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Educação

versión impresa ISSN 0101-465Xversión On-line ISSN 1981-2582

Educação. Porto Alegre vol.44 no.3 Porto Alegre set./dic 2021  Epub 29-Abr-2024

https://doi.org/10.15448/1981-2582.2021.3.33537 

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Ensino de literatura: uma proposta histórico-cultural de ressignificação das práticas docentes

Teaching Literature: a historical-cultural proposal for the resignification of teaching practices

Enseñanza de Literatura: una propuesta histórico-cultural de resignificación de las prácticas docentes

Zizi Trevizan1 

Docente pesquisadora da UNESP na FCT – Presidente Prudente, SP, Brasil, Departamento de Educação; e da UNESP na FCL-Assis, SP, Brasil, Departamento de Literaturas de Língua Portuguesa. Docente Pesquisadora em Educação na UNOESTE, em Presidente Prudente, SP, Brasil, onde foi Pró-Reitora de Pesquisa e Pós-Graduação. Autora (e coautora) de livros e artigos científicos nas áreas de Educação e de Linguística, Letras e Artes.


http://orcid.org/0000-0002-7063-2455

Tatiane Moraes2 

Mestre em Educação (UNOESTE), em Presidente Prudente, SP, Brasil. Especialista em Gestão do Currículo para Professores-Coordenadores (USP), em São Paulo, SP, Brasil; Gestão Escolar (FAPI), São José dos Pinhais, PR, Brasil e Psicopedagogia Clínica e Institucional (UENP), em Jacarezinho, PR, Brasil; Graduação em Educação Artística com habilitação em Artes Plásticas (FIO), em Ourinhos, SP, Brasil e Pedagogia com habilitação em Educação Especial (FAPI), em São José dos Pinhais, PR, Brasil. Professora de Educação Básica na Rede Estadual de São Paulo e professora do Curso de Pedagogia na Faculdade Estácio de Sá de Ourinhos (FAESO), em Ourinhos, SP, Brasil.


http://orcid.org/0000-0002-8480-0149

1Universidade Estadual Paulista (UNESP), São Paulo, SP, Brasil.

2Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), Presidente Prudente, SP, Brasil.


Resumo:

Explicitar o conceito de arte literária e contribuir com os profissionais da educação na construção de seus saberes científicos sobre o ensino de literatura são os objetivos deste artigo, em razão da continuidade de uma prática de leitura do texto literário, ainda destituída do enfoque histórico-cultural bakhtiniano, que valoriza o ato de ler como um ato dialógico e ambivalente, de natureza estética (filosófica) e ideológica (social) da linguagem. Este texto propõe reflexões sobre a importância da teoria bakhtiniana para ressignificação das práticas docentes, no ensino da literatura. Trata-se de uma pesquisa qualitativa – um estudo de caso, que envolveu entrevistas semiestruturadas com doze professoras de uma escola pública paulista e observação de duas aulas (filmadas) de literatura. Da análise semiótica (bakhtiniana) dos dados resultaram discussões com as participantes sobre a relevância de uma epistemologia da prática docente, alicerçada na Filosofia Materialista da Linguagem.

Palavras-chave: literatura; ensino; semiótica; teoria sócio-histórico-cultural; formação docente

Abstract:

Clarify the concept of Literary Art and to contribute with the education professionals in the construction of their scientific knowledge on the teaching literature are the purposes of this article, due to the continuity of a practice of reading the literary text, still devoid of the historical-cultural bakhtinian approach, that values the act of reading as a dialogical and ambivalent act, of aesthetic (philosophical) and ideological (social) nature of language. This text proposes reflections about the importance of the bakhtinian theory for the resignification of teaching practices in the teaching literature. This is a qualitative research - a case study, involving semi-structured interviews with twelve teachers from a public school in São Paulo state and the observation of two (filmed) classes of literature. From the semiotics (bakhtinian) analysis of the data, resulted discussions with the participants about the relevance of an epistemology of teaching practice, based on the Materialist Philosophy of Language

Keywords: literature; teaching; semiotics; socio-historical-cultural theory; teacher training

Resumen:

Explicar el concepto de Arte Literario y contribuir con los profesionales de la educación en la construcción de sus saberes científicos sobre la enseñanza de la literatura, son los objetivos de este artículo, debido a la continuidad de una práctica de lectura del texto literario, aún destituida del enfoque histórico-cultural bakhtiniano, que valora el acto de leer como un acto dialógico y ambivalente, de naturaleza estética (filosófica) e ideológica (social) del lenguaje. Este texto propone reflexiones sobre la importancia de la teoría bakhtiniana para la resignificación de las prácticas docentes, en la enseñanza de la literatura. Se trata de una investigación cualitativa - un estudio de caso, que involucró entrevistas semiestructuradas con doce profesoras de una escuela pública paulista y observación de dos clases (filmadas) de literatura. En el análisis semiótico (bakhtiniano) de los datos, resultaron discusiones con las participantes sobre la relevancia de una epistemología de la práctica docente, basada en la Filosofía Materialista del Lenguaje.

