Introdução
O propósito do artigo é explicitar elementos teóricos para contribuir com a constituição de uma didática decolonial que se desdobre do Pensamento Decolonial (compreendido como atitude de resistência e como razão3) e mais precisamente de pedagogias decoloniais.
Contudo, de um lado, é preciso deixar claro, para justificar o propósito do artigo, que o Pensamento Decolonial, no sentido estrito de uma razão, é uma construção recente, que tem como um dos marcos a constituição da rede modernidade/colonialidade nos anos 1990, que “[...] reúne nomes como Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Catherine Walsh, Ramón Grosfoguel, Santiago Castro-Gómez, Edgardo Lander, Arturo Escobar, Nelson Maldonado-Torres, entre outros” (MOTA NETO, 2016, p. 17, grifo nosso).
Por outro lado, são recentes os processos de construção de pedagogias decoloniais como resultados praxiológicos do Pensamento Decolonial. Nesse âmbito, têm-se as contribuições de Walsh (2009), Palermo (2014) e Mota Neto (2016). Mais recentes ainda, são os desdobramentos para os campos da Pedagogia como ciência, no sentido por exemplo, de uma didática decolonial. A esse respeito, encontrou-se apenas a produção de Ramalho (2017) que aborda um diálogo entre as pedagogias decoloniais e a didática do ensino de História, no contexto argentino.
Nesse estudo, o autor traz como contribuição três indicativos para a constituição de uma didática decolonial com foco para o ensino de história: deixar para traz o ensino da história “única” e de narrativa universal, que ignora e invisibiliza sujeitos e experiências, sobretudo fora do eixo europeu, lembrando que o nosso está repleto de histórias de libertação; potencial para compreender nossa história a partir dos diálogos sul-sul; e valorizar outras experiências de “modernidade” e ouvir histórias silenciadas para quebrar discursos e práticas racistas (RAMALHO, 2017).
No contexto brasileiro, embora a produção de uma abordagem crítica de didática como “didática fundamental” surja desde a década de 1980, é apenas na primeira década dos anos 2000 que se passa a relacionar a didática com o embasamento teórico de Catherine Walsh, intelectual pertencente à rede modernidade/colonialidade (OLIVEIRA; CANDAU, 2010), o que enseja mais recentemente o desenvolvimento de uma Didática Crítica Intercultural (CANDAU, 2018).
Nesse sentido, considerando-se que o Pensamento Decolonial e a Pedagogia Decolonial estão em pleno processo de construção; que são recentes as produções científicas sobre uma didática decolonial; que no âmbito de Brasil há produções científicas de didática que se relacionam com autores que advogam o pensamento decolonial, levanta-se a seguinte questão: que elementos teóricos podem contribuir para a constituição de uma didática decolonial?
Metodologicamente, o artigo resulta de uma pesquisa de abordagem qualitativa, bibliográfica, ancorada em elementos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1991) com base em produções sobre a Didática Fundamental, a Didática Crítica Intercultural, o Pensamento Decolonial e as pedagogias decoloniais.
Por fim, longe de se esgotar a temática, a presente pesquisa demonstra com análise conceitual que é preciso avançar na construção de uma didática decolonial sensível aos sujeitos e grupos subalternizados pelo padrão de poder da colonialidade, mantendo o diálogo com antecedentes teórico-práticos, como a própria educação popular, a educação do campo, a educação dos movimentos sociais, a educação das minorias étnicas, entre outras.
Metodologia
Ao se considerar que o tema do artigo é a didática em perspectiva decolonial, optou-se por ancorar epistemologicamente a presente pesquisa no âmbito do Pensamento Decolonial/decolonialidade, que, como será destacado na seção posterior, assume duplo papel: o de suporte compreensivo do encobrimento pelo dominador da alteridade dos sujeitos “não-europeus” desde o ano de 1492 - e de toda a diversidade étnica que conforma o mundo para além do eurocentrismo - mas também como o de promotora/libertadora de modos “outros” de existir, colocando-se contra o projeto da colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial.
Metodologicamente, o presente estudo se situa no âmbito da abordagem qualitativa, com base na pesquisa bibliográfica. Sobre a Didática, foram analisadas produções científicas de Candau, que formulou os fundamentos da Didática Fundamental e atualmente defende a Didática Crítica Intercultural. Escolha que se deu porque esta última proposição de didática se aproxima da decolonialidade.
