INTRODUÇÃO
Durante anos, o ensino médico foi baseado no modelo proposto inicialmente por Halsted: see one, do one, teach one (veja, faça, ensine), fazendo com que aprender praticando em pacientes se tornasse uma prática ainda presente na atualidade1. Com a evolução das metodologias de ensino na área da saúde, surgiram os conceitos habilidades e competências, que trouxeram em conjunto o ensino baseado em simulação2,3.
A simulação como forma de aprendizado surgiu nos anos 1930 com o primeiro simulador de voo, Link Trainer. Já o primeiro simulador em medicina foi desenvolvido no início da década de 1960, um boneco para treinamento de respiração boca a boca, que ficou conhecido como Ressuci-Anne4. A simulação substitui temporariamente o encontro com o paciente real por modelos artificiais, permitindo que o processo de ensino e aprendizagem ocorra em ambiente seguro, de forma ativa, diminuindo o medo de causar dano durante o aprendizado, com maior retenção de conhecimento, tornando “aprender praticando em pacientes” cada vez menos aceitável4,5,6.
A Ginecologia é uma especialidade médica que depende de treinos bem estruturados6. Entre os procedimentos ginecológicos, destaca-se a inserção dos dispositivos intrauterinos (DIU) de cobre7. O DIU de cobre é um método contraceptivo de longo prazo, pois necessita de substituição somente após dez anos da inserção, é reversível, eficaz, possui poucos efeitos adversos e tem excelente custo-benefício. Em usuárias que fazem revisão médica periódica, as taxas de gravidez são inferiores a 1 em 100 mulheres/ano, mas ainda assim é um método subutilizado no Brasil7,8.
A literatura mundial aponta que as habilidades médicas em indicar e inserir corretamente o DIU de cobre estão abaixo do esperado, muitas vezes por imperícia ou por falsas contraindicações, o que reforça a necessidade do desenvolvimento de modelos de treinamento9,10.
Para aumentar a oferta deste método contraceptivo à população, é preciso capacitação adequada. O fundamento de modelos de treinamento preconiza que, quanto maior a prática de uma ação, menos complexa ela se torna11. Os simuladores físicos imitam a realidade, auxiliam o ensino e aprendizado técnico, promovem o ganho de habilidades e competências, e permitem o sucesso final quando a aplicação de um procedimento é direcionada ao paciente1,2,11.
OBJETIVO
Desenvolver um modelo de treinamento para aquisição de habilidades na inserção de dispositivos intrauterinos.
MÉTODO
Após aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética e Pesquisa em Seres Humanos (CAAE: 75841617.0.0000.5174), foram selecionados os 15 residentes do primeiro ano do programa de residência médica em Ginecologia e Obstetrícia do Hospital Maternidade Leonor Mendes de Barros (HMLMB), na cidade de São Paulo. Todos assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Não houve desistências no decorrer do estudo. Todos os residentes selecionados referiram ausência de treinamento prévio para inserção de DIU de cobre tanto com simulação quanto diretamente em pacientes.
Desenvolvimento do modelo de treinamento
Trata-se de um simulador físico que configura um modelo de utilidade para inserção de DIU, visando à capacitação teórico-prática na inserção de todos os tipos de DIU em humanos. Os autores depositaram o pedido de patente de modelo de utilidade junto ao Instituto Nacional de Proteção Intelectual (número de processo: BR 20 2018 002915 6).
O modelo de utilidade está representado nas Figuras 1 e 2. A Figura 1 representa uma vista tridimensional do suporte rígido de formato retangular contendo um protótipo anatômico de útero humano hemisseccionado, no interior do qual existe uma cavidade que se assemelha à cavidade uterina normal. Esse suporte rígido tem uma base retangular com 17 cm no maior ponto de altura, 15 cm de largura e 21 cm de profundidade, com peso de 420 gramas. Para o presente estudo, foi confeccionada em acrinolitrilabutadieno estireno (ABS).
Está acoplada a este suporte rígido uma estrutura semiflexível, composta por um protótipo de canal vaginal, colo uterino (com local de engate para pinçamento) e região vulvar semelhantes à anatomia humana. Esta peça foi confeccionada em ácido poliático flexível (PLA-FLEX). A Figura 2 apresenta uma vista tridimensional (frontal e lateral, respectivamente) da peça semiflexível.
