaixam neste padrão hegemônico:
[...] (colonizadores x colonizados; mundo ocidental x mundo oriental; saber formal escolar x saber informal cotidiano; cultura nacional oficial x culturas locais, etc.), contribuindo para a manutenção e difusão dos saberes mais fortes contra as formas culturais que eram consideradas como limitadas, infantis, erradas, supersticiosas.
A observação de Fleuri é muito pertinente quando pensada na perspectiva do ensino. De forma semelhante, Foucalt, por meio de suas reflexões filosóficas, também releva contribuições significativas para o âmbito da educação, entendendo que a escola aos moldes modernos:
[...] foi sendo concebida e montada como a grande (e mais recentemente) a mais ampla e universal - máquina - capaz de fazer dos corpos, o objeto de poder disciplinar; e assim torná-los dóceis. Além do mais a escola é depois da família (mas, muitas vezes, antes dessa), a instituição de sequestro pela qual todos passam (ou deveriam passar...) o maior tempo de suas vidas no período da infância e da juventude (FOUCALT apud VEIGA-NETO, 2011, p. 70-71).
Nesse sentido, por muito tempo a escola foi uma grande máquina de produzir sujeitos que se enquadrassem e se aceitassem no padrão hegemônico, numa tentativa de universalizar os indivíduos. Ao mesmo tempo, violentava e gerava em grande parte sujeitos também violentos, cúmplices, ou omissos à violência contra quem não se encaixava nesse padrão. E foi por meio da luta, justamente dessas pessoas “despadronizadas”, que se começou a pensar numa mudança no papel da escola no sentido de se relacionar com o outro; pois o que se constatou foi que “[...] as diferenças étnicas e culturais, aparentemente negadas, de fato não desapareciam, mas se transformavam em desigualdades sociais e em processos de marginalização” (FLEURI, 2003, p. 19).
Na América, constatou-se, por meio de vários estudos da década de 1960 que muitas crianças de línguas nativas tiveram baixo rendimento escolar, assim como aumentou o índice de evasão escolar3 - possivelmente, justificado pelo projeto de educação homogeneizadora de cultura e de conhecimento. A escola, nesse contexto, deve ocupar um lugar de fundamental importância no sentido de contribuir positivamente para a diminuição desses processos de marginalização, formando sujeitos que respeitem as diferentes culturas.
Considerando as particularidades do processo histórico, demandas sociais e políticas de cada sociedade, o debate intercultural pode ser capaz de revelar os problemas mais urgentes e profundos que assombram a escola e, consequentemente, a sociedade, ao mesmo tempo em que busca promover soluções. Sendo assim, nos propomos a refletir sobre esse campo, entendendo educação intercultural na perspectiva que tem sido trabalhada por Stephen Stoer e María Luiza Cortesão ao afirmarem que “[...] o termo educação intercultural tem sido utilizado para indicar o conjunto de propostas educacionais que visam promover a relação e o respeito entre grupos socioculturais, mediante processos democráticos e dialógicos” (FLEURI, 2003, p. 17). Nessa ótica, entendemos que essas propostas não se limitam a uma escala macro ou micro na educação, podendo concretizar-se em leis institucionais, bem como no exercício diário de cada docente ao pensar em estratégias que proporcionem o diálogo e minimizem conflitos e marginalizações culturais e sociais no contexto local, regional, nacional ou global.
Como nos propomos aqui a pensar a partir do ensino de história, concordamos com Castro (2009, p. 226) que “[...] a reflexão teórica sobre a interculturalidade aponta a História como uma das ciências Humanas onde a experiência da alteridade e da diversidade emerge com frequência”, e que ao promover uma História intercultural é necessário saber que a história, enquanto disciplina, “[...] não pode ser um repositório de exótico, do estranho ou do incomensurável distante” (p. 229). É preciso dar uma visão múltipla da realidade aos(às) educandos(as), interpretando a realidade e compreendendo-a diante de um contexto. As culturas devem ser vistas como dinâmicas e mutáveis, e não como estáticas e fixas. Portanto, essa forma de promover uma Educação Histórica Intercultural pode permitir aos jovens uma experiência multiperspectivada e complexa, numa visão temporal.
Isabel Barca (2009) trabalhou em um projeto que buscava refletir sobre as concepções epistemológicas no ensino de história entre alunos e professores. Ela considerou que a utilização de fontes históricas e da interculturalidade são elementos essenciais para a formação de uma consciência histórica no ensino. As pesquisas e produções realizadas no projeto apontam esses dois elementos como sendo os menos estruturados e menos compreendidos pelos(as) educandos(as), nos fornecendo uma noção de como se tem lidado com essas questões na prática educacional - como bem aponta Barca (2009, p. 53) ao dizer que: “é preciso pesquisar o terreno para favorecer a mudança.”
