1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, as baterias de grandes empresas foram apontadas de forma mais explícita para a educação, seja ela Básica ou Superior, seja pública ou privada. O Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro (capital) está cada vez mais “preocupado” com as potencialidades e as possibilidades que a educação escolarizada proporciona, bem como com o que a educação deve ser e o que ela não deve ser. Apple (2003, p. 1-2) traz-nos a indagação sobre o que haveria de errado nisso; sua resposta é que, para muitos dirigentes de empresas, “[...] a educação é um negócio e não deve ser tratado de forma diferente de nenhum outro negócio”.
Na lógica do “negócio”, a discussão da qualidade da educação nacional fica cada vez mais reduzida ao desempenho em testes de mensuração e vinculada ao metabolismo do capital por meio do investimento no capital humano. A educação/formação dos sujeitos centraliza-se no desenvolvimento de competências e de habilidades necessárias para atender às demandas do mercado e são “[...] produto de inversões econômicas - individual e social - que, junto a outras inversões, explicariam os diferenciais de renda e salários e, principalmente, a superioridade produtiva dos países tecnicamente avançados” (BRASIL, 2013, p. 20).
Pensar qual o conhecimento e suas razões se perdem nas teias construídas pelo sistema capitalista em que se aprisionam as utopias e as possibilidades emancipatórias. O alimento do sistema vem, em primeiro lugar, com a quantificação, a mercantilização e o império da acomodação à linha de produção do capital. A escola e seus projetos educacionais constituem-se em artefatos valiosos de mediação para vidas desumanizadas com a expropriação do trabalho. Esse processo de desumanização pode ter na educação escolar uma aliada importante ao indexar a educação ao adensamento do capital sem o desvelamento da alienação e dos processos de reificação do ser humano. De acordo com Antunes (2011, p. 11, grifo do autor):
Conformados pelo que se denomina, na linhagem de Marx, como mediações de segunda ordem - quando tudo passa a ser controlado pela lógica da valorização do capital, sem que se leve em conta os imperativos humano-societais vitais -, a produção e o consumo supérfluos acabam gerando a corrosão do trabalho, com sua consequente precarização e desemprego.
O autor chama-nos atenção para a centralidade da lógica do capital nas mediações, sendo a educação escolar um importante aspecto de conformação a essa lógica. A educação volta-se, assim, por um lado, à preparação para o trabalho, orientado para a valorização do capital, e, por outro lado, à acomodação na precarização e na aceitação do desemprego. Nesse sentido, a teoria do capital humano coloca-se precisamente nos termos do metabolismo do capital, na medida em que despreza o potencial emancipatório da educação para indexá-la em pressupostos de produtividade. Segundo Frigotto (2000, p. 41):
A ideia-chave é de que [há] um acréscimo marginal de instrução, treinamento e educação, corresponde um acréscimo marginal de capacidade de produção. Ou seja, a ideia de capital humano é uma “quantidade” ou um grau de educação e de qualificação, tomado como um indicativo de um determinado volume de conhecimentos, habilidades e atitudes adquiridas, que funcionam como potencializadoras da capacidade de trabalho e de produção. Desta suposição deriva-se que o investimento em capital humano é um dos mais rentáveis, tanto no plano geral do desenvolvimento das nações, quanto no plano da mobilidade individual.
Ao defender a qualidade da educação, os movimentos empresariais dialogam estreitamente com uma educação que serve aos seus propósitos, à maximização do capital e fazem tábula rasa do potencial de transformação social embutido na educação escolar. Exemplo dessa “luta” pela qualidade da educação visibiliza-se por meio do protagonismo que o movimento empresarial “Todos pela Educação”1 assumiu nos últimos anos no Brasil. Trata-se de uma educação limitada pelos horizontes do capital humano.
É possível, entretanto, captarmos pelo menos dois campos no avanço do capital sobre a educação escolarizada:
A expansão das escolas e das Instituições de Ensino Superior privadas nos últimos anos, quando a busca é a intensificação da mercantilização da educação.
A expansão de políticas públicas que guardam estreitas relações com os interesses do capital, seja na naturalização das desigualdades, seja na homogeneização curricular, seja na ênfase nas competências e no empreendedorismo.
O primeiro movimento é o mais evidente, sendo de longa data, e traduz-se em números divulgados amplamente que revelam o crescimento das matrículas no Ensino Fundamental em 18,4% na Rede Privada entre 2013 e 2017, conforme o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira - INEP (2017).
No entanto, nosso foco é trazer a outra face da investida do capital sobre a educação escolarizada, qual seja: desvendar as políticas públicas educacionais para além da mercantilização. Além disso, investigar os movimentos do capital que têm o currículo escolar como o foco para o seu metabolismo, bem como o arco articulado por neoliberais, conservadores e fundamentalista, especialmente no período pós-golpe de 20162, que traz a investida da Direita no currículo escolar.
Como vaticina Apple (2003), a Direita tem todas as respostas para o que fazer segunda-feira de manhã na sala de aula; cabe a nós, educadores progressistas, denunciar a virada conservadora para a construção de um arco progressista. Por isso, é importante desvelarmos como a Direita se articula e amplia sua hegemonia nesse campo na atualidade.