As análises das produções bibliográficas foram sistematizadas com base em categorias analíticas e em categorias temáticas, elementos próprios da Análise de Conteúdo (BARDIN, 1991). Nesse sentido, para efeito deste estudo, ao se compreender a Didática como campo do conhecimento em Pedagogia e como disciplina presente nos cursos de formação de professores (HEGETO, 2014), tendo clareza de que: “O objeto da didática é o processo ensino-aprendizagem” (CANDAU, 1996, p. 13), que por vez, “é um processo em que está sempre presente, de forma direta ou indireta, o relacionamento humano” (p. 13), adotaram-se as seguintes categorias analíticas: Didática Fundamental (CANDAU, 1996) e Didática Crítica Intercultural (CANDAU, 2018).
Em relação à decolonialidade, apresentam-se as principais categorias analíticas: colonialismo (QUIJANO, 2010); colonialidade (DUSSEL, 1993; MIGNOLO, 2008); projeto de modernidade eurocêntrica (DUSSEL, 1993); atitude decolonial e razão des-colonial (MALDONADO-TORRES, 2008), decolonialidade (MALDONADO-TORRES, 2008; MIGNOLO, 2008); transmodernidade (DUSSEL, 1993) e pedagogias decoloniais (WALSH, 2009; MOTA NETO, 2016).
Por fim, os dados das leituras foram organizados em fichamentos e em quadros esquemáticos e analisados com base em três categorias temáticas que dão nome às seções 3, 4 e 4.1, do presente do artigo.
Pensamento decolonial: caracterização histórica e definição de categorias centrais
Essa seção defende a seguinte ideia central: “Os povos originários das Américas tinham seus processos de socialização, educação, formação de saberes, modos de pensar e de pensar-se. Tinham suas leituras de seus mundos e de si” (ARROYO, 2014, p. 155). Contudo, esses processos e leituras não foram considerados pelos povos dominadores, desde o ano de 1492, com a conquista das Américas, ao mesmo tempo em que se “encobriu” a alteridade do “outro” não-europeu, o índio (DUSSEL, 1993), e, mais atualmente, toda diversidade étnica e cultural que não proceda do “centro” euro-norte-americano (DUSSEL, 2012).
Para sustentar essa ideia central, realiza-se uma caracterização histórica do pensamento decolonial, assim como são destacadas categorias relevantes para sua compreensão: o colonialismo, a colonialidade e o projeto de modernidade eurocêntrica - com seu conteúdo semântico positivo como razão emancipadora e seu conteúdo semântico negativo: o mito sacrificial, o mito da modernidade.
No século XV, algumas nações da Europa, como Espanha, Portugal, França, Inglaterra e Holanda passam a expandir seus territórios e a engendrar uma forma de dominação e de exploração não apenas de territórios, mas de outros povos. Este fato histórico-político ficou conhecido como Colonialismo, que de acordo com Quijano (2010, p. 84), trata-se de “[...] uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cujas sedes centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial”.
O Colonialismo, como estrutura de poder já extinta na história, ensejou o surgimento da colonialidade como conjunto de forças interiores, que mantêm hierarquias distintas sobre expressões existenciais entre povos dominados e dominadores, que se sustentam em uma classificação étnica/racial. Nesse sentido, a colonialidade surge na América e a partir dela se expande, mundializa-se e se constitui em um dos elementos de dominação do capitalismo (QUIJANO, 2010).
Do Colonialismo e da colonialidade se desdobra outro fator determinante para o domínio europeu: a modernidade. Dussel (1993; 2000) afirma haver duas concepções de modernidade. A primeira é a concepção de modernidade “eurocêntrica”, a indicar que fenômenos intraeuropeus, datados a partir do século XVI, constituem os acontecimentos históricos-chave para a implantação da subjetividade moderna, como é o caso da expansão marítima de Portugal e Espanha (DUSSEL, 2000).
A outra concepção de modernidade - base crítica desse trabalho - é demarcada por um fato histórico que de antemão a faz sair da circularidade dos acontecimentos intraeuropeus. Trata-se da “descoberta” das Américas, em 1492, pois a partir desse marco mundial a Europa se coloca como “centro” e constitui as outras culturas como suas periferias. Esse fato proporciona a organização de um mundo colonial e o usufruto de suas “vítimas” (povos originários conquistados, violentados e colonizados) em nível pragmático e econômico. Por isso, para Dussel (1993), o ano de 1492 é a data de nascimento da modernidade.
