Considerações iniciais
Na contemporaneidade, pensar a Educação Matemática, que historicamente vem perpassando por mudanças – tais como a efetivação das tecnologias e metodologias que consideram o protagonismo dos educandos –, tem sido tarefa desafiadora para pesquisadores dessa área. Educadores que dialogam em suas obras acerca das tendências do(a) ensino/educação no processo histórico, bem como as políticas educacionais, salientam os avanços nas últimas décadas, aproximando a universalização da educação básica desde a Educação Infantil ao Ensino Médio. Nessa direção, empreendemos esforços voltando o olhar para as reflexões tecidas pelas normalistas que cursaram a modalidade Curso Normal4 em uma instituição pública estadual do Rio Grande do Sul, a partir do desenvolvimento de escritas narrativas acerca dos processos do ensino e da aprendizagem da matemática nos anos iniciais do Ensino Fundamental.
Neste estudo, são produzidas narrativas autobiográficas assumidas como ferramentas que propiciam a reflexão, a transformação de si e da própria trajetória e a (auto)formação. No movimento de escrita reflexiva, as normalistas teceram incursões acerca do ensino da matemática e sua aprendizagem na formação e na execução de práticas pedagógicas nas intervenções em sala de aula com crianças dos anos iniciais. Assim, será possível analisar as percepções das estudantes sobre métodos de ensino e de aprendizagem da matemática, bem como a dicotomia entre a teoria aprendida durante o Curso Normal, quando praticada nas intervenções de estágio, e as reflexões tecidas, as quais serão expressas nos diários de bordo5 pelas estudantes normalistas no que se refere ao ensino e à aprendizagem da matemática numa perspectiva histórico-crítica, posto que, nas práticas educativas, as normalistas estabelecem relações de desenvolvimento proximal, assim como interações com estudantes dos anos iniciais.
Dialogaremos com referenciais da área do ensino/educação que, em suas produções, ressaltam a importância do desenvolvimento das narrativas no processo constitutivo do ser docente. Assim, nesse movimento, é possível transformar as práticas pedagógicas por meio das reflexões tecidas e advindas das experiências vivenciadas na prática de ensino no contexto escolar, e, da mesma forma, possibilitar a (re)configuração do "ser" docente – uma vez que são futuras professoras em processo de formação. Desse modo, objetivamos analisar as narrativas das normalistas em formação abarcando as experiências no processo de ensino e aprendizagem de matemática nos anos iniciais numa perspectiva histórico-cultural.
A partir do exposto, buscamos responder às seguintes questões: como os elementos do processo de ensino e aprendizagem apresentam-se nas narrativas das normalistas? Quais as percepções, perspectivas, limites, potencialidades e significados nas práticas pedagógicas desenvolvidas no ensino da matemática nos anos iniciais? Como mostram-se os saberes da docência advindos da formação no Curso Normal para a prática de estágio?
Fundamentação teórica
A escrita narrativa (auto)biográfica é assumida no presente estudo como ferramenta formativa, pois, ao escrever nos diários de bordo, as normalistas narram fatos que vivenciaram nas suas práticas pedagógicas, quando estão constituindo saberes provenientes da docência, e também resgatam elementos do processo de ensino e de aprendizagem da matemática em sala de aula.
Goodson (2007, p. 71), sobre a constituição identitária docente, assevera que "o principal ingrediente que vem faltando nas pesquisas da área da educação é a voz do professor". Para ele, quando oportunizamos ouvir, nos espaços de formação, a voz dos professores, percebemos o resgate de elementos da história de vida, bem como somos apresentados a fatos relevantes da trajetória de vida pessoal e profissional de cada um que reflete sobre a sua prática em sala de aula. Segundo Connelly e Clandinin (1995, p. 11), "os seres humanos são organismos contadores de histórias, organismos que individual e socialmente, vivem vidas relatadas". Assim, tem-se que o estudo da narrativa é o estudo da forma como nós, seres humanos, experimentamos o mundo. Os professores, ao narrar, estão sendo sujeitos da (auto)formação e constituem-se profissionais reflexivos, que investigam a própria prática e são capazes de (re)significar a sua ação docente em sala de aula.