A partir da construção de um arcabouço teórico de orientação crítica, a proposta deste trabalho centra-se em autores que assumem os conceitos ideológicos distintivos do campo de Direita e de Esquerda como lente para a análise das políticas públicas brasileiras em curso. A proposta, assim, dedica-se ao desvelamento de políticas educacionais comprometidas com o metabolismo do capital a partir da articulação de indicativos de movimentos neoliberais, conservadores e fundamentalistas.
A pergunta sempre atual de Adorno (1995) - Educação - para quê? - nos auxilia a buscar e assumir uma proposta de educação que seja um obstáculo à barbárie e uma fronteira de resistência à onda conservadora, visto que a abordagem de um currículo comprometido com a igualdade social demanda referências que fortalecem esse propósito.
2 FAZ SENTIDO FALAR EM DIREITA E ESQUERDA?
Tema amplamente debatido, mas que nem por isso consensual, a existência de espectros ideológicos de Esquerda e de Direita ainda demanda problematização em uma sociedade como a nossa em que projetos antagônicos se colocam em disputa. A díade faz-se contemporânea, no Brasil, no início do século XXI, de forma vigorosa, diante da visibilidade de propostas liberais em contraposição às políticas igualitárias, mesmo que de caráter compensatório.
Em que pese o pensamento pós-moderno3 de fazer uma potente oposição à díade Direita-Esquerda com a defesa de sua obsolescência derivada de suas teorias discursivas, temos o materialismo histórico-dialético como método de investigação de uma realidade em que essa díade não é uma abstração, nem um discurso. Não é simplesmente um embate de discursos, mas, sim, um campo de disputas de vida prática e material entre projetos societários antagônicos. Por isso, buscamos captar as articulações que envolvem as condições de produção da vida e suas lutas no plano material e ideológico, com a persecução das conexões sobre os fenômenos que englobam essas articulações.
Ora, sabendo que os critérios para a configuração da dicotomia em tela não são consensuais e que podem ser considerados a priori, recorremos, especialmente, a Norberto Bobbio (1995) que enfrentou o problema na obra Direita e Esquerda: razões e significados de uma distinção política. Nosso ponto de partida, nesse contexto, seria a seguinte questão levantada pelo autor italiano: “Como fazemos para dizer que tal medida governamental não é de esquerda nem de direita, se não temos a mínima ideia a respeito do significado dessas duas palavras?” (BOBBIO, 1995, p. 13).
O autor busca uma distinção que não seja a expressão de valores positivos de cada corrente ideológica. Para tanto, visita abordagens que, mesmo não podendo se dizer neutras, são aceitas por ambos os lados. Fica explícito que há uma radical dicotomia entre esses campos. Eles “[...] são excludentes no sentido de que nenhuma doutrina ou nenhum movimento pode ser simultaneamente de direita e de esquerda” (BOBBIO, 1995, p. 31).
Ainda assim, Direita e Esquerda convergem, de acordo com Bobbio (1995), especialmente para a discussão da questão da igualdade, visto que a liberdade se potencializa ou não de acordo com a compreensão dada às possibilidades de construção de uma sociedade mais igualitária. Conforme Bobbio (1995, p. 20):
Quanto à relação entre direita e desigualdade, disse e repeti várias vezes que a direita à inigualitária não por más intenções - e portanto, para mim, a afirmação de que o inigualitarismo é característica de movimentos de direita não se mostra como um juízo moral -, mas porque considera que as desigualdades entre os homens (sic) não são inelimináveis (ou são elimináveis apenas com o sufocamento da liberdade) como são também úteis, na medida em que promovem a incessante luta pelo melhoramento da sociedade.
Para a Direita, é sob a égide da liberdade individual que a sociedade se realiza, sendo a cultura da competição e da meritocracia o motor para a superação dos obstáculos (individualmente). Para a Esquerda, teríamos uma maior sensibilidade que se dirige para a correção das desigualdades. Segundo Bobbio (1995), a distinção refere-se ao juízo positivo ou negativo sobre o ideal de igualdade que deriva da diferença de percepção e de avaliação daquilo que torna os homens (e as mulheres) iguais ou desiguais.
Como a questão da igualdade toca a liberdade nesse contexto? Para a Direita, o fundamento é que a liberdade e a eliminação das desigualdades implicariam, como já acentuado, restrições ao seu exercício. A liberdade materializa-se, portanto, na desigualdade mantida como forma de proporcionar a todos a possibilidade de realização pessoal que se efetivaria a partir de pontos de partida (oportunidades) e de chegada (resultados) distintos (BOBBIO, 2000). É o reino da autorrealização e das possibilidades, no qual o caráter abstrato e formal prevalece sobre a busca de sua materialidade e concretude.
Em Rawls (2008), vemos como é cristalina a prioridade da liberdade e o incômodo com o princípio da igualdade que se resume a uma consequência da liberdade de caráter puramente abstrato.
Primeiro princípio
Cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema total de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para todos.
Segundo princípio
As desigualdades econômicas e sociais devem ser ordenadas de tal modo que, ao mesmo tempo:
a) Tragam o maior benefício possível para os menos favorecidos, obedecendo às restrições do princípio da poupança justa,
b) Sejam vinculadas a cargos e posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de oportunidades.
Primeira regra de prioridade (A prioridade da liberdade)
Os princípios da justiça devem ser classificados em ordem lexical e, portanto, as liberdades básicas só podem ser restringidas em nome da liberdade.
