1 INTRODUÇÃO
Ao adentrar no território acadêmico, umas das minhas inquietações foi ver o conhecimento ser produzido de forma fragmentada. Tudo se discute em seção, com os recortes dos recortes. Mas para nós Xakriabá, no território e no movimento da vida, não é assim que acontece, já que os conhecimentos produzidos em torno destes elementos operam de maneira articulada (XAKRIABÁ, 2018, n.p.).
Neste artigo, argumento sobre a necessária compreensão da indissociabilidade entre Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento Indígena para a realização de atividades, sobretudo a partir da literatura, nas escolas não indígenas, em observância à Lei 11.645/2008, que inclui “no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
O problema que orienta este artigo tem relação com certas atividades e programas que trabalham com a Literatura Indígena de “modo estanque” e sem levar em conta as dinâmicas próprias que as literaturas desses povos possuem, negligenciando, assim, suas diversidades e suas diferenças - sobretudo diferenças com relação à determinada literatura não indígena -, desconsiderando, também, que a(s) Literatura(s) Indígena(s) é(são) constituinte(s) e constituidora(s) dos Regimes de Conhecimento Indígena, que são “epistemologias nativas” (XAKRIABÁ, 2018). Importa destacar que, “para trabalhar a literatura indígena na escola, é preciso reconhecer a diferença: entender que se trata de outra cultura e não tentar enquadrá-la nos nossos conceitos” (CAIROU, 2021). Vale mencionar, também, a imprescindibilidade de considerar as especificidades dos diversos povos indígenas e as peculiaridades de seus diferentes multiversos, até porque, conforme ressalta, sobre as sociedades indígenas, a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, “essas sociedades são diferentes da(s) nossa(s) e também diferentes entre si” (CUNHA; CESARINO, 2016, p. 10). Além disso, questionamentos sobre certas “concepções monoepistêmicas” dos currículos e das escolas (FARIA; SILVA, 2020), certamente potencializariam as atividades em escolas não indígenas.
Ademais, pelos fatores aludidos, e pela necessidade de que as escolas trabalhem a temática indígena combatendo os estereótipos e as discriminações contra os indígenas, o artigo aponta, ainda, a imprescindibilidade da mobilização da literatura feita pelos indígenas.
Os entendimentos supracitados nasceram não só da leitura de produções de estudiosas e estudiosos da Etnologia Indígena, dos estudos e pesquisas sobre Currículo(s) e a Lei 11.645/2008, de estudos da(s) Literatura(s) Indígena(s)1, inclusive por indígenas, mas, principalmente, da minha relação, de anos, com a(s) Literatura(s) Indígena(s) e com professoras e professores indígenas, sobretudo com professores e criações Xakriabá.
Além disso, orienta este artigo a compreensão de que as escolas não indígenas devem realizar atividades que observem o respeito aos direitos desses povos - assegurados na Lei 11.645/2008, nos artigos 210 e 235 da Constituição Federal de 1988, na Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB - Lei 9.394/1996), na Convenção 169 da OIT e na Declaração da ONU sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
Por sua vez, a imprescindibilidade do trabalho com a literatura feita pelos próprios indígenas se dá porque é fundamental respeitar e defender os direitos dos povos indígenas, bem como questionar a razão pela qual, em muitos momentos, os povos indígenas estiveram presentes na produção literária brasileira de maneira estereotipada - seja como alvo de/para conversão religiosa ou em narrativas que enunciavam esses povos como portadores de uma suposta identidade brasileira - sobretudo pela literatura indianista2 - ou por estarem presentes na literatura não indígena apenas como personagens de histórias narradas por escritores muitas vezes etnocêntricos e em uma “lógica” da colonialidade3 (GROSFOGUEL; MALDONADO-TORRES; COSTABERNARDINO, 2020; QUIJANO, 2005), que “retratou” o indígena de forma estereotipada e reducionista.
Há, atualmente, uma importante ocupação dos “espaços não indígenas” pelas construções de obras de indígenas, a qual que se efetiva, em especial, pela potência das narrativas indígenas - que sempre existiram e foram continuamente pujantes, embora apenas nos últimos anos os não indígenas venham tomando contato com elas, não só com a Literatura Indígena, mas também com o Cinema Indígena e outros tipos de criações4.
Desse modo, levando em consideração que uma das propostas para pensar a Literatura Indígena é observar as especificidades de cada povo, este artigo estabelece um diálogo direto com trabalhos de indígenas Xakriabá (XAKRIABÁ, 1997; 2005c; 2018; FARIA; SILVA, 2020), que versam sobre seu Regime de Conhecimento, seus processos educativos e educacionais e acerca das Artes Indígenas.
