INTRODUÇÃO
O passar dos anos traz mudanças sociais, econômicas e culturais inevitáveis, e, nesse contexto, estão inseridos os cursos de Medicina, responsáveis por fornecer médicos capacitados para atuar nessa realidade. No Brasil, diversas escolas de Medicina foram abertas nos últimos anos1,2, porém pouco se conhece sobre as áreas de atuação de seus egressos, empregabilidade e educação continuada para atendimento às crescentes demandas populacionais no País3. Frente à realidade do mercado de trabalho, encontram-se as expectativas do estudante concluinte do curso de Medicina. Uma importante questão a ser esclarecida é se tais expectativas são coerentes com o perfil desejado para o egresso da escola médica, a fim de elucidar se a escola está conseguindo formar o profissional com o perfil desejado, compatível com as Diretrizes Curriculares Nacionais de 20144.
A literatura indica uma crise global de escassez grave e má distribuição de profissionais de saúde, especialmente influenciadas por fatores como alterações demográficas e mudanças epidemiológicas5. Será que os egressos dos cursos de Medicina do Brasil estão sensíveis a este cenário e estão dispostos a enfrentar a nova realidade que se impõe? Quanto ao aspecto da má distribuição de profissionais de saúde, sendo esta uma condição global e de maneira alguma exclusiva do Brasil, as populações rurais remotas e pobres não são, muitas vezes, capazes de atrair ou reter profissionais de saúde. Contudo, há indícios de que um maior número de profissionais pode ser mantido em áreas rurais por meio de políticas no setor da educação (localização de escolas médicas e de enfermagem, política de admissões – sistema de cotas ou ações afirmativas –, bolsas de estudo e exigência de um período de serviço em uma área rural após concluir a formação) e no setor da saúde (remuneração adequada, rede de ensino para crianças e desenvolvimento de planos de carreira)5,6.
Nota-se aí o papel fundamental tanto da escola médica como dos gestores em saúde para garantir a formação de profissionais de acordo com as necessidades da população.
Em 2010, a Comissão sobre educação dos profissionais de saúde para o século XXI já alertava sobre a necessidade de reformular a formação do profissional de saúde, devendo-se educar os profissionais para mobilizarem conhecimentos e se engajarem em raciocínio crítico e conduta ética, para participar de maneira competente e responsável dos sistemas de saúde centrados na população e no paciente2.
Além disso, a transição universidade-trabalho é problemática, multifatorial e dinâmica, pois se trata de um momento fecundo de ideias e aflições para o estabelecimento de novas metas profissionais, o que implica planejar o futuro, reavaliar as escolhas e antecipar o que está por vir em termos profissionais e pessoais7. O último ano do curso de Medicina é repleto de ansiedades e incertezas, sendo importante para o aluno e para a instituição conhecer as dificuldades de inserção no mercado de trabalho, os problemas ligados à sua formação, preparo (ou despreparo) em diferentes tópicos, por exemplo8.
Assim, nos dias atuais, a averiguação das características dos ex-alunos tem sido recomendada nas políticas de recursos humanos das instituições de saúde9. Com base nisto, o presente estudo tem como principal objetivo descrever as expectativas dos estudantes de Medicina quanto à carreira profissional.
METODOLOGIA
Foi realizado um estudo transversal, descritivo e analítico, no período de janeiro de 2014 a dezembro de 2017, entre concluintes do curso de Medicina da Universidade Federal do Pará (UFPA).
Os estudantes foram abordados antes do início da última prova do último semestre do curso, quando foram orientados sobre os objetivos, riscos e benefícios da pesquisa. Daqueles que concordaram em participar da pesquisa, foi solicitado o consentimento por meio da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do preenchimento do questionário elaborado pelos autores, para obtenção de informações sobre idade; sexo; ano de formatura; desejos de atuação profissional para os dez anos seguintes; especialidade que deseja seguir; nível de atenção em que deseja trabalhar; renda a ser alcançada; e número de empregos que pretende ter. Os pesquisadores ficaram à disposição durante o preenchimento dos questionários, a fim de dirimir eventuais dúvidas dos estudantes.
A UFPA forma cerca de 150 estudantes por ano, sendo incluídos neste estudo os questionários preenchidos por 116 estudantes concluintes em 2014, 116 estudantes de 2015, 91 de 2016 e 110 de 2017. Foram incluídos estudantes concluintes do curso de Medicina naquele ano e excluídos os questionários com preenchimento incorreto.