A narrativa autobiográfica, seja pela produção de diários de bordo ou por narrativas orais, realoca o docente no centro dos debates no que diz respeito à sua história de vida, possibilitando reflexões sobre a sua trajetória pessoal e profissional. Corroborando o que leciona Nias (1991 como citado em Nóvoa, 1992, p. 15), "o professor é a pessoa; e parte da pessoa é o professor". Nesse sentido, pressupomos que o olhar para o professor não pode estar desvinculado do olhar para a sua vida pessoal e profissional. Conforme Nóvoa (1992, p. 16), o processo identitário da profissão docente deve ser discutido, mas sempre deixando claro que a maneira de constituir o ser professor, sua identidade, vai moldando-se e se construindo como um processo complexo, por meio das lutas e conflitos que permeiam essa profissão.
Para Imbernón (2022, p. 14), o contexto atual para o exercício da docência "tornou-se complexo e diversificado (…) requer uma nova formação: inicial e permanente". Em relação à nova formação permanente, ele afirma que ela deve transcender a atualização dos conhecimentos do professor, e precisa "se transformar na possibilidade de criar espaços de participação, reflexão e formação para que as pessoas aprendam" (2022, p. 15).
No percurso de formação inicial, especificamente na modalidade do Curso Normal em que se desenrola esta pesquisa, é possível aos professores formadores oportunizar a escrita narrativa; pois, por meio da produção dela, são tecidas reflexões sobre as intervenções pedagógicas, desencadeando um movimento de pesquisa da própria prática e que impactará futuramente no âmbito escolar. A partir da inserção das normalistas em formação nas instituições de ensino, é possível o contato direto com os professores de escola, com as equipes diretiva e pedagógica e com os agentes educacionais. A interação dialógica com a equipe escolar é importante, pois possibilita o diálogo e a troca de saberes entre os que já atuam na área específica, e também proporciona reflexões acerca da futura profissão. Conforme Pimenta e Lima (2004, p. 34): "Também, com frequência, se ouve que o estágio tem de ser teórico-prático, ou seja, que a teoria é indissociável da prática". As autoras afirmam, ainda, que
a profissão de educador é uma prática social. Como tantas outras, é uma forma de se intervir na realidade social, no caso, por meio da educação que ocorre não só, mas essencialmente, nas instituições de ensino. Isso porque a atividade docente é ao mesmo tempo prática e ação (Pimenta & Lima, 2004, p. 41).
Defendo que, ao escrever, as normalistas estão se colocando num processo de reflexão das práticas desenvolvidas nas intervenções de estágio, o que não é fácil ou simples, posto que acontece de maneira progressiva e demanda determinado tempo para resgatar vivências e disposição para a (re)significação do que poderia ter sido feito diferente ou, ainda, do que poderia ser melhorado, o que denominamos (re)significação da prática. De acordo com Porlán e Martín (1997), a escrita, inicialmente, é apenas descritiva e vai se tornando reflexiva no decorrer do processo.
Para Clandinin e Connelly (2015, p. 12), "o professor, ao narrar de maneira reflexiva suas experiências aos outros, aprende e ensina", e isso fica evidenciado na partilha com os colegas de profissão, uma vez que, ao narrar, o professor constrói novos olhares e significados a partir do que foi vivenciado e experienciado, e ainda aprende e ensina por meio das narrativas. Considerando o que defendem Clandinin e Connelly (2015), a pesquisa narrativa é uma maneira de entender a experiência, posto que eles adotam os critérios apresentados por Dewey, de continuidade e interação. Desse modo, os dois critérios são indissociáveis, uma vez que a experiência não só é contínua, mas também interativa.
Diante do exposto, dialogamos com Vygotsky (2000a), que defende que toda atividade humana é produzida de forma mediada. No processo de ensino e aprendizagem, o professor torna-se mediador, e na interação com os sujeitos da aprendizagem, por meio da linguagem, emergem instrumentos e signos advindos da atividade prática e da atividade psicológica do indivíduo humano, havendo ligação real entre eles tanto na história da evolução da espécie humana quanto no desenvolvimento de cada indivíduo, considerando que "o controle da natureza e o controle do comportamento estão mutuamente ligados, assim como a alteração provocada pelo homem sobre a natureza altera a própria natureza do homem" (Vygotsky, 2000a, p. 73).
Ainda, nas produções narrativas buscaremos indícios da pedagogia crítica embasados em Freire (1987), pois as normalistas buscaram desenvolver nos alunos o gosto pela aprendizagem da matemática. Deixando de lado a abstração, trabalharam com a realidade, considerando os aspectos socioeconômicos e histórico-culturais do alunado. Na perspectiva de Vygotsky (2000b), o sujeito é modificado pelo meio em que está inserido fisicamente e socialmente, e, concomitantemente, esse meio provoca mudanças em seu comportamento.
