Introdução
Na França, no século XIX, a educação matemática escolar era amplamente estruturada, tanto em seus conteúdos e métodos, como em seus propósitos, pela organização do sistema escolar em duas “ordens” separadas de ensino. Por um lado, o ensino primário constituía a escola do povo: oferecia um ensino prático e útil, orientado para a vida diária ou profissional à qual seus alunos estavam “destinados” Por outro lado, o ensino secundário escolarizava, em collèges royales ou comunais2, os filhos dos meios mais abastados, isto é, uma pequena minoria3: ali era ministrado um ensino humanista, uma formação cultural que visava, em primeiro lugar, a formação intelectual da mente, e que se pretendia “desinteressada”.
Até o momento, a pesquisa histórica concentrou-se no ensino secundário de matemática, e a esse respeito é preciso ressaltar a importância do trabalho de Bruno Belhoste e Hélène Gispert (BELHOSTE, 1989; BELHOSTE, 1995; GISPERT, 2002; GISPERT et al., 2007). Em contrapartida, ainda há poucos trabalhos que se interessam pelo ensino de matemática ministrado nas escolas primárias francesas, em particular pelo que se pode denominar como ensino primário “avançado”, isto é, as escolas primárias superiores e as escolas normais primárias, que constituíam então vias de escolarização prolongada, paralelas à formação oferecida pelo ramo secundário.
Em um artigo de 2006, Gert Schubring enfatizou a necessidade de pesquisas sobre os períodos de institucionalização do ensino de matemática, com foco, especialmente, nos professores e na sua formação (SCHUBRING, 2006). É nessa perspectiva que eu gostaria de descrever e analisar o ensino de matemática oferecido nas escolas normais primárias que foram criadas na França, na virada dos anos 1820-1830, para formar os futuros professores das escolas primárias elementares e superiores (de meninos). Quais eram, precisamente, os conteúdos desse ensino? Como ele era organizado? Com que espírito e com que propósitos ele era oferecido? No momento em que o Estado estendia seu controle sobre o ensino primário e o constituía como um “serviço público”, com os esforços concentrados no ensino masculino, esses novos estabelecimentos de ensino desempenharam um papel decisivo na constituição de uma cultura matemática especificamente primária, distinta daquela do ensino secundário.
A primeira rede de escolas primárias e o contexto institucional
Na primeira metade do século XIX foram organizadas as escolas primárias destinadas à formação de professores do ensino primário (GRANDIÈRE, 2006; CONDETTE, 2007). Os seus princípios foram estabelecidos no reinado de Napoleão I pelo Decreto Imperial de 17 de março de 1808. Esse decreto criou a Universidade, que era ao mesmo tempo a administração de um novo sistema educacional e um corpo de professores do ensino secundário e do ensino superior. O ensino primário e seus professores ocupavam um lugar marginal na Universidade4. Ainda assim, o decreto previa que seriam “estabelecidas em cada académie5 […] uma ou mais classes normales, para a formação de professores para as escolas primárias, nas quais serão expostos os métodos mais apropriados para aperfeiçoar a arte de ensinar a ler, escrever e calcular”6. Uma “classe normale” foi então aberta em Strasbourg, em 1810, e rapidamente se tornou um estabelecimento autônomo7. Sob o regime dos Bourbon (1815-1830), uma monarquia constitucional, outras cidades do Leste da França seguiram esse exemplo no início dos anos 1820, mas apenas no final dessa década a rede de écoles normales primaires8 começou verdadeiramente a se constituir: doze escolas normais foram criadas em 1828 e 1829, impulsionadas pela ação decisiva do Ministro da Instrução Pública Vatimesnil9. Esse movimento de criação se ampliou com a Revolução de julho de 1830 e a ascensão ao trono do Rei Luís Filipe, notadamente com a nomeação de François Guizot para o Ministério da Instrução Pública. A Lei Guizot sobre o ensino primário de 28 de março de 1833, que trata apenas do ensino masculino, determinou que cada departamento10 deveria manter uma escola normal primária. Havia 47 escolas de formação de professores em 1833, e 76 em 1841, que acolhiam 2.684 “alunos-mestres”, isto é, uma média de 35 alunos por estabelecimento. Esses alunos eram, em sua maioria, de origem rural: filhos de pequenos agricultores, de artifices rurais, de pequenos proprietários, de professores de escolas do interior. Embora a educação das mulheres não seja objeto deste artigo, cabe observar que as escolas normais de professoras não recebiam a mesma atenção por parte dos governos. A legislação não obrigava à criação dessas escolas de professoras – isso ocorreria apenas em 1879 –, de modo que elas formavam uma rede muito menos densa do que a das escolas para rapazes; havia apenas oito escolas para moças por volta de 1848, às quais devemos acrescentar cerca de trinta cursos normais anexos a escolas primárias superiores ou internatos.