Palabras clave: literatura; enseñanza; semiótica; teoría sociohistórico-cultural; formación docente

Este artigo, intitulado "Ensino de literatura: Uma proposta histórico-cultural de ressignificação das práticas docentes", se utiliza de parte dos dados obtidos da dissertação de mestrado de Moraes (2017) e de outros estudos anteriores (de uma das autoras) sobre a relevância das contribuições da Teoria Histórico-Cultural na construção dos saberes docentes, para o ensino de uma leitura dialógica e ambivalente da arte literária, Trevizan (2000, 2002, 2007, 2017), Trevizan e Parisotto (2012a, 2012b).

Nos estudos citados, a leitura dialógica (que estabelece a sintonização cultural do interlocutor com o locutor) e a leitura ambivalente (que insere o texto no contexto cultural de sua produção) constituem a síntese dialética bakhtiniana, necessária à completude de uma leitura literária, de perfil histórico-cultural.

Trevizan (2017), no artigo intitulado, "Saberes científicos e epistemologia da prática nos processos institucionais de formação docente e de formação de leitores", informa que ainda permanece o desconhecimento das contribuições epistemológicas da Filosofia Materialista da Linguagem (Bakhtin, 2014) no ensino da literatura pelos professores da Educação Básica, o que favorece a continuidade de práticas educativas inadequadas à formação social, crítica e filosófica do leitor do texto literário.

Na apresentação da décima sexta edição do livro de Bakhtin (2014, p. 11-19), Yaguello afirma que ele abordava vários temas de natureza filosófica, tais como as produções artísticas, tendo, sempre, como eixo, a linguagem e seus efeitos pragmáticos, sociais. De fato, a dialética bakhtiniana ressalta a relevância, na linguagem, do seu compromisso com o contexto histórico cultural e a prevalência deste contexto nos processos de determinação dos significados dos signos.

Com base em Marx, Bakhtin passa a fazer da dialética o seu método científico. Segundo Freitas (1996), o filósofo materialista da linguagem, como ficou conhecido no círculo de intelectuais, propõe uma dialética que nasce da dialogia. Para Trevizan (2017), esta dialogia é estabelecida no discurso entre, no mínimo, dois seres histórico-culturais, confirmando a ambivalência do contexto histórico-cultural de sua origem.

Concordamos, ainda, com Yaguello, na sua apresentação inserida na décima edição da obra de Bakhtin (2014, p. 11-19), que, para ambos os teóricos, Ferdinand de Saussure e Mikhail Bakhtin, a língua constitui um fato social. No entanto, explicitamos que, de forma diferenciada, Saussure reconhece a natureza coletiva da língua, mas a concebe como um objeto abstrato (conjunto de leis linguísticas abordadas sincronicamente) e, portanto, rejeita as manifestações da fala, considerando-as apenas de natureza espontânea, subjetiva, individual; Bakhtin, ao contrário, concebe o ato da fala, indissociável das condições da situação discursiva (de perfil histórico-cultural), explicitando, assim, que toda locução permanece, sempre, vinculada às estruturas sociais que a originaram, Trevizan (2017).

Brait (2006) ressalta que a maior e expressiva contribuição intelectual do Círculo de Bakhtin ocorreu por meio desta teoria dialética da linguagem. Trevizan (2017), na mesma linha de raciocínio, afirma que Bakhtin (2014), na sua conceitualização dialética da linguagem, não excluí a corrente teórica do objetivismo abstrato, que valoriza o conceito (saussureano) de língua; mas destaca que o filósofo marxista inclui a língua no diálogo necessário com o ato individual da fala, considerado, por ele, como um ato social, histórico-cultural. Em outros termos, Trevizan (2017) ressalta que, na filosofia bakhtiniana, a linguagem constitui a síntese dialética da língua e da fala.

Assim, neste artigo, a teoria bakhtiniana da Filosofia Materialista da Linguagem ganha destaque para valorizar o ato da leitura como um ato interpessoal, tendo sua significação determinada pelas relações estabelecidas nas interações sociais dos locutores com os seus interlocutores e vice-versa. Nesta perspectiva teórica, o texto da literatura é considerado como um texto polifônico e ambivalente, resultante do diálogo de múltiplas vozes culturais, devendo ser lido por meio de uma identificação histórico-cultural de sua origem; e não por meio de uma leitura que se restrinja apenas ao reconhecimento literal dos sentidos construídos nas relações gramaticais da tessitura linguística do texto, Trevizan (2017).

A identidade do leitor absorve outras identidades culturais: a do autor do texto lido e as de outros autores implícitos no tecido textual. Ressaltamos que esta incorporação é de natureza histórico-cultural e ocorre, inclusive, pela possibilidade de o leitor refratar o real representado no texto literário lido.

Pela teoria histórico-cultural bakhtiniana, a leitura dialógica emerge do encontro de diferentes vozes culturais, implícitas no texto; e desta dialogia, afloram marcadores culturais da ambivalência das relações do texto com o(s) contexto(s) de origem pragmática, social, ideológica, dos interlocutores (usuários da linguagem).

Independentemente da nossa condição de autores/ leitores ou de locutores/interlocutores, na interlocução estabelecida por um texto, podemos ser os outros (COSSON, 2009); e, mesmo assim, continuarmos sendo nós próprios, acrescidos de saberes culturais filosóficos, renovados, transformados.