Na perspectiva de Dussel (1993), essas concepções de modernidade apresentam dois conteúdos semânticos. O primeiro é seu conteúdo fundamental e positivo, isto é: a modernidade como emancipação racional, que é um esforço da razão como processo crítico, que abre à humanidade as portas de um novo desenvolvimento histórico do ser humano. O segundo é seu conteúdo semântico secundário e negativo, que se refere à modernidade como justificativa de uma práxis irracional de violência: o irracionalismo moderno.
Esse segundo conteúdo semântico sustenta o “mito da modernidade”, compreendido como um processo de sete momentos, a partir de uma releitura de Dussel (1993): (1) sustenta-se uma posição ideologicamente eurocêntrica de que a civilização moderna é mais desenvolvida, superior; (2) sua superioridade a “obriga” - como exigência moral - a desenvolver aos mais primitivos, rudes, bárbaros, isto é, os povos conquistados; (3) a Europa se coloca como paradigma de desenvolvimento (falácia desenvolvimentista); (4) a violência como “guerra justa” se impõe aos povos conquistados que resistem ao processo civilizador; (5) a civilização moderna eurocêntrica interpreta a violência como ato inevitável no sentido próximo de um “sacrifício salvador”; (6) os povos conquistados são culpados pela violência, a guerra justa - a subjetividade moderna eurocêntrica se coloca inocente e como emancipadora da culpa de suas próprias vítimas; (7) por fim, apresenta-se a violência como “os custos” da modernização dos povos “atrasados” (imaturos), das raças escravizadas, do sexo feminino apresentado como frágil etc.
Dando sequência à trama conceitual, cabe explicitar um terceiro desdobramento: a decolonialidade. Nas palavras de Mignolo (2008, p. 249, tradução nossa):
O argumento básico (quase um silogismo) é o seguinte: se a colonialidade é constitutiva da modernidade e a retórica salvacionista da modernidade pressupõe a lógica opressiva e condenatória da colonialidade [...], essa lógica opressiva produz uma energia de descontento, de desconfiança, de desprendimento entre aqueles que reagem ante a violência imperial. Essa energia se traduz em projetos de decolonialidade que, em última instância, também são constitutivos da modernidade.
Portanto, a decolonialidade surge como energia de resistência no sentido dialético-material ante à colonialidade e à modernidade com mito sacrifical. Essa definição de decolonialidade fundamenta-se na materialidade das vítimas negadas que, tomadas por uma postura crítica, buscam afirmar suas vidas ante o projeto de morte da modernidade/colonialidade, desde o ano de 1492.
Nessa lógica, Maldonado-Torres apresenta a atitude “des-colonial” como conceito apropriado a desvelar o sentido material da decolonialidade como energia de resistência. Para o autor:
A atitude des-colonial nasce quando o grito de espanto ante o horror da colonialidade se traduz em uma postura crítica ante o mundo da morte colonial e em uma busca pela afirmação da vida daqueles que são mais afetados por tal mundo (2008, p. 66-67, tradução nossa).
Contudo, o pensamento decolonial passa a ganhar mais contundência teórica e epistemológica apenas por volta dos anos 1990, com a constituição da rede modernidade/colonialidade, que é caracterizada por Oliveira e Candau (2010, p. 17) da seguinte maneira: “O grupo é formado predominantemente por intelectuais da América Latina e apresenta caráter heterogêneo e transdisciplinar”. Este grupo mantém diálogos e atividades acadêmicas, tendo como foco a construção de uma sociedade não eurocentrada, em relação ao projeto de civilização.
A esse ponto do artigo, cabe destacar que a decolonialidade se configura não apenas como energia de resistência (atitude decolonial), mas também como razão “des-colonial”, isto é, uma postura ético-política e teórica que, ao se opor à mentira e à hipocrisia moderna colonial, enfoca novas bases para o conhecimento e, sobretudo, busca caminhos para um humanismo de reconhecimento das alteridades em nível planetário (MALDONADO-TORRES, 2008).
O pensamento decolonial - como energia de resistência e como razão “des-colonial” - está para além de ser representado apenas por intelectuais. De fato, o pensamento decolonial opera por mão dupla: as expressões de luta e resistência contra a modernidade/colonialidade e as elaborações teóricas de intelectuais, sobretudo, os engajados com a porção sul do planeta.
