Introdução
“Olha o palácio!”, dizem as crianças em coro, no momento em que o ônibus que leva a turma à visita ao centro histórico de Vitória passa em frente ao Santuário Basílica de Santo Antônio. A igreja foi construída entre 1956 e 1976 e apresenta arquitetura de inspiração renascentista, tomando como referência a Igreja de Nossa Senhora da Consolação, em Todi, na Itália. Com base em forma de cruz grega, sua edificação apresenta uma majestosa cúpula central e outras quatro semicúpulas. No ano de 2010, foi tombada como patrimônio histórico municipal.
Por que as crianças associam essa arquitetura ao palácio? Qual palácio lhes serve de referência? Compreende-se que as referências para identificar a arquitetura como estilo renascentista e relacionar com o palácio foram construídas socialmente. Interessa aqui analisar os diferentes espaços nos quais as crianças elaboram suas imagens e imaginações. Assim, o Grupo de Pesquisa Imagens, Tecnologias e Infâncias (ITI) orienta suas investigações a partir das seguintes perguntas: que processos sociais são mediadores da formação imagética da criança e como os espaços museológicos e prédios históricos fazem a mediação educativa de crianças pequenas?
Nas pesquisas desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa ITI, foi possível perceber que poucos espaços estão preparados para receber crianças. Entre as instituições pesquisadas1, observou-se que, até o ano de 2016, poucas contemplavam um trabalho voltado às crianças pequenas. O presente artigo problematiza a constituição e estrutura desses espaços com orientação voltada ao jovem e adulto e busca dimensionar formas de ressignificação desses locais por crianças pequenas. As pesquisas que referenciam este artigo foram desenvolvidas no bojo das reflexões desse grupo de pesquisa, na linha Educação e Linguagens, no Programa de Pós-Graduação em Educação, no Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes).
As pesquisas de Ferreira (2011) e Uliana (2013) abordam a cidade e a mediação semiótica na formação da criança. Foram realizadas nos anos de 2011 e 2013, com crianças pequenas, em Centros de Educação Infantil, na capital do Estado do Espírito Santo. A primeira, intitulada A imaginação de Palácio e a mediação das imagens da cidade na educação infantil de Vitória, discutiu a imagem de Palácio com crianças em espaços urbanos. A segunda, com o título Experiência sensível na educação: um encontro com a arte, acompanhou crianças de 3 e 4 anos em atividades mediadas pela arte em espaços expositivos. Foi desenvolvida em parceria com crianças de uma creche na cidade de Vitória (ES). Em ambas, os pesquisadores acompanharam crianças em visitas ao centro histórico da cidade e aos espaços museológicos. As visitas foram planejadas com as crianças e registradas em fotografias e vídeos, que foram posteriormente analisados, respeitando a ética na pesquisa com as crianças (KRAMER, 2002; ARAÚJO, 2005; PEREIRA, 2015; SCHÜTZ-FOERSTE; GUEDES, 2016).
A seguir, aborda-se particularmente a cidade como território de referência da criança, e os espaços educativos como mediadores na experiência estético-imagética. E a reflexão é orientada pelas seguintes perguntas: como museus acolhem crianças e que sentidos elas lhes conferem quando os visitam?
As cidades como imagem
As cidades são territórios plurais nos quais os sujeitos se movem e significam suas existências. Territórios são constituídos pelos sujeitos em processo dinâmico e em constante movimento. Para Milton Santos (2007, p. 14), “[…] o território não é apenas o conjunto de sistemas naturais e de sistemas de coisas superpostas; o território tem que ser entendido como o território usado, não o território em si”. Nesse sentido, o território é o espaço do pertencimento, no qual as crianças, os jovens e os adultos elaboram suas identidades. É definido pelas práticas culturais, pelo modo de produção da vida e pelo trabalho. Segundo Santos (2007, p. 14), o território “[…] é o fundamento do trabalho; lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida”.
Ao se transitar pela cidade, observam-se ruas, calçadas, casas, muros, portões, praças, jardins, cartazes, outdoors, mercados, edifícios, carros, a natureza… nada escapa da visão. Todos os espaços carregam as marcas do homem em diferentes momentos de sua história. “O olhar percorre as ruas como se fossem páginas escritas: a cidade diz tudo o que você deve pensar, faz você repetir o discurso […]” (CALVINO, 1990, p. 9).