De acordo com essa perspectiva, empreendemos esforços, enquanto professores formadores, para que as estagiárias em formação se constituam como professoras críticas e reflexivas, com a responsabilidade de desenvolver uma prática não alienada, sendo éticas e morais em suas ações na prática social e no seu papel, que tem muita importância e reflexo na sociedade.
Percurso metodológico
Considerando o objetivo desta pesquisa, o qual consiste em analisar as narrativas das normalistas em formação, abarcando as experiências no processo de ensino e aprendizagem de matemática nos anos iniciais, numa perspectiva histórico-cultural, a pesquisa se classifica como sendo de abordagem qualitativa, com características de pesquisa narrativa. Para D’Ambrósio (2004, p. 12), "a pesquisa qualitativa, também chamada pesquisa naturalística, tem como foco entender e interpretar dados e discursos, mesmo quando envolve grupos de participantes".
A constituição dos dados deu-se por meio da análise de 12 narrativas produzidas na forma de diários de bordo pelas normalistas de uma instituição estadual localizada no noroeste do estado do Rio Grande do Sul. A escrita narrativa no contexto formativo, que favorece reflexões voltadas à prática vivenciada, é a chamada de diários (de aula/de bordo). Porlán e Martín (1997, p. 47), em relação aos diários, afirmam: "a função do diário como instrumento para transformar as novas concepções, em novo programa de intervenção, em uma nova prática conscientemente dirigida e evoluída". Desse modo, as escritas reflexivas nos diários desencadeiam um olhar crítico e reflexivo, contribuindo com a formação docente. Mediante esse movimento, é possível ao docente em formação registrar suas vivências no ensino da matemática, selecioná-las e organizá-las para não se perderem no tempo, bem como registrar as experiências que marcaram a sua trajetória, seus avanços e suas possibilidades de evolução na prática docente.
Para o levantamento de dados, as normalistas foram convidadas a produzir escritas reflexivas durante o período de intervenção no estágio nos anos iniciais no segundo semestre de 2022. O professor formador propôs às estudantes registrarem o que foi vivenciado no dia a dia após a inserção no contexto educativo. Assim, foi possível, a partir da produção escrita dos diários de bordo, utilizá-los como instrumentos de reflexão, uma vez que as normalistas fizeram anotações, registrando seus entendimentos e dificuldades, oportunizando a reflexão de sua prática docente. Conforme Güllich (2012, p. 229), o diário de bordo "retoma o diálogo formativo do grupo para si e assim, se apropriando do processo de formação, reflete sobre sua ação, investiga-a. Nesse movimento de narrar sua formação, ele se constitui professor".
Para a análise do material empírico, seguimos os procedimentos da Análise de Conteúdo (AC), de Bardin (2009), a saber: pré-análise, exploração do material, tratamento dos resultados e interpretação. Na etapa de pré-análise, realizamos leituras e releituras das narrativas das normalistas a fim de identificar os excertos que correspondem à temática do estudo. Na exploração do material, foram realizadas marcações e selecionados os excertos que compreendem o objetivo central do estudo, com a finalidade de respondermos às questões de pesquisa e reconhecermos os elementos do trabalho docente para descrevê-los e realizarmos o tratamento das informações. Por fim, tratamos e exploramos os dados dialogando com os teóricos que abordam a temática definida neste trabalho.
Nos excertos das narrativas, identificamos as normalistas como N1 (Normalista 1), N2 (Normalista 2), e assim sucessivamente, de modo que atenda os princípios éticos, mantendo suas identidades em sigilo e anonimato.
Resultados e discussões
Após a leitura das escritas autobiográficas nos diários de bordo, advindas do período de estágio nos anos iniciais produzidas pelas normalistas, selecionamos os excertos das narrativas que correspondem à temática do presente estudo e organizamos as unidades de registro representativas (Quadro 1). A análise do material empírico permitiu a emergência de duas categorias estabelecidas a priori, a saber: C1: "Ensino dos conceitos de matemática nos anos iniciais"; e C2: "Experiências narrativas do processo de ensino e aprendizagem".
