Introdução
O presente artigo tem como objetivo central apresentar um estudo sobre desenvolvimento moral no contexto da educação infantil. O desenvolvimento e a educação moral têm sido, cada vez mais, alvo de estudos por meio de diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, em função da dimensão estruturadora da moralidade, que está presente em nossas interações e relações com os outros e com o mundo de forma geral. O papel da educação no desenvolvimento moral e a função da escola em relação aos processos de socialização e do desenvolvimento moral têm sido temas abordados por autores como Ardila-Rey e Killen (2001), Branco e Lopes-de-Oliveira (2018), DeVries e Zan (1998, 2003), Hakkaraine e Bredikyte (2018), Silva e Menin (2015), dentre outros.
No caso da Educação Infantil, constitui-se, como um objetivo fundamental, o desenvolvimento integral da criança, de acordo com seu Referencial Curricular Nacional (RCNEI), elaborado pelo Ministério da Educação e do Desporto (MEC) (Brasil, 1998). O principal objetivo da educação infantil, segundo o RCNEI (Brasil, 1998), é o desenvolvimento integral da criança, incluindo as dimensões afetiva, emocional, social e cognitiva da faixa etária correspondente. Sendo assim, as experiências oferecidas à criança devem, também, contribuir para o exercício da cidadania e para sua socialização, por meio de participação e inserção nas mais diversificadas práticas sociais.
Entretanto, o próprio RCNEI (Brasil, 1998) aponta a existência de divergências em relação ao que se entende como desenvolvimento integral da criança, uma vez que diversas práticas pedagógicas continuam enfatizando apenas determinados aspectos do desenvolvimento, em detrimento de outros. Essa divergência continua existindo, não só na educação infantil, mas no ensino básico como um todo, o que tem sido ressaltado em várias pesquisas sobre o contexto escolar (e.g.,Barreto, 2004; Barrios, 2013; Manzini, 2013; Lima, 2000; Palmieri, 2003; Salomão, 2001).
O desenvolvimento da moralidade, em função de sua complexidade, é um aspecto muito prejudicado, nas diferentes práticas educativas. Diversos autores (e.g., Barrios, Barbato & Branco, 2012; Branco, Barreto & Barrios, 2018; Lima, 2000; Menin, 2002; Salomão, 2001) têm apontado que, em grande parte das escolas, o desenvolvimento moral fica restrito à promoção de um conjunto de normas e valores, que faz parte do cotidiano, e que, geralmente, está relacionado à disciplina e ao controle do comportamento das crianças. Autoras como DeVries e Zan (1998) enfatizam que, na maioria das práticas pedagógicas, os professores comunicam constantemente mensagens morais para as crianças, enquanto dissertam sobre o que é certo e errado, além de estabelecer regras de comportamento dentro da sala de aula e administrar sanções. Sendo assim, o processo de desenvolvimento moral acaba se confundindo com a transmissão unilateral de todo um conjunto de normas, regras e valores, estabelecidos assimetricamente pelos adultos, mediante uma aprendizagem passiva por parte das crianças.
O desenvolvimento moral, porém, em função de sua natureza social, acontece, de fato, no contexto das relações e interações que a criança estabelece com seus colegas e com os adultos responsáveis por ela (Branco et al., 2018, DeVries & Zan, 1998, 2003). Em função de sua natureza cultural e, ao mesmo tempo, subjetiva, o desenvolvimento moral se dá a partir da vivência concreta da pessoa no contexto de práticas culturais específicas do dia a dia (Martins & Branco, 2001; Paolichi, 2007; Ratner, 2002; Rogoff, 2005).
Partindo das ideias anteriores, podemos dizer que o estudo e a compreensão dos processos, estratégias e mecanismos significativos para o desenvolvimento da moralidade, que estão presentes nas práticas educativas, tornam-se fundamentais. Com tal conhecimento, será possível contribuir para o desenvolvimento de modelos pedagógicos, que, de fato, privilegiem o desenvolvimento integral da criança. Esses foram os objetivos ulteriores da pesquisa que ora apresentamos.
O estudo teve, como base teórico-metodológica, a perspectiva sociocultural construtivista, desenvolvida no âmbito da psicologia cultural (Valsiner, 2012, 2014), a qual parte de uma visão holística do desenvolvimento humano e enfatiza o papel constitutivo das relações e interações sociais no processo de desenvolvimento, de forma geral, e no desenvolvimento dos valores e crenças morais do indivíduo, de forma mais específica.