As imagens da cidade, contudo, fazem parte dos sujeitos que nela vivem, constituindo-se em algo familiar. Participam das ações cotidianas e raras vezes causam o estranhamento nos sujeitos. Quando provocam, frequentemente não encontram espaços para problematização e mudanças. A pesquisa pode fomentar esse movimento quando promove o olhar e a pergunta. Nesse sentido, segundo Canevacci (2004), a pesquisa tem o papel de gerar o movimento do contraditório, investigando a polifonia da cidade a partir da dialética do olhar familiar e estrangeiro. Assim, de acordo com o autor,
[…] de um lado o que é familiar se transforma em estranho, distanciando-nos da norma e arrastando-nos para o que está se dissolvendo; de outro, o que é estranho se transforma em familiar, avizinhando-nos das regras, fazendo-nos assistir, compreender e até, se possível, transformar as novas opções urbanas que estão para ser iniciadas (CANEVACCI, 2004, p. 34).
Nas cidades, promovem-se espaços expositivos de guarda, exibição e cultivo das suas memórias, presentes, passadas e, em alguns casos, também prospectivas de futuro. Encontram-se museus históricos, galerias e museus de arte que expõem para o público imagens-síntese de diferentes épocas. Esses lugares e as situações vividas pela humanidade tornam acessíveis, também, as histórias, os valores e as materialidades locais. Os museus agregaram, nos últimos anos, espaços educativos, com o objetivo e aguçar o olhar dos visitantes, contudo poucos estão abertos ao encontro com a criança pequena.
Nas pesquisas realizadas, buscou-se compreender os diferentes modos de produção material da vida e a ressignificação dos territórios pelos sujeitos, especialmente pelas crianças, e pelo trabalho como mediador fundamental das práticas humanas (VASCONCELLOS, 2007). O trabalho cria e recria as formas materiais de vida e organização das cidades. A criança trabalha, labora e elabora sua participação nos territórios. Neste estudo, a infância é compreendida, conforme Agamben (2005), como expressão plena, espaço e lugar do inusitado, e a criança, como incansável sujeito criador/produtor de história; diferentemente do conceito de História como lugar de toda palavra e da demarcação territorial. A infância é, para esse autor, o lugar do mito que possibilita superar as dicotomias secularmente conservadas como forma de cercear ou hierarquizar conhecimentos, mantendo uma distinção fundamental entre aqueles que dominam a palavra e os que não a dominam. Para Agamben (2005, p. 61),
O problema, na realidade, não é o de saber se a língua é uma menschliche Erfindung ou uma gottliche Gabe, pois ambas as hipótese se interpenetram – do ponto de vista das ciências humanas – no mito: mas o de tomar consciência de que a origem da linguagem deve necessariamente situar-se em um ponto de fratura da oposição contínua de diacrônico e sincrônico, histórico e estrutural, no qual se possa captar, com um Urfaktum ou um arquievento, a unidade-diferença de invenção e dom, humano e não humano, palavra e infância.
A linguagem é, na concepção vigotskiana, a principal mediação entre o indivíduo e a sociedade (VIGOTSKI, 1998, 2001, 2002, 2004). E a mediação semiótica possibilita a gradativa inclusão de gerações ao campo da cultura, que é a produção de conhecimentos sobre a realidade como processo histórico. Vigotski (2004) defende que a criança sempre tem uma pré-história, ou seja, quando chega aos espaços formais de aprendizagem, já dispõe de conhecimentos sobre diferentes assuntos elaborados a partir de experiências na família, grupos religiosos, espaços coletivos, como parques, praças e muitos outros espaços sociais que a formam, informam e conformam. Problematizando o ambiente de aprendizagem escolar que, muitas vezes, não leva em conta os conhecimentos acumulados pela criança ao chegar na escola, Vigotski (2004) faz ainda uma distinção entre a aprendizagem pré-escolar e aquela promovida pela escola:
É natural que a aprendizagem pré-escolar seja substantivamente diversa da escolar, pois esta trabalha com assimilações das bases do conhecimento científico. Mas, mesmo quando a criança, ao se encontrar no perigo das primeiras perguntas, assimila os nomes dos objetos ao redor, no fundo ela passa por um determinado ciclo de aprendizagem. Assim, a aprendizagem e o desenvolvimento não se encontram pela primeira vez na unidade escolar, mas estão de fato interligadas desde o primeiro dia de vida da criança […] (2004, p. 477).