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Instituto de Ciências da Saúde (ICS), sob o no 319.222 em 28/06/2013 (CAAE 16134813.0.0000.0018), renovado em 29/04/2015 (Parecer no 1.043.440) e em 13/07/2017 (Parecer no 2.170.864). Os dados recolhidos foram organizados e analisados por meio de planilhas do Microsoft Excel 2007®. As variáveis categóricas foram apresentadas em valores absolutos e percentuais, sendo utilizado o teste do qui-quadrado para avaliar a significância dos resultados. As variáveis contínuas foram expressas como média ± desvio-padrão, sendo utilizado o teste de Anova para verificar diferenças entre os grupos. O valor de p < 0,05 foi considerado estatisticamente significativo.
RESULTADOS
A amostra composta por egressos do curso de Medicina da UFPA entre os anos de 2014 e 2017 totalizou 431 sujeitos. Destes, 116 egressos eram de 2014 (26,9%), 114 de 2015 (26,5%), 91 de 2016 (21,1%) e 110 de 2017 (25,5%), com média de idade de 26,4 anos e predomínio estatisticamente significante do gênero masculino (Tabela 1).
Variáveis | Frequência | % |
---|---|---|
Sexo | ||
Feminino | 178 | 41,3 |
Masculino* | 253 | 58,7 |
Total | 431 | 100,0 |
| ||
Idade (média ± desvio-padrão) | 26,40 ± 3,91 anos | |
| ||
Ano de formatura | ||
2014 | 116 | 26,9 |
2015 | 114 | 26,5 |
2016 | 91 | 21,1 |
2017 | 110 | 25,5 |
Total | 431 | 100,0 |
*p = 0,0004 Teste Qui-Quadrado Aderência.
Fonte: Protocolo de pesquisa.
A Tabela 2 destaca as cinco principais especialidades pretendidas pelos estudantes. A especialidade de Clínica Médica foi a mais almejada pelos egressos no período estudado, exceto no ano de 2016, no qual predominou a especialidade de Pediatria.
Especialidade | Frequência | % |
---|---|---|
2014 (n = 116) | ||
Clínica Médica | 20 | 17,2 |
Cirurgia Geral | 15 | 12,9 |
Pediatria | 14 | 12,1 |
Dermatologia | 13 | 11,2 |
Anestesiologia / Ginecologia e Obstetrícia | 12 | 10,3 |
2015 (n = 114) | ||
Clínica Médica | 33 | 28,9 |
Pediatria | 19 | 16,7 |
Cirurgia Geral | 12 | 10,5 |
Endocrinologia / Medicina de Família e Comunidade | 11 | 9,6 |
Oftalmologia | 10 | 8,8 |
2016 (n = 91) | ||
Pediatria | 15 | 16,5 |
Clínica Médica | 13 | 14,3 |
Neurologia | 11 | 12,1 |
Oftalmologia | 9 | 9,9 |
Medicina de Família e Comunidade / Neurocirurgia / Otorrinolaringologia | 8 | 8,8 |
2017 (n = 110) | ||
Clínica Médica | 19 | 17,3 |
Pediatria | 16 | 14,5 |
Cirurgia Geral | 15 | 13,6 |
Cirurgia Vascular /Oftalmologia | 14 | 12,7 |
Dermatologia | 9 | 8,2 |
Total ( n = 431) | ||
Clínica Médica | 85 | 19,7 |
Pediatria | 64 | 14,8 |
Cirurgia Geral | 49 | 11,4 |
Oftalmologia | 43 | 10,0 |
Dermatologia | 36 | 8,4 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
A docência foi desejada por aproximadamente metade da casuística em todos os anos analisados, variando entre 46% e 59%, contrastando com o trabalho com assistência, que estava entre os desejos da quase totalidade dos egressos. Entre os participantes do estudo que desejavam trabalhar na assistência, não houve predomínio entre as atividades ambulatorial/consultório ou hospitalar, havendo maior diferença percentual no ano de 2015, com predomínio da atividade ambulatorial/consultório, com 69,2%, porém não houve diferença estatística significativa. Da mesma forma, não houve predomínio do setor público sobre o privado, ou vice-versa (Tabela 3).