Nesse sentido, têm-se as pedagogias decoloniais como expressões de luta e resistência, mas também como elaborações teóricas que se desdobram da decolonialidade, conforme aponta Walsh (2009 p. 27):
[...] pedagogias que dialogam com os antecedentes crítico-políticos, ao mesmo tempo em que partem das lutas e práxis de orientação decolonial. Pedagogias que [...] enfrentam o mito racista que inaugura a modernidade [...] e o monólogo da razão ocidental; pedagogias que se esforcem por transgredir, deslocar e incidir na negação ontológica, epistêmica e cosmogônico-espiritual que foi, e é, estratégia, fim e resultado do poder da colonialidade.
Portanto, a pedagogia decolonial é uma denominação genérica dada às pedagogias críticas que, ao se alinharem praxiologicamente ao pensamento decolonial, transgridem às inúmeras expressões da colonialidade e da modernidade como mito sacrificial.
Nessa direção, Mota Neto (2016) também expressa uma definição de pedagogia decolonial que tem sua identidade ancorada na práxis da luta contra a colonialidade/“modernidade”, que se dá por meio de processos de formação humana, tendo em vista a construção de uma sociedade justa, solidária, livre e amorosa:
[...] a pedagogia decolonial refere-se às teorias-práticas de formação humana que capacitam os grupos subalternos para a luta contra a lógica opressiva da modernidade/colonialidade, tendo como horizonte a formação de um ser humano e de uma sociedade livres, amorosos, justos e solidários (MOTA NETO, 2016, p. 318).
Nota-se que em ambas as definições há em comum o sentido da resistência como práxis humana contra a colonialidade/“modernidade”. Nesse sentido, cabe destacar a relação entre estas definições de pedagogia decolonial e seus desdobramentos para uma didática decolonial no contexto brasileiro.
Por uma didática decolonial: contribuições da didática crítica intercultural para a constituição de um mundo “outro”
Candau (1996) destaca que dos anos 1960 a 1970 a didática foi abordada com ênfase no tecnicismo, com base no pressuposto da neutralidade. Dos anos 1970 a 1980, a ênfase se deu na dimensão política, que é inerente a toda e qualquer prática pedagógica, mas com negação da dimensão técnica. É nessa conjuntura que a autora afirma a confluência dialética do técnico e do político a ser trabalhada conscientemente rumo a uma didática fundamental.
Para tanto, essa perspectiva de didática apresenta a seguinte configuração:
A perspectiva fundamental da Didática assume a multidimensionalidade do processo ensino-aprendizagem e coloca a articulação das três dimensões, técnica, humana e política, no centro configurador de sua temática.
Procura partir da análise da prática pedagógica concreta e de seus determinantes.
Contextualiza a prática pedagógica e procura repensar as dimensões técnica e humana, sempre “situando-as”.
Analisa as diferentes metodologias explicitando seus pressupostos, o contexto em que foram geradas, a visão de homem, de sociedade, de conhecimento e de educação que veiculam.
Elabora a reflexão didática a partir da análise e reflexão sobre experiências concretas, procurando trabalhar continuamente a relação teoria-prática.
[...] parte do compromisso com a transformação social, com a busca de práticas de pedagógicas que tornem o ensino de fato eficiente [...] para a maioria da população. Ensaia, analisa, experimenta. [...] Promove o trabalho em comum de professores e especialistas. Busca as formas de aumentar a permanência das crianças na escola. Discute a questão do currículo em sua interação com uma população concreta e suas exigências, etc. (CANDAU, 1996, p. 21).
Contudo, a partir dos anos 1990, tendo-se a conjuntura negativa das políticas neoliberais, inclusive para a educação, acrescenta-se a essa perspectiva de didática fundamental alguns pontos emergentes “como os relativos ao cotidiano escolar, ao saber docente, e às relações entre escola e cultura” (CANDAU, 2018, p. 9), sendo “[...] a primeira vez que esta temática emerge na nossa produção sobre a didática” (p. 9).
Portanto, a didática para Candau consiste em uma didática crítica que se consolida como uma das mais influentes referências, desde os anos 1980, sobretudo porque traz em seu bojo princípios de reconhecimento e valorização do sujeito como educando, como a categoria multidimensionalidade, a análise da prática pedagógica em sua concreticidade e, considerando seus determinantes estruturais e superestruturais, a contextualização, a análise filosófico-educacional dos pressupostos da prática educativa, a valorização da relação entre teoria e prática, o compromisso assumido em favor da transformação social, a ênfase no trabalho coletivo entre os profissionais da educação, o interesse para com a permanência com qualidade das crianças no ambiente escolar e, fundamentalmente, aborda o currículo em sua interação com a população, compreendida em suas necessidades materiais.