Assim sendo, neste trabalho compartilhamos os resultados de uma experiência que visa contribuir para o processo de mudança apontado pela Lei 11.645/08, que implementa a obrigatoriedade do ensino de história indígena, vivida em sala de aula e suas respectivas implicações. A referida lei é resultado de uma luta política e histórica de povos indígenas no Brasil e de outras organizações, e tem como marco histórico a Constituição de 1988. As lutas políticas e as leis voltadas para a questão indígena no Brasil foram modificando as realidades no ensino nacional, tanto que, atualmente, há uma tendência nos livros didáticos por uma história integrada, que é a história de base europeia com temas da história do Brasil, da africana e da americana, integrados a ela4. Portanto, faz-se necessário especificar o entendimento que se tem sobre história indígena neste trabalho.
Para isso, é preciso lembrar que, por muito tempo, em discussões entre antropologia e história, principalmente durante o século XIX, considerou-se que os indígenas não tinham história, estes possuíam apenas a etnografia, e esta deveria ser preocupação dos(as) antropólogos(as) - o que aproxima esse contexto da nossa realidade brasileira da frase de Adolfo Varnhagen, escrita em sua “História Geral do Brasil”, de 1854, no qual afirma sobre os índios que “[...] não há história, há apenas etnografia” (VARNHAGEN apud MONTEIRO, 1995, p. 221).
Para além do processo colonizador que devastou a população indígena brasileira, esta população também foi vítima de um silêncio histórico, pois suas narrativas eram desconsideradas, e suas historicidades, incompreendidas. As preocupações da academia com essas questões são importantíssimas no sentido de desconstruir essa visão, como indica Cavalcante (2011, p. 354):
E apesar desse quadro histórico, hoje, ainda que seja claro que as diversas culturas possuem diferentes historicidades (SAHLINS, 2003), é quase inquestionável a ideia de que os povos indígenas têm história, visto que há dinamismo cultural e que ele é facilmente observável [...]
Esse modo de ver a história, construído fortemente pela historiografia na década 1970, privilegia o cultural, o diálogo com os outros campos de conhecimento, em especial a antropologia, acolhendo múltiplos objetos e ferramentas. Nesse contexto, Roger Chartier destaca, em seu livro “A história ou a leitura do tempo”, o pressuposto de que toda história (econômica, política, demográfica, etc...) é cultural, visto que todas elas são resultados das significações dos indivíduos.
Nessa perspectiva, o campo de conhecimento com que este trabalho visa contribuir é o do Ensino de História, especialmente, o Ensino de História Indígena no Brasil. Em se tratando da história indígena nas Américas e do processo histórico de colonização ao qual fomos submetidos, olhar para a história indígena é algo delicado, requerendo um cuidado redobrado do(a) educador(a), que ao deparar-se com a obrigação de implementar a temática indígena na sala de aula, muitas vezes vê-se perdido(a), visto que não tem o conhecimento de como desenvolver essa temática. Assim, o historiador Cavalcante (2011, p. 364-369) aponta que é fundamental a desconstrução da visão eurocêntrica evolucionista. Ou seja,
[...] uma história indígena que não seja temporalmente determinada pela história colonial [...] É preciso, também, promover a descolonização do discurso histórico, isso é possível a partir do momento em que os povos indígenas sejam tomados como sujeitos históricos plenos [...] noção de isolamento precisa ser relativizada [...], não pode reproduzir o discurso do “índio eterno” estereotipado e exótico.
Nesse sentido, abordar a história indígena de forma que ela não esteja determinada pela história colonial é, talvez, desmembrar essa história do processo colonizador e buscar produzir uma narrativa cujo elemento central não seja o que vem depois, e sim considerar historicidades e estruturas culturais dos próprios povos indígenas, seus símbolos, estabelecendo relações para além dos conflitos e de uma visão dualista do processo. Ao apresentar essa narrativa contextualizada, parece ser possível colocar colonizadores e indígenas em um patamar de equidade histórica, atribuindo o protagonismo histórico aos indígenas, por meio de suas lutas e formas de resistências.