O que desejaria concretizar nos próximos dez anos? | Docência do ensino superior | Trabalhar com assistência | ||
---|---|---|---|---|
| ||||
Frequência | % | Frequência | % | |
2014 (n = 116) | 56 | 48,3 | 116 | 100,0 |
2015 (n = 114) | 49 | 43,0 | 107 | 93,9 |
2016 (n = 91) | 46 | 50,5 | 85 | 93,4 |
2017 (n =110) | 59 | 53,6 | 103 | 93,6 |
| ||||
Dos que desejam trabalhar na assistência, em qual local? | Hospital | Ambulatório / Consultório | ||
| ||||
Frequência | % | Frequência | % | |
| ||||
2014 (n = 116) | 57 | 49,1 | 58 | 50,0 |
2015 (n = 107) | 41 | 38,3 | 74 | 69,2 |
2016 (n = 85) | 49 | 57,6 | 40 | 47,1 |
2017 (n = 103) | 39 | 37,9 | 65 | 63,1 |
| ||||
Dos que desejam trabalhar na assistência, em qual setor deseja trabalhar? | Público | Privado | ||
| ||||
Frequência | % | Frequência | % | |
| ||||
2014 (n = 116) | 61 | 52,6 | 55 | 47,4 |
2015 (n = 107) | 67 | 62,6 | 50 | 46,7 |
2016 (n = 85) | 39 | 45,9 | 48 | 56,5 |
2017 (n = 103) | 47 | 45,6 | 58 | 56,3 |
Fonte: Protocolo de pesquisa.
A Tabela 4 apresenta dados a respeito do desejo de atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde. Os sujeitos foram convidados a graduar de 0% a 100% o percentual de tempo que gostariam de se dedicar a cada nível de atenção. A análise demonstrou que os formandos de 2015 foram os que mais demonstraram interesse em atuar no nível secundário, sendo estatisticamente significante em relação aos demais anos. Também chama a atenção que, nos anos de 2014 e 2016, o desejo de atuar no nível terciário foi estatisticamente significante em relação aos demais níveis de atenção.
Ano de formatura | Tempo de atuação em cada nível de atenção | |||||
---|---|---|---|---|---|---|
| ||||||
Primária (%) | Secundária (%) | Terciária (%) | ||||
2014 | 25,4 | ± 24,1 | 34,1 | ± 24,4 | 40,5* | ± 29,3 |
2015 | 29,2 | ± 24,7 | 39,8* | ± 25,4 | 31,0 | ± 29,0 |
2016 | 29,4 | ± 26,7 | 29,5 | ± 21,9 | 41,1* | ± 29,7 |
2017 | 24,2 | ± 21,2 | 38,5 | ± 25,7 | 37,3 | ± 29,3 |
*p = 0,0005 Teste Anova um critério.
Fonte: Protocolo de pesquisa.
Sobre o que pretende alcançar em relação a emprego e renda, a Tabela 5 mostra predomínio das faixas salariais mais elevadas, a partir de 10,1 salários-mínimos (SM), sendo que a maioria expressou achar necessários pelo menos três empregos para alcançar esta renda, embora o desejo da maior parte dos estudados seja manter apenas dois empregos.
Ano de Formatura | N | Renda desejada na atividade profissional#* | |||
---|---|---|---|---|---|
| |||||
Até 5 SM | 5,1 a 10 SM | 10,1 a 20 SM | 20 SM ou mais | ||
2014 | 115 | 11,3% | 42,6% | 46,1% | 0,0% |
2015 | 112 | 1,8% | 27,7% | 40,2% | 32,1% |
2016 | 91 | 3,3% | 14,3% | 36,3% | 44,0% |
2017 | 110 | 1,8% | 10,0% | 46,4% | 41,8% |
| |||||
N | Quantos empregos você gostaria de ter para alcançar a renda desejada?# | ||||
| |||||
1 | 2 | 3 | 4 ou mais | ||
| |||||
2014 | 115 | 19,1% | 48,7% | 28,7% | 3,5% |
2015 | 112 | 11,6% | 60,7% | 24,1% | 5,4% |
2016 | 91 | 9,9% | 59,3% | 25,3% | 4,4% |
2017 | 110 | 11,8% | 54,5% | 28,2% | 4,5% |
| |||||
N | Quantos empregos acha necessários para alcançar a renda que deseja?& | ||||
| |||||
1 | 2 | 3 | 4 ou mais | ||
| |||||
2014 | 115 | 7,0% | 23,5% | 41,7% | 27,8% |
2015 | 114 | 5,3% | 31,6% | 43,0% | 20,2% |
2016 | 87 | 8,0% | 31,0% | 43,7% | 17,2% |
2017 | 109 | 3,7% | 33,9% | 45,0% | 17,4% |
# 3 questionários sem informação; & 6 questionários sem informação.
Fonte: Protocolo de pesquisa.