2 LITERATURA INDÍGENA E POSSIBILIDADES NAS ESCOLAS
Há muitas reflexões possíveis sobre a Literatura Indígena e a relação desta com os processos educacionais e educativos; reflexões tão diversas que vão desde trabalhos como os de Cesarino (2012, p. 75), o qual “se dedica às transformações do conhecimento xamanístico dos Marubo (povo falante de língua Pano do Vale do Javari, AM) em sua relação com a escrita”, até aqueles que tratam sobre pluralidade étnica e cultural nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), que falam sobre “textualidades indígenas”, bem como a respeito das chamadas etnopoéticas5 (THIÉL; QUIRINO, 2011). Há, ainda, trabalhos que levantam questões atinentes:
[...] a relação entre literatura indígena e as novas formas literárias; as questões sobre uma literatura oral-ritualística; questões relacionadas à autoria -se são produções individuais ou coletivas, por exemplo; discussões sobre o modo como não indígenas - na universidade, no mercado editorial, nas escolas, nos órgãos governamentais - se relacionam com as literaturas indígenas; sobre os equívocos de uma literatura indianista; questões relacionadas às reificações e projeções produzidas pela universidade não indígena sobre a literatura indígena; a relação entre literatura indígena e certo etnocentrismo da teoria literária; questões sobre como as narrativas indígenas parecem “participar de vários gêneros sem se fixar em nenhum deles” [SÁ, 2012]; além das questões que dizem respeito à literatura como elemento de resistência, para a defesa dos direitos indígenas, e como crítica do presente (HORÁCIO, 2021, p. 3).
Mesmo tomando em conta a grande importância de todas as diferentes reflexões supracitadas, aquela relacionada à necessidade de pensar a Literatura Indígena indissociada dos Regimes de Conhecimento Indígena ganha, neste texto, especial relevo, porque, além de todas as reflexões sobre as questões anteriormente referidas ganharem maior rendimento ao serem consideradas em conjunto, a compreensão da indissociabilidade supramencionada - que é destacada por diferentes indígenas - ainda precisa ser incorporada na mobilização dessa Literatura Indígena em escolas não indígenas. Ademais, o entendimento indicado busca, sobretudo, orientar-se pelo respeito às construções dos povos indígenas (BRITO; SOUZA FILHO; CÂNDIDO, 2018), uma vez que essas produções são necessariamente elementos de resistência e críticas do presente (DORRICO et al, 2018), devendo, assim, ser compreendidas em sua integralidade.
Importa salientar que o necessário entendimento da indissociabilidade entre Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento Indígenas pode encontrar dificuldades de ser realizado em escolas permeadas por “concepções monoepistêmicas” (FARIA; SILVA, 2020). A esse respeito, vale mencionar uma das perguntas feitas pelo indígena Nei Leite Silva Xakriabá e pelo professor Tales Faria, em um texto sobre os desafios metodológicos relacionados ao trabalho com as Artes Xakriabá nas escolas não indígenas: “como ensinar uma cultura de bases epistemológicas desconhecidas para a escola de tradição monoepistêmica?” (FARIA; SILVA, 2020, p. 553). Na esteira dessa questão, os autores fizeram, ainda, significativa observação destacando que “o estudo de culturas fundadas em axiologias, epistemologias, ontologias e metodologias de ensino/aprendizagem distintas das celebradas pela escola requer o desenvolvimento de metodologias de pesquisa e ensino adequados a elas” (FARIA; SILVA, 2020, p. 560).
A despeito do importantíssimo apontamento feito pelos autores acerca da necessária relação entre as epistemologias e os métodos e metodologias, outro aspecto a ser considerado, igualmente indicado na fala deles, é: “quando se fala que requer-se o desenvolvimento de metodologias de pesquisa e ensino adequados às culturas indígenas, cabe perguntar: adequados a quais culturas indígenas?, ou melhor, à cultura de qual povo indígena?” (FARIA; SILVA, 2020, p. 561). Continuam os autores: “diante de universos epistemológicos e axiológicos tão distintos entre si e diferentes acepções de arte, cultura e educação é preciso definir um deles para engendrar diálogos e pesquisas e compreendê-lo minimamente” (FARIA; SILVA, 2020, p. 559).