Fato importante, desse modo, é não se limitar a uma história indígena apenas colonial, mas também observar a história desses povos antes da colonização. Evidenciar histórias e personagens indígenas durante o processo de dominação, citar exemplos de momentos de guerras, como a confederação dos tamoios e expulsão dos holandeses em que o apoio indígena aos europeus foi determinante; problematizar a versão da chegada e de termos como o da dominação dos portugueses, no caso do Brasil, elencando as alianças feitas entre indígenas e colonizadores, inclusive por meio de casamento desses com filhas de chefes nativos; discutir estratégias dos colonizadores para se estabelecerem na terra, que em troca de alianças de guerra, ofereciam apoio a grupos indígenas rivais, potencializando as guerras entre os grupos indígenas; apontar a proporção com que as doenças trazidas por esses exploradores atingiram as populações nativas, travando uma verdadeira guerra biológica, a ponto de ser motivo para a maioria das mortes entre eles, demonstram ser boas alternativas para exemplificar em sala de aula a descolonização do discurso.
Além dessas considerações, é relevante para o estudo ressaltar que o termo “índio” é um termo generalizante, e que não condiz com a realidade de diversidade de povos e culturas existentes na América, preferindo-se atualmente termos como “indígena”.
Contudo, as necessidades que surgem do mundo atual, virtual e globalizado no século XXI requerem cada vez mais uma reflexão sobre as práticas docentes. Por muito tempo a educação manteve-se baseada no paradigma newtoniano-cartesiano, entre o século XVIII até século passado, com forte influência do processo de industrialização. Esse modelo tem como característica uma educação tecnicista com perspectiva fragmentada e reducionista, que não supre as necessidades de um mundo globalizado e pós-moderno, como se apresenta o século XXI. Beherens (2012, p. 165), em experiências com formação de professores, tem mostrado que “[...] os docentes anseiam por procedimentos de ensino que deem conta da visão crítica e reflexiva da educação”. Pensar e repensar sobre novas práticas pedagógicas é parte fundamental do processo para uma educação crítica e reflexiva. Para isso, o docente deve entender que precisa desempenhar um papel político e ético dentro do ambiente escolar, enxergando na Lei 11.645/08 mais do que uma mera obrigação a ser cumprida.
Para Paulo Freire, existe uma ética universal do ser humano, a qual o(a) educador(a) deve seguir com responsabilidade em sua função de formar. Uma ética que se preocupa com o ser humano, repudia o racismo, a exploração do(a) trabalhador(a), a hipocrisia, a mentira e a agressão ao indefeso. Uma das formas pelas quais esta ética passa a fazer parte do processo de formação do(a) educando(a) é por meio do exemplo do(a) educador(a), ou seja, o(a) educador(a) deve viver aquilo que ensina. A crença nesta ética universal do ser humano requer, às vezes, uma postura política do educador(a), que testemunha com ações políticas coerentes, como afirma Paulo Freire (1996, p. 10), ao dizer que: “[...] a melhor maneira de por ela (a ética) em prática é lutar, é vivê-la”.
É preciso, além de tudo, que o docente entenda que esta lei é resultado de anos de luta. Que ela é um dispositivo legal que representa o comprometimento do Estado com uma população que foi - e ainda é - massacrada e devastada pelo processo de colonização e pela atual política de Estado, o que traduz suas permanências em nossa realidade no tempo presente. Para perceber isso, basta observar o tratamento de temas polêmicos, que são abordados na pauta da política nacional, como: a demarcação de territórios indígenas e o confronto com os proprietários rurais, o suicídio indígena e o preconceito para com essas culturas. Todas essas problemáticas nos fazem perguntar: progresso para quem?
Trazer a reflexão sobre a violência que o projeto colonizador cristianizador provocou nas populações indígenas é uma necessidade inadiável, e manter o silêncio em relação a essas temáticas ajuda a perpetuar essa violência.
Nessa direção, entendemos a pertinência da Lei 11.645/2008 e as indagações: Como abordar essa temática? E quais fontes utilizar? Tais inquietações nos impulsionaram a desenvolver uma prática voltada para o ensino de história indígena. Nessa perspectiva de intervenção, construímos nossa prática, que se deu em uma experiência em sala de aula, e que relataremos em seguida, na intenção de contribuir com alguns apontamentos para tantos questionamentos.
3.1 Sobre o uso da Literatura na aula de História
As demandas sociais e políticas nacionais referentes aos indígenas chamavam nossa atenção sobretudo pela constituição da disciplina de história no Brasil, visto que se deu por uma preocupação monárquica, que objetivava dar à nação os ideais de civilização e que, consequentemente, tornou-a uma matéria eurocêntrica que anulava as populações indígenas desse projeto de nação. Assim sendo, isso nos faz entender que essas problemáticas merecem um tratamento específico pela história, enquanto componente curricular, visto que, como explica Circe Bittencourt (1990, p. 62):
A nação brasileira era cristã, originária do branco civilizado nos moldes europeus. Criava-se a pátria brasileira sob a égide da civilização ocidental. A História da Pátria constituía-se dentro da perspectiva de pertencer ao mundo civilizado e cristão. A História Nacional compunha-se da relação entre o passado da Antiguidade ocidental, do mundo medieval e moderno com o processo do branco no espaço brasileiro.
