Introdução
No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, não havia muitos autores nacionais escrevendo e publicando livros de História Natural para o ensino secundário. Nessa época, a maioria dos manuais escolares utilizados era de origem francesa (LORENZ, 1986) e, nesse contexto, o médico e professor pernambucano Valdemar de Oliveira se destacou entre os poucos autores nacionais a publicar suas obras.
Valdemar de Oliveira (1900-1975) se formou em Medicina (1923) e iniciou sua vida profissional trabalhando em clínicas, hospitais e escolas do Recife (PE). Também circulou em espaços artísticos, literários e científicos, atuando em teatro, escrevendo para jornais e lecionando nas principais instituições de capital pernambucana (OLIVEIRA, 1966). Ensinou Higiene na Faculdade de Medicina do Recife (1928), Ciências Físicas e Naturais na Escola Normal Oficial (1935), História Natural no Ginásio Pernambucano (1936) e Botânica na Faculdade de Filosofia de Pernambuco (1952).
Valdemar de Oliveira manteve contato com os mais destacados intelectuais de sua época, construindo afinidades políticas, institucionais e culturais por meio de cruzamentos de ambientes comuns, formando uma ampla estrutura de sociabilidade (sensuMARENDINO, 2009). Em 1923, por indicação de Amaury de Medeiros1, amigo de infância e diretor do Departamento de Saúde e Assistência (DSA), ocupou cargos públicos sempre relacionados à Higiene, como Inspetor Sanitário e Médico Auxiliar do Serviço de Saneamento Rural. Nomeado pela Secretaria de Justiça e Negócios Interiores, foi Chefe do Serviço Médico Escolar (1929), cargo criado a partir da reforma do ensino em Pernambuco sob influência da Escola Nova e proposta por Antônio Carneiro Leão (1928)2.
Na atuação de Aníbal Bruno3 como Diretor Técnico de Educação, Valdemar de Oliveira participou da reforma do ensino de Pernambuco como Médico Inspetor de Educação Física (1931) e como professor de Pedometria e Higiene na Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico4 (1932).
Intelectuais do movimento da Escola Nova, como Antônio Carneiro Leão e Fernando Simões Barbosa5, apoiaram Valdemar de Oliveira na concepção de um livro de Higiene para atender às necessidades da Escola Normal Oficial de Pernambuco. Em 1928, lançou o seu primeiro livro didático: Hygiene e Puericultura. Em 1938, publicou no mercado local dois livros dedicados ao ciclo complementar do ensino secundário (Biologia Geral, para a 1ª série pré-jurídico, e História Natural e Biologia Geral, para a 2ª série pré-medicina). Em 1939, incentivado por Aníbal Bruno, apresentou o primeiro volume de sua coleção de História Natural para o ensino secundário, publicado e distribuído nas principais capitais do país. Nas décadas seguintes, continuou atualizando e publicando livros didáticos de Higiene e Puericultura, Ciências Naturais, Ciências Físicas e Biológicas, História Natural, Biologia e Zoologia, contribuindo para a manutenção e estabilidade das disciplinas científicas no currículo escolar.
Os livros didáticos são produzidos por grupos sociais que desejam manter suas identidades, valores e tradições (CHOPPIN, 2004). Considerar os sujeitos e os grupos sociais que estão envolvidos na elaboração e circulação de ideias pautadas no currículo escolar pode contribuir para a compreensão da trajetória de uma disciplina escolar (GOODSON, 1997). Acatar o livro didático como um recurso portador de ideologia e estudar a sua materialidade pode identificar características das relações entre o autor e o Estado (BITTENCOURT, 2004; BITTENCOURT, 2017).
Assim, o objetivo deste trabalho foi o de compreender a materialidade dos livros didáticos de História Natural/Biologia de autoria de Valdemar de Oliveira publicados entre as décadas de 1930 e 1960. Essas informações poderão revelar importantes aspectos sobre a trajetória da disciplina escolar História Natural/Biologia no currículo escolar de Pernambuco para o período em questão.
Percurso teórico metodológico
Esta pesquisa documental encontra-se situada no campo do Currículo e da História das Disciplinas Escolares, principalmente ancorada nas discussões estabelecidas por Goodson (1995; 1997; 2013) e Chervel (1990). Assumindo a perspectiva das teorias críticas, Goodson (1995) compreende o currículo como um objeto cultural e político a partir do qual grupos hegemônicos, internos e externos à escola, disputam e legitimam ideias e valores. Para esse autor, as disciplinas escolares não são uma simplificação das ciências de referência, mas construções sócio-históricas resultantes de embates e disputas entre grupos sociais nos processos de seleção de conteúdos, métodos e objetivos de ensino.