Essa forma transformadora da leitura é que será ressaltada neste artigo, pois, alicerçando- nos nos estudos bakhtinianos de que a Arte Literária é produção dialética (produção concomitante de subjetividade e de objetividade) é que definimos a possibilidade de contribuirmos, neste texto, com os professores de literatura, para uma maior explicitação do conceito de literariedade, ou seja, de arte literária, e de seus modos estéticos (filosóficos) e ideológicos (sociais, histórico-culturais) de recepção em sala de aula.

Na sequência do texto deste artigo, apresentamos:

Na primeira parte, intitulada "A leitura dialógica e ambivalente do texto literário", com apoio em Trevizan (2002, 2007, 2017), foi explicitado o conceito de literariedade, a partir do enfoque histórico-cultural (Bakhtin, 2014), propondo-se a valorização do ato de ler literatura como um ato dialógico e ambivalente (portanto dialético), revelador da natureza estética e ideológica da arte literária.

Na segunda parte, intitulada "A epistemologia da prática docente no ensino de literatura", foram apresentados dados parciais obtidos da dissertação de mestrado, intitulada A tematização da prática pedagógica como estratégia formativa: possibilidades de construção do saber docente sobre o ensino de leitura literária, Moraes (2017), na qual foi realizada uma análise semiótica (bakhtiniana) das filmagens de duas aulas de literatura (ministradas por uma das 12 docentes participantes da pesquisa) e das entrevistas semiestruturadas realizadas com as mesmas professoras, na própria escola pública paulista pesquisada. Todas as doze participantes foram envolvidas na avaliação reflexiva das práticas registradas nas filmagens e na discussão final sobre a própria atuação profissional no ensino de literatura.

Portanto, com os objetivos de explicitar o conceito de Arte Literária e de contribuir com os profissionais da educação na construção de seus saberes científicos sobre o ensino de literatura, o conteúdo temático deste artigo se desenvolveu a partir de referências teóricas centradas na Filosofia Materialista da Linguagem (Bakhtin, 2014) e de suas contribuições nos processos de formação histórico-crítica de leitores, Trevizan (2000, 2002, 2007, 2017); Trevizan e Parisotto (2012a, 2012b); Moraes e Trevizan (2018); foram utilizadas, também, neste estudo, as contribuições complementares de Eco (1980); Barroco e Tuleski (2007); Freitas (1996); Weisz (2009); Yaguello (2014); Souza, Hernandes e Balsan (2015); Barbosa (2009); Cosson (2009, 2014); Brait (2006); e Colomer (2007).

A leitura dialógica e ambivalente do texto literário

A arte literária impõe a exigência de um leitor específico. Ensinar a leitura de um texto literário é diferente de ensinar a leitura de um texto não literário. É evidente que modelos textuais diferenciados exigem leituras específicas. O que é literariedade? Como o leitor pode identificar se um texto é literário ou não? Trevizan (2002, 2007), apoiada na Teoria Histórico-Cultural (Bakhtiniana), afirma que o processo de literariedade se revela ao leitor, no ato interlocutório da leitura, pelo reconhecimento cultural e estético da perfeição da linguagem inaugural do autor, reveladora da intensificação do teor filosófico e ideológico do texto.

Em outros termos, um texto artístico apresenta uma adequação perfeita entre o plano da linguagem (plano formal da expressão artística) e o plano nocional do conteúdo (da temática/do assunto/ das ideias). Para Trevizan (2007), na produção artística dos textos dos autores de literatura (dos clássicos até os contemporâneos) permanece esta relação de adequação estética, estabelecida entre o fundo (conteúdo) e a forma (linguagem). A literariedade é construída, portanto, por meio de uma adequação artística estabelecida entre o conteúdo da obra e a linguagem estratégica que o veicula ideologicamente.

Na realidade, a estética funciona no texto artístico (em geral) como um processo de substantivação dos efeitos filosóficos e ideológicos do discurso. Para Bakhtin (2014), a estilização é constituída de refrações diversas do discurso de outrem. Logo, para o autor, toda enunciação é de natureza social. Para ele, a arte literária, como todas as linguagens, também tem função representativa e remete à materialidade da realidade externa, da qual se origina. Por isso, o texto literário exige, para uma formação leitora competente, o reconhecimento cultural da sua natureza material/semiótica, dialógica e ambivalente.

Assim, as formas de leitura do texto literário (dialógica e ambivalente) destacadas, neste artigo, estão teoricamente apoiadas no conceito bakhtiniano de literariedade, onde o significado do signo não constitui uma sombra (abstração) do real, mas sim constitui parte dele. Logo, a leitura de reconhecimento da natureza (artística e ideológica) da linguagem literária exige a competência leitora, para identificação cultural da perfeição estética do autor, ativada pelo uso adequado da seleção estratégica (ideológica) de determinados signos (formas linguísticas) para expressão de determinadas mensagens (críticas e filosóficas).

Esta leitura de sintonização cultural do leitor com o autor constitui a leitura dialógica. Na leitura dialógica, o leitor é constituído, então, como coautor, identificando o processo cultural do criador, de construção específica de determinados signos e significados histórico-culturais, ressignificados no texto pelo estilo – invenção, utilizado no processo autoral da criação, Eco (1980, 1991).