Logo, a criança transita pela cidade e as suas ruas lhe são familiares, contudo nem sempre é possível observar a sua interação com os espaços urbanos. Essa experiência foi acompanhada nas visitas que ora se analisam.
A cidade de Vitória, especialmente em seu centro histórico, concentra um conjunto arquitetônico e acervos históricos que remontam ao período imperial. Os dois espaços museológicos visitados encontram-se na Cidade Alta, no centro da capital. O Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo foi inaugurado no dia 18 de dezembro de 1998 e está localizado no centro de Vitória. O prédio que o abriga foi projetado pelo arquiteto tcheco Joseph Pitilick, concluído em 1925. Atualmente, o museu é Patrimônio Cultural do Estado do Espírito Santo. O Palácio Anchieta, que abrigou a igreja e o Colégio de São Tiago, começou a ser erguido em 1570 e atualmente é a sede do governo do estado do Espírito Santo. Constitui-se em um espaço de visitação com exposições sazonais e permanentes.
Realizada em 2011, a visita aos espaços urbanos de Vitória, com crianças de 5 e 6 anos de idade, desenvolveu um itinerário da instituição de educação infantil ao Palácio Anchieta, no centro da cidade. O palácio foi tema de discussão antes, durante e posteriormente à visita. Inicialmente, a pesquisadora, em roda de conversa, realizou breve diagnóstico sobre a noção de palácio que as crianças traziam e sobre as associações que faziam com o tema. Também solicitou desenhos e descrições de palácios que elas “conheciam”. Conforme a pesquisadora, referiram-se a bruxas, princesas, espadas e a outros símbolos. Um desses desenhos sobre um palácio imaginário é a seguir analisado pela pesquisadora.
Lorrayne, ao relembrar as imagens desveladas do seu imaginário, criou o seu palácio (Imagem 1). Não precisou de ajuda. Traçou a imagem com forma de torre, contendo várias janelas. Sua representação simbólica traz uma paisagem com formas de árvores e a arquitetura de um palácio. Observamos que utiliza-se de todo espaço do papel, mantendo um equilíbrio, sem exageros de elementos, optando para o destaque do palácio, criado com cores diversas entre o vermelho, o laranja e o azul. Demonstra a capacidade de imaginação criando as camadas sobrepostas, como se fosse uma torre, levando o leitor ao entendimento que um palácio é construído de forma verticalizada. Percebemos a capacidade criadora das crianças em imaginar e acrescentar cenas do cotidiano às da imaginação (FERREIRA, 2011, p. 141).
A partir da conversa sobre o desenho, foi proposta a realização de uma visita/passeio de ônibus pela cidade de Vitória, com o objetivo de chegar ao Palácio Anchieta, atualmente sede do governo do estado do Espírito Santo. Durante o trajeto, as crianças manifestavam sua ansiedade em chegar ao destino e buscavam reconhecer os espaços urbanos por onde passavam. Foi, então, que, ao passar em frente à Basílica de Santo Antônio (Imagem 2) e pelas ruas do bairro Santo Antônio, as crianças disseram em coro: “Olha o palácio!”.
Contudo, foi preciso explicar que aquele não era o palácio e que a visita ao Palácio Anchieta ainda estava por acontecer. A chegada foi um acontecimento. As crianças estavam interessadas em reconhecer no espaço algumas referências que já dispunham sobre o tema. Assim perguntavam: “Onde está o rei? E a princesa?”.
Uma segunda pesquisa apresentada envolveu crianças de 3 e 4 anos de idade de um Centro de Educação Infantil localizado em Vitória, com a proposta de visitar os espaços urbanos. Durante o percurso do passeio, realizado em transporte coletivo, foi possível perceber comentários que indicavam o reconhecimento desses ambientes. Diziam:
P – Olha, gente, eu venho nessa praia com meu pai e minha mãe. É pertinho da minha casa!