Para Chervel (1990), a história de uma disciplina escolar só pode ser elaborada quando forem considerados todos os elementos que fazem parte da sua construção, como professores, diários de classe, alunos, cadernos, provas, programas de ensino, documentos oficiais e livros didáticos. Nessa perspectiva, o livro didático é um material que pode ser utilizado como fonte documental para a realização de pesquisas (CHOPPIN, 2004), principalmente quando está relacionado ao processo de mudança curricular (BITTENCOURT, 2003).
Para contribuir na compreensão da trajetória da disciplina escolar História Natural/Biologia no ensino secundário de Pernambuco, foi realizada uma análise da materialidade em nove livros didáticos de História Natural de autoria de Valdemar de Oliveira. Os livros selecionados compõem quatro coleções produzidas entre 1939 e 1965, conforme observado no Quadro 1. Os livros foram identificados por um código alfanumérico, no qual a letra caracterizou cada coleção (A, B, C e D).
Para entender a materialidade do livro didático foi necessário considerar o contexto social no qual foi publicado, verificando o seu uso, ideias e valores (MUNAKATA, 2012; NOBRE, 2016). Segundo Carvalho (2005), levar em consideração as estratégias que põem os impressos em circulação implica contextualizar o objeto de análise.
Código | Título | Cidade | Editora | Edição | Ano |
---|---|---|---|---|---|
A1 | História Natural para a terceira série ginasial. | São Paulo | Companhia Editora Nacional | 1ª | 1939 |
A2 | História Natural para a quarta série ginasial. | São Paulo | Companhia Editora Nacional | 1ª | 1940 |
A3 | História Natural para a quinta série ginasial. | São Paulo | Companhia Editora Nacional | 1ª | 1941 |
B1 | Biologia Elementar: 1º vol. 2ª Série do Curso Científico | Recife | Editora Livraria Universal | 1ª | 1943 |
B2 | História Natural: mineralogia e geologia. | Recife | [s.n] | n/d | 1947 |
C1 | História Natural: segunda série | São Paulo | Editora do Brasil | 1ª | 1953 |
C2 | História Natural: terceira série | São Paulo | Editora do Brasil | 1ª | 1955 |
D1 | Biologia: curso colegial* | São Paulo | Editora do Brasil | 1ª | 1965 |
D2 | Zoologia | São Paulo | Editora do Brasil | 1ª | 1965 |
Fonte: o autor.
* Obra escrita em co-autoria com o professor Janduhy Moreira Leite.
Considerando que os livros didáticos são compostos por inúmeros elementos constitutivos e produzidos a partir da contribuição de diversos profissionais (CAVALCANTI, 2003), neste estudo foram analisados os prefácios, sumários e introduções dos livros didáticos, como propõe Choppin (2004). Também foi considerada a composição das capas dos livros por manter estreita relação com o seu significado estético e social (MORAES, 2010), assim como o das folhas de rosto, neste caso, também elementos produzidos pelas editoras. Ainda foi necessário considerar que as editoras estabeleciam estratégias regionais, utilizando o prestígio local das autorias dos professores (MOREIRA, 2016) e a influência estatal como limitadora e reguladora dos conteúdos dos livros didáticos (MATOS; SENNA, 2013).
A narrativa textual, imagética e a gráfica, trabalho realizado pelos profissionais da editoração, também foram considerados e contribuíram na apreensão da materialidade, além da, conforme Munukata (2012), a observação das relações sociais em que os livros estão implicados. Segundo Galvão e Batista (2008), para responder questões sobre materialidade e indícios sobre sua relação com as políticas educacionais é necessário recorrer a outros tipos de documentos. Assim, foram consultados arquivos da Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), Arquivo do Ginásio Pernambucano (AGP), Arquivo Histórico do Inep, Conselho Estadual de Educação (CEE) e Hemeroteca Digital Brasileira.
Os livros didáticos manifestam tendências metodológicas de uma época (LORENZ, 1986) e é um suporte dos conhecimentos escolares propostos pelos currículos, com o Estado como agente vinculado à sua produção (BITTENCOURT, 2004), estabelecendo leis e reformas da educação. Assim, para analisar a materialidade dos livros didáticos, as informações obtidas foram cruzadas com as principais reformas da educação para o ensino secundário entre as décadas de 1930 e 1960: Reforma Francisco Campos (BRASIL, 1931), Reforma Gustavo Capanema (BRASIL, 1942), Reforma Simões Filho (BRASIL, 1951) e Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (BRASIL, 1961).