Para maior compreensão de como ocorre o processo estético e ideológico da produção textual literária e de como este processo deve ser reconhecido, no ato da interlocução da leitura, destacamos que "a tarefa do leitor só pode ser a de buscar (com prazer) a adequação do papel modelizante dos signos à concepção do mundo veiculada pela obra; tarefa, aliás, esquecida pela própria escola" (Trevizan, 2000, p. 80).

Como, então, efetuarmos em sala de aula uma leitura dialógica e ambivalente do texto literário? O que é o texto literário?

O texto literário, como outros textos, é uma unidade de sentido (estrutura linguística) em relação a uma situação de vida (estrutura sócio-ideológica, pragmática). A leitura do texto literário pressupõe, portanto, não apenas o reconhecimento do sentido literal das palavras constitutivas do texto, mas envolve, sobretudo, a interpretação da ambiguidade semântica, revelada no erguimento das complexas relações de significados pragmáticos (sociais) contidos na produção. Assim, um material literário não precisa necessariamente ser feito de palavras incomuns, pois sua complexidade fundamental não está na incompreensibilidade dos termos raros empregados, mas sim reside, sobretudo, na relação dialógica que ele mantém com o leitor e o seu mundo. Quanto melhor literariamente for o texto, mais complexo e profundo será o diálogo com os homens, oportunizando-lhes reflexões profundas sobre a identidade humana, individual e social. Deste modo, o método de estudo do texto literário, separando o conteúdo de um lado e as particularidades da linguagem artística de outro, tão enfaticamente explorado na prática escolar, revela uma total incompreensão dos fundamentos específicos da natureza social da Arte. (Trevizan, 2000, p. 80-84)

Fica, pois, enfatizada, no ensino da literatura, a importância da leitura dialógica (leitura de sintonização cultural do leitor com o autor), para a descoberta dos arranjos estéticos e estratégicos, estabelecidos pelo autor, entre a linguagem e o conteúdo da obra criada; e ainda, a relevância da leitura ambivalente do texto, efetuada por meio da sintonização cultural do leitor com o contexto histórico-cultural do autor e do próprio texto, para compreensão final da mensagem sócio-pragmática do mesmo, Trevizan (2017).

Em Trevizan e Parisotto (2012a), a leitura ambivalente, apoiada, igualmente, nas concepções teóricas de Bakhtin (2014), possibilita, então, a identificação das marcas culturais índices/sinais) do contexto de origem do texto. Neste processo de identificação da natureza ambivalente do texto, o leitor chega à descoberta de informações histórico-culturais relevantes, que interferem na compreensão final do texto, pelo reconhecimento da coerência estabelecida, formalmente, no discurso literário, pela relação estabelecida entre a linguagem (recursos formais selecionados e ativados pelo autor) e a ideologia implícita nos conteúdos. Para breve ilustração deste processo relevante de uma leitura dialógica e ambivalente, citamos um texto de Manuel Bandeira: "Poema do Beco": "Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte? / O que eu vejo é o beco" (Bandeira, 1967 citado em Trevizan, 2002, p. 36).

A leitura dialógica deste texto transcrito, pautada na sintonização cultural do leitor com os signos do texto, selecionados e combinados estrategicamente pelo autor (Manuel Bandeira), deve ser somada à leitura ambivalente de reconhecimento histórico-cultural da sua tendência poética modernista, de oposição estética aos temas individualistas e subjetivistas do Romantismo Brasileiro e de busca de um discurso de denúncia social de uma Arte comprometida com o engajamento político-ideológico, específico de um poeta modernista, socialista, que não via solução para as diferenças de classes sociais, no Brasil: "o que eu vejo é o beco" (Trevizan, 2002, p. 36).

Assim, esta leitura do texto em si mesmo (leitura do diálogo dos signos estabelecido na tessitura do texto) e a leitura da perspectiva histórico-cultural do contexto de origem do texto (leitura da ambivalência do texto) constituem a completude e a complexidade de uma leitura literária:

um leitor de perfil intelectual confirmado, visitante frequente da Literatura Brasileira e, em especial, dos textos poéticos do Manuel Bandeira, poderá, de imediato, efetuar uma leitura vertical e ambivalente do modelo transcrito acima, relacionando os signos inscritos na primeira linha poética (paisagem/ glória/baía/linha do horizonte) com os hipersignos ou tópicos (ECO, 1980) do código estético romântico (da segunda metade do século XIX), reconhecendo, assim, no plano conteudístico do poema, um questionamento e uma proposta ideológica de contestação das diretrizes estéticas do Romantismo, centradas numa visão idealista, individualista e subjetiva do mundo. Considera-se, para confirmação desta leitura, o uso indagativo da expressão inicial – Que importa…?. Tal leitura se fundamentaria, evidentemente, nos conhecimentos prévios (do leitor) como elementos possibilitadores de identificação, no poema do beco, de uma visão de Arte compromissada com o engajamento social frequente na produção poética de Manuel Bandeira (autor moderno, de temática socialista). A função divergente das duas linhas poéticas, uma interrogativa e a outra afirmativa, o contraste entre a liberdade contida no ilimitado (linha do horizonte…/paisagem…) e o aprisionamento criado pelo próprio homem (beco), o jogo opositivo do abstrato (uso do verbo importar) e do concreto (uso do verbo ver) insinuam a diferença das ideologias romântica e realista: a primeira, pautada pelo sonho e esvaziamento do real; e a segunda, definida pelas marcas explicitas de um discurso moderno, de acusação social: "o que eu vejo é o beco". (Trevizan, 2002, p. 36-37)