MJ – Eu também! É Camburi!
AL – Olha! É aqui que eu faço balé!
N – Eu também passo por aqui para o meu balé. Onde é o seu balé, AL?
AL – É bem ali! (apontando)
N – O meu não é ali, não!
MJ – Meu balé não é aqui não também.
L – Olha lá a escola da minha mãe!
MJ – Cadê, L? Ela estuda lá?
L – Não, ela já estudou.
Ao passar a ponte de Camburi:
N – Olha, é aqui que tá chegando no meu balé. Olha lá, é ali.
(ULIANA, 2014, p. 93).
A observação atenta da pesquisadora, com registros fotográficos, fílmicos e em diário de campo, durante o itinerário da viagem no transporte, possibilitou registros de falas, olhares e manifestações variadas entre as crianças e destas com as professoras e com a pesquisadora que acompanhavam o grupo. Assim relata a pesquisadora:
Aos poucos, começaram a falar do que observavam, como a altura dos prédios, os ônibus, as árvores. Ainda estávamos na Praia do Canto, mas o circuito para a maioria já não era tão familiar, quando, de repente, Lorenzo, apesar de estar sentado do lado contrário à rua que dá acesso à sua casa, vira-se subitamente e avisa aos colegas:
L – Olha aqui, aqui que entra pra minha casa.
MJ – Você mora aqui, Lorenzo? Onde?
L – No prédio bem alto.
MJ – Bem alto?
L – É, mais não dá pra ver daqui, só onde entra.
(ULIANA, 2014, p. 94).
Conforme Benjamin (1987, p. 16), “[..] somente quem anda pela estrada experimenta algo de seu domínio”. Essa frase contribui para reforçar a tese de que as referências das crianças são produzidas nas experiências acumuladas. A educação escolar pode ampliar o campo de experiências, com a mediação imagética e discussão com base no conhecimento histórico-científico. Por exemplo, quando associam o santuário ao palácio, infere-se que suas leituras anteriores foram mediadas por livros, fotografias, histórias contadas, filmes, visitas, brincadeiras de faz de conta, entre outras vivências que lhes proporcionaram um quadro de referências, favorecendo a associação. Contudo, a aluna ficou frustrada ao ouvir do professor:
Não, este não é o palácio! Este é o Santuário de Santo Antônio. O Palácio Anchieta, aonde vamos, é mais longe.
Partindo do pressuposto de que a mediação imagética pode promover a ampliação da experiência, a seguir analisam-se, nos dois casos, o encontro das crianças pequenas com os espaços museológicos.
A mediação imagética na formação da criança
As crianças pequenas raramente visitam os museus. Quando o fazem, estão em companhia dos pais e não são percebidas, pois assim a presença delas não causa estranhamento. Contudo, algumas vezes, situações constrangedoras são criadas quando se promove a chegada de crianças aos museus de arte, galerias, museus históricos ou de ciências, entre outros espaços expositivos.
Nas pesquisas realizadas nesses locais, percebeu-se um constrangimento dos adultos responsáveis pelas visitas guiadas. Eles externaram que não tinham preparo para a mediação com esse público, conforme constatou-se nesta pesquisa.
A reação dos monitores diante da turma foi de surpresa. Eles se entreolharam e sorriram demonstrando não saber o que fazer com as crianças. Ao perceber o desconforto dos monitores, procuramos nos aproximar e explicar que poderiam conversar com as crianças normalmente. Os monitores então explicaram que estavam preparados para receber crianças maiores, mas que iam tentar e iniciaram dando as instruções do que era proibido. Realizaram uma fala programada que, entre outras coisas, alertava a não tocar nas obras, não mascar chiclete e, caso alguém estivesse mascando, que jogasse fora antes de subir. Diante dos olhares atentos das crianças, a monitora ponderou: ‘É, acho que esse não é o caso de vocês’ (ULIANA, 2013, p. 100).