Moral e desenvolvimento moral na perspectiva da psicologia cultural
Das várias definições de moralidade, adotamos a perspectiva de Freitag (2007), baseada em Max Weber, a qual concebe o domínio da moral como de ordem do sujeito, em relação dialética com o conceito de ética, definido por uma conotação mais social e coletiva. Embora a autora não se enquadre na abordagem sociocultural, suas contribuições conceituais para o campo do estudo da moralidade, na perspectiva construtivista, são fundamentais, uma vez que aborda a moral como um conceito complexo, que deve ser estudado e compreendido de forma multidisciplinar, em função de suas diversas dimensões: comporta-mental, normativa e motivacional.
Em primeiro lugar, a autora ressalta a dimensão comportamental da moralidade. A moral tem a ver com a ação dos sujeitos no contexto das interações sociais. Essa ação está orientada e pode ser julgada a partir de um conjunto de regras e normas, que determinam, em nível sociocultural, o que é considerado certo, justo e correto na interação com os outros. Algumas dessas regras e normas podem se constituir (ou não) por princípios e valores que orientam, de forma mais estável, as ações e interações, em função de sua importância para o convívio social. Freitag (2007) se refere a essas normas e regras como a dimensão normativa da moralidade e enfatiza que a mesma pressupõe um sujeito consciente, capaz de julgar o certo e o errado, o bem e o mal, o justo e o injusto. Por outro lado, a moralidade pressupõe uma causa da ação, ou seja, uma explicitação para as razões que levam o sujeito a agir de uma determinada forma. As razões, motivos e intencionalidade constituem a dimensão motivacional desse conceito, e seu estudo é fundamental no contexto da psicologia.
No estudo do desenvolvimento moral, as dimensões normativa e comportamental da moralidade têm sido privilegiadas por diferentes perspectivas teóricas, como o behaviorismo, a psicanálise e a teoria da aprendizagem social. Embora essas teorias não se dediquem ao estudo sistemático, incursionam no tema, colocando a dimensão motivacional da moralidade a um segundo plano. Já o construtivismo, enfatiza a dimensão cognitiva e normativa da moralidade, embora não deixe de assinalar a importância da motivação para a ação moral do sujeito. Essa questão tem implicações importantes para o estudo do desenvolvimento e funcionamento moral, uma vez que a dimensão motivacional, relegada, muitas vezes, a um segundo plano pela psicologia, refere-se, exatamente, ao conjunto de princípios e valores sócio-morais, que orientam a ação do sujeito e que coexistem na base de muitas regras e normas socialmente estabelecidas.
Apenas enfatizar, por outro lado, as dimensões cognitiva, normativa e comportamental da moralidade pode levar a um reducionismo desse conceito. A moral, em função de sua complexidade, está inter-relacionada com outras dimensões — como motivação, afeto, práticas e valores culturais — e, também, com conceitos importantes para o convívio social, como é o caso do popular conceito, que está sendo discutido neste artigo, no âmbito das escolas, de disciplina. No entanto, é fundamental ressaltar que moral e disciplina são conceitos diferentes e que o primeiro não pode ficar reduzido ao segundo. Enquanto a moral se refere a um conjunto de conceitos e preceitos, que regulam a qualidade das relações e interações que se estabelecem entre os sujeitos, em termos de confiança, respeito e justiça, as diferentes conceituações do termo “disciplina” enfatizam a mera obediência a regras, que têm, como fim ulterior, o controle do comportamento.
Lima (2000) estudou a questão da disciplina no contexto escolar e fez uma revisão do conceito, encontrando definições que passam pelo treinamento do comportamento, pela punição, e pela obediência e submissão. Os diferentes termos revisados por Lima (2000) ressaltam uma postura passiva do educando, em relação ao educador, e favorecem as relações que se caracterizam pela assimetria de poder ou verticalidade, as quais não contribuem para níveis mais elevados de moralidade (DeVries & Zan, 1998, 2003; Piaget, 1994). Essas são características de perspectivas unidirecionais de desenvolvimento e transmissão de cultura (Valsiner, 2012, 2014).
Outro conceito relacionado com a moralidade é o de “convenção social”, mais alusivo à dimensão normativa da conduta. Autores como Turiel (2002) diferenciam ambos os conceitos e especificam que as convenções sociais podem ser definidas como consensos de conduta, que regulam as interações dos indivíduos dentro dos sistemas sociais. O autor especifica que as convenções sociais, diferentemente dos princípios e valores morais, têm caráter arbitrário, local e circunstancial. Turiel (2002) advoga, assim, pela necessidade de diferenciar o domínio moral do domínio convencional. Segundo o autor, crianças de quatro a cinco anos já distinguem claramente as transgressões morais (machucar um colega) das transgressões convencionais (fazer bagunça na hora do recreio).