A materialidade dos livros didáticos e a trajetória da disciplina escolar História Natural/Biologia
A História Natural e a influência da Escola Nova
Em 1931, a reforma Francisco Campos (Decreto nº 19.890) rompeu com as estruturas seculares do ensino secundário, tornando o currículo enciclopédico e estabelecendo seriação, frequência obrigatória, sistema de avaliação rígido e um caráter elitista (DALLABRIDA, 2009; ROMANELLI, 1998; SOUZA, 2009). Essa reforma instituiu um ensino dividido em dois ciclos: o fundamental (com cinco anos) e o complementar (dois anos). O plano de estudos perdeu o caráter humanista e apresentou ênfase nas Ciências Naturais (RIBEIRO, 2017). A disciplina História Natural ficou localizada na 3ª, 4ª e 5ª séries do ciclo fundamental.
Assumindo que essa reforma não atendeu às expectativas desejadas, o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova, de 1932, defendia a escola pública como um aspecto importante para o desenvolvimento econômico e cultural do país, propondo a utilização de novos métodos científicos para solução dos problemas educacionais, combinando luta política com as ideias de John Dewey (ROMANELLI, 1998).
Na esteira da Escola Nova, participando diretamente da reforma da educação em Pernambuco, Valdemar de Oliveira escreveu e publicou sua primeira coleção de História Natural por meio da Companhia Editora Nacional (CEN)6. No início da década de 1930, a CEN lançou a Biblioteca Pedagógica Brasileira, uma coleção de livros de caráter nacionalista comprometida com as ideias da reforma da educação (MORAES, 2016), tornando-se o principal meio de divulgação dos métodos e técnicas de ensino (RIBEIRO 2017). Essa coleção era uma espécie de síntese das propostas preconizadas pelo grupo de educadores que pretendiam reformar o ensino brasileiro para preparar as elites e educar as classes populares (TOLEDO, 2001), constituindo um projeto editorial com livros em séries específicas.
Entre elas, a série Livros Didáticos tinha a rubrica do educador Fernando de Azevedo7, cujo nome surgia na folha de rosto de todas as obras como o organizador da série. A CEN adotou o aspecto renovador vinculando o nome de Fernando de Azevedo aos seus objetivos comerciais (MORAES, 2016), que assumiu a função de sugerir outros professores que pudessem escrever os melhores livros de todas as disciplinas do ensino secundário (PONTES, 1988).
Nessa conjuntura, surgiu a Biblioteca Escolar Brasileira, outro projeto da CEN para escrever uma coleção de livros para o ensino secundário, mas sob a direção do professor Aníbal Bruno, responsável por cooptar autores capazes de assegurar à coleção a importância e a tradição cultural de Pernambuco. Assim, em 1934, reconhecendo em Valdemar de Oliveira a grande capacidade como professor de ensino secundário, escritor de livros didáticos e adepto do movimento renovador da educação, Aníbal Bruno fez o convite em nome da CEN para que ele participasse desse novo projeto8. A coleção de História Natural escrita por Valdemar de Oliveira foi paulatinamente publicada entre 1939 e 1941. Na década de 1930, a CEN já disponibilizava no mercado nacional outras duas coleções para a mesma disciplina escolar: Curso Elementar de História Natural, de Cândido de Melo Leitão9, e História Natural, de Carlos Costa10, com os livros apresentando muita semelhança na proposta editorial e na formação de seus autores, todos médicos e professores de importantes instituições de ensino.
Os livros de História Natural escritos por Valdemar de Oliveira possuíam uma unidade editorial, apresentando três volumes com as mesmas características gráficas: História Natural: para a terceira série ginasial (1939), História Natural: para a quarta série ginasial (1940) e História Natural: para a quinta série ginasial (1941), constituindo uma coleção, contribuindo com a proposta de seriação estabelecida no texto da reforma Francisco Campos para o ensino secundário.
Os livros tinham capa dura revestida por uma lâmina de papel liso e impresso com as informações do volume. Em destaque, na parte superior, havia uma faixa verde com informações sobre a coleção e escrita em caixa alta: BIBLIOTECA ESCOLAR BRASILEIRA - SOB A DIREÇÃO DO PROF. ANÍBAL BRUNO, seguido do seu respectivo número. Essa informação corrobora com o argumento de Cavalcanti (2016) de que as editoras utilizavam estratégias regionais recorrendo ao prestígio local dos professores.
De acordo com Toledo (2010, p. 143), "o organizador da coleção funcionava como autoridade legitimadora da seleção empreendida [...], muitas vezes garantia o convencimento do público que a seleção era confiável". Nesse caso, o nome de Aníbal Bruno estampado na capa daria àquela coleção o prestígio necessário, pois ele ocupava o cargo de Diretor Técnico de Educação do Estado de Pernambuco (1930-1937) e adepto da Escola Nova.