A partir desse apontamento, podemos entender que a representação que se construiu do nativo no Brasil, no ensino de história, teve forte influência da visão do colonizador, sendo os nativos uma “gente paupérrima”5, selvagens distantes da civilização. Essa perspectiva colonial, envolta pelas operações das relações políticas e ideológicas do império6, complexifica-se por meio do ensino pautado no projeto de nação idealizado no século XIX, em que era omitida a presença indígena no país. Essa noção vai começar a ser modificada a partir da década de 1930, com os estudos antropológicos7. Contudo, a representação do indígena pautada pela visão do colonizador europeu já havia deixado sua marca em nossa história, formando um imaginário social preconceituoso sobre estas populações.
Desse modo, neste trabalho, relevamos o período pré-colonial em relação à história indígena, e, neste caso, a questão das fontes se torna um tanto quanto delicada. Afinal, tratar da temática indígena nos períodos pré-colonial e colonial merece uma atenção redobrada, visto que a maioria das fontes (escritas) é sobre os indígenas, e não feita por eles, apresentando, portanto, uma forte perspectiva baseada na visão do colonizador.
Foi atentando para este aspecto que escolhemos a obra “Meu destino é ser onça”, de Alberto Mussa, para constituir fonte principal desta prática. A obra de Mussa é uma reconstrução literária de um mito tupinambá. Uma narrativa cosmogônica elaborada com base em relatos de cronistas contemporâneos aos tupis, entre os séc. XVI e XVII. Mussa é um escritor contemporâneo premiado e tem desenvolvido diversas obras literárias que se destacam por apresentar uma verossimilhança com os contextos históricos abordados. Seu interesse por culturas não ocidentais é uma marca, e este livro é um dos resultados.
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, encontra-se a narrativa mitológica construída por Mussa, e na segunda, ele descreve todo o caminho teórico utilizado para a construção da narrativa. Sabemos que existem muitas ressalvas e conflitos entre a história e a literatura, mas, assim como Chartier (2009, p. 27), reconhecemos que “[...] o fato da literatura se apoiar no passado e também fazer usos de técnicas que configurem como real, faz as fronteiras entre história e ficção ficarem cada vez mais estreitas”. Nessa perspectiva, acreditamos que a literatura tem muito a contribuir com o ensino de história, e no caso do estudo dos indígenas no período pré-colonial, parece ter se mostrado como uma alternativa com relevante potencial pedagógico.
A escolha da obra de Mussa ocorreu, especialmente, pelo caráter êmico8 contido na narrativa, construída como se fosse contada pelos próprios tupinambás. Logo, pensamos em desenvolver com os(as) educandos(as) a leitura da obra, por meio da contação da história. Estruturamos nossa prática seguindo a seguinte sequência: 1) Leitura; 2) Debate sobre o capítulo lido; 3) Transcrição de roteiro; 4) Produção de desenhos; 5) Realização de mostra de culinária indígena; 6) Leitura de relatos de cronistas; e 7) Aplicação de questionário sobre a experiência.
Essa experiência foi realizada entre os meses de abril e maio de 2016. A aplicabilidade ocorreu da seguinte maneira: as leituras eram realizadas nos momentos de aula. Nesses momentos, nós buscávamos criar um ambiente diferenciado na sala, colocando as cadeiras em círculos, deixando os(as) educando(as) o mais à vontade possível; muitos se deitavam no chão e outros se aproximavam o mais perto possível da contadora da história. Dividimos a leitura em seis partes, de acordo com os capítulos selecionados. E ao final da leitura de cada trecho, realizávamos debates levando em consideração a compreensão da sociedade tupinambá, bem como propúnhamos aos(às) educandos(as) um roteiro com base na leitura feita, por meio do qual eles(as) mesmos(as) deveriam desenvolver a produção de desenhos sobre a leitura. Ao trabalhar a obra, o docente deve ter alguns cuidados, dependendo da faixa etária dos discentes com os quais vai construir a prática, pois a narrativa possui trechos relacionados a estupros e incestos. Para a turma escolhida, foram selecionados os seguintes capítulos: 1) Um ornamento para o céu; 2) Sob o domínio de Anhaga; 3) Demanda da terra sem mal; 4) Dois cocares de fogos; 5) Dilúvio universal; e 6) Terceira humanidade.