Categorias | Unidades de registro representativas |
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Ensino de conceitos de matemática nos anos iniciais | As atividades que trabalhei foram: problemas matemáticos com rima e com multiplicação, divisão, subtração e adição, composição e decomposição dos números, identificação de quantidade em receitas, interpretação de gráfico, loteria matemática, sistema monetário, quantidade de massa, padaria e mercado (N1). |
Através de atividades interdisciplinares, sempre buscando trazer algum fundamento para as atividades, resgatando conceitos trabalhados, consegui ensinar aos meus alunos conteúdos tão importantes, como: o sistema de numeração decimal, a leitura, escrita, comparação e ordenação de números naturais de até cinco ordens. A composição e decomposição de um número natural de até cinco ordens, por meio de adições e multiplicações por potências de 10; e as propriedades das operações para o desenvolvimento de diferentes estratégias de cálculo com números naturais (N8). | |
Experiências narrativas do processo de ensino e aprendizagem | (…) senti muita dificuldade em elaborar planos de aula, principalmente para matemática. (…) tentei trabalhar de maneira lúdica para que as aulas se tornassem mais divertidas. E, principalmente em matemática, tentava sempre elaborar um jogo ou uma dinâmica para que, assim, os alunos conseguissem compreender o conteúdo e também sentir-se mais atraídos à matemática, mas era complicado incluir matemática com os temas que foram abordados durante as três semanas (N2). |
(…) a matemática está presente na vida de todos desde o nascer, pois tudo envolve quantidades ou valores de certa forma. Passar para os alunos de uma forma lúdica e que eles compreendam o conceito foi muito bom, pois assim notei que eles gostam da matemática e veem que ela não é tão difícil quanto parece. Espero que a cada dia mais eu consiga me aprimorar sobre todos os assuntos e, principalmente, fazer com que os alunos tenham a mesma fascinação que eu pela matemática (N3). |
A partir do movimento analítico, dialogamos com referenciais teóricos que, em suas pesquisas, abordam os processos de ensino e aprendizagem da matemática nos anos iniciais. Ancorados nesses referenciais, buscamos indicativos de uma pedagogia crítica e histórico-crítica que permite aos educandos autonomia na construção do conhecimento, sendo estes proativos na busca pelo mesmo, com o professor assumindo a postura de mediador da aprendizagem. Desse modo, articulamos, a seguir, o que defendem os estudiosos que discorrem acerca do tema do estudo com os excertos apresentados em cada categoria.
Ensino de conceitos de matemática nos anos iniciais
Apresentamos, neste tópico, os resultados da análise das narrativas, as quais sinalizaram para o ensino dos conceitos de matemática nos anos iniciais. Nesse sentido, discutimos a abordagem realizada pelas normalistas, bem como dialogamos com teóricos que embasam o que é necessário para fundamentar uma boa aula no que se refere aos conceitos no ensino de matemática nesse grau de ensino.
Nos anos iniciais, é fundamental a proposição de atividades lúdicas, pois essas constroem conceitos iniciais necessários para os anos seguintes. Consideramos uma etapa da escolaridade importante para o educando, posto que as atividades propostas nesse período estabelecem o contato com a matemática de uma maneira contextualizada, levando em conta o cotidiano da criança e trabalhando a ludicidade, envolven-do-a com o meio em que habita e propiciando seu desenvolvimento intelectual. Evidenciamos isso na narrativa da N2:
trabalhei o tema "Desenvolvendo atitudes responsáveis"; com isso, trabalhei o valor da responsabilidade e sermos responsáveis com o nosso meio ambiente; dentro da matemática trouxe um jogo feito com copinhos plásticos e palito de picolé, com intuito de ensinar para as crianças "a reutilização de materiais". Foi feito um jogo de multiplicação da tabuada do 3, onde eu colocava uma conta ao lado dos copinhos e os alunos tinham que resolver utilizando os palitinhos.