A coleção apresentava capa sem ilustrações, com o nome do autor e o título da obra em tipografia desenhada, com letras maiores vazadas em branco sobre um fundo na cor ocre. Segundo Moraes (2016), esse recurso com letras desenhadas era comum nos livros da CEN na década de 1930 e servia para dar destaque aos títulos. Geralmente, a quarta capa apresentava uma lista com outras obras da editora. Esta informação reforça o argumento de Cavalcanti (2016) de que o layout concorre no processo de apropriação e representação das práticas culturais nas quais o livro estava inserido.
Na folha de rosto havia informações sobre a experiência didática do professor em instituições de ensino superior e secundário. Com esse tipo de exposição, Valdemar de Oliveira demonstrava todo o seu conhecimento pedagógico a partir das atividades docentes desenvolvidas em nove escolas de grande prestígio no Recife, conferindo credibilidade aos seus livros. No verso, ainda eram encontradas listas de livros do próprio escritor ou de outros autores pernambucanos pertencentes à BIBLIOTECA ESCOLAR BRASILEIRA, sob a direção do Prof. Aníbal Bruno.
A partir de 1930, à frente da Diretoria Técnica de Educação, Aníbal Bruno destacou-se por realizar a reforma de ensino proposta anteriormente por Antônio Carneiro Leão (ARAÚJO, 2002), "sensibilizando a sociedade para as questões educacionais, qualificando os professores e criando instituições, por meio das quais vivenciou de maneira efetiva os princípios da Escola Nova" (SELLARO, 2009, p. 216). Aníbal Bruno defendia que, para os conteúdos e métodos de ensino, a matéria não deveria aparecer isolada, mas algo como buscado pelo aluno para a realização de uma experiência por ele procurada (SELLARO, 2009). De acordo com Carvalho (2005), é necessário analisar se essa apropriação do discurso “escolanovista” por esses educadores não representava um deslocamento de perspectiva que afiançava seus projetos de intervenção escolar.
No início da próxima década, uma nova Lei Orgânica do Ensino Secundário fez alterações na estrutura e nos conteúdos escolares, desatualizando rapidamente os livros de História Natural de Valdemar de Oliveira.
Biologia ou História Natural?
Mais conhecida por reforma Gustavo Capanema, a Lei Orgânica do Ensino Secundário (Decreto-Lei 4.244/1942) surgiu no contexto do Estado Novo, propondo um currículo com o predomínio de disciplinas de humanidades (SOUZA, 2009; QUEIROZ; HOUSOME, 2018). Essa reforma reestruturou o ensino secundário em dois ciclos: ginasial, com quatro anos de duração, e o colegial, com três anos (nas modalidades clássico e científico). Para o ciclo científico, de acordo com o Artigo 15, a disciplina agora denominada Biologia deveria ser oferecida no 2º e 3º ano. Além de alterar o nome da disciplina escolar, a reforma anunciou mudanças nos seus conteúdos: “No programa de Biologia de 1943, além da presença de conteúdos do Ramo Biológico, permaneceram a Botânica e Zoologia, houve a exclusão da Mineralogia e da Geologia e a inclusão da Higiene” (SANTOS, 2021, p. 85). Porém, antes da portaria ser publicada no Diário Oficial da União, houve uma sugestão do Ministro Gustavo Capanema ao Professor Cândido de Mello Leitão, responsável pela elaboração do programa da disciplina escolar Biologia, para introduzir uma ou duas unidades de Higiene para o curso secundário11. Em carta, Mello-Leitão respondeu ao Ministro que não via inconveniente em incluir "no termo de cada curso, como síntese dos conhecimentos já adquiridos, uma unidade de Higiene, na qual deliberada e especialmente trate o professor dos principais problemas de saúde pública."12 Esse fato corrobora com a perspectiva de Goodson (1995), quando afirmou que a ação política também pode ser delineada por representantes profissionais da escola negociando as decisões. Segundo Munakata (2016), a constituição da disciplina escolar é um processo de conflitos, negociações e acomodações.
A partir desse novo programa de ensino, Valdemar de Oliveira lançou em 1943, por meio de uma gráfica local, o livro Biologia Elementar: Biologia Geral e Botânica. Apresentava capa dura revestida com papel pardo, expondo logo abaixo do nome do autor informações sobre os cargos que ocupava:
Professor da Faculdade de Medicina do Recife (docente), da Escola Normal Oficial de Pernambuco, do Colégio Padre Félix, do Colégio Osvaldo Cruz, do Colégio Joaquim Nabuco, do Ginásio Vera Cruz e da Escola Normal Pinto Júnior (OLIVEIRA, 1943, capa).
Este tipo de informação indicava que Valdemar de Oliveira acumulou experiência em outras instituições além daquelas já divulgadas na coleção anterior. O título Biologia Elementar apresentava-se em destaque, em caixa alta e não havia ilustrações na capa.