Todos os alunos se mostraram bastante interessados pelo conteúdo da história e pela apresentação do autor e da obra. Iniciamos a leitura do capítulo 1 propondo: Vamos fazer como os tupis faziam em suas aldeias! Então eles seriam os curumins (crianças), e a contadora seria o pajé. Quando o pajé contava as histórias, os curumins se sentavam em círculos e escutavam atentamente as histórias do pajé. E assim foi feito. Todos(as) deslocaram as cadeiras e, animados(as), ficaram atentos(as) para a leitura. Essa introdução sempre era feita durante as aulas. A leitura era feita sempre de uma maneira lúdica, e os(as) educandos(as) se mostravam bem interessados e envolvidos.
Roteiro 1- Um ornamento para o céu: 1) O Velho cria a terra; 2) O Velho cria o homem da árvore; 3) Os homens não trabalham; 4) O Velho manda fogo para terra e o Pajé do Mel é salvo; 5) O Velho cria Tupã, que com a chuva apaga o fogo da terra; e 6) O Velho cria a mulher e vira uma estrela.
Atividade: Em uma folha de papel ofício, produza desenhos seguindo o roteiro fornecido, colorindo-os. Não se esqueça de colocar o cabeçalho no verso e o título do capítulo.
Em um dos capítulos narra-se a seguinte história: “A mando de sua mãe, dois curumins foram para o mato pegar Juá, e, ao cumprir esta tarefa, depararam-se com um curumim (menino). Enquanto recebia socos dos garotos, chovia: batata-doce, mandioca, milho e feijão. A mãe dos garotos, desconfiada da origem dos alimentos, resolve segui-los durante a tarefa. Depois de observar o realizado pelo curumim, a mãe aparece aos três e amarra o curumim, com o objetivo de levá-lo para aldeia, para que este fornecesse alimento eternamente para sua tribo. O curumim, então, ensina a mulher como praticar a agricultura, em troca de sua liberdade”. “E, por ter sido a mulher a receber esse conhecimento, são elas que até hoje plantam” (MUSSA, 2009, p. 67) No final da leitura, discutimos sobre o trabalho da mulher tupinambá como responsável pela agricultura, cerâmica e produção de remédios. Desse modo, podemos enfatizar a diversidade de etnias indígenas no passado e no presente, apontando alguns problemas enfrentados pelos indígenas atualmente, ressaltando que as culturas são dinâmicas, transformam-se com o passar do tempo e mesclam-se os seus elementos com os de outras culturas. Para finalizar, passamos as devidas orientações para a realização da mostra de culinária indígena, fundamentamo-nos no trecho lido. Assim, em grupos, deveriam trazer um prato de comida que contivesse algum dos seguintes alimentos: batata-doce, mandioca ou milho.
Feito isso, informamos que na aula indicada iríamos fazer um momento diferenciado, em que os grupos compartilhariam os alimentos entre si. Antes da degustação, introduzimos que a nossa alimentação carrega consigo uma história, aquilo que comemos é resultado do legado que nossos antepassados nos deixaram, muitas vezes unido às nossas (re)significações. No Brasil, a culinária indígena está muito relacionada aos pratos compostos por peixe9, e muito do conhecimento que temos hoje sobre o uso da medicina natural foi passado pelos indígenas.
A experiência parece ter sido muito rica, constituindo-se como uma abordagem interdisciplinar, na medida em que auxiliamos os(as) educandos(as) na compreensão do mundo, explorando as potencialidades de outros campos de conhecimentos. Atuamos de maneira que a visão de um mundo parcelado é limitada, mas na contramão disto, entendemos que tudo está conectado - como explica Silva (2013, p. 20) sobre a interdisciplinaridade, esta que se “[...] constitui no conjunto de ações interligadas de caráter totalizante, isentas de qualquer visão parcelada, e que tem por objetivo a superação das fronteiras entre os diversos ramos do saber”. Nessa perspectiva, trabalhar com a literatura e a culinária se tornou uma soma positiva na construção do conhecimento histórico. Trazer a alimentação como parte dessa experiência parece ter feito com que os(as) educandos(as) percebessem que a história dos indígenas no Brasil não é só algo do passado, mas também do tempo presente, contribuindo para a formação de uma consciência histórica, pela relação passado-presente. Desse modo, os indígenas tornam-se agentes ativos da história, produtores de cultura e construtores de saber.
No encontro final, distribuímos fichas contendo documentos de cronistas que conviveram com os tupinambás e escreveram sobre eles. Os documentos utilizados foram extraídos do livro “Brasil: a história contada por quem viu”, do historiador Jorge Caldeira10.