Em síntese, uma leitura adequada do texto literário pressupõe dois movimentos culturais que se cruzam: a) o movimento dialógico de identificação/ sintonização do leitor com o autor, para percepção das estratégias de seleção e combinação interna dos signos, efetuadas no ato criador; e b) o movimento cultural de inserção do texto literário no contexto histórico-cultural do autor (sujeito da criação) e do próprio texto criado, para interpretação final dos efeitos ideológicos da linguagem literária na formação cultural do leitor.

Uma vez definido o conceito bakhtiniano de leitura dialógica e ambivalente da literatura, passemos, na sequência, à apresentação e discussão da pesquisa, da qual foram extraídos dados parciais para discussão da epistemologia da prática docente no ensino da leitura literária.

A epistemologia da prática docente no ensino de literatura

A pesquisa focou, inicialmente, por meio de entrevistas semiestruturadas, na investigação da formação epistemológica de doze docentes de uma escola pública paulista, voltada para o ensino da leitura de textos literários; e, posteriormente, se centrou na observação da prática pedagógica, realizada por meio da filmagem de duas aulas de uma das participantes, cujo nome foi sugerido pelas demais colegas. Todas as 12 participantes foram conduzidas à análise reflexiva da prática filmada (sobre o ensino de leitura) e à avaliação da sua própria atuação profissional, na expectativa de que esta análise coletiva, reflexiva, possibilitasse uma revisão teórica e prática, para o desenvolvimento do perfil profissional e da ação docente. O estudo se deu, portanto, por meio da tematização da prática docente, utilizando-se da leitura da literatura como conteúdo a ser ensinado. Entendeu-se como tematização da prática docente,

uma análise que parte da prática documentada para explicitar as hipóteses didáticas subjacentes. Chamamos a esse trabalho tematização da prática porque se trata de olhar para prática de sala de aula como um objeto sobre o qual se pode pensar. A tematização da prática é um instrumento de formação que vai na direção contrária à da tradicional visão aplicacionista de formação de professores. (Weisz, 2009, p. 123)

Esta investigação da prática pedagógica sobre o ensino da leitura literária foi norteada por três eixos conteudísticos: a identificação da formação e da prática docente; o trabalho escolar com o texto literário em sala de aula; e a reflexão docente sobre práticas de ensino da literatura. O texto deste artigo prioriza, dentre os eixos citados, o trabalho escolar com o texto literário em sala de aula.

O aporte teórico bakhtiniano da pesquisa (Filosofia Materialista da Linguagem) possibilitou sugestões metodológicas aos profissionais do ensino de literatura (participantes da pesquisa), norteadas por conceitos histórico-culturais de leitura dialógica e ambivalente, Trevizan (2000, 2002, 2007, 2017), Trevizan e Parisotto (2012a, 2012b), Moraes e Trevizan (2018). Tais modelos são contributivos nos processos escolares de formação de leitores, visto que, para alguém ser leitor, é preciso que vá além da capacidade de identificar, em dicionários da língua portuguesa, os sentidos linguísticos dos signos. É necessário promover, nas escolas, a condição intelectual de o leitor compreender o sentido histórico-cultural (ideológico) daquilo que lê; tal competência deve ser exigida em todas as áreas do conhecimento, sendo que a formação do leitor crítico constitui, ainda, um grande desafio para os educadores, no contexto educacional contemporâneo.

A pesquisa foi de natureza qualitativa, com apoio teórico histórico-cultural, do tipo estudo de caso, e observação participante de duas aulas (filmadas); envolveu, no seu conteúdo, uma revisão bibliográfica sobre a formação docente; sobre a identidade profissional do professor; mas, sobretudo, sobre o ensino de leitura literária: o texto, a linguagem e a significação.

O objetivo da realização das entrevistas semiestruturadas foi o de identificar o perfil da formação e da prática das doze docentes participantes da pesquisa (atuantes no ensino da literatura em salas de Educação Fundamental – Anos Iniciais, sendo três professoras do 2º ano; três do 3º ano; três do 4º ano e três do 5º ano. Cada entrevista foi realizada individualmente e teve a duração média de quarenta minutos; aconteceu em espaços da Unidade Escolar, em horários de Aula de Trabalho Pedagógico Livre – ATPL. Os dados da entrevista foram registrados por meio da escrita.

O perfil dos professores participantes da pesquisa fica delineado como um grupo bastante heterogêneo, no qual a faixa etária varia entre trinta e três a sessenta e sete anos de idade, prevalecendo os docentes com mais de cinquenta anos. O tempo de experiência no magistério oscila entre três e trinta e dois anos.