O modelo de utilidade foi projetado com o programa Autodesk 3DS Max 2015©, e a confecção foi realizada com impressão tridimensional, utilizando-se a impressora Sethi 3D-S3, com custo final de R$ 487,00.
Graças às características do modelo, é possível realizar exame especular, identificação do colo uterino, pinçamento do colo uterino e tração com auxílio de pinça cirúrgica (Pozzi), aferição da histerometria e, em seguida, treinamento da técnica para inserção do DIU de cobre. No estudo foi utilizado o DIU TCU 380-A e foram considerados bem posicionados aqueles de localização fúndica, colocados no centro da cavidade uterina e com os braços do “T de cobre” abertos horizontalmente em direção à topografia dos óstios tubários12.
O simulador utilizado no presente estudo foi avaliado por especialistas em Ginecologia e Obstetrícia com auxílio da escala de Likert com cinco pontos. Foi atribuído o conceito excelente ao simulador, caracterizando-o como validado para uso em ensino.
Treinamento teórico-prático
O primeiro contato com o simulador visou reconhecer e interagir com o simulador, gerando hipóteses de como deveria ser a técnica correta para inserção do DIU de cobre. Cada residente realizou uma tentativa de inserir o DIU de cobre e foi avaliado segundo quesitos do roteiro com os passos preconizados pelo Ministério da Saúde do Brasil sobre a técnica de inserção do DIU de cobre, transcrito a seguir12.
Roteiro para inserção de DIU TCU 380-A
– Higiene das mãos e paramentação
– Toque vaginal para verificar posição uterina
– Inserção do especulo vaginal
– Antissepsia adequada
– Pinçamento do colo uterino com Pozzi às 12h
– Histerometria
– Carregar DIU no dispositivo de inserção
– Delimitar histerometria no dispositivo de inserção
– Introdução do dispositivo de inserção
– Liberação dos braços do DIU
– Certificar o posicionamento do DIU (fúndico)
– Retirada do dispositivo de inserção
– Secção dos fios do DIU (2-3 cm)
– Retirar pinça Pozzi e verificar a hemostasia
– Retirar espéculo vaginal
– DIU bem posicionado?
Após o primeiro contato com o simulador, foram ministradas aulas conceituais com recursos audiovisuais que abordavam introdução geral sobre o DIU de cobre e seu mecanismo de ação, eficácia, tempo de duração, vantagens, desvantagens, critérios de elegibilidade, efeitos colaterais, complicações e seus manejos.
Por fim, foi descrita a técnica adequada para inserção do DIU TCU 380-A, com elaboração de um roteiro. O instrutor inicialmente demonstrou a técnica de inserção do dispositivo intrauterino com o auxílio de um vídeo demonstrativo e em seguida com demonstração prática no simulador físico.
Passados 15 dias da exposição teórico-prática, cada aluno participante da pesquisa teve um período de treinamento livre controlado em posse do roteiro, com 30 minutos de prática no simulador. Nessa etapa, foi fornecido também um feedback quanto a erros e acertos anotados na primeira avaliação.
Após 15 dias do treino livre controlado, cada aluno, separadamente, simulou a inserção do DIU de cobre no modelo de utilidade, fazendo nesse momento a narrativa de cada passo, que foi avaliado pelo instrutor com auxílio do roteiro para colocação de DIU do protocolo de pesquisa.
Avaliação estatística
A amostra foi estabelecida por conveniência. Os dados da pesquisa foram armazenados em planilhas do Microsoft Excel 2016© e submetidos a análise estatística no programa Bioestat 5.3©. Foi utilizado o teste de normalidade de Shapiro-Wilk, o teste t de Student pareado e o teste G Aderência. Foram considerados significantes resultados com p < 0,05.
RESULTADOS
Participaram do estudo 15 alunos e não houve desistência. Quanto à média de acertos, foi observada melhora estatisticamente significante ao término do treinamento proposto em relação à avaliação inicial dos residentes (Figura 3). O diagrama de extremos e quartis (Figura 4) demonstra que durante a avaliação inicial havia grande dispersão do conhecimento, em contraste com a homogeneidade do desempenho final.