Portanto, desde os anos 1990 essa perspectiva de didática passa a integrar criticamente a relação entre escola e cultura(s). Período marcado pela criação do Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s), conforme assevera a autora:
É importante salientar que em 1996, surge o GECEC - Grupo de Estudos sobre Cotidiano, Educação e Cultura(s), vinculado ao Departamento de Educação da PUC-Rio, que coordenamos e através dele vimos desenvolvendo sistematicamente pesquisas que aprofundam desde diferentes pontos de vista estas relações (CANDAU, 2018, p. 11).
Nos anos 2000, Candau (2001), ao participar da Mesa: “20 anos de ENDIPE”, apresenta uma agenda de trabalho. Primeiramente, afirma que a construção da didática a partir do início dos anos 1980 esteve alinhada à perspectiva crítica. Situa essa produção científica sobre didática como parte da modernidade no sentido mesmo de horizontes utópicos e metanarrativas.
Certamente este universo pode ser identificado como característico da modernidade, enquanto enfatiza a capacidade dos indivíduos situarem-se criticamente diante da realidade, exercerem sua responsabilidade social e construírem o mundo e a história a partir de um horizonte utópico baseado na liberdade, na igualdade e na racionalidade (CANDAU, 2001, p. 152).
Nesses termos, baseada em uma filosofia oriunda do centro da geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, 2014), a autora passa a adotar a abordagem da crítica pós-moderna sobre pretexto de englobar uma pluralidade de abordagens e enfoques para que se repense a pedagogia e a didática, sem perder de vista a criticidade e o foco na categoria cultura(s):
Portanto, se trata de trabalhar as possíveis articulações e de, sem negar o horizonte emancipador da perspectiva crítica, incorporar novas questões que emergem da perspectiva pós-moderna, como as relativas à subjetividade, à diferença, à construção de identidades, à diversidade cultural, à relação saber-poder, às questões étnicas, de gênero e sexualidade etc. A categoria cultura é, sem dúvida, central nesta perspectiva (CANDAU, 2001, p. 153).
Com base na crítica pós-moderna, própria da hegemonia epistêmica do centro do sistema-mundo (DUSSEL, 2000) a autora atualiza seu referencial de didática crítica, incorporando cada vez mais as categorias cultura e cotidiano escolar como meios para a reinvenção da educação escolar e da didática.
No sentido positivo de constante reinvenção teórico-prática, ainda nos anos 2000, a autora passa a ter contato com o referencial da rede modernidade/colonialidade, por meio de atividades acadêmicas com Catherine Walsh, integrante da rede:
Em outubro de 2007, realizamos um seminário presencial, no Rio de Janeiro, com a professora Catherine Walsh, em que discutimos e aprofundamos a perspectiva desenvolvida pelo grupo “Modernidade/Colonialidade”, especialmente em suas relações com a educação (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 21).
Ao incorporar a interculturalidade crítica abordada por Walsh (2009), Candau e parceiras de pesquisa passam a desenvolver/construir uma didática na perspectiva multi/intercultural (CANDAU; KOFF, 2006; CANDAU; LEITE, 2007), perspectiva essa assumida mais recentemente como “Didática Crítica Intercultural” (CANDAU, 2018), que se alicerça em três teses fundamentais:
A educação escolar, configurada a partir da modernidade, está instada a ser “reinventada” para enfrentar as questões atuais de um mundo complexo, desigual, diverso e plural.
A perspectiva crítica da Didática, que teve um amplo e significativo desenvolvimento no nosso país, especialmente a partir dos anos 80, está hoje desafiada por questões que exigem novos desenvolvimentos, buscas, preocupações e pesquisas.
É a partir do enfoque intercultural que apostamos na construção deste processo de ressignificação da Didática (CANDAU, 2018, p. 111).
Note-se que essa perspectiva de didática mantém sua base crítica proveniente dos anos de 1980 e se centra na interculturalidade como elemento principal para desenvolver/construir perspectivas de didática que visem responder às demandas de um mundo complexo, desigual, diverso e plural, de acordo com o referencial da pós-modernidade eurocentrada, que se sustenta a autora.