Neste artigo, foi ressaltada parte dos dados específicos da observação e filmagem das duas aulas de leitura do texto literário, ministradas por uma das participantes (indicada entre os pares), em uma turma de quinto ano do Ensino Fundamental – Anos Iniciais da Rede Estadual Paulista. No entanto, em momentos de análise destes dados extraídos das aulas filmadas, foram utilizadas, concomitantemente, partes de conteúdos das falas das docentes entrevistadas e/ou da professora que ministrou as duas aulas. Todas as participantes conheciam os objetivos e procedimentos da pesquisa, por meio do Termo (assinado) de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE (CEP-CONEP).3

A análise da filmagem das duas aulas ministradas por uma das professoras possibilitou a reflexão e a discussão com todas as demais docentes envolvidas na pesquisa, permitindo o confronto de teorias e de práticas utilizadas por elas, no ensino da literatura.

Na análise semiótica (bakhtiniana) das filmagens das duas aulas de literatura, foi identificado um comportamento docente simplista, de discussão fragmentada de pontos conteudísticos dos textos literários trabalhados. Esta fragmentação ficou clara, em razão, dentre outros fatores, da natureza das indagações feitas aos alunos (sobre os textos), pela docente ministrante das aulas; ora, estas indagações focavam a imaginação dos alunos, sobretudo quando se referiam ao título, afastando-os da interpretação das relações internas entre o título e as constitutivas do texto em discussão; ora, se centravam, exclusivamente, em fragmentos do conteúdo, que não alcançavam, inclusive, a unidade de sentido global do mesmo.

Esta inadequação foi observada, porque o comportamento docente foi filmado e revelou que não houve, nas aulas, uma preocupação com a exploração dos sentidos estéticos e ideológicos da linguagem do texto literário (lido pelos alunos). Para um texto (sobretudo o literário, onde ocorre uma substantivação estética do uso ideológico dos signos) é fundamental que o professor relacione, com os alunos, a interpretação do título da obra às estratégias de construção de seus signos, num movimento coesivo e coerente de leitura, onde cada signo e cada parte constitutiva do texto produzido se articulam e resultam numa unidade de sentidos linguísticos e pragmáticos simultâneos.

No entanto, a docente (que teve suas duas aulas filmadas), apesar de declarar, na entrevista semiestruturada, que faz uma leitura histórico-cultural do texto, apenas informou, no início de uma das aulas de leitura, dados gerais do contexto da produção do material de leitura, selecionado por ela. No trabalho da leitura do texto, em sala de aula, nenhum elemento histórico-cultural foi acionado pela docente para compreensão da ambivalência cultural do texto, conforme ressalta a teoria bakhtiniana. Por exemplo, em nenhum momento da aula, a docente conseguiu interligar elementos da linguagem (literária) do texto com a sua funcionalidade conteudística/ temática/ ideológica e social, para a formação do leitor histórico- crítico de literatura.

Como ilustração, informamos que, para uma das aulas filmadas, foi selecionado o livro Procura-se Lobo, de Machado (2010), para o trabalho de leitura do texto literário. Observamos que, durante a aula de leitura deste livro, a professora questionou, de modo superficial, o significado da palavra "telhado" utilizada no texto: "por que esse telhado está escrito com letras maiores, caindo para fora da carta?". Os alunos receberam esta indagação de modo abrupto, pois não lhes foi explicitada a importância deste recurso de linguagem visual (de desconfiguração das letras desta palavra "telhado"), e nem lhes foi explicado que este recurso ocorreu para substantivar os efeitos ideológicos sedimentados culturalmente para este signo ("telhado"), como um tradutor estético do conceito geral (previsível) de proteção que uma casa representa; proteção esta, negada, no livro, pela ameaça da presença do "lobo", como símbolo de Poder e Maldade, registrado na literatura infantil brasileira, ao longo de sua história.

Assim, em nenhum momento, a professora trabalhou a esteticidade e a ideologia da Arte traduzidas pelo processo de desconstrução visual da palavra "telhado"; ou seja, não houve nenhuma alusão ao uso estratégico, na palavra (telhado), de letras aumentadas, de letras apartadas umas das outras, desconjuntadas, desniveladas; diferentes, enfim, do uso comum de um traçado regular (trivial) das letras. Tal procedimento estético, criativo, específico da linguagem artística deste texto, revela um feixe de significados filosóficos, vinculados ao conteúdo narrado e associado à vida, revelando a necessidade de uma conscientização crítica do leitor infantil sobre a estigmatização da figura do "lobo" na literatura infantil brasileira, vista, portanto, de forma distorcida e depreciativa, como um ser ameaçador.

Desta forma, o ato específico inovador de Ana Maria Machado (e do ilustrador da obra, Laurent Cardoso), que acentua a função social da denúncia de ambos sobre o uso indevido, na literatura infantil, da figura do "lobo" (como um eterno símbolo negativo de Poder, de Controle e Amedrontamento do Outro) não foi abordado no processo de leitura dos alunos, inviabilizando uma crítica social à atribuição continuada, na literatura, das ações sempre destrutivas dos lobos, como as de desconstruir/ desorganizar/ desestruturar o espaço do outro.