A perspectiva sociocultural construtivista, adotada no presente trabalho, enfatiza a importância das vivências cotidianas no desenvolvimento e educação moral das crianças, ressaltando o papel da escola como contexto de desenvolvimento sócio-moral das crianças. A escola é um espaço típico de desenvolvimento e de socialização, em função do vasto mundo de relações e interações pessoais que as crianças estabelecem com seus professores e colegas. É no contexto dessas interações pessoais que se veiculam as ideias, crenças e valores socioculturais, os quais são significados e ressignificados, de modo único, pela pessoa em desenvolvimento (Palmieri & Branco, 2015; Valsiner, 2012, 2014). No entanto, o conjunto de relações e interações pessoais que se estabelecem no contexto escolar, assim como o universo de valores que se veiculam nesse espaço, fazem parte de um currículo oculto (Branco, 2012), definido como um conjunto de fatores não programados, que têm forte influência nas experiências vivenciadas pelas crianças em sua rotina escolar.
De acordo com Branco (2012), diversos aspectos da educação e do desenvolvimento, que são negligenciados ou que não aparecem como objetivos específicos e primordiais da escola, mas que estão presentes no cotidiano da instituição, fazem parte do currículo oculto escolar. O currículo oculto abrange tanto a maneira pela qual o professor estrutura as situações de aprendizagem (atividades e rotina), como as diferentes formas e padrões de relacionamento que se estabelecem entre o educador e as crianças. Sendo assim, tal currículo abrange a função socializadora da escola e, portanto, o desenvolvimento e educação moral.
DeVries e Zan (1998), também chamam a atenção para o papel e a importância do currículo oculto no desenvolvimento e na educação moral das crianças. As autoras enfatizam o papel do ambiente relacional e descrevem um conjunto de aspectos e padrões de interação, que podem ser significativos para o desenvolvimento da moralidade. Um dos pontos ressaltados pelas autoras é o processo de estabelecimento e possível internalização de regras, que foi objeto de análise no estudo empírico aqui apresentado. Segundo DeVries e Zan (1998; 2003), é fundamental envolver as crianças na tomada de decisões e estabelecimento de regras dentro de sala de aula, com o objetivo de contribuir para uma atmosfera de respeito mútuo, na qual educadores e crianças possam praticar a cooperação (co-operar).
A regra, como construto sociocultural, é inter-nalizada no contexto das interações concretas. Em função disso, participar do estabelecimento de regras pode representar uma clara oportunidade para que as crianças compreendam e ressignifiquem as regras sócio-morais, de forma criativa e singular, a partir da experiência subjetiva e única. Na opinião de Piaget (1994), seguir as regras estabelecidas por outros em função da obediência não abre o espaço necessário para a reflexão sobre o seu papel e funcionalidade no convívio humano, nem para o compromisso interno e autônomo (autorregulado) com as mesmas. Ao insistir que a criança apenas siga as regras, valores e diretrizes, estabelecidos unilateralmente por outros, o adulto contribui para o desenvolvimento de uma moralidade heterônoma. Para que isso não aconteça, o professor deve reduzir o exercício da autoridade desnecessária, estabelecendo relações menos assimétricas e mais cooperativas com as crianças.
Autores como Piaget (1932, 1994), DeVries e Zan (1998) e Lima (2017) argumentam que é apenas evitando o exercício da autoridade desnecessária que o adulto abre o caminho para que as crianças desenvolvam relacionamentos autônomos, criatividade e sentimentos morais que levem em consideração o melhor para todos. Os relacionamentos autônomos operam através da cooperação, entendida como a possibilidade de coordenar os sentimentos e perspectivas próprias, com a consciência dos sentimentos e perspectivas dos outros. O motivo para a cooperação começa com um sentimento de mútua afeição e confiança, que vai se transformando em sentimentos de simpatia e consciência das intenções próprias e dos outros. Nesse ponto, percebemos grande convergência entre o pensamento construtivista e a perspectiva sociocultural, que, também, enfatiza o papel fundamental das interações sociais e da ressignificação — isto é, da dimensão semiótica — para os processos de internalização, através dos quais processos interpessoais se transformam em intrapessoais (Valsiner, 2012; Vygotsky, 1987).