A essa altura, cabe sintetizar que a interculturalidade crítica assumida por Candau a partir do contato com Walsh tem um fundamento: “partir do problema estrutural-colonial-racial e dirigir-se para a transformação das estruturas, instituições e relações sociais e a construção de condições radicalmente distintas” (WALSH, 2009, p. 23).
Nesse sentido, a interculturalidade crítica envolve não apenas lutas por transformações estruturais que envolvem questões de ordem política, social e cultural, mas “se preocupa também com a exclusão, negação e subalternização ontológica e epistêmico-cognitiva dos grupos e sujeitos racializados” (WALSH, 2009, p. 23), além de também se opor criticamente às práticas que naturalizam relações assimétricas de dominação, na medida em que não destacam as desigualdades e as diferenças. Por este motivo, Candau aposta na interculturalidade crítica como um dos meios para ressignificação da didática.
Conforme afirma Candau (2018, p. 131), a Didática Crítica Intercultural assume claramente que: “O importante é reconhecer a existência de diversos saberes e conhecimentos no cotidiano escolar e procurar estimular o diálogo entre eles, assumindo os conflitos que emergem desta interação”. Nesse sentido, viabiliza a incorporação de diferentes universos culturais dentro da escola, que é compreendida como espaço dinâmico, vivo.
Essa proposição de didática não perde a multidimensionalidade contextual de onde ocorrem as práticas educativas, assim como tem claro que entre suas finalidades sociais mantém a criticidade e o comprometimento para com as mudanças sociais, na medida em que pretende “fortalecer perspectivas educativas e sociais orientadas a radicalizar os processos democráticos e articular igualdade e diferença, em todos os níveis e âmbitos, do macrossocial à sala de aula” (CANDAU, 2012, p. 133).
Por uma didática decolonial: alguns elementos teóricos
Uma didática decolonial precisa assumir para si a identidade decolonial no sentido das atitudes de resistência e da razão decolonial que se coadunam contra o senhorio da colonialidade/modernidade eurocêntrica e seu mito sacrificial, sem deixar de lado a luta para estabelecer uma sociedade justa, por meio de insurgências e resistência em nível político, social, cultural, ontológico, epistemológico e cosmogônico-espiritual, como apontam Walsh (2009) e Mota Neto (2016).
Nesses termos, é fundamental assumir a identidade decolonial porque, por exemplo, a despeito do caráter crítico e emancipador da didática proposta por Candau, essa se situa na esteira da interculturalidade crítica que, apesar de se relacionar com a decolonialidade, também apresenta suas próprias distinções em relação a esta, não podendo as duas serem assumidas como sinônimas.
A interconexão entre a interculturalidade crítica e a decolonialidade é assim destacada: “a interculturalidade crítica e a decolonialidade [...] são projetos, processos e lutas que se entrecruzam conceitualmente e pedagogicamente, alentando forças, iniciativas e perspectivas éticas que fazem questionar, transformar, sacudir, rearticular e construir” (WALSH, 2009, p. 25).
Outro elemento importante para a constituição de uma didática decolonial é quanto ao seu objeto de estudo. O que se quer dizer é que uma didática identificada com a luta/projeto decolonial deve, de antemão, abranger - desde o nível antropológico - seu objeto de estudo para não apenas o processo de ensino-aprendizagem na perspectiva da educação escolar e da formação de profissionais da educação. Ou seja, objeto da didática decolonial precisa ser os processos de ensino-aprendizagem que ocorrem nos diferentes espaços educativos (inclusive nas escolas com suas salas de aula), nas quais interagem sujeitos-educandos e sujeitos-educadores (desde educadores populares até profissionais da educação escolar).
Sem essa redefinição radical do objeto de estudo da didática, seus processos formativos e suas pesquisas tenderão ao formalismo e ao distanciamento das reais necessidades dos principais sujeitos a quem se destinam os processos educacionais: o povo, em sua riqueza existencial, histórica, cultural, social e epistêmica.
A didática, sem essa radicalidade quanto ao seu objeto de estudo, deixa de lado a materialidade da decolonialidade como “energia de resistência” dos que sofrem/sofreram de opressão, marginalização e discriminação de diversas de formas, de modo que esses sujeitos tendem a não mais se reconhecer identitariamente na educação escolar, pois, entre outros aspectos, têm desvalorizados seus modos concretos de existir, suas culturas e educações populares, o que, por fim, tende a reproduzir a lógica dominadora da colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial.