Estas relações dialógicas dos signos, percebidas no ato de uma leitura dialógica (ler por meio de uma sintonização cultural com o próprio processo de construção estética da escrita) não foram consideradas na aula (filmada) de literatura. Apenas houve relações conteudísticas de associações entre o "lobo" e a história clássica dos "três porquinhos", para expressão de um mesmo perfil de lobo, sempre apresentado como um ser representante do poder ameaçador.

Esta superficialidade de abordagem deste texto literário chegou até a possibilitar uma interpretação totalmente imaginativa de uma aluna: esta chegou a afirmar que a escrita da palavra "telhado" estava desconfigurada, "porque o lobo soprou e foi tão forte que as letras voaram". A leitura feita pela aluna sobre a desconfiguração visual da palavra "telhado", sem nenhuma relação sócio-pragmática com a realidade que deu origem à criação desta obra (de denúncia do preconceito sobre o animal "lobo" na literatura infantil e de defesa ecológica) inviabilizou a realização da leitura ambivalente, ou seja, da leitura contextualizada histórico- culturalmente. Quem é a autora deste livro? O que a motivou a escrever um livro sobre lobos? O que ela diz na apresentação deste livro, sobre o processo da sua criação?

As respostas referentes a estas questões são relevantes para a interpretação dos significados (linguísticos e sociais) desta obra literária (e de todas as outras). Quem fez a ilustração? Quais as declarações de quem produziu a ilustração neste livro? Que projetos de interesses comuns guiaram a autora da verbalização escrita e a pessoa responsável pela ilustração? Nenhuma destas informações, tão significativas para a interpretação da obra, foram abordadas na mediação docente, no trabalho com o livro de Ana Maria Machado, na sala de aula. No entanto, a leitura, para Cosson (2014, p. 27) é "um concerto de muitas vozes" que se cruzam no texto (e pelo texto): as vozes do autor do livro com outros autores implícitos em seu texto; do autor do livro com os leitores; a do(a) ilustrador(a) com o(a) autor(a) e as vozes dos leitores.

As ilustrações do livro Procura-se Lobo, feitas por Laurent Cardoso misturam fotografias e desenhos com finalização digital. Tais recursos merecem um olhar atento e sensível do docente no processo de mediação da leitura literária. No entanto, nem a ilustração e nem a linguagem verbal do texto foram exploradas na aula, pois a professora se restringiu a discutir questões superficiais vinculadas ao conteúdo (significado literal do texto), não se alcançando a interpretação necessária, estética (filosófica) e social (ideológica) do sentido do livro, que nos torna seres melhores, depois de acabada sua leitura.

Pelas falas extraídas das entrevistas semiestruturadas com as doze docentes participantes desta pesquisa, sobre o ensino da literariedade de um texto, ficou clara a não formação docente sobre esta especificidade do texto literário e, portanto, continua o velho desafio de formação necessária dos saberes científicos do professor sobre a Teoria Histórico-Cultural para uma prática histórico-crítica do ensino da leitura da literatura.

Sem o conhecimento do conceito específico da literariedade de um texto, como trabalhar com a leitura literária? Se o professor trabalhar, no ensino da literatura, apenas atividades (como a leitura silenciosa; a leitura oral; a leitura dramatizada; a roda de leitura, e outras, sem uma construção cultural do domínio intelectual da natureza estética e ideológica da linguagem literária (e as modalidades necessariamente produtivas de sua leitura dialógica e ambivalente), dificilmente conduzirá o aluno à formação de sua competência leitora. Permanece, portanto, o desafio de uma revisão necessária dos modos insuficientes de formação docente (inicial e continuada) para um ensino crítico da leitura (Moraes, 2017), como também ficou comprovado pelas falas das docentes entrevistadas neste estudo.

É pela leitura dialógica e ambivalente que se torna possível uma leitura mediada que permite ao leitor o uso dos seus "conhecimentos prévios", destacados na Teoria (bakhtiniana) da Intertextualidade (Kristeva, 1974), para repensar e ressignificar as vivências humanas, implícitas nos intertextos da linguagem literária, de natureza filosófica e, ao mesmo tempo, pragmático-social.

Segundo Souza, Hernandes e Balsan (2015, p. 45), "a construção histórico-cultural dos conhecimentos prévios dos alunos" deve ser estimulada "desde o início da escolarização das crianças". Não existe, portanto, idade estabelecida, para inserirmos o aluno nos conteúdos filosóficos e pragmático-sociais da linguagem literária. Ensinar literatura ultrapassa o exercício da compreensão literal dos sentidos linguísticos do texto; ensinar literatura implica educar literariamente. Em outros termos, a educação literária pressupõe, necessariamente, a percepção, na leitura, da função social (pragmática) da literatura; e portanto, da sua materialidade semiótica, veiculadora dos sentidos ideológicos e filosóficos da Arte e da Vida. Neste sentido, é que a Filosofia Materialista da Linguagem, de Mikhail Bakhtin, teve destaque neste estudo.

Em outros termos, o dialogismo e a ambivalência da leitura devem ser ativados no processo de mediação docente, como princípios fundamentais para constituição da identidade humana (social, ideológica) do leitor, de modo a extrair, dele, outros princípios formadores – como o da ação. E, como sabemos, o agir só ocorre na relação com o(s) outro(s).