Existem dois casos:
a) Uma redução da liberdade deve fortalecer o sistema total das liberdades partilhadas por todos;
b) Uma liberdade desigual deve ser aceitável para aqueles que têm liberdade menor.
Segunda regra de prioridade (A prioridade da Justiça sobre a eficiência e sobre o Bem-estar) (RAWLS, 2008, p. 333).
A desigualdade constitui-se, a priori, invencível e no máximo minimizado por meio da igualdade de oportunidades e de políticas compensatórias que efetivamente não resolvem os danos causados pela alta seletividade e, por conseguinte, pela exclusão. Sob esse cenário, faz-se necessário enfrentarmos as questões sobre a igualdade (relatividade) expressas por Bobbio (1995, p. 97) da seguinte forma: A igualdade realiza-se “[...] entre quem, em relação a que e com base em quais critérios?”.
A partir do paradigma de Esquerda, há um ponto de partida que precisa contemplar todos, sem exceção, que é a maximização da igualdade, pois só esta possibilita a liberdade materialmente. Dois dos principais representantes da Esquerda, Karl Marx e Friedrich Engels, em uma de suas primeiras obras, A ideologia alemã, lançavam as bases da igualdade material como ponto de partida:
Os pressupostos de que partimos não são pressupostos arbitrários, dogmas, mas pressupostos reais, de que só se pode abstrair na imaginação. São os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas por eles já encontradas como as produzidas por sua própria ação. Esses pressupostos são, portanto, constatáveis por via puramente empírica.
O primeiro pressuposto de toda a história humana é, naturalmente, a existência de indivíduos humanos vivos. O primeiro fato a constatar é, pois, a organização corporal desses indivíduos e, por meio dela, sua relação dada com o restante da natureza. (MARX; ENGELS, 2007, p. 86-87).
A concepção ontológica deixa claro que as condições de existência dos seres humanos não ficam a cargo do mérito econômico ou da suposta liberdade de escolha que se articularia com a igualdade de oportunidades sob uma perspectiva de Direita. Para esses eminentes representantes da Esquerda, as condições para a vida e para os modos de produção e de reprodução de existência são pressupostos materiais que se constituem em fundamentos e não em abstrações.
Portanto, faz sim sentido falar das lutas sociais sob a perspectiva de Direita e de Esquerda - ainda mais quando tratamos de disputas no campo educacional que forjam a desigualdade como consequência da liberdade quando se alinha aos fundamentos ideológicos da Direita.
3 A DIREITA E SUAS RAMIFICAÇÕES
A guinada à Direita, no contexto brasileiro, fica evidenciada com as novas políticas públicas que ganham força com base no esforço individual de cada um, pois a interrupção, em 2016, do mandato da Presidenta Dilma Rousseff, inibiu quaisquer resquícios de políticas compensatórias e de busca de redução de desigualdades em que o Estado tenha o protagonismo.
Ato contínuo, a conturbada4 eleição presidencial de 2018 trouxe a nomeação de um candidato que expressa a onda conservadora tanto na perspectiva neoliberal quanto na conservadora e fundamentalista. A presidência de Bolsonaro tem se caracterizado como uma continuidade e um aprofundamento da guinada à Direita com a apologia à censura de temas sensíveis à diversidade, a interdição de políticas de igualdade e a promoção de padrões por meio da ordem e da disciplina.
Fundada em uma dogmática fundamentalista-conservadora-neoliberal, a onda conservadora proporciona um momento singular para o avanço sobre a educação escolar e para exigências curriculares compatíveis com os seus ideais. Isolamento do indivíduo, proselitismo religioso e estabelecimento de um padrão moral encontram nas orientações do Ministério da Educação (MEC) uma terra fecunda para o seu desenvolvimento.
Sob uma perspectiva educacional de Direita, esse individualismo precisa se articular com a indiferença à desigualdade como estímulo à competição, com a homogeneização do currículo escolar com um currículo padrão, com um discurso de liberdade de escolha sob o Novo Ensino Médio (BRASIL, 2018b), com o conservadorismo e o fundamentalismo a partir da distorcida discussão sobre o gênero protagonizada pelo Movimento Escola sem Partido (Mesp)5.
3.1 Os grupos, as concepções e os projetos ideológicos em debate (ou em curso) na sociedade contemporânea
Os neoliberais, segundo Apple (2003), são claramente identificáveis pela defesa intransigente do mercado e da liberdade como realização individual. A concepção de consumo transfere-se para as políticas públicas de qualquer natureza, sendo a cidadania um conceito cada vez mais obsoleto. A livre iniciativa seria a reação à inoperância das instituições sociais personificadas no Estado, uma vez que este seria um parasita a dificultar o sucesso individual.
Sendo as instâncias sociais e coletivas rejeitadas, o foco da educação escolar torna-se o empreendedorismo e a busca pelo sucesso financeiro. Toda a educação passa a ser pautada na competição e na construção de projetos de vida individuais que devem atender ao mercado e, portanto, serem adequados à sociedade capitalista desigual e seletiva. Nesse campo, o movimento “Todos pela Educação” é a instituição que melhor representa os interesses neoliberais, sendo o cavalo de Tróia que os grandes conglomerados empresariais nacionais oferecem à educação escolar brasileira.