DISCUSSÃO
De acordo com dados sociodemográficos do Brasil, a maioria da população médica é de homens, com 54,4% do total de 414.831 profissionais em atividade em 2017, enquanto as mulheres representam 45,6%10. Na presente pesquisa, a população de estudo apresentou-se com predomínio do gênero masculino entre os concluintes. Quando essa proporção é comparada com a realidade nacional e de algumas outras escolas, verifica-se que o processo de “feminilização da medicina” identificado naqueles universos está bem mais avançado que na UFPA. O gênero feminino como maioria da população de egressos já foi constatado em Curitiba (PR), com 50,5%11, e em Vitória (ES)12, com 50,2%12. Por outro lado, no presente estudo, a média de idade observada foi de 26,4 ± 3,9 anos, seguindo a tendência nacional de formação de médicos jovens, conhecida como “rejuvenescimento do contingente médico”, uma vez que a média de idade da demografia médica brasileira atualmente é de 45,4 ± 13,7 anos10.
A Resolução do Conselho Nacional de Educação nº 3, de 20/06/2014, que institui as novas Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina, ressalta que o graduado com formação geral em Medicina, sem especialidade, tornar-se-á “médico generalista”4. A residência médica é um importante meio de capacitação profissional do médico, sendo reconhecida como a melhor modalidade para a formação de especialistas, e atualmente a maior parte dos médicos especialistas obtém o título via conclusão de programa de residência13,14.
A literatura indica que diversos aspectos influenciam os estudantes de Medicina na tomada de decisão quanto à especialidade médica15-20. Um desses estudos, realizado numa instituição privada em 2014, revelou que, no primeiro ano do curso, fatores como influência dos pais e afinidade pela área foram mais relevantes, enquanto no último ano a renda esperada e o tempo livre foram os principais fatores na escolha da especialidade15. Embora estes dados possam gerar preocupação quanto à discrepância entre os interesses do egresso e as necessidades da população, o estudo também revela que as especialidades pretendidas mudam durante o curso, assim como os fatores que influenciam esta escolha, sendo que, por exemplo, a influência dos professores e o período de treinamento na área – fatores que podem ser trabalhados durante a graduação – são capazes de influenciar a escolha final da especialidade.
Segundo a Demografia Médica Brasileira, a Pediatria é a especialidade com maior preferência entre os médicos recém-formados em geral10. Nesse estudo, Clínica Médica foi a especialidade mais almejada pelos egressos quando avaliados todos os anos. Somente no ano de 2016 a Pediatria foi a especialidade preferida pelos egressos, sendo a segunda especialidade mais desejada quando analisados todos os anos. Da Silva e colaboradores21, ao estudarem os fatores e motivações para a escolha da Pediatria como especialidade, destacaram a influência do sexo feminino como um fator relevante, assim como a influência dos formadores. No curso de Medicina da UFPA, a área de Pediatria tradicionalmente é a mais bem avaliada pelos estudantes nos levantamentos de opinião sobre o curso no final da graduação, sendo constante a escolha de professores da área como homenageados, o que possivelmente foi um importante fator que influenciou a escolha dos alunos.
No que concerne à busca por áreas gerais, observou-se um incremento da busca por Clínica Médica. Isto pode ser explicado pelo elevado número de especialidades que tem como pré-requisito a residência em Clínica Médica. Após essa formação geral, muitos egressos buscam áreas mais especializadas, que são consideradas fornecedoras de melhor ganho financeiro ou melhor qualidade de vida22.
As cinco especialidades com maior preferência entre os recém-formados brasileiros são: Pediatria (12,3%), Clínica Médica (11,5%), Cirurgia Geral (8,8%), Ginecologia e Obstetrícia (8,6%), Anestesiologia (7,1%). Estas, quando somadas, representam 48,3% do total da preferência dos recém-formados10. Esta preferência divergiu do desejo dos egressos deste estudo, que, além das áreas básicas (Clínica Médica, Pediatria e Cirurgia Geral), teve entre as preferências Oftalmologia (10%) e Dermatologia (8,4%). Assemelha-se, no entanto, a um estudo local que envolveu três escolas médicas do Pará, cujas três especialidades mais almejadas pelos internos do quinto e sexto anos do curso foram: Cirurgia Geral (11,4%), Pediatria (7,5%), Oftalmologia (7,1%) e Dermatologia (6,7%)23.