Segundo Barroco e Tuleski (2007), a finalidade estética da Arte em geral e, inclusive, da Literária, não se limita ao prazer da imaginação humana, da fantasia, da emoção. De forma muito mais profunda, a Arte Literária interliga-se à Filosofia e à Ciência, exigindo do leitor, a partir do texto da leitura, relações interpessoais que possibilitem mediações culturais significativas para uma apreensão da complexidade dos seus sentidos histórico-culturais, tanto os estéticos (filosóficos) como os ideológicos (sociais).

Barbosa (2009, p. 13) afirma que "o conceito de educação como ensino deve ser minimizado" para ser enfatizado o ato de educar como um ato mais complexo do que o ato simplista de ofertar conteúdos; a nosso ver, educar deve envolver conceitos e práticas sociointeracionistas, que valorizam a mediação docente como processo continuado de construção cultural das interações dos alunos com o mundo, por meio da leitura. Para Barbosa (2009, p. 13), "A Arte tem enorme importância na mediação entre os seres humanos e o mundo". Também Colomer (2007) nos lembra que programas curriculares propõem uma mudança de ótica, no que se refere ao processo de formação de leitores do texto literário, que substitua a expressão ensino de literatura pela designação educação literária.

Considerações finais

A nosso ver, ensinar constitui um ato específico, implícito no ato mais amplo e complexo de educar. Assim, se o professor trabalhar um conteúdo curricular significativo, pautado em funções sociais vinculadas à construção cultural de uma identidade humana crítica, já está educando o ser humano, ao mesmo tempo que ensinando determinados conteúdos da grade curricular.

A afirmação de que a tarefa da escola deve ser a de ensinar e não a de educar (considerando-se a ação de educar como uma ação limitada à família) precisa ser repensada, tendo em vista a complexidade cultural do papel do educador (profissional docente) no desafio da construção histórico-cultural dos saberes necessários ao ser humano, para o exercício de sua autonomia, como um cidadão reflexivo, crítico e participativo.

Desta forma, consideramos que a literatura não deve ser apenas conteúdo curricular a ser ensinado nas escolas; precisa ser vivenciada, ou seja, tornar-se parte do processo mais amplo da educação, tanto dos professores como dos alunos. Vivenciar a literatura exige ultrapassar as práticas pedagógicas redutoras de ensino do texto literário; como, por exemplo, o uso mecanicista de atividades conteudistas para análise isolada de partes constitutivas do texto. Educação literária pressupõe, com certeza, valorizar, na leitura da literatura, as vozes culturais externas, determinantes do significado total do texto lido.

Ler um texto literário não significa, portanto, reconhecê-lo apenas na sua construção textual (produto linguístico); é preciso reconhecê-lo como uma construção cultural, ou seja, como um processo sócio-pragmático de comunicação, que pressupõe, na determinação de seus significados, a relevância do papel formador das relações humanas interpessoais, intra (e inter) subjetivas estabelecidas pelo(a) autor(a) e leitores, na constituição da sua significação total.

Tal reconhecimento do ato da leitura do texto literário como um ato de interlocução, de interação social, dialógico e ambivalente (no qual se cruzam múltiplas vozes implícitas no repertório histórico-cultural dos locutores e de cada um dos interlocutores) não tem sido vivenciado nas salas de aula, onde os textos literários têm sido considerados apenas como um produto linguístico; ainda prevalece, entre os profissionais docentes, a carência de saberes científicos específicos sobre os conceitos de ensinar e de educar; de propor um mero aprendizado e de propor uma aprendizagem mediada para fomentar um desenvolvimento cultural; e, sobretudo, de reconhecer o contexto histórico-cultural (dos textos) como elemento fundamental na determinação final dos significados dos conteúdos lidos.

Enfim, uma prática escolar, pautada na carência de saberes científicos (histórico-culturais) sobre a própria profissão (docente) e sobre os modos de ensino dos conteúdos temáticos da área de atuação, não pode se sustentar epistemologicamente. Pelas reflexões pautadas na Filosofia Materialista da Linguagem, expostas neste artigo, uma ação docente só tem eficácia, se alicerçada na construção do perfil histórico-crítico dos alunos. No caso específico da literatura, também se faz necessário que os saberes dos professores sejam, de fato, saberes plurais, ressignificados a cada nova vivência, a partir de suas relações interpessoais, intra e inter subjetivas estabelecidas nos espaços da docência e no curso mais amplo e complexo da sua vida.

Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação das autoras antes da publicação.

3Conforme Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (n. 466/2012 e n. 510/2016); n. Parecer 1.383.550; Data da Relatoria: 05/01/2016; CAEE: 51348715.8.0000.5515.

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Recebido: 09 de Março de 2019; Aceito: 14 de Setembro de 2021; Publicado: 21 de Janeiro de 2022

Endereço para correspondência Zizi Trevizan Universidade Estadual Paulista Rua Quirino de Andrade, 215 Centro, 01049-010 São Paulo, SP, Brasil zizi.trevizan@unesp.br

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