Já os neoconservadores pertencem a um grupo que se identifica com um passado edênico em que os valores da família eram o primado para o desenvolvimento da nação (APPLE, 2003). Há a supervalorização da tradição que o próprio Bobbio (1995) identificou como um dos pilares da Direita. Fruto de um “[...] conservantismo não romântico que justifica a ordem capitalista e procura defendê-la contra qualquer crítica” (LÖWY; SAYRE, 2015, p. 91), esses grupos reúnem-se em torno de um saudosismo seletivo e elitista em que os valores de um tipo determinado de família (matrimonial, indissolúvel, cristã e heterossexual) eram os juridicamente protegidos. Esses valores tradicionais, seletivos e excludentes são renovados na busca de uma educação escolar em que o debate plural tenha espaço. Movimentos como o Movimento Brasil Livre (MBL) e o Mesp conjugam, de forma explícita, a visão neoconservadora que disputa a pauta educacional. Contudo, são explícitas as suas adesões às pautas neoliberais.
Com a alcunha de populistas autoritários, Apple (2003) considera os fundamentalistas religiosos aqueles que querem um retorno a (seu) deus em todas as instituições, sendo a escola um lócus especial para se preparar a sua chegada. Esse grupo até abdicaria da educação escolarizada em prol de uma educação familiar para preservar as crianças da contaminação com teorias e doutrinas que não compartilham desse ideal religioso. A ação fundamentalista dirige-se especialmente contra as questões de gênero e de sexualidade, além de questionar tudo o que divergir da visão estreita de uma doutrina cristã. O fundamentalismo religioso, atualmente com significativa representação na Câmara de Deputados, possui uma Frente Parlamentar Evangélica (CARTA CAPITAL, 2018) com 199 deputados e deputadas. Vale novamente a referência ao Mesp com sua defesa à liberdade dos pais na educação dos filhos e das filhas em detrimento do processo de escolarização.
3.1.1 Educando para o mercado: o ser humano como capital e a liberdade de empreender
É na defesa da liberdade que a Direita neoliberal expande as fronteiras que proporcionam a maximização do lucro e o aprofundamento das desigualdades. Por isso, um Estado subserviente, que se efetiva com políticas públicas fundadas na livre iniciativa, faz-se garantidor do capital e indispensável para a concentração de riquezas sob a égide de uma democracia fake. A fraude da livre iniciativa é visível quando pensamos nas condições materiais para os empreendimentos individuais, pois as condições para o sucesso se destinam aos detentores dos meios de produção. O Estado inclusive isenta o risco para o capital sendo fundamental para assegurar seu metabolismo e, lado outro, maximiza os riscos dos trabalhadores. Nesse sentido, para o capital não existe Estado mínimo, haja vista este ser o seu garantidor.
As políticas neoliberais acentuam a maximização da proteção do capital e sua valorização quando aprofunda a precarização do trabalho assalariado, outro pilar do capital, e investe nas mediações de segunda ordem para assegurar a difusão da lógica do capital, como tem ocorrido nas intervenções no currículo escolar brasileiro.
O ataque neoliberal sobre o mundo do trabalho e sobre a educação é revelador de como a liberdade, a liberdade de empreender e as desigualdades se articulam por meio das chamadas reformas, tanto a trabalhista quanto a do Ensino Médio, bem como da padronização exercida pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que se apresenta nas políticas públicas educacionais brasileiras como um
[...] documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica, de modo a que tenham assegurados seus direitos de aprendizagem e desenvolvimento, em conformidade com o que preceitua o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2018a, p. 7).
Nesses termos, essa norma constitui-se referência nacional para a elaboração dos currículos escolares de todos os sistemas e redes de ensino e de suas respectivas propostas pedagógicas no âmbito público e privado de todo o país (BRASIL, 2018a). A experiência de implementação de uma BNCC no Brasil é nova, porém outros países vivenciaram essa experiência de outra maneira. Nos Estados Unidos, por exemplo, a Base Comum foi elaborada em 2010 contemplando apenas as disciplinas de Inglês e de Matemática, sem o caráter obrigatório, uma vez que os estados podiam optar ou não em adequar os seus currículos escolares (FREITAS, 2021).
As profundas transformações na relação entre trabalho e capital, trazidas pela Reforma Trabalhista de 2017 - Lei N° 13.467 de 13 de julho de 2017 (BRASIL, 2017b), buscam acentuar a precarização da exploração da força de trabalho com o deslocamento do conceito de empregabilidade para o empreendedorismo, o que possibilitaria aos trabalhadores serem empresários de si próprios. A Reforma Trabalhista visa superar amarras que favoreceriam o trabalho em detrimento dos lucros dos patrões. Isso realiza-se sob o manto da promoção da liberdade no processo de negociação das condições de trabalho com o direito à escolha do local, da jornada de trabalho e até mesmo da remuneração. A liberdade de empreender não seria mais privativa dos patrões, sendo, a partir de então, direito (obrigação) do “colaborador”, o empreendedor de si mesmo.
Na esteira do empreendimento e da liberdade de escolhas, a Reforma do Ensino Médio (BRASIL, 2018b, 2018c) propõe a construção de itinerários, que seriam de escolha dos jovens, por áreas de conhecimento. Vocação, interesse, liberdade e igualdade de oportunidades são os motores de uma campanha em prol do empobrecimento curricular voltado especialmente às escolas públicas. O isolamento dos sujeitos, a partir de suas escolhas individuais, é apresentado e naturalizado pelas mensagens distribuídas na promoção do Novo Ensino Médio. Minha escolha, meu desejo e minha vocação são a tônica da aceitação do futuro que se projeta. O individualismo liberal na busca pelo sucesso e a consequente concorrência para se alcançar esse objetivo, em uma sociedade desigual, encobre um destino nada promissor.