O aumento do número de escolas normais primárias ocorreu em um novo contexto politico, o da vitória dos liberais sobre os conservadores, que resultou em uma monarquia constitucional liberal na França com a posse de Luis Filipe I após a Revolução de julho de 1830 (o começo da “Monarquia de Julho”). O crescimento do número de escolas normais fazia parte de uma política mais geral de desenvolvimento, em que o Estado assumia a oferta e o controle do ensino primário, um quarto de século após ter encampado o ensino secundário. Para o novo governo, a educação popular nas escolas primárias garantiria a estabilidade do Estado e da sociedade. Em uma carta dirigida aos professores do ensino primário, na qual ele também os lembrava da modéstia de sua posição social, Guizot declarava que
embora a carreira do professor primário não tenha brilhantismo, embora seu cuidado e seus dias na maioria das vezes sejam consumidos nos limites de uma comuna, suas obras interessam a toda a sociedade e sua profissão contribui para a importância das funções públicas. Não é apenas para a comuna ou segundo um interesse puramente local, que a lei exige que todos os franceses adquiram, se possível, os conhecimentos essenciais à vida social, e sem os quais a inteligência definha e às vezes se embrutece: é também para o próprio Estado e pelo interesse público; é porque a liberdade só é assegurada e duradoura se o povo é suficientemente esclarecido para ouvir em todas as circunstâncias a voz da razão. A educação primária universal é agora uma das garantias de ordem e estabilidade social. Como tudo, nos princípios de nosso governo, é verdadeiro e razoável, desenvolver inteligência, propagar as luzes, é assegurar o império e a duração da monarquia constitucional11 (GUIZOT, 1833, p. 269).
A partir de 1831, o Ministério da Instrução Pública publicou e enviou para as escolas públicas uma série de cinco livros didáticos oficiais, incluindo uma Petite arithmétique raisonnée de Hippolyte Vernier, da qual foram distribuídos 25 mil exemplares em 1832 e 30 mil em 1833 (CHOPPIN, 1993, p. 31-32)12. Em 1832, Guizot, empossado como ministro, procedeu à criação de uma revista mensal, o Manuel general de l’instruction primaire, destinado a orientar os professores no seu ensino. Em especial, a lei de 28 de junho de 1833 obrigava todas as comunas a manterem pelo menos uma escola primária elementar (de meninos), na qual se ensinaria “instrução moral e religiosa, leitura, escrita, elementos da língua francesa e de cálculo, o sistema legal de pesos e medidas”13. A lei também previa a abertura, nas sedes dos departamentos e nas cidades com mais de 6 mil habitantes, de escolas primárias superiores incumbidas de oferecer às crianças das classes médias um ensino mais avançado que o das escolas primárias elementares, e mais voltadas para o estudo das ciências e de suas aplicações práticas do que para os estudos secundários clássicos. Além das matérias do ensino primário elementar, o ensino primário superior deveria incluir “elementos de geometria e suas aplicações usuais, especialmente desenho linear e agrimensura, noções de ciências físicas e de história natural aplicáveis aos usos da vida, o canto, os elementos da história e da geografia, e especialmente a história e geografia da França”14. A criação, em 1835, de um corpo de inspetores primários departamentais – que seriam apoiados, a partir de 1837, por subinspetores – teria como objetivo garantir o controle pedagógico sobre as escolas primárias.
Componentes importantes do sistema de ensino primário edificado pela Lei Guizot, as escolas normais primárias estavam submetidas a um conjunto de regulamentações relativas ao seu funcionamento, à sua organização e aos conteúdos da formação por elas oferecida, assim como à certificação dos professores. Os alunos-mestres, que deveriam ter pelo menos 16 anos de idade, eram recrutados por concurso, no qual deveriam provar, em especial, que possuíam “as primeiras noções […] de cálculo” (CONSEIL ROYAL…, 1832). A sua formação na escola normal deveria, teoricamente, durar dois anos, mas já ao final da década de 1830 um certo número de instituições oferecia um curso de três anos. Longe de se limitar ao “ler, escrever, contar” do decreto de 1808, o ensino que recebiam incluía várias matérias, que retomavam, exceto em alguns detalhes, aquelas da Lei Guizot. Uma formação pedagógica (métodos de ensino e princípios educativos) era igualmente prevista. Os alunos-mestres eram desse modo preparados para o exame do brevet de capacité (certificado de habilitação), indispensável para exercer a profissão de professor primário (TOUSSAINT, 2002). Dois tipos de certificados diferentes correspondiam aos dois graus de escolas primárias instituídas pela Lei Guizot: o brevet élémentaire (certificado elementar), para ensinar em uma escola primária elementar; e o brevet supérieur (certificado superior), para ensinar em uma escola primária superior. Mas, esse último, era obtido apenas por uma minoria de alunos-mestres (130 em 860, isto é, 15%, em 1840) (VILLEMAIN, 1841, p. 110). Quer fossem titulares do certificado elementar ou superior, os professores diplomados eram professores polivalentes, responsáveis pelo ensino de todas as matérias em suas escolas.