Todas as questões explicitadas até o momento são consideradas como fundamentais pela psicologia cultural, que propõe a integração e destaca aspectos importantes para o estudo e compreensão do desenvolvimento moral. O primeiro deles é a importância da qualidade das interações sociais, uma vez que é por meio da relação com outros sujeitos que a criança internaliza valores, regras e normas, que direcionarão seu comportamento moral (Branco, 2018). O segundo se refere à necessidade de maior compreensão do papel da cultura no desenvolvimento humano, uma vez que esta abrange a criação e transformação histórica de instrumentos e signos, que atuam como mediadores do desenvolvimento. O terceiro aspecto diz sobre a participação ativa do sujeito no próprio processo de desenvolvimento e no desenvolvimento histórico-cultural da humanidade. Essa participação ativa perpassa os conceitos e pressupostos de internalização, externalização, cultura coletiva, cultura pessoal e o modelo bidirecional de transmissão cultural. O quarto elemento ocupa-se da integração sistêmica, dinâmica e complexa entre práticas culturais e as crenças e valores morais no universo motivacional do indivíduo, que estão na base da ação, e nas práticas concretas promovidas nos variados contextos de desenvolvimento. Esse último aspecto é uma contribuição significativa para o estudo e para a compreensão do desenvolvimento moral, sendo este entendido de forma ampla, já que a questão da moralidade abrange as dimensões psicológicas interdependentes da cognição, da emoção e da ação intencional (Barrios & Branco, 2007).
Com base nas reflexões teóricas anteriores, a pesquisa empírica teve como objetivo central identificar e analisar, no contexto de uma escola de educação infantil, processos, estratégias e mecanismos educativos, presentes nas interações professora-crianças, que pudessem ser significativos para o desenvolvimento moral dos alunos. Especificamente, foram analisados processos, estratégias e mecanismos educativos relacionados com o processo de internalização de normas sociais e princípios morais por parte das crianças.
Método
O estudo consistiu em uma pesquisa, de natureza qualitativa, para a identificação e análise de aspectos das interações professora-alunos, possivelmente relacionados com a internalização de normas e princípios morais.
Participou da pesquisa uma turma do terceiro período (atual primeiro ano) de uma escola de educação infantil, selecionada para o estudo por ser uma instituição de referência da Rede Pública de Ensino de Brasília, Distrito Federal (DF). A turma estudada, composta por 16 crianças (de seis a sete anos de idade) e pela professora de 44 anos de idade, foi selecionada após um período de imersão etnográfica e de acordo com o interesse e autorização da escola, da professora, das crianças e de seus responsáveis. Foi selecionada uma turma do terceiro período em função da idade das crianças, que participariam de duas atividades planejadas pela professora para discutir questões relativas à moralidade, demandando a utilização da linguagem entre os participantes.
Inicialmente, a turma participou de cinco sessões de observação naturalística, gravadas em vídeo. Em um segundo momento, participou de duas atividades, estruturadas e planejadas pela professora a pedido das pesquisadoras, com o objetivo de propiciar discussões sobre temáticas relacionadas à moralidade e, portanto, a possibilidade de desenvolvimento moral entre as crianças. As duas atividades estruturadas também foram gravadas em vídeo. Na terceira e última fase da pesquisa, a professora participou de duas entrevistas individuais, semiestruturadas e gravadas em áudio, sobre questões centrais do estudo (conceitos de moral e desenvolvimento moral, papel da escola no desenvolvimento moral e importância de normas e regras para a construção da moralidade).
A fala da professora nas entrevistas foi organizada em categorias analíticas, elaboradas de acordo com os objetivos da pesquisa e com palavras-chave relativas às questões contidas no roteiro. As categorias foram: i) conceitos de moral e desenvolvimento moral; ii) papel da escola no desenvolvimento moral; iii) principais regras e princípios a serem respeitados pelas crianças no contexto das atividades cotidianas; iv) papel das regras na construção da moralidade; v) estratégias educativas de definição, comunicação e modificação das regras; vi) principais mecanismos educativos para garantir o respeito pelas regras.
As sessões de observação naturalística e as duas atividades estruturadas foram analisadas microgeneticamente em função da importância e da adequação da análise microgenética para o estudo das interações sociais e do desenvolvimento humano. A análise microgenética permite interpretar a comunicação como um processo dinâmico, no qual todos os participantes desempenham um papel igualmente importante, ressaltando a interdependência entre os indivíduos e os diferentes contextos socioculturais. Além disso, esse tipo de análise possibilita o estudo da qualidade das interações sociais e as negociações, que têm lugar no fluxo interativo entre professor-criança e criança-criança (Palmieri & Branco, 2007; Kelman & Branco, 2004).