A escolha da especialidade é uma importante decisão que define a carreira profissional de um médico. Diversos aspectos influenciam os estudantes de Medicina na tomada de decisão quanto à especialidade médica a ser seguida. Estes podem variar de acordo com componentes individuais, como, por exemplo, personalidade e experiências vivenciadas na especialidade almejada. A autonomia sobre a própria vida, um estilo de vida chamado “controlável”, tornou-se um elemento decisivo nos critérios de escolha da especialidade pelos alunos18,24. Em um estudo realizado em 2014 entre estudantes de Medicina no final do curso, o fator predominante na escolha da especialidade foi a renda financeira que esta poderia proporcionar15.
Apesar dos esforços dos ministérios da Saúde e da Educação em formar um profissional capacitado para ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação à saúde, na perspectiva da integralidade da assistência e promotor da saúde integral do ser humano, segundo a Demografia Médica Brasileira, apenas 1,5% dos médicos recém-formados têm como primeira opção cursar residência médica em Medicina da Família e Comunidade. Caminhando no mesmo sentido, o presente estudo mostrou que Medicina da Família e Comunidade representava apenas 4,4% do desejo de especialização pelos egressos da UFPA no momento de sua formação.
Na perspectiva de conceber profissionais de saúde voltados para um sistema público que atenda às principais demandas de saúde da sociedade, a falta de profissionais com interesse pela Medicina da Família e Comunidade necessita de atenção da academia e dos gestores de saúde. Sabe-se que a educação profissional é profundamente afetada pelo ambiente disponível para treinamento clínico, sendo que o currículo acadêmico pode favorecer o viés de uma educação em instalações de nível terciário, tanto quanto favorecer uma gama de práticas em comunidade, nos domicílios ou em outros locais que incluam a população menos favorecida2. No curso de Medicina da UFPA, o eixo de atenção integral à saúde procura oferecer vivências e práticas em unidades de saúde urbanas inseridas na comunidade desde os primeiros semestres do curso, além de um período de treinamento do internato chamado de Rural, onde as práticas de Medicina da Família e Comunidade ocorrem numa comunidade a cerca de 50 quilômetros da capital. A despeito destes esforços, fica claro que eles não têm sido suficientes para despertar o interesse do egresso pela especialidade.
Considerando a esfera da administração pública, nem sempre são disponibilizadas unidades de saúde em condições ideais de funcionamento, seja do ponto de vista de estrutura, seja com suficiência de recursos para atender a população. É comum – e esta realidade certamente é a mesma de muitos outros cursos e outros estados – realizar as práticas em locais menos salubres do que o ideal, com necessidade de improviso constante para garantir o mínimo de assistência, além da questão de insegurança, que por vezes limita ainda mais a atuação dos profissionais. Essas situações podem ser consideradas como desafios e, com o apoio e persistência do corpo docente e de preceptores, inspiram os futuros profissionais a trabalharem pela melhoria do sistema. Contudo, para outros estudantes, certamente esta realidade resulta em perda de motivação para atuação profissional. O desafio para a academia é proporcionar um ambiente mais equilibrado para a educação de profissionais por meio do engajamento com comunidades, para abordar proativamente a prevenção dos agravos à saúde, antecipando futuras ameaças e liderando a concepção e gestão global do sistema de saúde2.
No presente estudo, a porcentagem de egressos do curso de Medicina da UFPA que pretende seguir a carreira docente variou de 48,3% a 53,6%, um resultado bastante positivo, pois destoa dos dados nacionais, em que menos de 3% citaram docência, pesquisa, gestão, direção e administração de serviços como seguimento profissional13. De acordo com um estudo realizado com egressos do Pará, 58% dos internos do curso de Medicina pretendem seguir a carreira docente, e o fator que mais influenciou esta decisão foi a afinidade com o meio acadêmico e científico (64,2%) e, em seguida, a influência positiva dos docentes23. A UFPA consegue oferecer uma gama de possibilidades que tende a aproximar os estudantes da carreira docente, podendo servir como estímulo para uma futura atuação profissional na área. Além dos programas de iniciação científica (mais de 1.200 bolsas) e extensão (350 bolsas), vale ressaltar a disponibilização de mais de 200 bolsas de monitoria e 50 bolsas para o Programa de Apoio a Projetos de Intervenção Metodológica oferecidas regularmente pela instituição. Estas duas últimas, em especial, permitem ao estudante conhecer mais de perto o exercício da docência, com oportunidade de desenvolverem papel de facilitadores para outros estudantes, o que certamente pode ajudar a despertar o interesse pela área acadêmica.