Realizamos uma leitura dirigida dos três textos. Os(as) educandos(as) logo percebiam uma visão distorcida dos europeus para com os tupinambás. Alguns apontaram que os europeus falavam de inferno no mundo tupinambá, porém inferno não existia no mundo tupi. Também mencionaram que os europeus não entendiam a cultura tupinambá, além de os chamarem de “selvagens”, como se eles fossem ruins. Após a leitura e discussão, aplicamos o questionário. Por meio da análise das respostas dos(as) educandos(as) aos questionamentos e também pelas imagens, investigamos, a partir desta prática, o processo de formação de uma consciência histórica crítica e a contribuição dessa prática na perspectiva intercultural.
3.2 A linguagem das imagens
Considerando que pensar em uma educação intercultural deve levar o(a) educador(a) a desenvolver propostas estratégicas que se preocupem em promover o respeito e o diálogo, e, considerando as diversidades e as identidades, optamos por produções de desenhos espontâneos que retratassem o conhecimento de cada um sobre o indígena. Visamos com esta prática contribuir para a promoção de uma Educação Intercultural. Para atingirmos tal objetivo, consideramos como corpus de análise as produções dos(as) educandos(as) realizadas durante a prática, bem como as considerações de Candau (2011, p. 47-54) sobre os objetivos pretendidos nas estratégias interculturais, que devem:
a) Procurar aumentar a consciência das situações de opressão que se expressam em diferentes espaços sociais; b) Propiciar ao/à estudante a aquisição de informações referentes a distintos tipos de discriminação e preconceito; c) Estimular uma imagem positiva dos grupos subalternizados; d) Favorecer a compreensão do significado e da construção de conceitos que têm sido empregados para dividir e discriminar indivíduos e grupos, em diferentes momentos históricos e em diferentes sociedades; e) Facilitar ao/à estudante a compreensão e a crítica dos aspectos das identidades sociais estimulados pelos diferentes meios de comunicação; f) Propiciar ao aluno a possibilidade de novos posicionamentos e novas atitudes que venham a caracterizar propostas de ação e intervenção; g) Articular as diferenças.
Assim sendo, consideramos que uma abordagem qualitativa compreenderia uma forma mais adequada para análise neste estudo, visto que esta possibilita maior abertura ao investigador, que compreende os sujeitos da pesquisa em suas subjetividades. Para analisar as imagens, procuramos perceber como os(as) educandos(as) representavam os indígenas. Considerando a teoria da recepção literária11, criaram-se indicadores, tomando como base os construtos representativos de colonização do índio, observados pelo historiador Ronaldo Raninelli em seu livro “Imagens da colonização: a representação do índio de Caminha a Vieira”12.
Para analisar as respostas dos(as) educandos(as), utilizamos a abordagem da teoria fundamentada dos dados, uma abordagem que tem sido utilizada em muitas pesquisas em Educação Histórica para compreender as realidades entre educandos(as) e suas concepções dentro do ensino de História. A partir da transcrição literal das respostas, analisamos as narrativas procurando identificar padrões relacionados ao desenvolvimento de criticidade e interculturalidade.
Analisamos 119 imagens produzidas durante a prática. Os procedimentos de análise de imagem consistiram em: observação e marcação dos indicadores presentes em cada imagem, seguidos de anotação para contabilização. Sendo assim, um só desenho pode conter a presença de vários indicadores.
Os indicadores construídos e os seus respectivos resultados contabilizados foram: 1) Relação com estruturas culturais e narrativas ocidentais, presente em 65% das imagens. Nesta categoria, percebemos que por muitas vezes os(as) educandos(as) recorriam às estruturas conhecidas de sua cultura para representar um universo que era retratado de uma maneira totalmente diferente na narrativa tupinambá. Um exemplo é a representação do formato da terra. Na narrativa tupinambá, aparece de forma plana, contudo os(as) educandos(as), em sua maioria, sempre representavam a terra como um globo. Outro exemplo desse fenômeno refere-se à representação de casamentos em meio à floresta com um noivo de terno e uma noiva de vestido branco e véu.
Os outros indicadores foram: 2) Retratação da nudez indígena, em que considerávamos a exposição de qualquer parte do corpo a nudez, sem vestimenta. Embora utilizemos o termo nudez, as imagens apresentaram corpos seminus no geral, e os(as) educandos(as) tiveram uma maior dificuldade para expor a nudez feminina. Estas características compõem 60% das imagens.
A natureza também foi um elemento de destaque na representação dos(as) educandos(as), assim como remete à representação colonial sobre o indígena, a ela reservamos o indicador: 3) Relação harmônica com a natureza, retratada em 56% das imagens. Por fim, como destaca Raminelli (1996), os cocares, arcos e flechas e pinturas sempre chamaram a atenção dos colonizadores. Referenciados em suas narrativas, também o foram pela maioria dos(as) educandos(as). Esses elementos foram enquadrados no último indicador criado, 4) Elementos estéticos indígenas, correspondendo a 71% das imagens.
