INTRODUÇÃO
Como o estudo da morte abrange questões que estão imbricadas na vida humana, quem almeja ampliar os conhecimentos sobre esse tema se envolve em uma exploração que é uma jornada na busca de si mesmo. A Medicina e as Ciências Humanas e Sociais contribuem para o estudo desse tema, apesar de ocorrer uma tendência de relegá-lo para fora do cotidiano e, dessa forma, afastá-lo de nossa presença, negando-o, esquecendo-o ou buscando controlá-lo por meio de avanços tecnológicos1. Por sua vez, a medicalização da morte leva ao pensamento de que o médico pode regular sua duração e, a despeito do conhecimento de que não pode suprimi-la, tenta fazê-lo quando nega sua existência no dia a dia2,3.
A morte é carregada de significados simbólicos e faz parte do processo de desenvolvimento humano2. Representa o poder sobre o qual não temos controle, sendo muitas vezes desconhecida do estudante de Medicina, o que leva ao temor pela indefinição do momento em que ocorrerá o encontro, geralmente relacionado ao fato do desconhecimento de como acontecerá e em que momento do vida. Como se trata-se de evento inerente às atividades do médico, existe a crença nesse meio de que ela poderá ser sempre evitada, sendo entendida como falha ou insucesso do tratamento, ou como desconhecimento do profissional, o que provoca ansiedade e cobrança tanto da população como dos médicos3.
Ser consciente da terminalidade vida é uma característica apenas dos humanos, como enterrar seus mortos e demonstrar conhecimento sobre o fenômeno, no entanto esse conhecimento não está relacionado a razões refletidas, intuitivas ou instintivas. Corpos são enterrados por questões simbólicas, o morto não é um cadáver qualquer. A morte não se limita apenas ao fim da existência física, ela acaba também com o ser social ao qual a coletividade atribui uma dignidade maior4.
A morte pode ser vista não apenas como o esgotamento dos órgãos e a finalização de seu funcionamento no corpo, traduzindo o fim da vida. Segundo estudiosos envolvidos com a física quântica, a visão da morte como fim da evolução do ser humano traz um conhecimento limitado, circunscrito aos cinco sentidos, e está relacionada à física newtoniana5,6. Essa visão apresenta seis postulados:
1. só existe o mundo como percebido pelos cinco sentidos, 2. tudo na natureza tem começo e fim, 3. a vida começa no nascimento e na morte do indivíduo, 4. a morte se caracteriza pelo fim das sensações, 5. a vida individual é independente da vida no Universo e 6. com a morte cessam a evolução e o aprendizagem do indivíduo
Os teóricos da física quântica, ao afirmarem que a morte é uma transformação, abordam a vida de outra forma e informam que as pesquisas sobre consciência e compreensão da visão do mundo quântico representam o futuro da ciência sob um novo paradigma6. Quando nos emocionamos, mobilizamos energias que as tradições espirituais denominam de prana, chi, ki ou energia vital, segundo a cultura de cada sociedade. Segundo Goswami6, o sentimento não é sensação; a sensação está somente relacionada ao sistema nervoso, enquanto o sentimento ocorre em conjunto com vários órgãos do corpo e, na verdade, não pertence ao corpo, sendo um movimento do corpo vital, energia que sentimos e que é denominada energia vital6.
Algumas religiões afirmam que a morte é a passagem de um estado de vida para outro, e outras apontam que ela é a mudança do estado de consciência. Nos últimos anos, por conta de alguns princípios da física quântica, os conhecimentos da ciência e da religião começaram a interagir, levando a expansão da compreensão do ser humano para além da dimensão biológica5,6. Essa ideia deve ser considerada principalmente quando se busca o alívio do sofrimento humano diante da morte5,7.
A dimensão entre o existencial e o transcendente é conhecida como dimensão espiritual. O ser humano apresenta diferentes dimensões, que são integradas pelo significado atribuído a cada uma delas. Às vezes se confunde a dimensão existencial com a espiritual, o que é uma verdade parcial, uma vez que a família, o trabalho e a religião podem apresentar ou não uma relação com o transcendente, Deus o Sagrado e o sobrenatural7.
Assim, é necessário diferenciar espiritualidade de religiosidade, apesar haver grande relação entre ambas. A religiosidade envolve dogmas, culto e doutrina que são partilhados pelas diversas religiões, enquanto a espiritualidade está entrelaçada com questões que transcendem os fenômenos sensoriais. Trata-se de questões referentes, por exemplo, ao significado e ao propósito da vida que buscam respostas nos permitam realizar uma reorganização interior e repensar os conceitos e as prioridades da vida8.
O processo educativo para a morte começa a acontecer nas universidades, principalmente com o advento do estudo dos cuidados paliativos9, embora ainda haja alguns vazios relacionados à tanatologia em algumas instituições no Brasil10. Dessa forma, como o fenômeno da morte para os médicos ainda é uma questão a ser muito discutida e esclarecida, devem-se ponderar os reflexos sobre a prática médica que ocorrem quando um paciente morre. A vida hospitalar está carregada de vivências do morrer, e, quando se considera o aspecto curativo tradicional da Medicina, observa-se que há dificuldades na assimilação filosófica dos cuidados paliativos que, muitas vezes, são rejeitados pelos familiares e vistos como uma forma não adequada de atenção ao paciente e consequente de aceitação da terminalidade da vida10.