Concordo, em diálogo com os autores, tanto sobre a necessária relação entre epistemologias e metodologias quanto a respeito da imprescindibilidade de levar em conta as peculiaridades de universos tão distintos, bem como de se atentar às especificidades de cada povo. Pelos motivos supracitados, considero que a indissociabilidade que deve ser observada entre Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento, além do trabalho com a própria Literatura Indígena, pode ser alternativa importante para melhores trabalhos nas escolas não indígenas. Alternativa importante - mesmo não sendo ela, a rigor, método ou metodologia -porque, no mínimo, é uma tentativa que procura, sobretudo, respeitar a potência das produções desses povos indígenas, importando-se com o que Célia Xakriabá (2018) chama de raízes profundas.
Pondero que o aprofundamento e a necessidade do respeito à especificidade de cada povo, assim como a observação da indissociabilidade entre Literatura e Regimes de conhecimento, tendem a fazer com que haja uma potencialização da literatura que está sendo mobilizada, evitando que ela seja tomada como simples peça de entretenimento, descontextualizada ou elemento de instrumentalização simplificada. Para pensar esse ponto, vale refletir, tendo pelo menos como inspiração, a partir das palavras do antropólogo Bruce Albert, que, mesmo falando do “fazer etnográfico”, e não do trabalho com literatura indígena, foi responsável por colaborar para a construção de uma obra magnífica A queda do céu com o xamã yanomami David Kopenawa. Bruce Albert pode servir de orientação quando, ao escrever sobre os imperativos do “fazer etnográfico”, menciona que ele deve “fazer justiça de modo escrupuloso à imaginação conceitual dos anfitriões, levar em conta com todo o rigor o contexto sociopolítico, local e global, com o qual a sua sociedade está confrontada; e por fim, manter um olhar crítico sobre o quadro da pesquisa etnográfica em si” (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 520).
É relevante, também, mencionar as ponderações do antropólogo Viveiros de Castro (2018) sobre os imperativos destacados por Bruce Albert, pois considero que as exigências colocadas por aquele são fundamentais - e complementam as orientações de Albert - para toda e qualquer atividade que envolva a causa e temática indígena. Viveiros de Castro considera que os imperativos de Albert “não são o bastante”:
Como prossegue Albert, o etnógrafo deve estar preparado para compreender que o objetivo principal dos seus interlocutores indígenas - e o fundamento de sua cooperação - é o de converter o pesquisador em um aliado político, em seu representante diplomático ou intérprete junto à sociedade de onde ele provém, invertendo assim, tanto quanto possível, os termos da “troca desigual subjacente à relação etnográfica. Os nativos aceitam se objetivar perante o observador estrangeiro na medida em que este aceite (e esteja tecnicamente preparado para isso) representá-los adequadamente perante a sociedade que os acossa e assedia - tal é o “’pacto etnográfico”’, mediante o qual os sentidos político e científico da ideia de “representação” são levados por força (pela força das coisas) a coincidir (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 31).
Mesmo considerando que o trabalho com a Literatura Indígena na escola não é semelhante ao trabalho etnográfico, pondero que as “exigências” dos etnólogos - inclusive aquelas sobre o rigor na observação do contexto sociopolítico, local e global, o respeito e justiça à imaginação conceitual do povo indígena, e o de ser “aliado político” - são imprescindíveis, como já mencionei, para atividades relacionadas à causa e temática indígena e, no caso específico do argumento deste artigo, quando se procuram meios de efetivar a não dissociação entre Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento Indígena, bem como efetuar o devido respeito às especificidades de cada povo e de sua literatura.
Ademais, tais elementos supracitados em nada contradizem para que, no trabalho com a Literatura Indígena, buscando o respeito à potência dessa literatura nas escolas, valorizem-se os aspectos do modo de vida, como o manejo do território, as histórias de lutas, reconhecimento dos mais velhos, tudo isso fundamental aos povos indígenas (XAKRIABÁ, 2018).
As observações referidas procuram também dialogar com o que mencionam os autores Nei Leite Silva Xakriabá e Faria (2020) quando tratam da arte Xakriabá. Eles chamam a atenção, por meio de questionamentos, para a importância de considerar a operacionalização de conceitos fundamentais aos povos indígenas que envolvem sua arte. Embora escrevam, no trabalho específico aqui aludido, sobre as moringas6 de barro feitas por Nei Xakriabá, e não sobre a Literatura Indígena e a Lei 11.645/2008, vale assinalar as questões colocadas por eles, no mínimo a título de reflexão:
É preciso perguntar: como pensar o grafismo da moringa de Nei Xakriabá, sem considerar a estética da pintura corporal do povo; sem pensar a pintura corporal como desenho do espírito; o costume das idas aos barreiros, em consonância com as fases da Lua e da germinação dos brotos; o manejo do território e a luta contra a sua invasão e destruição? Como pensar a arte de Nei Xakriabá apartada da sua aprendizagem com os mais velhos, da sua participação no manejo do território, na manipulação do barro como parte da carne do território, da observação do fazer da sua mãe? (FARIA; SILVA, 2020, p. 575).