Foi a partir desses elementos, apontados por Raminelli (1996), que nos baseamos para eleger os indicadores construídos. Com base em Chatier (1990), ao discutir que as representações por meio das quais os humanos se comunicam refletem, por vezes, modelos convencionais construtos da cultura. Nessa perspectiva, parece que a representação colonial parece ter proporcionado um modelo no que se refere ao imaginário social sobre o indígena. E as características representadas pelos(as) educandos(as) em suas imagens referenciam, em parte, essa visão.
3.3 Os sentidos das narrativas
3.3.1 Perguntas de partida
1) Como os tupinambás entendiam a criação do universo?
2) Porque os tupinambás praticavam o canibalismo?
3) O que você acha do termo “selvagem”, pelo qual os tupis foram chamados?
3.3.2 Análise de dados
Por meio da codificação aberta dos dados, procuramos identificar padrões relacionados à ideia de criticidade, propostos pela matriz conceitual de consciência histórica trabalhada por Jörn Rüsen. As dimensões utilizadas foram os elementos e fatores indicados pela narração relativos às orientações temporais propostas por Rüsen. São estas:
1) A experiência do tempo | Desvios problematizadores dos modelos culturais e de vida atuais. |
2) Formas de significação histórica | Rupturas das totalidades por negação de sua validade. |
3) Orientação da vida exterior | Delimitação do ponto de vista próprio diante das obrigações preestabelecidas. |
4) Orientação da vida interior | Autoconfiança na refutação de obrigações externas - role-playing. |
5) Relação com os valores morais | Ruptura do poder moral dos valores pela negação de sua validade. |
6) Relação com o raciocínio moral | Crítica dos valores e da ideologia como estratégia do discurso moral. |
Fonte: Jörn Rüsen, 2010, p. 63 (adaptado)
Ao observamos as narrativas desenvolvidas pelos(as) educandos(as) nesta prática por meio de perguntas de partida, percebemos as ideias de criticidade trazidas por Rüsen ao categorizar a consciência histórica crítica. Os participantes estão identificados neste trabalho por meio de nomes de nações indígenas.
Tapuia:“Que não é adequado, porque selvagem são animais, e eles são pessoas que têm costumes, cultura, e os animais não têm. Então é um tanto que errado usar esse termo de ‘selvagem’ para eles.” (Grifo das autoras)
Potiguar:“Isso é racismo, preconceito. Pessoas usam este termo porque não sabem a cultura dos tupinambás, pois se conhecessem, com certeza mudariam seu ponto de vista.” (Grifo das autoras)
Romper com a ideia de totalidade cultural por meio da negação de sua validade reflete uma forma de significar a história com maior complexidade, reconhecendo a diversidade de culturas, bem como revela um possível conhecimento e entendimento dessas outras, e não só a sua. A experiência no tempo torna-se mais problematizada, pois se reconhece a existência de diferentes formas de entender a história como legítima.
Nesse processo, parece que a visão da história na perspectiva de uma linearidade é posta em dúvida, uma vez que se consideram os desvios que o entendimento do outro sobre a própria história provoca na compreensão. Logo, as narrativas do outro e o seu dinamismo cultural passam a ser considerados e credibilizados. O que não significa uma mudança em relação à sua própria cultura, mas a compreensão e possível aceitação da diversidade cultural.
No ensino de história, as fontes ocupam um papel importante para o acesso às narrativas desse “outro”. Esse contato com a fonte é relevante, pois, ao atuar como evidência, aproxima o educando de uma possível realidade. A fonte, ao ser interpretada e questionada sob um olhar crítico, pode revelar muitas facetas de uma sociedade. Apropriar-se do texto é parte significativa nesse processo e pode ser verificada quando os(as) estudantes demonstram conhecimento das ideias, personagens e sequência de fatos, que são apresentados na fonte. Os(as) educandos(as) apresentam essa compreensão do texto fazendo uso dessa informação, quando questionados sobre a forma como os tupinambás entendiam a criação do universo.
Xavante:“Eles acreditavam que um velho tinha criado o universo e quando chegou na terra viu que não tinha ninguém para adorá-lo e reverenciá-lo. Então criou o homem de madeira, que começaram a adorá-lo. Depois de um tempo os homens pararam de adorar o velho, menos o pajé do mel. Então o velho jogou o fogo na terra e depois criou a chuva para apagar o fogo.”