A folha de rosto seguiu um padrão com informações semelhantes a da capa, apenas incluindo que se tratava do 1º volume da coleção. No verso da folha de rosto foi apresentada uma lista com sete títulos de outras obras didáticas do próprio autor, incluindo Biologia Elementar: Zoologia, que seria o 2º volume dessa coleção, mas que nunca foi publicado. Existe a possibilidade do autor ter cancelado a publicação por conta da expedição dos novos conteúdos de ensino, como será apresentado a seguir.
Em 1946, houve novamente uma mudança na nomenclatura da disciplina escolar, alterando o nome de Biologia para História Natural, desatualizando outra vez o título de seu livro didático mais recente. Em seguida, a Portaria Ministerial nº 244 (BRASIL, 1946a) expediu os novos programas de História Natural do curso Colegial do ensino secundário, retirando completamente os conteúdos de Higiene. Ainda houve a publicação da Portaria nº 367 (BRASIL, 1946b) que apresentou as instruções metodológicas para a execução do programa de História Natural do curso secundário, estabelecendo especificidades para a área de Mineralogia e Geologia, Botânica, Zoologia e Biologia Geral. Para a Botânica, existia a recomendação de:
[...] limitar cada disciplina ao estritamente essencial, não comprimindo simplesmente o seu conteúdo, mas sim eliminando assuntos de valor secundário, como por exemplo, grande parte da terminologia sobre formas de folhas, caules, flores, frutos e bem assim muitas minúcias de morfologia (BRASIL, 1946b).
Essa recomendação restringia muito os conhecimentos botânicos determinados por Valdemar de Oliveira. Na sua proposta de ensino para o período em questão, havia um volume de conteúdos que se aproximava muito daquele estabelecido para o nível superior. Além de explorar minuciosamente conteúdos como morfologia, diagrama floral e inflorescência, por exemplo, o autor ainda tratava detalhadamente de 17 grupos de angiospermas. Essa informação corrobora com a ideia de Goodson (1995) sobre a trajetória de uma disciplina escolar, que se origina a partir de finalidades pedagógicas e ao longo do tempo assume um perfil mais acadêmico.
A Portaria nº 367 sugeriu que os conteúdos fossem trabalhados com atividades práticas, preferencialmente com material vivo e coletado pelo próprio aluno. Para a parte da Biologia Geral, a portaria sugeriu várias atividades que incluíam práticas de Citologia e uma Genética mais aplicada. Entretanto, o livro Biologia Elementar: Biologia Geral e Botânica não apresentava essas atividades práticas sugeridas. A parte destinada à Genética também não dava conta do que estava estabelecido na respectiva portaria.
Nesse ambiente de reformas, em 1947, Valdemar atualizou mais uma vez o título de seu próximo livro, lançando História Natural: Mineralogia e Geologia. Produzido em uma gráfica local, apresentava um formato muito reduzido (18x12cm), lembrando os compêndios de História Natural do início do século XX. Com apenas 100 páginas, seguia exatamente o programa oficial publicado na Portaria Ministerial nº 244 e estava completamente isolado dos conteúdos de Zoologia, Botânica e Biologia Geral.
A obra deveria compor uma coleção completa para o ensino secundário, conforme as informações estabelecidas na sua apresentação. Entretanto, no início da década de 1950, esse conteúdo seria novamente revisado e voltaria a ser apresentado em um livro didático para a segunda série colegial juntamente com os conteúdos de Botânica.
Higiene como conteúdo da História Natural
Em 1951, ainda no mandato de Getúlio Vargas como presidente, foi empossado Simões Filho no Ministério da Educação. Nessa década, a ampliação do número de vagas para o ensino secundário apontava para a entrada de novos grupos de diferentes camadas sociais na escola, forçando uma nova organização do ensino (ROMANELLI, 1998). Simões Filho propôs uma revisão curricular do sistema de ensino, estabelecendo um roteiro mínimo e dando autonomia para cada estado construir uma parte diversificada. Segundo Ribeiro Júnior e Martins (2018), esse processo de reorganização curricular movimentou diferentes setores sociais interessados na seleção de conteúdos, organização didática e metodológica do ensino.
Essa reforma foi marcada pelo debate sobre as finalidades do ensino entre os defensores das escolas públicas laicas, das escolas confessionais e das outras escolas particulares, implicando na disputa pela manutenção de determinadas visões de mundo (RIBEIRO JÚNIOR; MARTINS, 2018). Dois atos legislativos consolidaram a reforma Simões Filho: a Portaria nº 966 (BRASIL, 1951), que aprovou os novos programas para as disciplinas do ensino secundário, estabelecendo aulas de História Natural para a 3ª série do curso clássico e para a 2ª e 3ª séries do curso científico; e a portaria n.º 1.045 (BRASIL, 1952), que expediu os planos de desenvolvimento dos programas mínimos do ensino secundário.