Para a realização da análise microgenética, todas as sessões de observação e as duas atividades, estruturadas pela professora, foram gravadas em vídeo. As gravações foram observadas e previamente analisadas, com o objetivo de identificar os episódios/trechos mais significativos para o estudo. Após a análise previa, todas as gravações foram transcritas em um protocolo de registro, transcrição e análise, elaborado especificamente para a pesquisa, destacando-se as ações e verbalizações da professora e das crianças, assim como o tempo de ocorrência e a continuidade das interações. Cada sessão de observação e atividade estruturada transcrita foi dividida em episódios, agrupando um conjunto de interações contínuas sobre questões relevantes para o estudo, dentro de um mesmo tema. Cada episódio foi dividido em unidades de análises ou pequenos trechos de ações e diálogos entre a professora e as crianças, o que possibilitou uma análise minuciosa das interações.
Na análise, foram destacados indicadores relacionados aos objetivos da pesquisa, com a finalidade de facilitar o processo de inferência relativo à possível atribuição de sentido das experiências e interações concretas por parte das crianças nas atividades analisadas. As análises realizadas permitiram definir a qualidade das interações professora-crianças, assim como a qualidade dos processos, estratégias e mecanismos educativos, usados pela professora para o estabelecimento e possível internalização de regras por parte de seus alunos. Para exemplificar, como os dados foram construídos e analisados, apresentamos um extrato do protocolo de registro, transcrição e análise de um episódio ocorrido em uma atividade realizada durante as sessões de observação naturalística. No total, foram gravadas e analisadas 10 horas e 11 minutos de observação naturalística. O episódio, intitulado “Todo dia… Todo dia é a mesma criança”, apresenta uma situação de conflito entre a professora e as crianças sobre a possibilidade de participar na atividade proposta. Participaram dessa sessão de observação específica a professora (P3), 13 meninos (de M1 a M13) e 3 meninas (de F1 a F3).
No episódio de exemplo, estabeleceu-se um conflito entre a professora e as crianças em função da escolha feita pela docente. É necessário sinalizar que as crianças acabaram levantando questões relacionadas à igualdade de tratamento entre os membros do grupo, a inclusão real de todas as crianças na atividade e o respeito pelas contribuições que cada uma delas pode dar, de acordo com seu nível de conhecimento e habilidades. Considerando as intervenções da professora que constam no protocolo (“Que negócio de todo dia F2! Eu estou alternando. Que história é essa!?” e “Não venha para cima de mim, não! Eu sei quem estou chamando!”) é possível destacar que suas ações se orientaram para a eliminação do conflito, sendo essa uma ação característica do contexto escolar, no sentido de restaurar a harmonia perdida na dinâmica interacional, manter a disciplina, e dar continuidade às atividades (Vinha & Tognetta, 2014). Autores, comoGalvão (1995,2008) eChiaparini, Silva e Leme (2018), especificam a importância, para o desenvolvimento, dos conflitos, que se instauram a partir da estruturação do ambiente e das atividades desenvolvidas pelos adultos. Os referidos autores especificam, também, a necessidade, por parte da escola, de ações que priorizem a resolução dos conflitos, viabilizando a participação e tomada de decisões de maneira coletiva (Vinha & Tognetta, 2014; Chiaparini, Silva & Leme, 2018). A seguir, apresentamos outros resultados do estudo.
Análise e discussão dos dados
Desenvolvimento moral ou disciplina?
No protocolo apresentado anteriormente e no estudo de maneira geral, foi possível perceber que a dinâmica interacional da turma teve como centro a manutenção da disciplina em função da estrutura e da organização das atividades. Durante as 10 horas e 11 minutos de observação, gravadas em vídeo, as interações criança-criança foram escassas e direcionadas à realização das atividades conforme a organização planejada. As interações professora-crianças também estiveram direcionadas à manutenção da disciplina, no sentido de garantir a consecução dos objetivos educacionais pautados para cada atividade realizada, e à transmissão de conhecimentos e significados culturais, de forma ativa por parte do adulto. Exemplos dessa dinâmica interacional apareceram em várias interferências ao longo das atividades do dia a dia e das atividades estruturadas: “Vamos contar para o Pedro parar de conversa fiada” (interferência diante da conversa entre dois meninos), “Cada um faz seu desenho bem bonito. Não pode falar, é para desenhar” (interferência nas interações espontâneas das crianças, na situação de desenho livre), “Não. É ele que vai contar” (interferência diante de uma criança que queria participar de uma atividade proposta).