Fato é que temos mais um “Novo Ensino Médio”6 que mantém promessas de uma liberdade que proporcionaria a igualdade, para tocar os corações e as mentes dos(as) jovens por meio de slogans sedutores, mas que buscam a maximização das desigualdades com a precarização da formação em razão de sua parcialização e fragmentação. Esse projeto evidencia uma perspectiva educacional sob uma lógica individualista legitimadora do sucesso ou do fracasso dos sujeitos. É sob essa lógica que o empreendedorismo se funda, quer dizer, aí que mora o perigo do encontro da desregulamentação das leis trabalhistas e de uma educação individualista, cujo fracasso recai sobre os(as) estudantes.
As políticas educacionais neoliberais enfatizam a necessidade do empreendedorismo para que os(as) jovens, por um lado, sejam livres para escolherem, para promoverem empreendimentos, para serem protagonistas na busca pelas oportunidades, mas, por outro lado, negam às camadas mais pobres qualquer forma de condições de igualdade, seja fora da escola, seja dentro da escola. O verniz de autonomia constitui-se, assim, em um mecanismo neoliberal para que os fracassos não sejam atribuídos às estruturas liberais que se negam à correção das desigualdades.
Um dos conceitos-chave que está em jogo, nas discussões sobre quem somos e sobre como nossas instituições devem responder a nós, é a ideia de liberdade. Muitas das posições ideológicas que atualmente estão preparadas para o combate na arena da educação têm pressupostos diferentes sobre essa palavra (APPLE, 2003).
A liberdade da Direita é alçada ao status de dogma solucionador de todos os problemas, sendo inclusive promovida a concepção de uma liberdade na desigualdade, em que a primeira é garantia da segunda. A realização da vida humana depende do mérito de cada um. E, nessa perspectiva, meritocracia e empreendedorismo encontram-se em reformas educacionais que enfatizem a possibilidade de igualdade de oportunidades a partir de escolhas individuais.
Pelo percurso histórico educacional, o qual se funda a atual legislação, pela essência capitalista do empreendedorismo e pela ideologia que se impregna nas políticas públicas atuais, consideramos que essa definição está relacionada ao paradigma mercadológico e, assim, vemos a educação se apropriando, mais uma vez, de um elemento do capital.
Isso é um indicador de que a educação tem se rendido, cada vez mais, à lógica do mercado e, como formadora de sujeitos trabalhadores, o seu percurso tem se voltado para atender às exigências da produtividade. Daí derivam outras expressões que distinguem para o trabalhador as maneiras de inserção produtiva no mundo do trabalho (empregabilidade, empreendedorismo, emprego etc.).
Educar à Direita traduz-se, assim, em políticas neoliberais fundadas na liberdade para ser desigual e inferiorizado economicamente. O arco construído a partir de uma Reforma Trabalhista que precariza a situação dos trabalhadores busca seu reflexo em reformas curriculares, especialmente aquelas introduzidas pela BNCC e pelo Novo Ensino Médio.
3.2 A onda conservadora na Educação: o gênero na Escola sem Partido
O advento do Mesp insere-se em uma reação à emergência de questões étnico-raciais, de gênero e de sexualidade no currículo escolar. Contudo, como já citamos, esse movimento essencialmente reacionário e conservador alinha-se, de forma explícita, às pautas neoliberais.
O Mesp tem se caracterizado pela desconfiança da diversidade e pelo apelo à tradição, defendendo a escola como espaço de desenvolvimento da técnica pura e simples. Teríamos o ensino no lugar da educação. Comportando-se como paladinos da moralidade, a investida no currículo escolar busca a preservação de uma educação em que a liberdade de ideias e de concepções esteja de acordo com a manutenção do silenciamento das diferenças e a hegemonia do capital.
Aliado às perspectivas fundamentalistas, o Mesp teve, na aprovação da BNCC (BRASIL, 2017a), seu momento de expressividade com a rejeição de qualquer menção às questões de gênero em um documento de mais de 600 páginas. Como expõem Silva, Brancaleoni e Oliveira (2019, p. 1548):
Por este ângulo, ao constatar que a BNCC silencia quaisquer discussões sobre gênero, verificamos que o documento oficial vai de encontro às argumentações tecidas pela literatura pertinente, situação que, em última instância, poderá colaborar para a manutenção de misoginia, homofobia, lesbofobia, transfobia, etc., no ambiente escolar.
Este fato se torna problemático ao considerarmos que a BNCC orientará a elaboração de matrizes curriculares da educação básica em todo o território nacional, pois a não abordagem do gênero no corpo do documento abrirá precedentes para que esta temática não seja incluída nos processos educativos.