Após a divulgação dos novos programas, Valdemar de Oliveira publicou História Natural: segunda série (1953) e História Natural: terceira série (1955). Esta coleção tinha a capa dura revestida por uma lâmina de papel na cor laranja e impresso com as informações do volume. Na parte superior, apresentava o nome do autor. No centro, dividido em duas linhas, destacava-se o título em caixa alta, com letras graúdas, brancas, vazadas e dispostas no interior de um retângulo azul escuro. Abaixo, subtítulo seguido do nome da editora. Segundo Moraes (2016), o título dos livros em letras vazadas (brancas) no interior de um retângulo colorido era uma atualização da linguagem e comunicação de modernidade para aquela época.
Na quarta capa, em sua parte inferior, existia uma barra azul evidenciando o nome: COLEÇÃO DIDÁTICA DO BRASIL - SÉRIE COLEGIAL, seguida do preço do livro. Na barra azul, à esquerda, havia um escudo redondo, com a marca da editora no centro e uma frase escrita em latim: PABULUM STUDII ATQUE DOCTRINAE - O alimento da aprendizagem é a doutrina. Essa expressão faz parte do livro De senectute, do filósofo romano Marco Túlio Cícero (114 a. C). Essa frase representava um tipo de conhecimento sofisticado, pois a escrita em latim poderia ser interpretada como símbolo de cultura e erudição ou como elemento acessório das classes dominantes (SANTOS SOBRINHO, 2014).
Na folha de rosto do volume para a segunda série, na parte superior, destacava-se: COLEÇÃO DIDÁTICA DO BRASIL - Série Colegial - Vol. 14, indicando que a obra fazia parte de um projeto editorial mais amplo de publicações pedagógicas daquela empresa e direcionadas para as escolas de ensino secundário. Considerando que a escola é influenciada por agentes extraescolares responsáveis por seu funcionamento, sendo determinante para a escolha dos valores a promover (ROMANELLI, 1998), a Editora do Brasil pode ser avaliada como um desses agentes.
Por meio da Revista da Editora do Brasil S/A (EBSA), periódico lançado em 1947 e voltado para o ensino secundário13 (BRAGHINI, 2010), a empresa manifestava os seus princípios escolhendo aquela posição que melhor representava a sua ideia de sociedade. Por exemplo, a revista se colocava abertamente a favor da escola particular, posicionando-se como anticomunista e partidária à intervenção do exército no governo (BRAGHINI; CAMESKI, 2015). Assim, os livros da Editora do Brasil como objeto do cotidiano escolar, segundo Choppin (2002, p. 14), seriam depositários de conteúdos que, antes de tudo, teriam a função de transmitir às jovens gerações os saberes e as habilidades necessárias à continuidade de uma sociedade, podendo ser, ao mesmo tempo, um instrumento ideológico, pedagógico e socializador.
Ainda na folha de rosto foi apresentada toda a experiência docente do autor: "Professor da Faculdade de Filosofia de Pernambuco (Botânica). Docente assistente da Faculdade de Medicina do Recife (Higiene). Assistente do Instituto de Educação de Pernambuco (Ciências Físicas e Naturais)." Mesmo com o seu contrato encerrado nessa última escola em setembro de 1952, Valdemar de Oliveira manteve a informação de que era professor do Instituto de Educação de Pernambuco (IEP)14, o que daria a necessária credibilidade ao seu livro no que se refere à questão pedagógica. Segundo Silva (2018), os autores da Editora do Brasil, entre os anos de 1930 e 1960, não eram licenciados, mas legitimados por meio de sua atuação nas disciplinas que ministravam em instituições de prestígio. Valdemar se encaixava nesse perfil.
No outro volume dessa coleção, História Natural: terceira série - curso colegial, na folha de rosto, havia uma atualização sobre a experiência do autor como docente do ensino superior: "Professor da Faculdade de Filosofia de Pernambuco (Botânica). Docente assistente da Faculdade de Medicina do Recife (Higiene). Catedrático da Faculdade de Ciências Médicas de Pernambuco (Higiene)." O destaque para a sua experiência como professor da disciplina Higiene ficou bem evidente, parecendo uma estratégia para reforçar a sua especialidade na medicina, auxiliando na permanência desse conteúdo no currículo do ensino secundário na década de 1950. Esse fato reforçou a hipótese de Santos (2021) sobre a influência das ciências médicas para estabelecer a Higiene no currículo do ensino secundário.
Ainda na folha de rosto, havia a seguinte informação destacada no interior de um retângulo: De acordo com a Portaria n.º 1.045 de 14 de dezembro de 1951, demonstrando a preocupação em seguir o programa oficial, buscando coincidi-lo integralmente com o índice apresentado na página seguinte. Entretanto, esse rigor com os conteúdos mínimos estabelecidos fracassaria na década seguinte, com a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1961) que descentralizou e flexibilizou os currículos.