Conforme explicitado na sessão anterior, manter a disciplina com o objetivo de realizar as atividades de acordo com as finalidades educacionais, pautadas para as mesmas, é uma ação característica do contexto escolar (Vinha & Tognetta, 2014). Sobre esse quesito, Lima (2000) e Salomão (2001) também sinalizam que o controle do comportamento e a manutenção da disciplina na sala de aula são elementos considerados importantes por muitos professores, pois garantem o sucesso das atividades planejadas, vistas como fundamentais em termos de conteúdos e objetivos educacionais. Sendo assim, os professores se vêm na obrigação de criar e usar uma série de estratégias que possam manter as crianças atentas e concentradas nas atividades. De acordo com um estudo realizado por Lima (2000), essas estratégias vão desde o estabelecimento de um conjunto de regras voltadas para diminuir ou eliminar a conversa entre as crianças, pois o ato atrapalha o desenvolvimento da aula, até o pedido indireto de silêncio, através de frases como: “Vamos colocar um zíper na boquinha”, “O meu ouvido está doendo de tanta conversa”, “Que coisa feia! Muito feio!”. Na pesquisa que aqui apresentamos, as estratégias anteriores foram observadas: “Silêncio!”, “Está participando quem eu estou chamando”, “Psiu! M6 faça o seu trabalho. Não fale, faça!” e “Você já conversou hoje, demais”.
Essa dinâmica interacional também esteve presente nas duas atividades estruturadas, que tinham como objetivo promover uma discussão sobre questões de ordem moral entre as crianças. Para a realização das duas atividades estruturadas, a professora selecionou o livro intitulado “A gente pode… A gente não pode…”, da autora Anna Claudia Ramos, com ilustrações de Ana Raquel. O livro, indicado pela autora para crianças com três ou quatro anos, listava o que as crianças pequenas podiam e não podiam fazer com a idade que tinham. A maioria das questões se referia a regras sobre segurança e saúde. Durante as duas atividades estruturadas, a professora utilizou o livro. Na primeira (com duração de 41 minutos), apresentou o objeto e fez perguntas sobre “os podes” e “não podes” do texto. Na segunda (com duração de 53 minutos), pediu para as crianças desenharem as regras do livro.
No decorrer das atividades estruturadas, os alunos participaram nos momentos indicados pela professora: “Eu vou perguntar um por um. Que que é desenhar, F2, para você?”. No final das duas atividades estruturadas, a docente interpretou o texto, transmitindo determinadas regras e limites: “precisa tomar água e suco no copo para não transmitir as bactérias para aquela água ou suco”, “a criança que está crescendo não vai ter a mamãe o tempo todo e pode colocar a roupa sozinha”, “precisa guardar a roupa para não pisar a roupa que fica espalhada pelo chão”. Dessa forma, a dinâmica interacional das duas atividades estruturadas, centrada nos conteúdos e objetivos pautados, não permitiu que as duas práticas se constituíssem momentos de discussão sobre questões relacionadas ao âmbito moral, discussões envolvendo uma coconstrução de ideias e significados, com a participação ativa das crianças e a possibilidade de trocas significativas para elas.
Segundo Valsiner (2012, 2014), a escola tem pautado a maior parte de sua dinâmica interacional a partir do modelo de transmissão unidirecional de conhecimentos e cultura. Nesse modelo, cabe ao adulto transmitir os conhecimentos e significados culturais de forma ativa, enquanto cabe à criança uma interpretação passiva. Sendo assim, o modelo unidirecional restringe a possibilidade da criança significar e ressignificar, de forma ativa e a partir da própria experiência cotidiana, o conjunto de crenças e valores sociais e morais, que se veiculam no contexto de suas interações concretas e que são fundamentais para o convívio e relação com os outros. Também é importante sinalizar que a assimetria nas relações adulto-criança é característica do modelo de transmissão unidirecional de conhecimentos e cultura. De acordo com Piaget (1994), as relações nas quais é predominante a assimetria, se caracterizam pela posição de autoridade de um dos polos que impõem ao outro seus critérios, regras e formas de pensar. São relações constituídas, pois suas regras são dadas de antemão e, portanto, são contraditórias ao desenvolvimento intelectual e moral da criança, uma vez que ela não tem a possibilidade de participar de forma ativa nesses processos.
Na pesquisa que aqui apresentamos, foi observado que a maioria das regras, colocadas no decorrer da dinâmica das atividades, tinha como foco a manutenção da disciplina para a consecução dos objetivos pautados. Regras que poderiam ser importantes para o desenvolvimento moral das crianças, pois estavam relacionadas com o respeito pelo outro na sua condição de ser humano e na sua integridade física e psicológica, foram colocadas em função da ordem e da disciplina. Um exemplo disso foi a seguinte intervenção, em um momento de conflito entre duas crianças: “Esse negócio aí, pode parar! Já expliquei que você não pode! Você não pode ficar batendo em ninguém da turma! Você não é pai de ninguém!”.