A chegada das crianças aos espaços expositivos não impactou somente elas, mas todos os envolvidos no processo. Professores e pesquisadores perceberam o constrangimento criado e orientaram as crianças para atender às recomendações. Isso também aconteceu na pesquisa realizada no Palácio Anchieta, que, pelas proporções arquitetônicas do espaço, já impôs às crianças um breve tempo de contemplação e constrangimento. Assim relata a pesquisadora.
O silêncio tomou conta da recepção deixando os monitores surpresos, pois é um público incomum de visitação àquele local. Como chegamos com um grupo de crianças da educação infantil, percebemos um pouco de insegurança por parte deles, provavelmente por serem pequenas e por acharem que dariam um pouco de trabalho (barulho, colocando as mãos nas paredes, objetos etc.) (FERREIRA, 2011, p. 93).
Os relatos apontam a preocupação dos monitores em repassar as instruções de não ultrapassar as marcas pintadas no chão, assegurar distância dos objetos e não colocar a mãos nas paredes. O monitor do Palácio Anchieta orientou assim as crianças:
Eu queria que vocês não encostassem as mãos nas paredes e nem nos objetos que vamos encontrar… Os arqueólogos tiveram todo o trabalho de restaurar e conservar…Tá bom? (monitor)
Tá! (as crianças responderam em coro).
(FERREIRA, 2011, p. 94).
Essa situação permite inferir que, nos espaços pensados para adultos, a criança é regulada: não pode tocar, não pode sentar e somente poderá se mover conforme orientações definidas pelas marcas no chão. Os medos de que ocorram acidentes com as obras e também a mediação do discurso, muitas vezes preparado mecanicamente, já não funcionavam. Essas percepções são corroboradas pelas pesquisas de Leite (2005, p. 102-103), quando explicita: “Organizar, pedir autorização, sair da escola ou da creche, adentrar a exposição – só aí já vencemos a barreira dos primeiros preconceitos: aqueles que dizem que a criança pequena não vai entender a obra e de que museu é coisa de gente velha e não lugar de criança”.
A experiência com as crianças, quando elas chegam ao museu, conforme as duas pesquisas que aqui foram relatadas, falam do protagonismo delas nos espaços visitados. Nos dois casos, as crianças são conduzidas em grupos, a partir da mediação educativa de professoras de Arte para visitas guiadas a espaços expositivos na cidade de Vitória. Ao chegarem ao espaço expositivo, as referências que tinham sobre o palácio não foram descartadas no encontro com os monitores. Ao contrário, elas, que estavam achando a visita cansativa e desinteressante, perceberam na fala do monitor um momento que motivou sua curiosidade, quando ele falou de lendas sobre assombração que ouviu sobre o Palácio Anchieta. Relata a pesquisadora:
Esse foi um dos momentos mais marcantes para uma das crianças, que estava achando a visita/passeio um pouco chata, pois não tinha lugar para brincar. Mas, ao ouvir que, no Palácio Anchieta, ‘[…] tem um piano que toca sozinho a noite […], uma cadeira de balanço que balança sozinha […] e um violão que toca sozinho’ (monitor), tornou-se uma constância sua indagação durante o retorno ao CMEI e no nosso último encontro. Ficou no desejo de ver a cadeira, o violão e o piano, e disse que voltaria lá com seus pais até ver e ouvir. Uma das conversas que derivam daí assim se desenvolveu:
– E você, Wisley, o que achou do passeio? (pesquisadora)
– Hummm…
– Você achou legal? (pesquisadora)
– Achei.
– O que mais gostou? (pesquisadora)
– Ah, eu… eu… gostei de vê uma cadeira, né! Uma cadeira misteriooosa…
– Cadeira misteriosa? (pesquisadora)
– O home falô a cadera… eu queria vê o violão… […]
– Mas aí não dava (pesquisadora)
– Piano… (falou com uma carinha desconfiada).
– Será que é verdade dele? (pesquisadora)
– Deve sê verdade… porque… porque ele falô que vai mostrá… porque falô que vai me mostra (FERREIRA, 2011, p. 109).