A defasada História Natural e a modernização da Biologia
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 (Lei 4.024/1961) estabeleceu a flexibilização e diversificação do currículo em um curso agora denominado ensino médio, com sete anos de duração e dividida em dois ciclos: ginasial (quatro anos) e colegial (três anos), indicando Ciências Físicas e Biológicas como disciplina obrigatória para a 1ª e 2ª séries do curso colegial (BRASIL, 1961).
Para a disciplina Ciências Físicas e Biológicas do ciclo colegial, em abril de 1962, o Conselho Federal de Educação (CFE) sugeriu que essa matéria poderia ser desdobrada em Física, Química e Biologia (MEC/CFE, 1962a). Em fevereiro de 1964, a Resolução nº 6 do Conselho Estadual de Educação (CEE) estabeleceu a disciplina Biologia como disciplina obrigatória na 1ª, 2ª e 3ª série do curso colegial (PERNAMBUCO/CEE, 1964).
Nos Estudos Especiais do CFE (MEC/CFE, 1962b), documento denominado de "Amplitude e desenvolvimento das matérias obrigatórias", ficou assegurada a plena liberdade aos autores de livros didáticos. Dessa forma, com total autonomia, em 1965, Valdemar empreendeu um novo projeto para escrever livros didáticos e publicá-los pela Editora do Brasil. A nova coleção seria composta por três livros: Biologia, Zoologia e Botânica15.
Biologia foi o primeiro livro dessa coleção e exibia um novo formato gráfico, produzido com a capa dura na cor vermelha e ilustrada. A figura ocupava a maior parte da cobertura e representava um cruzamento de coelhos homozigotos. Na quarta capa também existia uma ilustração na mesma proporção representando um cruzamento de coelhos heterozigotos.
As ilustrações demonstravam uma diferença marcante entre os livros publicados anteriormente, atribuindo uma nova identidade gráfica e permitindo que fossem reconhecidos visualmente. Além disso, essas ilustrações de genética mendeliana pareciam sinalizar que a proposta da editora havia sido atualizada.
Na folha de rosto, na parte superior, destacava-se: Coleção Didática do Brasil - Série Colegial - Vol. 21, o que mantinha a coleção de Valdemar nos planos da editora. Em seguida, abaixo do nome dos autores, apareciam os cargos docentes em instituições de ensino superior: Valdemar de Oliveira - Da Faculdade de Filosofia e da Faculdade de Medicina da Universidade do Recife e Janduhy Moreira Leite16 - Da Faculdade de Filosofia do Recife.
Causou estranheza o fato do nome do professor Janduhy Moreira Leite aparecer como autor apenas na folha de rosto, já que ele foi o responsável por escrever os capítulos sobre Reprodução e Genética, conforme a apresentação da coleção no livro Biologia:
Apresentação
Julgou, a Editora do Brasil S/A, de bom alvitre, desmembrar os dois volumes que, sob o título "História Natural", serviam ao Curso Colegial. Encarregou-nos de, por assim dizer, individualizar as partes referentes à Zoologia, à Botânica e à Biologia. Vem esta a lume, agora, com a colaboração do Prof. Janduhy Moreira Leite, nosso assistente da Faculdade de Filosofia do Recife, a quem couberam especialmente os capítulos sobre Reprodução e Genética.
Como se verá, a preocupação dominante foi a síntese, sem o sacrifício do essencial à melhor compreensão dos fenômenos biológicos. Alunos e professores são rogados a sugerir acréscimos, exclusões ou modificações que julgarem indicados à maior eficiência do ensino, o que nos ajudará a corrigir, em nova edição, possíveis deficiências desta obra. V. O. (OLIVEIRA, 1965).
Ainda de acordo com a apresentação, parece ter sido uma decisão equivocada da editora a manutenção de uma coleção escolar elaborada sob a organização da História Natural, com a orientação de escrever um livro para cada ramo do conhecimento (Zoologia, Botânica e Biologia), contrariando a mudança em curso que se estabelecia naquele momento para as Ciências Biológicas.
Pautado na flexibilização da LDB de 1961, não havia programas de ensino obrigatórios para as disciplinas escolares, o que abriu espaço para a manutenção de propostas baseadas na organização da História Natural. Assim, em 1965, Valdemar de Oliveira lançou o livro Zoologia, o segundo da coleção.