Como ressaltado por diversos autores (Ratner, 2002; Rogoff, 2005), as situações concretas do cotidiano que envolvem questões relativas à moralidade são de extrema importância para o desenvolvimento. São nesses momentos que as crianças têm a possibilidade de se deparar e aprender, de forma participativa, o conjunto de significados sócio-morais, que regem as ações e interações da comunidade e dos contextos em que vivem e se desenvolvem. Autores como Cortella e La Taille (2007) e DeVries e Zan (1998, 2003) também apontam o papel fundamental desses momentos do cotidiano para a construção da moralidade, assim como a necessidade do diálogo em relação às regras e limites veiculados no contexto escolar.
Ainda em relação à apresentação das regras, destacamos que, tanto nas entrevistas quanto nas análises das sessões gravadas em vídeo, surgiu o uso ou a ameaça de sanções como estratégia que visa garantir o cumprimento das regras, com base na necessidade de compensar a transgressão da regra e seus possíveis danos. Nas situações de transgressão de regras, as crianças podiam ficar sem uma atividade prazerosa, para que elas pudessem perceber que suas ações foram inadequadas (“… Eu volto com eles, e o tempo do recreio… Eu vou usar para, justamente, levar eles a perceber que está tudo errado. Eles vão perder o recreio”). Essa estratégia, de acordo com o que foi colocado em entrevista, constitui-se em uma estratégia educativa em consonância com a proposta pedagógica da escola, sendo discutida pela equipe pedagógica nos espaços de coordenação. Autores como DeVries e Zan (1998), Rogoff (2005) e Vinha e Tognetta, (2014) esclarecem que a sanção é uma estratégia amplamente usada em contextos escolares em diversas culturas. Entretanto, é necessário refletir quando essa estratégia envolve a retirada da criança de uma atividade. DeVries e Zan (1998) e Rogoff (2005) apontam que esse tipo frequentemente se transforma em punição, deixando de ser uma sanção de reciprocidade. Ou seja, a sanção não se relaciona com a transgressão, de forma compensatória.
Outra questão importante é a visão sobre o desenvolvimento moral e o papel da escola em relação ao mesmo. No contexto das entrevistas, foi explicitado que o desenvolvimento moral se refere à possibilidade de aprender regras, normas e limites: “… É desenvolver o caráter, ter bom caráter. Para desenvolver isso, você precisa de pessoas que tenham limites, perto de você… Senão, não consegue desenvolver. Ter organização… No caso das crianças, tem sempre que estar conversando, dizendo não, dizendo sim. Quando você precisa dizer não, tem que dizer não e ser firme, porque elas testam o tempo todo… Assim, o limite que a gente está colocando para elas”.
Como colocado nas entrevistas, várias instâncias participam do desenvolvimento moral da criança: a família, a escola (professores e colegas), a comunidade, a televisão e diferentes grupos sociais que se pode frequentar no cotidiano. A família tem o peso maior, pois a criança passa a maior parte do seu tempo no contexto familiar. Além disso, cabe à família dar um bom exemplo para, colocar limites e regras claras. A escola tem um papel importante no desenvolvimento moral, mas sua participação fica restrita a questões mais comuns, como sinalizar que não se deve agredir, roubar ou mentir. A educação infantil deve contemplar o desenvolvimento moral da criança, no sentido de ajudar as desprovidas de regras e limites.
Essa visão também ficou clara no contexto das duas atividades planejadas para promover a discussão sobre questões de moralidade entre as crianças. Como explicitado anteriormente, as duas atividades estruturadas aconteceram a partir do livro intitulado “A gente pode… A gente não pode…”, que apresenta um conjunto de regras que não estão relacionadas com questões de natureza moral e de respeito pelo outro. A grande maioria das normas abordadas pelo material (66% das apresentadas) esteve relacionada com questões de habilidades físicas, higiene, ordem e disciplina e segurança das crianças.
Os resultados anteriores nos fazem concluir que, na visão do contexto escolar, o desenvolvimento moral está atrelado ao conceito de disciplina, em função das dimensões normativa e comportamental da moralidade. Como colocado por Cortella e La Taille (2007), atualmente há uma grande preocupação, por parte da escola e dos professores, de trabalhar, junto às crianças, o tema dos valores e da moralidade. No entanto, essa preocupação deriva, na maioria das vezes, de uma queixa de comportamento ou de uma desobediência, geralmente ligada a aspectos disciplinares. Não se trata de uma preocupação ética com a formação do cidadão, capaz de ter um posicionamento crítico e autônomo frente à realidade e às crenças e valores socioculturais. Trata-se de uma preocupação voltada para a resolução de problemas, considerados objetivos e concretos por parte dos professores e que estão relacionados com questões de obediência e autoridade.