O gênero, portanto, merece lugar de destaque quando abordamos o Mesp, pois sua proposta reacionária de educação contida nos projetos de lei, apresentados por políticos alinhados com a sua ideologia, vai além de questões político-partidárias para articular um ambiente escolar indiferente à diferença. Seu projeto evidencia uma visão curricular fundada no paradigma da neutralidade presente em teorias tradicionais de currículo que abominam o debate sobre as questões ideológicas que envolvem a seleção cultural realizada (BRASIL, 2016). Na neutralidade emerge a naturalização de um mundo dado e a obrigatoriedade de adaptação, bem como um suposto desinteresse sobre o projeto que se deseja implementar. Ademais, uma abordagem crítica da seleção cultural passa ao largo da perspectiva reacionária do Mesp, sendo privilegiada, implicitamente, a lógica do capital e seu metabolismo. Sob a bandeira de evitar-se “doutrinação” partidária na escola, esse Movimento traz a eleição de uma ideologia única para a escola, a qual deve lugar ao desenvolvimento da técnica e à profissão de fé na tradição.
A transposição do conservadorismo religioso sedimentado em uma visão binária e biológica de gênero e sexualidade torna-se, assim, referência para a educação em projetos curriculares a partir da aliança à Direita. Esse movimento tem no neoliberalismo o garantidor das condições materiais para o seu desenvolvimento, mas traz pautas reacionárias que se fundamentam na tradição conservadora e fundamentalista. A “família tradicional” é, constantemente, ameaçada pela diferença, pelo desvelamento da realidade e pela construção de uma sociedade plural na visão reacionária.
O neoconservadorismo traz para o interior da escola uma discussão que ficou dormente enquanto os excluídos eram excluídos do currículo e silenciados nas salas de aulas. Na medida em que novos sujeitos emergiram nas propostas curriculares e se impuseram socialmente, a reação fez-se intensa e articulada. A presença significativa de vereadores, deputados, senadores e governadores bem como a eleição do presidente da República, comprometido com os ideais reacionários, são sintomáticos de uma ação política que visa uma transformação excludente na educação escolarizada.
Ao educar à Direita, a crítica e a diferença devem ser excluídas da escola brasileira, pois não são integráveis ao capital, sendo o expurgo verbalizado pelo próprio programa do governo eleito em 2018 da seguinte forma:
Além de mudar o método de gestão, na Educação também precisamos revisar e modernizar o conteúdo. Isso inclui a alfabetização, expurgando a ideologia de Paulo Freire, mudando a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), impedindo a aprovação automática e a própria questão de disciplina dentro das escolas (BOLSONARO, 2018, p. 46).
O neoconservadorismo, sem dúvida, é o elo que evidencia a exclusão sob a justificativa da tradição com os ideais neoliberais naturalizados por trás de um discurso de neutralidade e de técnica. No entanto, o neoconservadorismo vai além ao trazer à baila sua relação estreita com o fundamentalismo, o qual apresenta outras nuances quando pensamos nos seus aspectos religiosos.
3.3 Educando para deus: o proselitismo religioso e o advento homeschooling
Educar para deus não é novidade na tradição escolar brasileira, a qual sempre acolheu o Ensino Religioso mesmo dentro de um Estado laico. A centralidade ocupada pela religião cristã, especialmente de matiz católica desde a invasão europeia, trouxe para o processo de escolarização, ora explícita, ora implicitamente, um fundamento religioso que se mantém em pleno século XXI.
O proselitismo religioso, além da censura à abordagem das questões de gênero e da defesa da família “tradicional”, como já apontamos anteriormente, é uma via para o fundamentalismo religioso adentrar as escolas públicas em um Estado que se proclama laico, como é o caso do Brasil (BRASIL, 1988).
Foi desvelando essa via confessional e excludente no currículo escolar que o Ministério Público Federal manejou uma ação objetivando a impossibilidade da confessionalidade no interior das escolas públicas. Essa discussão deriva da presença, na Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, Lei Nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996), de um Ensino Religioso de oferta obrigatória e de matrícula facultativa. A Ação Direta de Inconstitucionalidade visava reafirmar o caráter laico da educação pública com a declaração de inconstitucionalidade do Ensino Religioso articulado com o Decreto Nº 7.107, de 11 de fevereiro de 2010 - Acordo entre o Governo da República Federativa do Brasil e a Santa Sé - que prevê, em seu Art. 11:
§1º. O ensino religioso, católico e de outras confissões religiosas, de matrícula facultativa, constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação (BRASIL, 2010a, n.p.).
Ora, o que a Procuradoria-Geral da República (BRASIL, 2010b, p. 10) visava, por meio de uma defesa intransigente da laicidade, era proteger o “[...] Estado de influências provenientes do campo religioso, impedindo todo o tipo de confusão entre o poder secular e democrático, de que estão investidas as autoridades públicas, e qualquer confissão religiosa, inclusive a majoritária”.
Contudo, a visão de laicidade com a vedação da não-confessionalidade não foi acolhida pela maioria dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Em sessão que foi revelada uma interpretação distorcida de laicidade estatal e que efetivou a defesa do proselitismo religioso, no qual o próprio Poder Judiciário está envolvido, presenciamos a sua submissão a um Ensino Religioso de caráter confessional. O voto condutor de Alexandre de Moraes é uma ode ao fundamentalismo religioso e sua chancela na escola pública. Ao invocar o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, o Ministro exprime:
A singularidade da previsão constitucional do ensino religioso, com todos os reflexos históricos e jurídicos decorrentes do relacionamento entre Estado/Religião, bem como em relação à evolução da liberdade religiosa, que passou a abarcar a ampla proteção de todas as crenças e cultos, o agnosticismo e o ateísmo, somada à voluntariedade de sua matrícula - que corresponde a um direito subjetivo individual e não a um dever imposto pelo Poder Público - o diferencia de qualquer outra disciplina ou matéria, por mais importante e relevante que seja, inclusive, como a Filosofia, História ou Ciência das Religiões (BRASIL, 2017c, p. 9, grifos do autor).