Essa obra possuía as mesmas características de impressão do Biologia, inclusive com o mesmo tamanho, capa vermelha e ilustrações, sugerindo uma identidade gráfica dessas obras como uma coleção. Na parte superior da capa estava escrito o nome do autor e o título em destaque. Estampados na capa havia a figura de dois animais exóticos ao território brasileiro: búfalo-d'água e tigre, ambos do sudeste da Ásia. Na quarta capa, também havia duas ilustrações de animais exóticos: zebra (África central e sul) e dromedário (nordeste da África e oeste da Ásia). A presença exclusiva de animais exóticos no livro de zoologia estava associada, provavelmente, à tradição das adaptações dos compêndios estrangeiros de História Natural. Esses livros didáticos já estavam em desvantagem não somente do ponto de vista gráfico, pois eram semelhantes aos compêndios do início do século XX, mas também pela desatualização dos conteúdos e pela forma de apresentá-los na perspectiva da História Natural.
Na década de 1960, houve uma atualização das Ciências Biológicas que influenciou a organização dos currículos escolares, principalmente por conta dos avanços da Genética e da Teoria da Evolução (MARANDINO, SELLES; FERREIRA, 2009). Devido a essa mudança, muitos livros didáticos de Biologia acrescentaram novos conteúdos (ROQUETTE, 2011). Para o livro Biologia de Valdemar de Oliveira, a inclusão de um capítulo de Genética não foi suficiente para alcançar o nível necessário de atualização para a disciplina escolar.
Em Pernambuco, em dezembro de 1964, Carlos Frederico do Rêgo Maciel17, conselheiro do CEE, escreveu sugestões para tornar mais prático e eficiente o ensino das Ciências nas escolas de grau médio. Entre várias sugestões, destacou-se uma em que se deveria estimular a realização de cursos de verão para professores semelhantes àqueles desenvolvidos pelo Instituto Brasileiro de Educação, Ciência e Cultura (IBECC).
Nesse contexto, foi fundado em 1965 o Centro de Ensino de Ciências do Nordeste (CECINE)18, instituição que ajudou a consolidar a disciplina escolar Biologia sob a influência do projeto estadunidense Biological Sciences Curriculum Study (BSCS)19. Esse projeto definiu conteúdos, propôs a metodologia científica como método de ensino, publicou livros didáticos (versão azul do BSCS) e treinou professores.
Segundo Queiroz e Housome (2018), esse modelo de ensino valorizava o trabalho do cientista, a observação dos fenômenos e a pesquisa de laboratório, estabelecendo uma necessidade de melhorar a estrutura física da escola e a formação pedagógica dos professores. Esse projeto foi tão influente em Pernambuco que, a partir de 1965, no Recife, alguns cursos preparatórios para o vestibular anunciavam nos jornais que as suas aulas estariam de acordo com o BSCS e com professores atualizados no CECINE. Segundo de Ferreira e Selles (2008, p. 43), no Brasil, o BSCS tornou-se uma referência para os professores, "abandonando as tradições da História Natural".
Diante dessas informações, é possível afirmar que os conteúdos propostos por Valdemar de Oliveira em 1965 não estavam atualizados com a ciência de referência nem com as recentes mudanças curriculares, tornando a disciplina escolar Biologia defasada e amparada na História Natural.
Considerações finais
A análise da materialidade dos livros didáticos de Valdemar de Oliveira identificou quatro conjunturas que ajudaram a compreender a trajetória da disciplina escolar História Natural/Biologia em Pernambuco: 1) Na década de 1930, houve uma influência da reforma Francisco Campos, dos movimentos da Escola Nova e da Rede de Sociabilidade de Valdemar de Oliveira para a manutenção e valorização da História Natural como disciplina escolar no ensino secundário; 2) Na década de 1940, por conta da reforma Gustavo Capanema, a disciplina sofreu uma instabilidade com a mudança de seu nome e alterações na seleção dos conteúdos; 3) Na década de 1950, a definição do currículo mínimo e a formação de Valdemar de Oliveira valorizaram os conteúdos de Higiene; 4) Na década de 1960, com a LDB flexibilizando os conteúdos, a disciplina escolar foi tratada como História Natural nos livros didáticos até ser suplantada pela presença do BSCS na formação continuada dos professores do ensino secundário de Pernambuco.
A análise dos livros didáticos se mostrou adequada para auxiliar na compreensão da disciplina escolar História Natural/Biologia, elucidando parte de sua trajetória no ensino secundário de Pernambuco. Junto com as reformas da educação, os livros didáticos permitiram identificar as movimentações políticas e educacionais da época que justificaram alterações curriculares, como a seleção e organização de determinados conteúdos.
Valdemar de Oliveira como professor e escritor de livros didáticos foi um agente muito importante na História da Educação do Ensino Secundário de Pernambuco, mantendo a estabilidade dessa disciplina escolar na primeira metade do século XX até o seu processo de modernização na década de 1960.