Guarani:“Eles entendiam que existia um velho que era muito sozinho, pelo qual o universo foi criado. E esse velho era tão sozinho que aí decidiu criar o homem e depois criar a mulher para ser a companheira do homem. E o velho virou estrela.”
A contextualização das formas de entender a história, considerando os outros pontos de vista, requer uma orientação quanto à própria vida, ou seja, depende de um posicionamento do indivíduo, internamente e externamente. Parece que o indivíduo desenvolve uma autoconfiança na sua visão por meio de uma estratégia definida por Rüsen (2010) como role-playing, ou seja, colocar-se no lugar do outro, isso lhe possibilita negar qualquer que seja a “obrigação” externa de repetir um discurso “hegemônico”.
Essas orientações podem ser observadas com maior clareza quando os indivíduos se deparam com questões relativas a valores morais. Em uma narrativa crítica é possível identificar uma ruptura com os valores dominantes por um raciocínio crítico. Assim, se considerarmos que nosso pensamento ocidental é marcado pela visão judaico-cristã de perceber a história, e perguntarmos aos(às) educandos(as) “por que os tupinambás praticavam o canibalismo?”, de certa forma, estaríamos provocando sua busca por orientações e o seu raciocínio. Pode-se observar essa linha de pensamento nas narrativas construídas pelos(as) educandos(as).
Pataxô:“O canibalismo era uma cerimônia para os tupis, pois matavam e comiam seus inimigos, e significava honra para eles.” (Grifo das autoras)
Tapuia:“Porque eles acreditavam que só comendo os inimigos e mudando o nome e a personalidade eles podiam entrar na terra-sem-mal.” (Grifo das autoras)
Guarani:“Era um ato de orgulho em que eles praticavam o ato de comer a carne humana que era dos seus inimigos.” (Grifo das autoras)
Pankaruru:“Os tupinambás praticavam o canibalismo para sobreviver e não perder as aldeias para seus inimigos, que são os rivais de outras aldeias e sempre ganhar a guerra.” (Grifo das autoras).
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência chegava ao final, e a sensação entre os(as) educandos(as) era de continuidade. Muitos perguntavam se iríamos ler outro livro semelhante, pediam para fazer peças teatrais sobre a obra e para produzirem vídeos. Esse trabalho originou-se a partir dos pressupostos evidenciados no debate da educação intercultural e levou-nos a pensar em como poderíamos, por meio do ensino de história, contribuir com uma sequência de atividades didáticas para aprendizagem da cultura e da história indígena dos tupinambás. E, para alcançar esse objetivo, utilizamos o potencial da literatura, que por meio da reflexão e análise metódica da atividade, mostrou-se atrativa e mobilizadora da criticidade histórica. Contudo, ao analisarmos a linguagem das imagens, deparamo-nos com a difícil realidade de fazer enfrentamentos ao padrão hegemônico historicamente construído na escola e em nossa mentalidade com relação aos indígenas. E assim, compreendemos que há na linguagem das imagens, quando produzida pelos(as) estudantes, uma força na representação do indígena a partir do imaginário colonial.
Desse modo, a análise da atividade demonstrou o desenvolvimento do conhecimento histórico sobre a cultura tupinambá e uma leitura crítica dos estudantes, verificáveis nas narrativas de suas respostas. No entanto, a análise das imagens demonstra que mesmo podendo adotar uma postura reprodutivista das imagens apresentadas na narrativa do livro, os(as) estudantes recorriam aos modelos convencionais da representação do “índio” folclorizado e a outras referências não próprias da cultura tupinambá apresentada na narrativa literária. Logo, ao propor-se fazer o trabalho intercultural na sala de aula, é imprescindível ter um olhar atento para essas contradições. Ou seja, na diferença entre propor desconstruir uma representação negativa sobre um grupo e, efetivamente, conseguir desconstruir essa imagem. Apontamos que muito se tem feito entre os professores, na busca da implementação da história indígena na escola, mas que ainda há muito para se fazer. E nessa jornada que ainda está por se construir, consideramos ser indispensável o trabalho com as culturas indígenas a partir do uso intenso e crítico de imagens como um recurso a ser priorizado na prática docente em atividades nas quais elas possam ser observadas, produzidas e reproduzidas para a criação das perceptivas de um novo olhar, pois na coerência da visão de Rusen (2001, p. 149), “[...] o pensamento histórico, em todas as suas formas e versões, está condicionado por um determinado procedimento mental de o homem interpretar a si mesmo e o seu mundo”. Sendo assim, é preciso uma autorreflexão como docente e investigação profunda de nossa prática, considerando as contradições e os dilemas quando nos lançamos a esse desafio de promover uma educação intercultural, talvez, o passo inicial quando buscarmos a mudança da escola para além da utopia.