As primeiras escolas primárias normais não contavam com um corpo de formadores de professores especificamente preparados para essa atividade. Então, esses formadores vinham de diversas origens (D’ENFERT, 2012). Geralmente, pertenciam ao mundo do ensino primário, sendo, neste caso, professores ou diretores de escola primária ou escola primária superior, ou ainda inspetores ou subinspetores, antes da sua nomeação para a escola normal; ou pertenciam ao mundo do ensino secundário, isto é, eles haviam exercido o magistério (e frequentemente seguiam exercendo) em um colégio royal ou comunal. Mas alguns deles não vinham do ensino primário nem do ensino secundário: eram arquitetos, desenhistas ou geômetras. De fato, muitos professores acumulavam o seu cargo na escola normal com uma função pública em outro estabelecimento escolar da cidade (escola primária, colégio royal ou comunal, escola de desenho) ou em uma administração pública, o que lhes proporcionava uma remuneração adicional. Em Chartres, por volta de 1845, o regente de matemática do colégio ministrava dez aulas de duas horas cada na escola normal (por 1.400 francos), além das oito aulas de seu serviço regular no colégio (por 1.800 francos). O que leva a nos interrogarmos se as aulas dadas na escola normal pelos professores do colégio se adaptavam ao espírito “primário” ou se, ao contrário, permaneciam fiéis aos padrões do ensino secundário. Para reduzir essa heterogeneidade, o Ministério da Instrução Pública tentou limitar a presença de professores do ensino secundário em benefício daqueles oriundos do ensino primário, notadamente incentivando o recrutamento de egressos das escolas normais. Mas essa ação não parece ter surtido o efeito desejado, já que, em meados da década de 1840, ainda havia nas escolas normais uma grande proporção de professores do ensino secundário (40% no caso da matemática).
Por volta de 1840, egressos das escolas normais ocupavam apenas cerca de um terço dos postos vagos de ensino (GRANDIÈRE, 2006, p. 62). Porém, deve-se ter em mente que a ação das escolas normais não se limitava à formação inicial dos alunos-mestres. De fato, muitas delas também participavam da formação de professores primários em serviço, organizando para eles palestras ou cursos de atualização, por exemplo, sobre o sistema métrico, cujo uso se tornou definitivamente obrigatório a partir de 1840. Ampliando o conhecimento dos professores para além do mero “ler, escrever, contar”, as escolas normais desempenharam um papel fundamental na melhoria do ensino primário e na constituição de uma genuína cultura profissional dos professores primários. Ao fazê-lo, elas ajudaram a moldar a cultura matemática e as representações sobre a disciplina de boa parte dos indivíduos que compunham a sociedade francesa do século XIX.
Qual “matemática” para a formação de professores?
Diferente do que ocorria no ensino secundário, a “matemática” não constituía em si mesma uma disciplina do ensino primário, embora a palavra fosse por vezes usada à época. No entanto, é possível identificar quais eram os conteúdos ensinados a partir dos textos oficiais publicados no início dos anos 1830 (D’ENFERT, 2003a). De acordo com o regulamento de 14 de dezembro de 1832 sobre as escolas primárias, eles contemplavam “aritmética, incluindo o sistema legal de pesos e medidas”15, bem como “desenho linear, agrimensura e outras aplicações de geometria prática”16. Mas, como vimos, logo depois a Lei Guizot inscreveu “os elementos da geometria e suas aplicações usuais, especialmente o desenho linear e a agrimensura”17 entre as matérias das escolas primárias superiores a serem criadas. Então essa geometria (e não só a geometria prática) tornou-se um componente específico da instrução primária e, portanto, da formação de seus professores. Na verdade, essa introdução da geometria no ensino de matemática da escola primária foi realizada por ocasião do debate na Câmara dos Deputados sobre a Lei Guizot (29 de abril de 1833). Partindo do fato de que o desenho linear18 – cujo ensino foi gradativamente introduzido a partir de 1818 nas escolas primárias, segundo o método de Louis-Benjamin Francoeur (1819) para as escolas mútuas19 – está baseado no traçado de linhas e figuras geométricas, vários deputados, que também eram membros da comunidade acadêmica, consideraram que não era nada além de uma aplicação da geometria, da mesma forma que a agrimensura: tornavase portanto necessário, a seus olhos, ensinar os principios teóricos que fundamentam essas aplicações, ou seja, os “elementos” da geometria. Sob a Lei Guizot, a geometria constituiu, desse modo, o embasamento teórico tanto para o desenho como para a agrimensura (D’ENFERT, 2003b).