O autor ainda afirma:
É nesse contexto que deve ser compreendida a previsão do ensino religioso: trata-se de aproveitar a estrutura física das escolas públicas - tal como amplamente existente no espaço público de hospitais e presídios, que já são utilizados em parcerias - para assegurar a livre disseminação de crenças e ideais de natureza religiosa àqueles que professam da mesma fé e voluntariamente aderirem à disciplina, mantida a neutralidade do Estado nessa matéria (BRASIL, 2017c, p. 11).
A partir desse voto, seis Ministros alinharam-se à defesa da confessionalidade na escola pública e trouxeram uma firme convicção de que cabe no currículo escolar uma educação caracterizada pela assistência religiosa. O voto de Moraes deixa clara a percepção segundo a qual a escola tem uma estrutura muito semelhante aos presídios e aos hospitais7 e, por isso, é lugar de recuperação espiritual. É local de educar-se para um deus ou alguns.
A Corte Suprema, então, “abençoou” o espaço escolar como um local de profissão de fé, instigando uma reação ao processo de secularização que timidamente se desenvolve e lançando raízes para a confissão de fé em espaços que devem se caracterizar pela pluralidade e pela não-discriminação. Não se trata de afirmarmos que o Ensino Religioso deve ser e será determinado pelo paradigma proselitista que estará de forma inarredável nas salas de aula. O que ocorre é a chancela e o estímulo de uma onda conservadora por meio dessa reacionária decisão.
A introdução do proselitismo no currículo do Ensino Religioso faz parte, também, da ofensiva perpetrada pela onda conservadora em seu viés fundamentalista. A necessidade de salvação e de assunção de um papel messiânico da educação trazem, quando reafirmada pelo STF, um gosto amargo de derrota das pautas progressistas de caráter laico.
Nesse quadro de retrocessos, a Educação Domiciliar, conhecida, também, como Homeschooling, traz com mais intensidade para o campo da educação e do currículo o império do fundamentalismo, do neoconservadorismo e da educação para deus.
Novamente, o STF constituiu-se em importante protagonista no fomento da onda conservadora atendendo interesses fundamentalistas que rejeitam a pluralidade do ambiente escolar e defendem a liberdade de educar fora da escola. Os Ministros do STF entenderam que é possível, por meio de lei, a permissão da Educação Domiciliar ao arrepio da norma constitucional, pois a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 estabelece, em seu Art. 205, o dever de educar do Estado e da Família, sendo a escolarização obrigatória de 4 a 17 anos, conforme o Art. 208 (BRASIL, 1988). Pensar em Educação Domiciliar, a partir desses dispositivos, já seria temerário. Entretanto, o constituinte foi além na opção pela escolarização ao prever que o Poder Público deve zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola, segundo o Art. 208, § 3º da Constituição (BRASIL, 1988).
A distorção do texto constitucional pode ser sintetizada por meio da seguinte passagem estabelecida na decisão: “A Constituição Federal não veda de forma absoluta o ensino domiciliar, mas proíbe qualquer de suas espécies que não respeite o dever de solidariedade entre a família e o Estado como núcleo principal à formação educacional das crianças, jovens e adolescentes” (BRASIL, 2018d, p. 3).
Com a decisão não unânime, fica patenteada, em si mesma, a crítica aos fatores morais e religiosos, como explicou o Ministro Gilmar Mendes (BRASIL, 2018d), os quais levam às famílias optarem pela Educação Domiciliar, sendo este um dos motivos que conduziram os interessados a pleitearem essa modalidade de educação no STF (LUIZ, 2015).
Entretanto, a decisão da maioria dos Ministros não autorizou a Educação Domiciliar, mas delegou ao legislador infraconstitucional a chancela ou não dessa modalidade. Assim, o governo conservador eleito prontamente enviou um projeto de lei conferindo essa liberdade de escolha aos pais e responsáveis (BRASIL, 2010b).
O princípio da liberdade, tão caro ao neoliberalismo, é, novamente, invocado para promover o isolamento de crianças e de jovens a partir de uma perspectiva de apropriação do próprio ser humano em processo educativo em prol de valores que não dialogam com a sociedade. A primazia do individual sobre o social apresenta-se de forma explícita na defesa da Educação Domiciliar, sendo a privatização e o desprezo pelos esforços coletivos na construção de uma sociedade mais solidária.
Ao mesmo tempo em que se coaduna com valores individualistas neoliberais, a Educação Domiciliar tem, na face fundamentalista, sua melhor expressão. Em razão da legalidade que ainda incorre a privação voluntária do acesso à educação escolarizada no Brasil, é difícil apresentar o perfil das famílias brasileiras que praticam a Educação Domiciliar8.