Quando as crianças retornaram à escola, novas formas, traços e marcas foram produzidos em desenhos e gravuras. Percebeu-se que novos sentidos em torno da noção de palácio foram compartilhados. Algumas crianças comentavam sobre a igreja, fazendo menção à história do lugar. Outras registraram o palácio em formato côncavo, lembrando a imagem da Basílica de Santo Antônio, e outras desenharam os arredores do Palácio Anchieta, como a Praça João Clímaco, registrando o jardim, local onde foi compartilhado um lanche em piquenique. Reforça-se, assim, suas percepções sobre a importância da experiência na produção de sentidos e na expressão gráfica das crianças, conforme percebe-se na gravura que segue (Imagem 4):
Outra pesquisa que conduziu crianças de 3 e 4 anos ao Museu de Arte do Espírito Santo (Maes) Dionísio Del Santo permitiu igualmente analisar o comportamento delas na mediação da obra de arte e dos espaços expositivos.
Ao chegarem ao museu que abrigava a exposição com o tema futebol, com serigrafias de Rubem Gerchman, de 1998, as crianças, em coro ou isoladamente, falaram:
– Olha a bola!
– É o jogador.
O monitor, então, pergunta se eles conhecem algum daqueles jogadores. Uma das crianças responde rapidamente:
Eu conheço o Neymar.
E é seguido pela maioria que afirmava conhecer o Neymar. O monitor explica que ali são jogadores mais antigos e questionou se eles sabiam de onde eram aqueles jogadores, onde eles jogavam. Todos falavam ao mesmo tempo:
Flamengo! Vasco!, mas não chegavam a uma conclusão.
A pesquisadora complementa: Vou dar uma dica, prestem atenção às cores dos uniformes deles, quais são?
MC – Azul!
G – Amarelo!
Pesquisadora: Onde nós encontramos essas cores? Em que bandeira?
L – Do Brasil!
(ULIANA, 2014, p. 103).
A presença da criança no local, pelo reconhecimento de ídolos ou pelo simples fato de encontrar-se com o que lhe parecia familiar, possibilitou também maior intimidade com o espaço museológico. Contudo, percebe-se que essa experiência foi ampliada e redimensionada no momento seguinte, quando a instalação propunha interação com o espectador. Assim, na sequência da visita, as crianças foram conduzidas à sala que abrigava a instalação Olé, de Maruzza Valdetaro (2013) (Imagem 5). Esse momento favoreceu maior interação das crianças com o espaço, visto que no local elas eram convidadas a interagir com a obra. A pesquisadora descreve o espaço e a dinâmica proposta.
Apresentava nas paredes retângulos pintados fazendo um jogo de figura e fundo, o chão recoberto com um tipo de fitas de borracha esticadas a mais ou menos uns 20 cm do piso e, em cima desse emaranhado que formava um grande entrelaçado em toda a extensão da sala, havia diversas bolas de futebol. A proposta era andar em cima dessas fitas de borracha, mas as crianças entraram pisando sobre a borracha entrelaçada, em meio às brechas, enfim, da maneira que podiam alcançar as bolas e jogá-las para os colegas (ULIANA, 2014, p. 103).
A participação lúdica das crianças transformou a obra e redimensionou o espaço expositivo. Não mais colocada apenas para contemplação, esta passou a interagir com as crianças. Nesse sentido, a obra de arte, como mediação, faz parte da formação da criança (SCHÜTZ-FOERSTE, 2004). Assim descreve a pesquisadora:
Essa instalação proporcionou muita diversão e companheirismo. Algumas crianças apresentavam habilidade em se locomover na sala, outras andavam com mais cautela. O balanço da trama de borracha locomovia as bolas, o que dificultava apanhá-las e, nessas horas, os colegas que apresentavam mais facilidade de locomoção nesse espaço corriam para alcançar a bola e entregar para quem não conseguia. Em alguns momentos, a bola vazava a trama e caía diretamente no chão, a professora auxiliava a retirar, mas, em certo momento, Penélope percebeu que conseguia andar por baixo da trama e começou a auxiliar os amigos a resgatar as bolas.
Manter-se em pé correndo não era muito fácil, e Pedro Henrique, em um dado momento, atrapalhou-se e caiu. A borracha amortecia a queda. Ele achou tão engraçado que provocava as quedas e em pouco tempo estava sendo imitado por alguns amigos. Todos riam muito quando caíam.
(ULIANA, 2014, p. 104).