Ao todo, aritmética e sistema métrico, geometria, desenho linear e agrimensura (à qual devem ser adicionados a medição e a topografia, também considerados “aplicações usuais da geometria”) formam os quatro principais componentes do ensino de matemática ministrados nas escolas normais20. Contudo, na maioria das escolas, esse ensino não era confiado a um único professor, mas a vários: frequentemente dois, às vezes três, excepcionalmente quatro (D’ENFERT, 2012). Na escola normal de Guéret, por volta de 1845, dois professores compartilhavam o curso de matemática: o primeiro era encarregado da aritmética, o segundo da geometria e do desenho linear. Na escola normal de Chartres, um professor dava as lições de aritmética e geometria, outro dava as lições de desenho linear, outro ainda as de agrimensura. Em várias escolas, o ensino do desenho linear (eventualmente complementado pela agrimensura e pela topografia) era então confiado a um especialista do grafismo técnico, um arquiteto ou desenhista, por exemplo, o que fazia com que, contrariamente às intenções da legislação, esse fosse um ensino “à parte”, separado do curso de geometria propriamente dito. Essa repartição do ensino de matemática entre vários professores tem um corolário: muitos eram aqueles que não apenas ensinavam matemática, mas também davam aulas de outras disciplinas, como as ciências fisicas, a história natural, a mecânica, ou ainda a leitura, a escrita (ou caligrafia), a gramática, a história ou a geografia. Enquanto, no ensino secundário, a matemática constituía a priori uma entidade disciplinar única e relativamente autônoma, essa multiplicidade e polivalência dos professores fornecia uma imagem fragmentada da disciplina aos futuros professores primários.
Um ensino de matemática centrado nas aplicações para os “usos da vida”
A escola primária era a escola do povo: o seu ensino deveria ser, portanto, adaptado ao destino social e profissional dos seus alunos e oferecer uma educação prática, concreta, usual, que respondesse às necessidades da vida cotidiana e de sua futura atividade profissional (D’ENFERT, 2003a; 2007). Nesse contexto, “o objetivo das escolas normais é formar os professores das escolas primárias e, acima de tudo, professores das escolas dos vilarejos: todos os seus conhecimentos devem ser sólidos, práticos, passíveis de serem transmitidos sob a forma de uma educação imediatamente útil para os homens cuja condição laboriosa priva do lazer necessário para a reflexão e o estudo”21 (GUIZOT, 1834, p. 87). Havia uma forte tensão, portanto, entre, por um lado, o “desejo de dar aos professores uma identidade relacionada com os seus saberes”22 (GRANDIÈRE, 2006, p. 55) e, em segundo lugar, o receio de que eles, tornando-se demasiado instruídos, alimentassem ambições desconectadas da posição modesta à qual eram a priori destinados. Uma coisa é certa: a formação oferecida nas escolas normais deveria se distinguir, em forma e espírito, do ensino secundário.
Essa tensão abarcava o ensino de matemática. A administração ministerial zelava permanentemente para que ele não se aproximasse do modelo pedagógico dos colégios secundários, mais teórico e mais abstrato, e também mais especulativo, e para que preservasse sua vocação utilitária e prática. O ensino de matemática deveria, portanto, se limitar, de acordo com o ministro da Instrução Pública Villemain, “aos elementos mais essenciais, dentre aqueles mais imediatamente aplicáveis aos usos da vida”23: “nem os detalhes sobre os logaritmos, nem as lições de álgebra, nem o programa extraído a partir da geometria de Legendre”24 seriam admitidos (VILLEMAIN, 1865)25. É verdade que algumas escolas normais iam muito além do quadro “primário” definido pelos textos oficiais. Na escola normal de Nancy, por exemplo, ensinava-se a trigonometria e a álgebra até as equações do segundo grau, o que era considerado “excessivo para futuros professores primários” (INSPECTION GÉNÉRALE, 1838). A geometria, uma disciplina eminentemente especulativa – e, como vimos, introduzida havia pouco no ensino primário – era objeto de especial vigilância: deveria ser “reduzida à sua mais simples expressão” (VILLEMAIN, 1865)26. O que importava, na verdade, era menos o encadeamento das proposições e o rigor das demonstrações do que o enunciado dos teoremas mais “úteis”. Para conter esse ensino geométrico nos seus “limites corretos”, os inspetores gerais (do ensino secundário) que visitavam as escolas normais todos os anos dedicavam-se a promover os livros didáticos concebidos mais especificamente para o ensino primário, cuja produção estava em plena expansão nas décadas de 1830 e 1840. Desse modo, convidavam os professores a abandonarem a Géometrie de Legendre, certamente autorizada a figurar nas bibliotecas das escolas normais, mas emblemática de uma cultura matemática secundária, que favorecia o raciocínio rigoroso de caráter hipotético-dedutivo, em favor de livros mais elementares e mais práticos, como os de Bergery (1831), Desnanot (1835) ou Vernier (1830). Assim, pode-se ler no Journal de l’instruction élémentaire, uma revista fundada por figuras próximas de Guizot, sobre o livro de Vernier: “M. Vernier, na sua Géometrie, que tem apenas 179 páginas, apresenta os teoremas mais úteis, os problemas mais interessantes […]. Há menos rigor nas demonstrações do que na Géometrie de Legendre ou na de Vincent; mas os alunos a entendem com muito mais facilidade: tal foi o objetivo a que se propôs o autor, e que alcançou”27 (GÉOMETRIE…, 1831, p. 241).