A partir da narrativa, percebemos que a normalista empreendeu esforços para desenvolver os conceitos matemáticos de maneira interdisciplinar, elaborando temas norteadores que atendiam às habilidades e competências previstas no plano de trabalho. A N2 desenvolveu o estudo da lei do 3 (tabuada) e a N6 explorou a lei do 4 (tabuada) por intermédio do "ditado estourado", ambas com o intuito de despertar o interesse pelos conceitos explorados, sendo desenvolvida a capacidade de resolver e elaborar problemas de multiplicação com os significados de adição de parcelas iguais com dinamismo e de forma descontraída. Segundo Nascimento (2007, p. 30):
Considerar a infância na escola é grande desafio para o ensino fundamental, pressupõe considerar o universo lúdico, os jogos e as brincadeiras como prioridade, definir caminhos pedagógicos nos tempos e espaços da sala de aula que favoreçam o encontro da cultura infantil, valorizando as trocas entre todos que ali estão, em que as crianças possam recriar as relações da sociedade na qual estão inseridas, possam expressar suas emoções e formas de ver e de significar o mundo, espaços e tempos que favoreçam a construção da autonomia.
A N3 realizou o estágio com estudantes do 1º ano dos anos iniciais, os quais estavam na etapa de aprendizagem dos números. Nesse sentido, as aulas ministradas por ela foram mais dialogadas, com atividades dinâmicas e jogos, como a
brincadeira ‘mamãe quantos passos posso dar’, onde trabalho a quantidade dos valores; jogo do bingo, onde eu sorteei os números e eles deveriam achar na sua cartela o par correspondente; enumerei combinados e todos os dias repeti com eles e assim eles entenderam os números.
Para Ocsana Danyluk (2002), que apresentou o conceito de alfabetização, ele
refere-se aos atos de aprender a ler e a escrever a linguagem matemática usada nas primeiras séries da escolarização. Ser alfabetizado em matemática é entender o que se lê e escrever o que se entende a respeito das primeiras noções de aritmética, de geometria e da lógica (p. 14).
Salientamos que a N3 precisou pensar em estratégias metodológicas, recursos didáticos no ensino de matemática e, a partir do lúdico, oportunizar a construção dos conhecimentos numa perspectiva de aprender brincando. Já a N11 trabalhou com o Pré-II – crianças de 5 a 6 anos de idade –, e narra: "trabalhei a apresentação dos números, reforçando aquilo que já possuíam: conhecimento e a escrita dos números; ainda estavam no processo motor da escrita geral, já sabiam identificar os números e suas quantidades, mas não a realizar a escrita de cada". Acerca do letramento matemático, autores problematizam que não se deve apenas aprender o sistema de escrita dissociado da simbologia numérica, bem como a noção de quantidade e suas aplicações no dia a dia; do mesmo modo, o uso de suas funções da leitura e da escrita perpassa por todos os componentes curriculares durante toda a trajetória escolar. Conforme Machado (1990),
os elementos constituintes dos dois sistemas fundamentais para a representação da realidade – o alfabeto e os números – são apreendidos conjuntamente pelas pessoas em geral, mesmo antes de chegarem à escola, sem distinções rígidas de fronteiras entre disciplinas ou entre aspectos qualitativos e quantitativos da realidade (p. 15).
Muitas dificuldades são apresentadas pelos alunos na aprendizagem de frações no Ensino Fundamental. Essas lacunas apresentam-se, também, no Ensino Médio, pois os estudantes não tiveram a base desde os anos iniciais. Problematizamos que, por vezes, os professores desse nível de ensino não têm a formação apropriada e não compreendem todos os significados dos conceitos de frações que podem ser desenvolvidos nos variados contextos. De acordo com Pires (2012, p. 299), "Certamente, as crianças compreendem o que significa ‘metade de uma fruta, de uma folha, de uma quantia em dinheiro’, mas isso não significa que vão lidar com facilidade com as representações dessas ideias". A N4 narra:
Ensinei aos alunos o conteúdo de frações, explicando o conceito utilizando pizzas, onde tivemos que dividir um todo em partes iguais para que cada um dos alunos ganhasse um pedaço de pizza; desse modo os alunos estavam animados e participativos; nas atividades colaboram, mostrando compreensão do conteúdo ao realizarem as atividades sobre frações e jogando o jogo da memória das frações.
O ensino de frações nessa etapa de escolarização tem muita importância. Corroborando o que leciona Pires (2012), os números racionais apresentam diferentes representações na expressão de medidas e índices comparativos. Embora estejam mais presentes no cotidiano dos alunos na representação decimal, podemos perceber as frações, por exemplo, nas receitas culinárias, como uma ou mais partes do todo.
Reconhece-se a importância e a necessidade do aprendizado dos números racionais, quando se olha para a história e para o processo de desenvolvimento de diferentes povos, atentando-se ao uso, ao processo de formalização. Esse pode ser um caminho válido, porque para facilitar a aprendizagem deste tema, apresenta-se a experiência compartilhada com outras culturas (Valera, 2003, p. 58).