Inspirado pelas questões supracitadas - indicadas pelos autores sobre as moringas feitas por Nei Xakriabá -, nas páginas seguintes levanto apontamentos relacionados a uma narrativa Xakriabá - da Onça Cabocla Iaiá - para pensar como ela compõe um Regime de Conhecimento, ou seja, a “epistemologia nativa Xakriabá” (HORÁCIO, 2021). O intuito é pelo menos ressaltar, a partir da experiência Xakriabá trazida, a importância da compreensão da literatura dos indígenas indissociada de seus regimes de conhecimento, desejando colaborar, de alguma forma, para que o professor ou professora que optar por mobilizar a Literatura Indígena, ao realizar o estabelecido na Lei 11.645/2008, faça-o de maneira integrada, uma vez que a narrativa Xakriabá apresentada como “referência”, assim como todas, deve ser pensada na relação integrada com a concepção de território, das lutas, do povo e com a “epistemologia nativa”7.
3 REGIME DE CONHECIMENTO, NARRATIVA E CORPO-TERRITÓRIO XAKRIABÁ
Iaiá era uma vó, ela era uma índia igual nós. Ela saiu. Ela e um irmão dela. Aí, quando ela chegô no mato, ela tava com fome.
Aí, ela disse pro irmão:
_ Ieu não come carne. Ieu vou matar uma réis, só vô bebê o sangue, pruquê eu num come carne.
Aí, ela falô:
_ Toma aqui esse cachimbo e fica cum ele. Eu vou mata a réis e bebê o sangue e vô vim cum a boca aberta.
Aí, ela cendeu o cachimbo e tirou três fumaçada e deu ele o cachimbo pra ele segurá e falô:
_ Quando ieu volta cum a boca aberta, ucê põe o cachimbo na minha boca.
Aí, quando ele viu ela como uma onça ele ficô cum medo e correu cum o cachimbo na mão. Aí, não deu tempo dela desencantar. Aí, ela continuou sendo onça encantada pro resto da vida.
Ela é a protetora dos índios xacriabá abaixo de Deus (Seu Emílio, liderança Xakriabá)8.
O povo indígena Xakriabá habita a Terra Indígena Xakriabá, localizada no Alto Médio São Francisco, à margem esquerda do rio, entre os biomas da caatinga e do cerrado, na microrregião do Vale do Peruaçu, em São João das Missões - MG (SILVA, 2014). A Terra Indígena Xakriabá possui, aproximadamente, 54.000 hectares, dos quais “47.000 hectares foram homologados em 1988, e outra parte, a Terra Indígena Rancharia, de 6.798 hectares, foi homologada somente no ano de 2003” (HORÁCIO, 2018b). São 11 mil indígenas Xakriabá que vivem nessa Terra (XAKRIABÁ, 2016).
A Terra Indígena Xakriabá teve sua demarcação, ainda incompleta, e a homologação dessa demarcação somente depois de ter sofrido várias tentativas de invasões e atentados funestos - como o denominado Curral de Varas, que levou ao desaparecimento e morte de muitos Xakriabá (SANTOS, 1997) -, e após o genocídio sofrido por esse povo indígena em 12 de fevereiro de 1987, quando foram assassinados por invasores do território os indígenas Manoel Fiúza, José Santana e o Cacique Rosalino, liderança Xakriabá9.
Sobre essa Terra Indígena, menciono as palavras da indígena Xakriabá Dona Ercina: “Terra é Mãe!” (XAKRIABÁ, 2005b, p. 22). Cito também as ponderações do Sr. Vicente, pajé Xakriabá: “A Terra é mãe de todos nós” (HORÁCIO, 2018b, p. 35). Essas falas são consoantes ao que escreveu a indígena Célia Xakriabá: “quem tem território tem mãe; quem tem mãe, tem colo; quem tem colo, tem lugar para onde voltar; e quem tem para onde voltar, tem cura”10. Nesse sentido, segundo o pesquisador Costa e Santos (2010, p. 65), a Terra Indígena,
[...] além de ser uma herança indivisa, provedora da fartura e doada aos índios, a terra tem uma dimensão cosmológica anterior e muito forte. A Onça Cabocla e outros encantados possuem uma ligação imanente com a terra, e muito da atuação dos chefes gerais passava pela relação com estes.