A Géométrie des écoles primaires de Bergery é emblemática do modo como alguns livros contemplavam aplicações práticas relacionadas com a construção e o artesanato, como exemplifica o problema a seguir:
Posicione um pedaço de madeira com um determinado declive. Desenhe, no local da construção, duas linhas perpendiculares ac, bc. Se a inclinação do telhado é de 68 centímetros por metro, como deve ser a inclinação das vigas de um teto de telhas planas, marque o ponto b a um metro de distância de c, e depois o ponto a com 68 centímetros de distância até c; então trace a linha ab que será a direção do pedaço de madeira. Mas, para uma direção precisa, seria preciso, em vez de um metro, marcar o ponto b a 3 ou 4 metros de c e o ponto a a 3 ou 4 vezes 68 centímetros de c: o declive seria o mesmo, os pontos a e b ficariam mais distantes um do outro, e o pequeno erro cometido ao colocar a régua ou o cordão sobre esses pontos alteraria muito menos a direção prospectada28 (BERGERY, 1837, p. 58).
Como se poderia explicar o fato de que, em algumas escolas normais, professores de matemática excediam os limites impostos pelas prescrições oficiais? Se alguns reproduziam, por iniciativa própria, os padrões do ensino secundário, outros respondiam, na realidade, a exigências locais. Na escola normal de Charleville, por exemplo, a comissão de supervisão instruiu o encarregado da geometria, um professor primário, a seguir um livro de matemática para os candidatos à École Polytechnique29, no qual os conhecimentos da álgebra eram pré-requisito para as lições de trigonometria (INSPECTION GÉNÉRALE, 1838). Da mesma forma, um relatório de 1843 aponta as exigências excessivas de certas bancas de exame para o brevet de capacité, devido à presença, entre seus membros, de engenheiros ou de exalunos da École Polytechnique. Esses últimos cederiam, com muita facilidade, à “pequena vaidade de exibirem seus próprios conhecimentos ao invés de descobrirem aqueles possuídos pelos candidatos”30 (BEUDANT, 1843), levando os professores desde cedo a extrapolarem os limites do currículo para que os alunos-mestres fossem capazes de responder às perguntas formuladas.
Na verdade, era sobretudo na articulação entre a teoria e as aplicações práticas que o ensino de matemática dos colégios secundários se diferenciava do das escolas normais: nos primeiros, a teoria prevalecia sobre a prática; nos últimos, eram a prática e as aplicações que deveriam preponderar. Era então necessário que os professores, quando vinham do ensino secundário, tivessem o cuidado de adaptar suas práticas aos cânones do ensino primário. Em Tulle, por exemplo, o ensino do professor de matemática era “demasiado marcado pelos hábitos que ele tem no colégio. É mais teórico do que prático”31 (INSPECTION GÉNÉRALE, 1849). De todo modo, é preciso sublinhar o papel essencial desempenhado pelo desenho linear, pela agrimensura, pela topografia etc. no ensino de geometria nas escolas normais. Esses ensinamentos permitiam abordar de forma intuitiva e concreta as várias noções de geometria inscritas no programa e, ao fazê-lo, “esclarecer a teoria através da prática”. Por um lado, atividades gráficas serviam como preparação para o curso de geometria propriamente dito: na escola normal de Limoges, por exemplo, o curso de desenho linear permitia que os alunos do primeiro ano aprendessem as principais definições de geometria, bem como o traçado de figuras, desde o mais simples até as ovais, elipses, helicoidais etc. (INSPECTION GÉNÉRALE, 1838); do mesmo modo, em Strasbourg, uma parte do primeiro ano do curso era dedicada “à exposição teórica do desenho linear, aos métodos de construção de diferentes linhas e figuras, e ao estudo de algumas propriedades dessas figuras. Elas devem servir como uma introdução ao estudo da geometria no ano seguinte”32 (INSPECTION GÉNÉRALE, 1843). Por outro lado, essas atividades gráficas serviam como exercícios de aplicação das noções teóricas estudadas. Desse modo, alguns livros de geometria para as escolas normais – e essa era uma diferença essencial em relação às obras clássicas – propunham, ao final do capítulo, aplicações gráficas, como traçados de molduras e pavimentação em pedra ou madeira (SONNET, 1845) (Figuras 1 e 2). Os exercícios de levantamento topográfico, que combinam desenho e geometria prática, constituíam geralmente a culminância do curso de geometria e eram praticados ao final da formação. Na escola normal de Amiens, por exemplo, os alunos do segundo ano “colocaram em prática as lições que receberam de agrimensura, nivelamento e geodésia. Eles fizeram o levantamento topográfico com o auxílio do grafômetro, da bússola e da prancheta”33 (INSPECTION GÉNÉRALE, 1838). Tais práticas eram então fortemente encorajadas. Na Córsega, por exemplo, uma recompensa era concedida pelo governador do Departamento “ao aluno que mais bem dominasse a agrimensura, o nivelamento e o traçado de estradas”34 (RENDU, 1838, p. 68). Uma lógica semelhante encorajou o Ministério da Instrução Pública a organizar, em 1838, um concurso de desenho linear tomando como objeto o levantamento topográfico do plano dos prédios e dos terrenos de cada escola normal pelos alunos-mestres mais avançados do último ano (Figura 3).