Além disso, observou-se que mais de 90% dos egressos em todos os anos de coleta pretendem trabalhar com assistência, entendida aqui como o atendimento direto ao paciente. De acordo com a Demografia Médica Brasileira, é alta a porcentagem de profissionais que se dedica exclusivamente à medicina, seja na assistência, gestão, administração de serviços, docência, pesquisa, seja em outra função exercida pelo médico13.
Quanto ao local de trabalho, os egressos da UFPA demonstraram maior interesse em atuar em ambulatório/consultório, exceto no ano de 2016, em que a maioria preferiria trabalhar em hospital. Tal dado não condiz com o levantamento da Demografia Médica Brasileira, em que o maior grupo de egressos (79,2%) disse preferir trabalhar em hospitais13. Considerando a necessidade de aproximação com a comunidade, valorizando o nível primário de atenção à saúde, com atividades de prevenção e promoção à saúde, conforme recomendam as Diretrizes Curriculares Nacionais, as atividades em nível ambulatorial e domiciliar são aquelas que precisam ser mais desenvolvidas pelos egressos. A tendência dos estudantes analisados na amostra de preferirem atuação em nível terciário possivelmente tem relação com a opção por trabalho em nível hospitalar.
A assistência à saúde é dividida em três níveis de atenção: primária, secundária e terciária. A Atenção Primária é constituída pelas UBS, pelos agentes comunitários de saúde, pela Equipe de Saúde da Família e pelo Núcleo de Apoio à Saúde da Família. Já a Atenção Secundária é formada pelos serviços especializados em nível ambulatorial e hospitalar, compreendendo serviços médicos especializados, de apoio diagnóstico e terapêutico, e atendimento de urgência e emergência. A Atenção Terciária ou alta complexidade designa o conjunto de terapias e procedimentos de elevada especialização e procedimentos que envolvem alta tecnologia e/ou alto custo25,26.
No Brasil, a Atenção Primária em Saúde ainda é vista como uma forma de trabalho temporário, o que pode estar relacionado com a expectativa econômica e de qualidade de vida, havendo uma crença de que nas especialidades médicas a renda é maior e há maior possibilidade de administrar o próprio trabalho, compatibilizando profissão e qualidade de vida27. Neste estudo, um dado importante a destacar é que os formandos de 2014 e 2016 informaram que desejam atuar predominantemente na Atenção Terciária. Mesmo nos demais grupos de formandos, onde não houve diferença estatística em favor da Atenção Terciária, chama atenção que a Atenção Primária, invariavelmente, foi o nível com menor desejo de atuação. A reflexão sobre os motivos pelos quais a Atenção Primária não é o desejo predominante entre os futuros profissionais é certamente pertinente.
Antes de discutir sobre a pretensão salarial dos médicos egressos da UFPA, é importante informar que o salário mínimo (SM) brasileiro, no momento desta pesquisa, equivalia a R$ 954,00, sob o Decreto nº 9.255 de 29 de dezembro de 201728. No presente estudo, em todos os anos, a pretensão salarial ficou entre 10,1 e 20 SM (R$ 9,5 mil e 19 mil), exceto em 2016, em que predominou o desejo por mais de 20 salários (mais que R$ 19 mil). Estes valores estão em concordância com as expectativas nacionais, que mostram que 43% dos egressos consideraram ideal uma renda mensal entre R$ 8 mil e R$ 12 mil, enquanto 21,6%, entre R$ 12 mil e R$ 16 mil10.
Os médicos brasileiros têm, em geral, múltiplos vínculos, sendo que 78% dos profissionais têm dois ou mais empregos10. No presente estudo, a maioria dos egressos, em todos os anos, deseja ter até dois empregos. Entretanto, acreditam que são necessários três vínculos empregatícios para atingir a renda mensal desejada.
CONCLUSÃO
As chamadas áreas básicas, como Clínica Médica, Cirurgia Geral e Pediatria, ainda são bastante almejadas pelos formandos. Contudo, mais do que o desejo de segui-las, este dado provavelmente indica a necessidade de atuar nessas áreas como pré-requisito para acesso a outras especialidades. No geral, os egressos pretendem trabalhar com assistência, têm uma expectativa salarial alta, admitem a necessidade de diversos vínculos empregatícios para atingir esta meta e têm pouco interesse em trabalhar no nível primário de assistência à saúde. Tal realidade poderia ser discutida no âmbito da academia, a fim de oferecer informações realistas aos estudantes sobre o mercado de trabalho e a carreira médica, minimizando frustrações futuras durante o exercício profissional.