Há encantados - o principal deles a Onça Cabocla Iaiá - que constituem a Terra Indígena Xakriabá. A Onça Cabocla é protetora dos Xakriabá e da Terra Indígena, sendo ela parte da própria Terra Indígena, bem como “considerada um ancestral comum, ou seja, um antigo que se encantou”, e como alguns mencionam: “a avó de todos os Xakriabá” (HORÁCIO, 2018b, p. 65). Nas palavras de Edgar Xakriabá (2019, p. 122) “é com ela que desde os ‘troncos velhos’11, os antigos pajés mantinham uma estreita relação por meio de negociações e auxílios que orientavam os processos de cura”.
Inclusive, há na Terra Indígena Xakriabá, para a comunicação com a Onça Cabocla Iaiá, a realização, em segredo, de um conjunto ritual, o Toré. Nas palavras de Edgar Xakriabá (2019, p. 98), “uma das formas pelas quais os Xakriabá pensam o mundo do tempo dos antigos e o conectam ao tempo d’agora está ligada ao ritual do Toré”. Assim:
O Toré é um conjunto ritual, durante o qual se faz uso do tabaco e ingestão da jurema, realizado no terreiro que é arrumado pelo “cozinheiro”, que também prepara a jurema. Os objetos utilizados no ritual, chamados de tralhas, são as tigelas, as bebidas, as vestimentas e o bastão. O pajé possui função essencial no Toré, organizando e sendo responsável pelo andamento do mesmo. Além do pajé, são componentes para o andamento do Toré, a madrinha, a mestra do terreiro, que guarda as tralhas, os raizeiros, os benzedeiros e curandeiros (HORÁCIO, 2018a, p. 63).
Portanto, a existência de um ritual de comunicação com a Onça Cabocla Iaiá, a relação que há entre a Onça Cabocla Iaiá e a Terra Indígena, com os “tronco véio”, com os acontecimentos político-territoriais e as ações do povo indígena Xakriabá pela Terra e com a Terra são elementos significativos para demonstrar que a narrativa relacionada à Onça Cabocla Iaiá, que constitui a Literatura Xakriabá, não deve ser mobilizada de modo indissociado, descontextualizado, ao ser apresentada para crianças, jovens e adultos não indígenas.
Ademais, as narrativas relacionadas à Onça Cabocla Iaiá e à Terra Indígena Xakriabá podem, inclusive, ser mais bem entendidas quando, por exemplo, observam-se os potentes pensamentos de indígenas Xakriabá, como os compartilhados por Célia Xakriabá, sobre o que ela chama de Educação Territorializada, a qual é um “saber corporificado” que, para Célia Xakriabá, está “ancorado no território” (HORÁCIO, 2021) e que, nas palavras de Célia, “constitui a todos nós Xakriabá como corpo-território” (XAKRIABÁ, 2018, p.65).
Compartilha Célia Xakriabá (2018, p. 80) que a Educação Territorializada Xakriabá “é o movimentar da educação para outros espaços onde se constituem e se conecta a outros saberes por meio do deslocamento da mente e dos corpos, para vivenciar experiência de aprendizado ancorada com a interação de acordo a dinâmica do território”.
Tomando novamente as palavras de Célia Xakriabá (2018, p. 80), nas quais os indígenas “são territórios corporificados”,
marcados pelas ancestralidades”, e que, por isso, a sociedade “precisa considerar o território como um importante elemento que nos alimenta e constitui o nosso ser pessoa no mundo, não sendo possível nos ver apartados do território, pois somos também parte indissociável dele, nosso próprio corpo.
Por conseguinte, para reforçar a compreensão de que a Literatura Xakriabá não deve ser trabalhada na escola indissociada dos elementos que compõem o Regime de Conhecimento Xakriabá, adiciono ao argumento referido o entendimento do “corpo-território” compartilhado por Célia Xakriabá (2018), uma vez que ele faz parte de uma “organicidade” oriunda da relação “umbilical” estabelecida entre o povo indígena Xakriabá, o território - a Terra Indígena Xakriabá e as lutas estabelecidas por ela - e a narrativa da Onça Cabocla Iaiá.