Um ensino de matemática consistente, mas com geometria reservada a uma elite
Os primeiros regulamentos relativos às escolas normais, incluindo a Lei Guizot, limitavam-se a definir as matérias que deveriam compor a formação, e não tratavam do programa que deveria ser ensinado. Cabia então às instâncias locais, em particular à comissão de supervisão de cada escola normal, estabelecer o programa e os horários das aulas, bem como sua distribuição ao longo dos dois (ou três) anos de estudo. Mas a vontade de padronizar o ensino em todas as escolas normais levou o Ministério da Instrução Pública a definir com mais precisão seu conteúdo e horários. Em 1835, o Ministério publicou uma lista de manuais de referência que deveriam figurar no acervo das bibliotecas das escolas normais e, a partir do ano seguinte, programas nacionais detalhados para algumas matérias. Os programas de aritmética e de geometria foram publicados em 183 835. Eles previam, para os dois anos de escola normal, 80 aulas de aritmética (desde a contagem até noções elementares de logaritmos) e 60 aulas de geometria (plana e espacial, até as medidas de superfícies e de volumes) com duração de duas horas cada, às quais se deveria acrescentar um estudo de uma hora para cada aula36. Por outro lado, nenhum programa detalhado ou cronograma preciso foi previsto para as “aplicações usuais” da geometria, como o desenho linear e a agrimensura.
Na verdade, os dois programas de aritmética e geometria publicados em 1838 reproduziam em larga medida, tanto nos conteúdos como em sua formulação, os programas das classes quatrième, troisième e seconde37 (14 a 16 anos de idade38) dos colégios royales definidos alguns dias antes (BELHOSTE, 1995, p. 148-152). Mas, a semelhança para por aí. Não só esses programas diferiam em seu espírito, como vimos acima, mas eles também diferiam em relação ao tempo atribuído ao ensino de matemática: o programa de matemática das escolas normais consistia em 140 lições distribuídas pelos dois anos, a uma frequência de duas aulas por semana (isto é, quatro horas semanais), enquanto o programa muito mais compacto dos colégios royales compreendia apenas 60 aulas de duas horas cada (40 para aritmética, 20 para geometria) distribuídas ao longo de três anos, à frequência de uma aula por semana. Acrescentando o tempo dedicado a ensinar as “aplicações usuais da geometria” – geralmente quatro horas por semana, de acordo com as tabelas encontradas nos arquivos – assim como o tempo atribuído a estudos e exercícios, podemos estimar que cerca de dez horas semanais eram dedicadas pelos alunos-mestres à matemática. O tempo escolar dedicado ao ensino de matemática parece, portanto, ter sido muito mais importante nas escolas normais do que nos colégios secundários. Assim aparece outra característica constitutiva da dualidade primário/secundário que prevaleceu no século XIX: enquanto o ensino secundário, que privilegiava as humanidades clássicas, deixava o estudo da matemática (e, em geral, das ciências) à margem, as escolas normais primárias (e de modo mais geral o ensino primário “superior”), ao contrário, ofereciam a possibilidade, desde que os estudos fossem concluídos, de uma prática consistente de estudo da matemática sob o ponto de vista de suas aplicações. Tanto que, nas palavras de alguns inspetores gerais, algumas escolas normais tornavam-se muito atrativas devido ao ensino de ciências que ofereciam: “Parece que muitos alunos [da Escola Normal de Vesoul] têm pouco apreço pela profissão de professor primário, e que a dedicação especial ao estudo das ciências viria principalmente de algum desejo de ocupar outros postos”39 (INSPECTION GÉNÉRALE, 1847).