Nesse sentido, Joaquim Maria destaca (1996, p. 110-111):
É importante perceber que a pedagogia vigente tem desvalorizado a cultura popular seguindo a lógica dos colonizadores que produziram em terras ameríndias a desvalorização da cultura indígena, negra... e orientando a sua prática a partir da cultura de “centro”. É normal no Brasil um professor pedir aos seus alunos que mencionem alguns exemplos de obras de arte e a resposta será: Monalisa, de Da Vinci, pinturas de Picasso, Sinfonias de Beethoven, etc., e dificilmente fala-se em algo brasileiro.
A base teórico-prática se constitui como o terceiro elemento central para a constituição de uma didática decolonial. Na perspectiva do pensamento decolonial, sobretudo com base em Dussel (1993; 2000; 2012), deixa-se de lado as bases filosóficas eurocêntricas da pós-modernidade porque - como visto anteriormente - a modernidade eurocêntrica é constitutiva do padrão de poder da colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial. Então, factualmente, não se considera uma pós-modernidade se continua atual tal padrão de poder, que inclusive contribui para a manutenção do capitalismo.
O ponto de partida teórico e geopolítico da decolonialidade, então, não é a pós-modernidade, mas a transmodernidade de Dussel (1993), que se ancora fundamentalmente no reconhecimento material e ético-político da alteridade dos sujeitos negados em seus modos concretos de se fazer “no” e “com” o mundo ante o projeto da colonialidade/modernidade e seu mito sacrificial. Pela transmodernidade, não se nega o projeto de modernidade eurocentrada, considera-se sua positividade semântica como razão emancipadora, mas transformando-a em razão libertadora.
Nesse sentido: “É a partir desta abrangência teórica e da exigência de factibilidade de um mundo que inclua o oprimido, a vítima é que a transmodernidade se apresenta como novo projeto de libertação política, econômica, ecológica, pedagógica, religiosa, etc.” (DIAS; OLIVEIRA, 2012, p. 26).
Pela transmodernidade, desde a ética da libertação, o “outro” se revela face a face como “ser” (em termos ontológicos). Considera-se positivamente os modos de existir da diversidade de sujeitos e coletivos estereotipados como incultos, inumanos, bárbaros ou inferiores, por questões de classe social, raça, gênero etc., no bojo de uma sociedade machista, patriarcal e capitalista, mas que se pretende transformadora de todos esses condicionantes desumanizantes da colonialidade/modernidade.
Considerações finais
O artigo objetivou destacar elementos teóricos que contribuem com a constituição de uma didática decolonial. Para tanto, primeiramente se realizou uma caracterização histórica e conceitual do pensamento decolonial e da pedagogia decolonial, para em seguida analisar como tem ocorrido a construção da didática em perspectiva crítica no Brasil.
Tendo-se como referência o legado de Candau, identificou-se que sua proposição teórica se sustenta na produção crítica da Didática, desde os anos de 1980, em marcos da pós-modernidade crítica e, fundamentalmente, na interculturalidade crítica. Considera-se que sua proposição de didática contribui significativamente para o avanço do reconhecimento das alteridades historicamente negadas e silenciadas, mas não se reconhece como decolonial, antes assume a identidade da Didática Crítica Intercultural.
Entre os principais elementos considerados para a constituição de uma didática decolonial, destacam-se: tomar para si a identidade decolonial, o que implica em reconhecer o padrão de poder da modernidade/colonialidade e seu mito sacrificial; a partir de uma pedagogia decolonial, redefinir o objeto de estudo da didática para todo processo ensino-aprendizagem a ocorrer em diferentes espaços educativos, inclusive os escolares; também se considera assumir a transmodernidade (e não a pós-modernidade, por mais crítica que pareça) como um ponto de partida teórico da didática, justamente por se relacionar ao projeto de libertação das amarras da colonialidade/modernidade.
Conclui-se que o presente artigo apenas apresenta algumas contribuições em nível teórico para se constituir uma didática decolonial. Cabe avançar no desenvolvimento desta didática das seguintes formas: ouvindo sujeitos e grupos subalternizados pelo padrão de poder da colonialidade; percebendo as atitudes de resistência de sujeitos e grupos sociais diversos; dialogando com movimentos críticos de matriz decolonial como a própria educação popular e a educação do campo; e analisando criticamente contributos de autores como Enrique Dussel, que possui uma gama de categorias conceituais que precisam ser melhor explicitadas e confrontadas com experiências decoloniais.