Considerações finais
De que educação infantil estamos falando?
A educação formal, no mundo contemporâneo, apesar de ideias inovadoras e interessantes (Palmieri, 2003), ainda persiste a pautar-se pela unidirecionalidade das relações professor-aluno e na noção de transmissão de conteúdos e treino de habilidades. Apesar de, algumas vezes, ostentar um discurso inovador referente à educação integral da criança, tem sua prática especialmente voltada para a aprendizagem de conhecimentos disciplinares e para o treinamento da obediência entre alunos. Os resultados que encontramos na pesquisa não são exclusivos de nosso estudo, mas têm surgido em outros trabalhos que apontam, assim, a necessidade de discussões e estratégias que visem à reflexão crítica sobre a transformação concreta das práticas educativas, sobre a formação inicial e continuada dos professores e sobre os objetivos reais da Educação em geral (Borges-de-Miranda, 2017; Marsico, 2018) e, também, no âmbito da educação infantil (Roncancio-Moreno, 2015).
Embora um dos objetivos fundamentais da educação infantil seja o desenvolvimento integral da criança, as ações do cotidiano escolar se orientam, principalmente, para o desenvolvimento e aprendizagem de habilidades e competências cognitivas, em detrimento das habilidades e competências sociais. Acreditamos que essas divergências não são exclusivas do contexto escolar, mas que surgem em função da inter-relação entre a escola e o contexto sociocultural, onde ela está imersa. Como colocado por Lima (2000), a sociedade está impregnada de princípios que pregam a supremacia do “produzir” em detrimento do “pensar”, o que aparece na dinâmica escolar de diversas formas.
Muitas vezes, as divergências em relação aos objetivos da educação infantil surgem em função da cobrança da sociedade, como um todo, e da família, de forma mais particular. Como colocado pela participante de nosso estudo, existe uma cobrança por parte dos pais em relação à “produção” e, nesse contexto, o desenvolvimento e educação integral das crianças não são tarefas fáceis. Sendo assim, é importante pensar no papel da escola, como instituição educativa, em um contexto mais amplo. Até que ponto o papel da escola pode e deve se restringir à educação das crianças? Quais as possibilidades reais de discussões e trocas significativas entre a escola e a família? Até que ponto os espaços de participação e negociação entre a escola e a família são efetivos?
O papel da escola não se restringe à reprodução dos valores socioculturais predominantes no contexto social, mas abrange a sua análise crítica e mudança (Guzzo, 2007). Sendo assim, chamamos a atenção para a necessidade de formação inicial e continuada dos educadores, sobre a importância de abordar de maneira diferente o desenvolvimento da moralidade, que não deve ficar restrito à simples transmissão unilateral de regras e limites pautados, na maioria das vezes, a partir das necessidades do adulto.
A formação do profissional da educação deve propiciar-lhe o domínio do conhecimento acerca do desenvolvimento moral da criança e capacitar-lhe a empregar métodos e técnicas adequadas para sua educação, que não se resume ao domínio cognitivo e comportamental, mas que deve abranger crenças e valores pró-sociais (Barrios, 2013; Branco, 2018), promovendo o desenvolvimento moral através de estratégias participativas, que envolvam a negociação, reconstrução ativa e transformação crítica das crenças e valores sócio-morais, compartilhados em nível cultural.
Também é importante destacar a necessidade de oferecer, ao professor, conhecimentos e ferramentas para a análise crítica de sua prática pedagógica e das interações sociais nas quais se veiculam e reconstroem os valores sociais. Ou seja, abrir o espaço para a análise e uso dos elementos do currículo oculto a favor dos objetivos educativos, pautados no currículo manifesto. Não adianta a realização de projetos pedagógicos voltados para a formação de valores como o respeito e a solidariedade, se no dia a dia não se realizam intervenções críticas e adequadas para a formação cidadã.
Como colocado anteriormente neste trabalho, nossa pesquisa teve como objetivo principal identificar e analisar elementos da prática educativa que possam ser significativos para o desenvolvimento moral das crianças. Entretanto, nossa pesquisa ficou restrita a uma instituição de educação infantil, com características específicas que devem ser levadas em consideração e que não permitem uma generalização, sobretudo, desde uma perspectiva sociocultural. Sendo assim, novos trabalhos sobre o desenvolvimento e a educação moral, no contexto das práticas socioculturais, são necessários. Acreditamos que os mesmos possam ajudar na construção de um panorama mais detalhado sobre o tema, o que permitirá implementar mudanças nas práticas educativas, no sentido de promover uma verdadeira educação integral entre nossos alunos.