O lugar ocupado pela geometria no currículo é outra diferença entre os programas das escolas normais primárias e os dos colégios royales. Nas escolas normais, ao contrário do que ocorria nas classes equivalentes nos colégios royales, o curso de aritmética, ministrado durante o primeiro ano de curso, precedia inteiramente o curso de geometria. Este último, ocupava a maior parte do segundo ano e, por vezes, do terceiro ano de curso, sendo os alunos-mestres, ao mesmo tempo, “treinados a praticar as aplicações usuais da aritmética, à medida que as aulas de geometria, agrimensura, medidas das superfícies e dos sólidos e outras lições relacionadas a elementos das ciências lhes derem a oportunidade”40 (CONSEIL ROYAL…, 1838, p. 483). É verdade que era relativamente comum, no século XIX, que o ensino de aritmética precedesse o de geometria. Mas no caso das escolas normais, a organização do ensino de matemática era predominantemente orientada para a preparação para o brevet de capacité: um certificado cujos exames e respectivos conteúdos estavam fortemente interrelacionados com a matemática ensinada nas escolas primárias elementares e superiores. O primeiro ano da escola normal servia como preparação para o exame do brevet élémentaire, cujas provas de matemática se referiam apenas a “elementos do cálculo” e ao sistema métrico (bem como ao desenho linear, a partir de 1841); o segundo ano preparava para o brevet supérieur, que exigia ter, além disso, noções de geometria (ângulos, perpendiculares, paralelas, áreas de triângulos, polígonos, círculo, volumes dos corpos mais simples) e complementos de aritmética (proporções, regras de três e de sociedade), bem como de desenho linear, agrimensura, topografia e medida de superficies. Uma circular de 9 de agosto de 1838 previa até mesmo reservar o segundo ano do curso apenas aos alunos considerados capazes de obter o brevet supérieur, o que excluía um bom número de alunos-mestres das aulas de geometria previstas no programa de 1838. Assim, o diretor da escola normal de Châlons propôs que apenas os doze melhores alunos do segundo ano fossem autorizados a estudar os assuntos mais avançados (geometria, física), fosse porque eram julgados “qualificados a aspirar ao brevet supérieur”41, ou porque haviam sido “considerados capazes de se beneficiar desses cursos sem prejuízo da sua instrução elementar”42. Ele estipulou, no entanto, que “lições elementares e práticas de geometria aplicada à topografia” fossem ministradas a todos os alunos do segundo ano, “dado que nenhum aluno pode ser privado desse tipo de conhecimento, o qual terão eventualmente a oportunidade de usar para adicionar à parca remuneração de sua posição de professor primário”43 (GUERRIER DE HAUPT, 2001)44. Podemos notar, aqui, uma alusão a como eram modestos os ganhos dos professores e ao fato de que as operações de agrimensura constituíam para eles uma fonte adicional de renda, porém o que sobressai, acima de tudo, é que mesmo no próprio ensino primário – neste caso, nas escolas normais – a geometria deveria ser reservada a uma pequena elite de bons alunos. A restrição do acesso à geometria a poucos significava limitar o ensino de matemática, para a imensa maioria, aos seus aspectos “elementares” (aritmética e sistema métrico, eventualmente geometria prática), evitando o perigo de uma instrução excessiva que tornaria a grande massa de alunos-mestres “semi-eruditos” pouco dispostos à “existência ordinária” dos professores das zonas rurais. Apesar de constar no programa, a geometria não era apresentada como um saber legítimo da formação matemática dos professores, pelos riscos sociais que ela representava.
Deve-se notar, no entanto, que tal organização da educação matemática, que tendia a separar aritmética e geometria e reservar esta última aos melhores alunosmestres, nem sempre era respeitada. Na escola normal de Bar-le-Duc, por exemplo, o estudo da geometria era obrigatório para todos os alunos, inclusive para os do primeiro ano: o diretor da escola normal considerava, de fato, que “não há melhor disciplina para treinar jovens inteligências”45 (INSPECTION GÉNÉRALE, 1843). A partir dos anos 1840, começaram, inclusive, a aparecer críticas à organização do currículo. Em um relatório ao Ministro de 1843, um inspetor-geral estima que ela “destrói o espírito da instituição” e defende “um curso normal de dois anos para todos os alunos sem se preocupar com o brevet que cada um deles poderá obter”46 (BEUDANT, 1843). Em 1847, outro relatório, resultante do trabalho de um comitê ministerial responsável pela revisão dos programas, denuncia “a prática de dar, no primeiro ano, aulas de disciplinas que não são retomadas no segundo nem no terceiro ano […] especialmente a aritmética, ainda que essa seja uma daquelas disciplinas para as quais é mais importante que o ensino se prolongue ao longo de toda a formação”47 (RENDU, 1847, p. 238). A comissão, que desejava estender a duração dos estudos para três anos, propôs então que as aulas de aritmética e de geometria fossem ministradas concomitantemente durante os dois primeiros anos (a uma frequência de três aulas semanais de uma hora e meia), o terceiro ano sendo dedicado às aplicações da geometria – levantamento topográfico, traçado de planos, medição de áreas e volumes – com duas aulas por semana48. Mas suas propostas não puderam ser implementadas de imediato, devido às convulsões políticas que ocorreram ao final da década de 1840.
Considerações finais
A Monarquia de Julho (1830-1848) foi um período decisivo para a constituição e a estruturação do ensino de matemática na escola primária. Nesse processo, as escolas normais primárias desempenharam um papel chave: foi em larga medida por meio da estrutura da formação de professores que foram explicitados os conteúdos desse ensino, os modos como deveriam ser abordados e os principais objetivos a serem alcançados. Assim, uma cultura matemática escolar muito específica foi traçada, largamente determinada pelas finalidades sociais da escola primária e fortemente diferenciada daquela do ensino secundário: abarcando novos saberes, como a geometria e as suas aplicações, ela deveria, no entanto, permanecer prática, concreta e usual, a fim de atender às necessidades da vida cotidiana ou profissional.