Evidenciamos que a N4 utilizou uma maneira diferenciada para a abordagem dos conceitos de frações, pois, de forma contextualizada, o aluno atribui significado ao que está sendo explorado pela estagiária, desenvolvendo competência de interpretar o que aprendeu. Muitas vezes, os professores utilizam métodos ultrapassados para a construção dos conceitos, prejudicando a aprendizagem dos educandos, que, por isso, demonstram desinteresse quando são usados métodos tradicionais.
Diante do exposto, constata-se que os cursos de formação devem, na Didática da Matemática, apresentar possibilidades para a construção do conhecimento dos conceitos de maneira contextualizada. Para Freire (1983a, p. 27), "só aprende verdadeiramente aquêle que se apropria do aprendido, transformando-o em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquêle que é capaz de aplicar o aprendido-apreendido a situações existentes concretas". Nesse sentido, faz-se necessário perceber as transformações socioculturais e estabelecer as relações afetivas, sendo o professor mediador do conhecimento e o aluno sujeito ativo no processo de aprendizagem, gerando formas mútuas de significações e ressignificações.
Experiências narrativas do processo de ensino e aprendizagem
Neste tópico, dialogaremos acerca da formação no Curso Normal e das experiências advindas do processo de ensino e aprendizagem na intervenção de estágio, pois, ao escrever sobre si, rememora-se as vivências, e, nesse processo, emergem reflexões sobre a prática desenvolvida. Ao produzir-se as narrativas e ao se problematizar no âmbito da formação inicial, há uma ruptura das crenças constituídas historicamente nas trajetórias estudantis. Tal ruptura é fundamental para a formação de professores que irão ensinar matemática (Nacarato, 2010).
A formação acadêmica reflete na formação profissional. Quando fazemos aquilo que temos profissionalidade e desempenhamos o ofício com afinco, somos reconhecidos na sociedade. Conforme Souza (2006, p. 15), "o trabalho inscreve-se na minha história pessoal e profissional, trazendo as marcas daquilo que sou, daquilo que pretendo ser e que poderei não ser um dia". De acordo com a N1,
De todas as aulas e atividades eu utilizei métodos aprendidos na disciplina de Didática da Matemática, que é onde aprendemos como trabalhar matemática em sala de aula, mas também, todo o empenho que tive foi baseado em tudo que aprendi nesses quatro anos de Curso Normal, eu não deixei de usar nada que eu percebi que precisava para um bom desenvolvimento como docente. Por isso, acho positivo ter todo um preparo antes de encarar uma turma e se tornar professor, pois é um desafio.
Evidenciamos que as disciplinas cursadas durante o percurso formativo da N1 contribuíram para sua constituição enquanto professora. Salienta-se, ainda, que a disciplina de Didática da Matemática, voltada à proposição de metodologias diferenciadas e recursos didáticos para o desenvolvimento de práticas pedagógicas, ou seja, a "matemática para ensinar" (Valente, 2017), contribui para pensar, elaborar e construir materiais pedagógicos para desenvolver o ensino e a aprendizagem de conceitos nos anos iniciais.
Nas práticas que fiz em muitas turmas dos anos iniciais, o conteúdo de matemática sempre foi passado aos alunos de forma maçante em que os alunos não gostavam de calcular ou de resolver operações, e aprendemos no Curso Normal que para que os alunos tenham o aprendizado significativo do conteúdo eles precisam de atividades lúdicas que os envolvem; assim nas intervenções em que os ensinei um conteúdo de matemática procurei pensar um modo que os alunos realmente aprendam de forma prazerosa que os instigasse a querer aprender cada vez mais e a gostar da matemática (N4).
Conforme Dante (1987), as aulas para o ensino da matemática ainda se reduzem às aulas expositivas, com métodos de memorização, seguidas da proposição de repetidos exercícios com o argumento de que a "repetição leva à memorização".
Em todos os níveis de ensino, é comum que professores e textos resolvam algum "exercício-modelo" mostrando como se faz, pedindo em seguida que o estudante resolva dezenas de problemas semelhantes. Por "falta de tempo" preferem o "é assim que se faz" ao invés de deixar que os estudantes pensem por si próprios, experimentem as suas ideias, deem ouvidos à sua intuição. Melhor seria se o professor fosse mais um orientador, um incentivador, um burilador das ideias e iniciativas dos estudantes (Dante, 1987, p. 32-33).