4 CONCLUSÃO
Nas linhas anteriores, argumentei sobre a necessidade do trabalho com a própria Literatura Indígena, não só em atividades relacionadas à observância da Lei 11.645/2008. Assinalei, principalmente, a imprescindibilidade da compreensão, e trabalho, da Literatura Indígena indissociada dos Regimes de Conhecimento Indígenas.
Isso porque, primeiramente, é o que indicam os indígenas, de acordo com diferentes manifestações que ouvi e li12. Além disso, o trabalho com a própria Literatura Indígena em sua integralidade, indissociada dos Regimes de Conhecimento, deve servir para o questionamento de certa literatura indianista, a qual, como já fora indicado, foi muitas vezes eurocêntrica e operou em uma “lógica” da colonialidade, “retratando”, por conseguinte, o indígena de maneira estereotipada e reducionista.
Vale destacar a importante ocupação dos “espaços não indígenas” pela Literatura Indígena, sobretudo pela potência das narrativas indígenas, que sempre existiram e foram continuamente pujantes, conquanto só nos últimos anos alguns lugares e pessoas tenham se permitido a tomar contato com elas, em alguns casos, em razão da obrigatoriedade da Lei 11.645/2008. No entanto, em determinados lugares, nem com a obrigatoriedade estabelecida pela lei supracitada a temática indígena tem sido trabalhada, uma vez que há pesquisas significativas que demonstram como diversas instituições de ensino não têm respeitado efetivamente a lei, ou têm procurado estratagemas para burlá-la, como instituições que, lamentavelmente, só “trabalham” com a temática no dia 19 de abril.
A respeito da compreensão da indissociabilidade entre a Literatura Indígena e os Regimes de Conhecimento, argumentei que ela é necessária porque, em conjunto, essa literatura é potencializada, no sentido de que ela só pode ser entendida em sua integralidade, se observada como constituinte e constituidora das epistemologias nativas (XAKRIABÁ, 2018). Além disso, por serem elementos de resistência e críticas do presente, o tratamento “fragmentado” e descontextualizado é um atentado a seu caráter político e, consequentemente, ao assim proceder, a professora ou o professor deixa de ser um aliado político, condição necessária para o trabalho com a causa e temática indígena. Ressalta-se que um aliado político é aquele ou aquela que observa a garantia do respeito aos direitos dos povos originários, que são inquestionáveis e intocáveis, como assegurado na Constituição Federal de 1988, na Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (adotada pela Assembleia Geral da ONU em 2007), na LDB, e na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (ratificada pelo Brasil em 2004).
Importa ainda mencionar que, para a efetivação do trabalho indissociado, é preciso considerar a necessária relação entre as epistemologias e as metodologias, o que passa pelos questionamentos aos “modos de fazer” das escolas não indígenas, chamadas de monoepistêmicas pelos autores mobilizados neste texto (FARIA; SILVA, 2020). Aqui saliento que a própria Literatura Indígena pode, pela sua força, contribuir para o questionamento dessa estrutura monoepistêmica, pois as diferentes narrativas indígenas possuem em comum, de acordo com pessoas que se relacionam há anos diretamente com elas, uma “multimodalidade discursiva” (THIÉL; QUIRINO, 2011, p. 25), participam de diferentes gêneros sem se fixarem “em nenhum deles” (SÁ, 2012, p. 111) e possuem “caráter transdisciplinar” que, de acordo com a pesquisadora Almeida (2014, p. 11), é “uma possibilidade de literatura que não separa as vidas mas que trata ciência, terra, literatura juntas”. Há traços específicos da Literatura Indígena, mas não só dela, como sua oralidade, que no caso do povo Xakriabá são as loas13. Sendo que “loas é transmissão de saberes. As Loas são até hoje uma forma de passar conhecimentos” (LOPES, 2016, p. 18-19), segundo a pesquisadora Xakriabá Luzionira de Souza Lopes.
Observar a indissociabilidade ente Literatura Indígena e Regimes de Conhecimento, além de levar em conta os traços comuns supramencionados, deve, necessariamente, considera as especificidades dos diferentes povos indígenas e as peculiaridades de seus diferentes multiversos, porque respeitar essas especificidades colabora para que os não indígenas façam “justiça de modo escrupuloso à imaginação conceitual” dos indígenas, bem como colabora para resguardar com rigor o contexto “sociopolítico, local e global” dos povos (KOPENAWA; ALBERT, 2015, p. 520), com suas lutas e resistências, embora isso não deva levar ao esquecimento da luta conjunta e comum desses povos e do respeito a seus direitos comuns, como a demarcação das Terras Indígenas.