A reação conservadora após a Revolução de 1848 mudaria o jogo. A hora agora era de desconfiança em relação aos professores e às escolas normais, alimentada pelas críticas que começaram a surgir desde o início dos anos 1840. Consideradas como “redutos socialistas”, as escolas normais foram até mesmo ameaçadas de fechamento e extinção. Elas eram recriminadas, dentre outras alegações, pela extensão excessiva de seus programas, que levaria à formação de jovens demasiado eruditos, relutantes a aceitarem a condição modesta de professor primário nos pequenos vilarejos. “Eu gosto mais do professor que toca sinos que do professor matemático”49, declara o deputado Adolphe Thiers (CHENESSEAU, 1937, p. 32). Finalmente mantidas, as escolas normais foram então objeto de uma nova regulamentação determinada pela lei de 15 de março de 1850, conhecida como Lei Falloux, o nome do Ministro da Instrução Pública da época. A formação matemática dos futuros professores foi profundamente modificada, de modo a recuperar a simplicidade original da instrução primária. Em particular, o estudo da geometria propriamente dita, que poderia dar ao ensino a sua coloração “secundária”, foi eliminado: as suas aplicações práticas (levantamento topográfico, nivelamento, desenho linear) permaneceram, mas como disciplinas opcionais ensinadas apenas a alguns alunos, a partir do segundo ou terceiro ano de estudo, e sem a sua fundamentação teórica. Quanto aos professores formadores, em número agora bastante limitado, deveriam residir na escola normal e viver próximo aos alunos-mestres, o que resultou na exclusão de professores de instituições secundárias vizinhas.
Foi apenas com a nomeação de Victor Duruy para o Ministério da Instrução Pública em 1863 que a formação dos professores, e de modo mais geral o ensino primário, veio a ser novamente objeto de uma política liberal. Por razões essencialmente econômicas, Duruy quis desenvolver a instrução popular. A geometria foi reintroduzida no currículo das escolas normais. Como havia sido proposto no relatório da comissão ministerial de 1847 (ver acima), o seu ensino começava no primeiro ano, em paralelo ao da aritmética. Além disso, os diretores das escolas tinham alguma liberdade para ampliar o ensino ministrado, em função das necessidades locais: alguns não hesitavam em usá-la para ampliar os programas, notadamente incluindo elementos de álgebra. O advento da Terceira República (1870) e a chegada de Jules Ferry ao Ministério da Instrução Pública, em 1879, inauguraram, em seguida, um período de relativa estabilidade, que se manteve até o início da Segunda Guerra Mundial. Para o novo poder instalado, a formação dos professores primários era “o lugar matriz da ferramenta escolar para fazer avançar a ideia de nação republicana”50 (GRANDIÈRE, 2006, p. 128).
Os saberes a serem ensinados foram reforçados: não apenas a parte da geometria foi ampliada, mas também a álgebra, incluída oficialmente no programa, tornou-se um saber legítimo da formação de professores. Nas escolas de formação de professoras, cuja criação em cada departamento foi tornada compulsória em 1879, a formação matemática se alinhou gradualmente com a dos professores, de modo que, a partir de 1920, elas diferiam apenas por alguns detalhes. Ao mesmo tempo, a criação, no início dos anos 1880, de duas “escolas normais superiores de ensino primário”, como culminância do sistema de ensino primário – uma para homens (Saint-Cloud), a outra para mulheres, (Fontenay-aux-Roses) – visava prover as escolas normais primárias de um corpo homogêneo de professores (especializados em ciências ou em letras: uma certa polivalência permanece), recrutado do banco de alunos-mestres. De fato, se a Terceira República se esforçou para fortalecer a formação de professores e professoras do ensino primário, não deixou de estar empenhada na construção de uma verdadeira “cultura primária” que garantisse a educação dos filhos do povo – distinta, portanto, da cultura escolar do ensino secundário (ASSUDE; GISPERT, 2003; D’ENFERT, 2006) – dando à matemática um caráter mais concreto e indutivo do que abstrato e dedutivo, e enfatizando as aplicações práticas.
Para concluir, como perspectivas para pesquisas futuras, gostaria de mencionar o interesse especial em empreender estudos históricos comparativos sobre a formação matemática de professores primários em países europeus durante a primeira metade do século XIX. A esse respeito, seria frutífero uma comparação entre a França e a Prússia. Apesar das diferenças entre os seus sistemas políticos, há algumas similaridades entre esses dois países durante o período de 1830-1848: ambos os sistemas escolares eram baseados na dualidade escolar e na distinção entre “ensino primário elementar” e “ensino primário superior”. Seria auspicioso caracterizar essa dualidade e essa distinção51, assim como o papel do ensino de matemática – e em particular da geometria – para mantê-los. Do mesmo modo, seria interessante comparar o desenvolvimento de instituições de formação de professores na França e na Prússia, o recrutamento de formadores de professores responsáveis pelo ensino de matemática, o volume e o enfoque dos cursos de matemática (especialmente de geometria) para a formação de professores, e examinar os papéis respectivos do Estado central e das autoridades locais de acordo com o contexto político de cada país.