No primeiro contato com o simulador, a média de acertos dos residentes foi de 59,2% por questão, e a média geral de acertos por aluno foi de 63,3%. Já na avaliação final, os resultados obtidos foram 92,1% e 98%, respectivamente (Tabela 1).
Questões da avaliação | Avaliação inicial | Avaliação final | p - valor | ||
---|---|---|---|---|---|
1. Higiene das mãos e paramentação adequada | 1 | 6,7% | 14 | 93,3% | < 0,0001* |
2. Exame físico adequado | 6 | 40,0% | 10 | 66,7% | 0,0465* |
3. Inserção apropriada do espéculo vaginal | 15 | 100,0% | 15 | 100,0% | – |
4. Fez antissepsia adequada | 7 | 46,7% | 12 | 80,0% | 0,0164* |
5. Pinçamento do colo uterino | 15 | 100,0% | 15 | 100,0% | – |
6. Histerometria adequada | 14 | 93,3% | 15 | 100,0% | 0,6291 |
7. Carregou o DIU corretamente no dispositivo de inserção | 14 | 93,3% | 15 | 100,0% | 0,6291 |
8. Delimitou histerometria dispositivo de inserção | 6 | 40,0% | 14 | 93,0% | < 0,0001* |
9. Introdução adequada do dispositivo de inserção | 9 | 60,0% | 13 | 86,7% | 0,0431* |
10. Liberou braço do DIU corretamente | 7 | 46,7% | 14 | 93,3% | < 0,0001* |
11. Certificou posicionamento do DIU | 4 | 26,7% | 13 | 86,7% | < 0,0001* |
12. Retirada do dispositivo de inserção | 8 | 53,3% | 14 | 93,3% | 0,0008* |
13. Secção do fio apropriada (2-3 cm) | 7 | 46,7% | 15 | 100,0% | < 0,0001* |
14. Retirou pinça do colo e hemostasia adequada | 8 | 53,3% | 13 | 86,7% | 0,0107* |
15. Retirou espéculo vaginal corretamente | 15 | 100,0% | 15 | 100,0% | – |
16. Posicionamento adequado do DIU | 6 | 40,0% | 14 | 93,3% | < 0.0001* |
Média geral de acertos por questão | 8,9 | 59,2% | 13,8 | 92,1% | – |
Média geral de acertos por aluno | 9,5 | 63,3% | 14,7 | 98,0% | – |
* Teste G Aderência.
Na avaliação inicial, apenas 40% dos dispositivos ficaram bem posicionados, em contraste com 93,3% de sucesso de inserção após implementado o modelo de treinamento (Figura 5).
DISCUSSÃO
Houve melhora progressiva estatisticamente comprovada na média de acertos, tanto por questão quanto por aluno, após o treinamento com simulação, corroborando resultados da literatura sobre ensino baseado em simulação. Bartz et al.11 descrevem um aumento de conhecimento sobre métodos contraceptivos intrauterinos com auxílio de simulação prática no consultório de Ginecologia e Obstetrícia, gerando relações mais favoráveis quanto ao método11.
O modelo de treinamento baseado em simulação proposto por Oti et al.13gerou importante ganho de habilidades de atividades laparoscópicas, em concordância com a literatura, que evidencia a redução do nível de dificuldade técnica após treinos em simuladores de alta ou baixa fidelidade14,15.
Os autores do presente estudo destacam a importância do feedback durante o treinamento como ferramenta de construção do conhecimento, estimulando o pensamento crítico dos alunos acerca dos erros cometidos na avaliação inicial, o que possibilitou um conhecimento mais homogêneo16.
Publicações diversas descrevem os benefícios do ensino baseado em simulação e da possibilidade de aprender com erro em ambientes controlados com simulação14,16,17. A reflexão sobre o erro é um dos pontos principais na construção do conhecimento, pois se quantifica o desempenho de aprendizagem, gerando impacto de forma virtuosa na vida real18.
No Brasil e no mundo, a falta de conhecimento técnico sobre o DIU de cobre leva este método altamente eficaz a ser subutilizado19,20. É preciso desenvolver modelos de treinamento acessíveis para simulação de contracepção intrauterina a fim de modificar essa situação, contribuindo para aumentar o número de indicações do método por profissionais capacitados21,22.