A N5 narra que gosta de trabalhar com a matemática nos anos iniciais, pois percebe que o letramento matemático é importante nesse nível de ensino, por isso a relevância de considerar o desenvolvimento de atividades que tenham significado para que os educandos compreendam os conceitos explorados pelo professor. Nesse sentido, "para atingir mais êxito nas atividades preciso focar no conteúdo e levar atividades práticas e lúdicas, para que seja uma atividade significativa, que todos compreendam e possam passar de ano sem dúvidas" (N5). Consoante essa mesma perspectiva, a N6 ressalta que procurou "proporcionar atividades diferenciadas na área de matemática; tentei elaborar e planejar aulas que fossem significativas para meus alunos".
Já a N8 narra:
Procurei sempre propor atividades que fossem significativas aos meus alunos, as quais os fizessem refletir e analisar. Também propus atividades lúdicas, que envolvessem o jogo, a brincadeira e muitas dinâmicas, pois pude perceber que meus alunos encontravam bastante dificuldade em manter a concentração em atividades diferenciadas, portanto, procurei trabalhar isso neles, os fazendo progredir neste aspecto. (…) Pude observar em meus alunos como sentiam-se instigados com as atividades que eu os propus, a forma com que recebiam e participavam das atividades, deixava claro o seu interesse. São alunos muito dispostos a aprender, demonstram bastante gosto pela disciplina de matemática, alguns com mais facilidade e outros com mais dificuldades, assim como, nas demais disciplinas.
O ensino e a aprendizagem nos anos iniciais, segundo as narrativas das normalistas, devem acontecer de forma significativa. Defendemos que é nessa modalidade de ensino que os alunos terão contato com a matematização dos elementos que constituem o mundo à nossa volta. Por isso a importância de abordar os conceitos matemáticos por meio da ludicidade, com o intuito de despertar o interesse do alunado pelo processo de aprender esse componente curricular que perpassará todas as etapas da vida escolar do educando.
A N9, então, relata: "acredito que somos constituídos como profissionais qualificados através de nossas vivências e práticas cotidianas (…) das experiências adquiridas através do Curso Normal como normalista para formação de professores". No que se refere à prática, Freire (1983b) compreende que não basta conhecer o mundo, mas faz-se necessário transformá-lo. Já a compreensão de "conhecer", para ele, não é um ato passivo do homem ante o mundo; é, antes de tudo, conscientização; envolve intercomunicação e intersubjetividade, que pressupõem a educação dos homens entre si mediatizados pelo mundo, tanto da natureza quanto da cultura.
A prática não pode ater-se à leitura descontextualizada do mundo. Ao contrário, vincula o homem nessa busca consciente de ser, estar e agir no mundo num processo que se faz único e dinâmico, melhor dizendo, é apropriar-se da prática dando sentido à teoria. A práxis, porém, é ação e reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo. Portanto, a função da prática é a de agir sobre o mundo para transformá-lo (Freire, 1983b, p. 40).
A narrativa da N10 suscita a utilização de materiais concretos no processo de ensino e aprendizagem que auxiliem o professor a alavancar o ensino de matemática numa perspectiva de uma aprendizagem significativa, pois a manipulação desses instrumentos propicia ao educando avanços na aprendizagem e possibilita sanar dificuldades, fortalecendo a prática docente. Ela relata que
Ao ensinar matemática, um aspecto positivo que deve ser considerado é utilizar sempre materiais concretos, pois percebi a necessidade do aluno visualizar para compreender a explicação; em meu ponto de vista ele precisa, inicialmente, vivenciar a prática para depois aprender a teoria.
A estagiária destaca, também, que o ensino de matemática deve ser pensado de maneira divertida nos anos iniciais, pois, de acordo com ela,
Ao ensinar matemática para as crianças, não estamos apenas ensinando números, estamos as ensinando a realizarem uma leitura de mundo e ver quais as opções de resoluções disponíveis. É necessário que os professores transmitam a matemática de uma forma divertida como um mercadinho de brinquedo, uma padaria ou outros diferentes espaços em sua sala. Deixar nossos alunos praticarem é fundamental para o desenvolvimento de seus raciocínios (N10).