Para compreendermos um pouco sobre o perfil neoconservador e fundamentalista de muitos dos defensores, recorremos, novamente, a Michael Apple (2013) que, em seu artigo Fazendo o trabalho de Deus: Ensino domiciliar e trabalho de gênero, adverte:
O movimento do ensino domiciliar não é homogêneo. Ele inclui pessoas de um amplo espectro de crenças políticas/ideológicas, religiosas e educacionais. Ele atravessa linhas raciais e de classe (Sampson, 2005). Como Stevens observa, há basicamente dois agrupamentos gerais dentro do movimento de ensino domiciliar, “cristãos” e “inclusivos”. Há algumas coisas que são compartilhadas por meio dessas linhas divisórias, entretanto: um senso de que a educação padronizada oferecida pela educação tradicional interfere no potencial de seus filhos; que há um sério perigo quando o Estado se intromete na vida da família; que especialistas e burocracias tendem a impor suas crenças e são incapazes de satisfazer as necessidades das famílias e das crianças (Stevens, 2001, p. 4-7) (APPLE, 2013, p. 167).
Apesar desse alerta, Apple entende (como nós também) que o maior grupo de pessoas que defendem e praticam a Educação Domiciliar tem compromissos religiosos e/ou ideológicos conservadores. Esse grupo articula-se em rede para a promoção e a produção de materiais que se articulam com suas crenças e seus valores, possibilitando, inclusive, um novo mercado editorial alimentado tanto pelos interesses conservadores quanto neoliberais. Para esse grupo, a diversidade manifesta oriunda da formação de professores é nociva e desqualificada para a educação de seus filhos e de suas filhas. Nem a escola privada e nem a pública são suficientes para a educação em valores determinados por núcleos fundamentalistas.
Essa articulação em rede de grupos religiosos e fundamentalistas que veem a escola como ambiente perigoso e hostil aos valores conservadores possibilita a educação promovida diretamente por igrejas, em razão destas serem catalisadoras da rejeição à educação escolarizada.
O bem comum curva-se aos interesses privados que se desvelam na medida em que se percebe os propósitos dessa aliança. Educar à direita é ser comprometer com a valorização do conteúdo técnico em detrimento de processos de socialização e de tolerância, sendo um mecanismo poderoso para o isolamento do indivíduo e para a naturalização da competição. A indiferença com os destinos da coletividade passa, assim, da política neoliberal e efetiva-se em pleitos fundamentalistas e neoconservadores, uma vez que a religião orientadora da onda conservadora é o fetiche do capital, seu metabolismo e sua valorização.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Educar à Direita é a resposta à pergunta de Adorno (Educação - para quê?) quando pensamos em uma educação desenvolvida e promovida nas águas da onda conservadora. A aliança, que se forma em torno do metabolismo do capital, tem um potente arco constituído a partir dos grupos neoliberais, neoconservadores e fundamentalistas, trazendo para as políticas públicas educacionais contornos mais bem definidos no tocante ao desprezo à luta por uma sociedade mais igualitária. Essa aliança agrega interesses, em que pese serem diversos, e convergem no apreço à técnica, ao individualismo e à luta pela acomodação aos interesses do capital.
Outrossim, essa aliança à Direita rejeita a crítica, a problematização da realidade e o compromisso de transformação por meio do processo de educação. Os projetos em desenvolvimento articulados pela onda conservadora vão da precarização do trabalho até a Educação Domiciliar, passando por uma Base Nacional Comum, uma Reforma do Ensino Médio, um proselitismo religioso nas escolas e uma perseguição à diferença com a censura às discussões de gênero nas escolas, dentre outras - todos eles unidos em torno do isolamento do indivíduo e da fragmentação social necessários ao metabolismo do capital. Assim, essa aliança contempla a desigualdade social e rejeita as diferenças.
Longe de serem sinônimos, igualdade social e diferenças podem ser consideradas complementares, pois a indiferença em relação à vida, à saúde e à felicidade dos outros, por exemplo, caracteriza uma sociedade que se aprofunda na desigualdade. Entre diferença e desigualdade não há qualquer sinonímia. Pelo contrário, sem serem antônimos, são opositoras sob uma perspectiva sociológica.
Diante desse quadro, a resistência é urgente, possível e necessária, devendo se articular em todos os aspectos, mas não olvidando do metabolismo do capital como protagonista de uma educação que só se faz neoconservadora e fundamentalista de acordo com seus interesses. A virada conservadora tem o capital como centro e os neoconservadores e fundamentalistas com suas pautas reacionárias de apoio. Educar à Direita fornece as condições para a barbárie, e o primeiro compromisso da Educação, quando emancipadora, é rejeitar essas condições. Desvelar e resistir a essas pautas educacionais é ato de resistência ao próprio capital.
Sem nos indagarmos criticamente para que a Educação, tornamos Auschwitz uma realidade próxima. Diante disso, o arco conservador presente no projeto educar à Direita precisa ser desvelado em suas nuances para que haja a possibilidade de uma resistência utópica e emancipatória.
Assim como Apple (2003), compreendemos que a Direita sabe muito bem o que deve acontecer na escola na próxima segunda às 7 horas da manhã. Os neoliberais, neoconservadores e fundamentalistas apresentam-se unidos em prol de um projeto educacional que serve de mediação para a meritocracia, para a rejeição à diferença e para a farsa da igualdade de oportunidades.
O compromisso de um projeto de igualdade, pautado nas lutas de Esquerda, é articular as pautas sociais, identitárias e das diferenças em prol do processo humanizador que potencialize a luta pela vida humana para todos em suas variadas dimensões. A aliança para educar à Esquerda pode ser gestada nas redes e nos movimentos que comungam da importância do espaço público e da própria escola como espaço de diálogo, de resistência e de transformação, rejeitando as profissões de fé, a censura e a promoção da lógica do capital.