Ao final da visita, as crianças foram conduzidas à sala com as obras do artista que dá nome ao museu Dionísio Del Santo. Já exaustas, deitaram-se no chão e observaram as obras expostas, suas cores e figuras humanas. Esse momento foi relatado pela pesquisadora como um tempo de relaxamento, que encaminhou as crianças para o percurso de retorno ao Centro de Educação Infantil. Durante a viagem, elas conversavam entre si e com os adultos, avaliando o que viram e experimentaram. Diziam:
Lorenzo – Foi muito legal, né?
Pedro – Foi sim, eu caí!
Nathalia – Eu também caí!
Lorenzo – Eu não caí.
Penélope – Olha, eu não caí, eu passei por baxo!
(ULIANA, 2014, p. 106).
Foram realizadas, com as crianças de 3 e 4 anos, duas visitas a exposições no Museu Vale.2 Nesse espaço, encontrou-se uma mediadora que a princípio avisou nunca ter orientado um grupo de crianças tão pequenas, mas imediatamente se aproximou delas, apresentou-se e pediu que cada uma se apresentasse ainda na parte externa do museu. Ali começou um diálogo que evidenciou a atenção à criança como sujeito e gerou uma ação responsiva com o espaço expositivo e com as obras, manifestando a relação de respeito estabelecida entre ambas as partes. Essa primeira exposição, visitada nesse espaço, em 2013, exibia desenhos da artista Regina Chulan. A mediadora convidou as crianças a imitar as poses das figuras nas obras de arte, e esse foi um momento de muita brincadeira, com as crianças tentando reproduzir os movimentos das imagens nos quadros. De uma maneira lúdica, elas foram envolvidas e interagiram com cada obra, conversando sobre o que estavam vendo e sentindo, emitiram opinião, ouviram as histórias e retornaram para o Centro de Educação Infantil e para as suas casas com muitas novidades para contar.
No ano seguinte (2014), ao retornar-se ao Museu de Arte do Espírito Santo, com as mesmas crianças, agora para vivenciar a exposição Meu país tropical, de Heidi Lieberman, uma cena chamou atenção, quando as crianças começaram a imitar os gestos das figuras ali representadas (Fotos 1 e 2). A memória do vivido no momento da exposição da Vale conduz ao conceito de Vigotski (2004), de leitura lenta da obra de arte, que perdura e promove um retorno à fruição da obra, produzida na vivência e gerando uma experiência que é social e comunicável.
Considerações conclusivas
A investigação desenvolvida coletivamente pelo Grupo de Pesquisa ITI aponta para a importância de se promoverem experiências qualitativas das crianças nos espaços urbanos, especialmente na mediação de espaços expositivos que concentram acervos da cultura e história locais. As pesquisas realizadas pelos integrantes desse grupo mostraram a relevância de explorar a cidade com as crianças, especialmente analisando a mediação dos espaços expositivos na formação da criança pequena.
Nos dois casos analisados, as crianças foram conduzidas em grupos, a partir da mediação educativa de professoras de Arte, para visitas guiadas a espaços da cidade de Vitória. Os resultados permitiram perceber que os espaços visitados não aguardavam crianças. Não estavam preparados para receber crianças pequenas. Isso era constatado tanto pelas mediações feitas pelos monitores, com falas com uma linguagem rebuscada, quanto pelo cuidado e recomendações para não tocar nos objetos. As crianças não constituem público esperado em museus. Quando os frequentam, estão acompanhadas dos pais, e poucas oportunidades lhes são proporcionadas para interação. Contudo, sua chegada em um grupo maior causa estranhamento e surpresa, implicando, por vezes, situações constrangedoras. Por outro lado, as crianças atribuem sentidos novos aos espaços expositivos, redimensionando-os a partir de seus interesses, e passam a ter um pertencimento como sujeitos participantes dos espaços e da cidade. Essa experiência lhes é significativa e repercute nos círculos de sua convivência. Elas se tornam também disseminadoras dos espaços de memórias para os seus familiares. Por vezes, retornam aos lugares de passeio/visita, levando seus pais e amigos, como mediadoras a partir do seu entendimento, ampliando os olhares para a cidade e para os museus.