Já a N12 salienta:
Sobre o ensino da matemática nos anos iniciais é de grande importância para os alunos, pois ela desenvolve o pensamento lógico e é essencial para construção de conhecimentos em outras áreas, além de servir como base para as séries posteriores.
Essa escrita corrobora as "preocupações com o compreender a matemática, com o fazer matemática, com as interpretações elaboradas sobre os significados sociais, culturais e históricos da matemática" (Bicudo, 1993, p. 20-21).
Por fim, evidenciamos nas produções narrativas indícios da pedagogia crítica com base em Freire (1987), pois as normalistas, nos seus planejamentos, buscaram desenvolver os conceitos de matemática com metodologias diferenciadas por meio do lúdico, a fim de despertar o prazer pelo estudo deste componente, trabalhando com a realidade dos estudantes e levando em conta aspectos socioeconômicos e histórico-culturais do alunado.
Partir das práticas pedagógicas, num movimento de reflexão no processo de ensino e aprendizagem, possibilitou a (re)configuração da ação docente e a constituição do ser professor. De acordo com Freire (1987, p. 48), "Não existe educação neutra. A educação é uma construção e reconstrução contínua de significados de uma realidade. Ela prevê a ação do homem sobre essa realidade (…) portanto, sua ação e reflexão podem alterá-la, relativizá-la ou transformá-la".
Diante do exposto, entendemos que, na etapa de escolarização da criança, o imaginário fica em evidência, por isso a importância da proposição de atividades lúdicas pelos educadores que propiciem o desenvolvimento global dos sujeitos da aprendizagem no dia a dia da criança nas instituições de ensino. Assim, é possível a ressignificação das práticas pedagógicas conforme as potencialidades e limitações do alunado, propiciando situações de aprendizagem numa perspectiva de aprender brincando, mas que se torne significativa e prazerosa e possibilite um movimento de interação entre educador/alunos.
Considerações finais
Este texto teve como pretensão analisar, a partir de uma pesquisa, se a produção escrita de narrativas pelas normalistas do Curso Normal de uma instituição da rede estadual de ensino, que realizaram o estágio de docência, possibilitou resgatar vivências do processo de ensino e aprendizagem no componente curricular de matemática. No movimento analítico, percebemos a emergência de experiências advindas das vivências no contexto escolar nas intervenções de estágio nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A partir do pensamento pedagógico para planejar como desenvolver o processo de ensino durante as intervenções de estágio, emergiram inquietações em relação a como proceder para que o processo de aprendizagem, ao ensinar a disciplina por meio da ludicidade na etapa de ensino dos anos iniciais, desperte no aluno o interesse por aprender matemática.
Evidenciamos que, ao experienciar a prática em sala de aula, as futuras professoras estarão se (auto)formando, pois demonstraram perspectivas e limitações de como deve ser um bom planejamento, considerando que este é maleável, levando em conta as particularidades do alunado bem como as potencialidades de (re)pensar, (re)criar e (re)planejar o ensino de matemática nessa etapa importante da formação do aluno que são os anos iniciais e que perdurará por toda sua vida escolar. Nesse sentido, a escrita das narrativas resgata indicativos do ser professor sobre os modos de como ensinar e aprender matemática, as percepções sobre as relações entre os procedimentos metodológicos do ensino da disciplina e a dicotomia entre a teoria e a prática no desenvolvimento de ações pedagógicas no período de estágio.
A partir dos registros escritos pelas normalistas, os resultados mostraram-se favoráveis às transformações que ocorrem na prática de sala de aula, quando o professor deve estar preparado para desenvolver suas aulas e (re)configurar sua ação docente, pois deparamo-nos com alunos imersos num contexto diferenciado. Nos anos iniciais, faz-se necessário o ensino da matemática com o uso da ludicidade, para despertar o prazer pela sua aprendizagem.
Emergiram, durante o desenvolvimento deste trabalho, reflexões que contribuíram para a (auto)formação das normalistas em processo de construção da identidade docente por intermédio das intervenções desenvolvidas nos anos iniciais do Ensino Fundamental. A partir das reflexões advindas da própria prática, foi possível alavancar o desenvolvimento das futuras profissionais da educação, e, nesse movimento, evidenciamos que a escrita reflexiva, por meio dos diários de bordo, possibilitou experienciar o ensino e aprendizagem da matemática nos anos iniciais, assim como os significados atribuídos ao que foi vivenciado nesse processo durante o estágio de docência para a prática enquanto futuras professoras.