Kübler-Ross11 estudou a morte e o morrer e expôs diversos sentimentos vivenciados por aqueles que encaram a proximidade da própria morte ou de familiares e amigos. A autora, em sua clássica obra Sobre a morte e o morrer, afirma que a forma de ver a morte como tabu é acompanhada da visão de algo trágico, o que impede que se observe a morte como natural, mesmo durante a infância, na juventude e na idade avançada. O progresso da tecnologia e das conquistas científicas tornou os seres humanos capazes de desenvolver novas qualidades, no entanto, em relação à morte, continuam a apresentar um processo de defesa que se manifesta de diversas formas, desde medo da morte e até a incapacidade de prevê-la.
A angústia, a insegurança, o temor, o arrependimento, a culpa e a revolta são afetos que podem ser acompanhados da dúvida e da indagação sobre descuido na assistência12. Há muitos estudos sobre as reações dos profissionais da saúde perante a morte, o luto e as competências. Intervenções terapêuticas podem ser fundamentais na alteração dos cuidados oferecidos ao doente, aos familiares dele e aos profissionais envolvidos no processo de morte e luto, de modo a ajudá-los a transformar a visão limitadora da morte, aliviar o sofrimento e melhorar a qualidade de vida e do processo da morte12.
Assim, a morte continua sendo considerada um desafio para os que cuidam e tratam das enfermidades, entendendo-se também que docentes e discentes da área da saúde necessitam de formação mais acurada sobre o tema. Esse desafio ocorre tanto para a sociedade como para os educadores, em todos os níveis educacionais, ou seja, desde os ensinos fundamental e médio. Em todos os níveis da educação, percebe-se a necessidade de os educadores entrarem em contato com sua visão de morte e lutos, considerando sua influência em seus alunos, devendo haver espaços para emoções, sentimentos e comunicação13.
Alguns currículos de cursos superiores da saúde destacam as tecnologias e os medicamentos destinados à cura ou ao tratamento de enfermidades, o que reforça a formação dos profissionais voltada à defesa da vida e à batalha contra a morte. O ensino e a aprendizagem sobre o processo de morrer e a morte são desafiadores, principalmente quando se percebe o despreparo para discutir o assunto. Uma das limitações se insere na forma como o tema é abordado, ou seja, a morte é cogitada em uma esfera biologicista, representando um evento contrário à vida14.
A graduação em Medicina é regulamentada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), que em 2014 incluíram a morte em seus conteúdos curriculares15. Por ser a morte uma constante no cotidiano dos profissionais da saúde, as DCN determinam a necessidade de compreender o fenômeno não só biologicamente, mas também social e emocionalmente, sendo assim uma das competências e habilidades específicas do médico, que deve ter esse aprendizado durante sua formação.
Portanto, a concepção de morte faz parte da educação médica e precisa ser mais discutida ante o despreparo discente e consequentemente de médicos em situações que envolvam lidar com a morte. Em algumas escolas médicas, despontam experiências positivas nesse sentido, principalmente no tocante à habilidade de comunicação entre médicos, pacientes e família. A comunicação entre o médico e seu paciente deve ser considerada um processo que pode influenciar a adesão ao tratamento e melhorar as relações interpessoais16. Comunicar enfermidades ameaçadoras à continuidade da vida, o que pode ser considerado uma má notícia, é uma vivência difícil para o médico e o estudante de Medicina que, muitas vezes, não sabem lidar com o sofrimento emocional do paciente e da família. A falta de uma comunicação adequada pode causar prejuízo a à relação terapêutica17.
Nos últimos tempos, surgiram diversos protocolos surgiram nos últimos tempos, todos com os mesmos procedimentos: preparação inicial, em que o médico rememora seus conhecimentos sobre a doença e seus cuidados; seleção de um local adequado para que a conversa ocorra; presença de pessoas que o paciente deseje; conversa franca e com compaixão; habilidade para lidar com o silêncio e os sentimentos que surgirem; planejamento de metas para momentos durante e após a conversa; revisão da compreensão do que foi conversado; e disponibilidade para dúvidas e/ou outros encontros que forem necessários16,17.
Um dos protocolos utilizados atualmente nas universidades brasileiras é o Setting up, Perception, Invitation, Knowledge, Emotions, Strategy and Summary (Spikes). Esse modelo de comunicação apresenta seis passos: (S) preparar-se para o encontro, (P) perceber o paciente, (I) convidá-lo para o diálogo, (K) transmitir as informações, (E) expressar emoções e (S) resumir e organizar estratégias. Há ainda quatro objetivos principais: identificar o conhecimento do paciente e dos familiares sobre a situação como um todo, oferecer informações de acordo com o que o paciente e a família são capazes de ouvir, dar suporte a reações que podem advir e finalmente possuir um plano para atuar perante a situação17.
Por tratar-se de um ocorrência natural da vida humana, a morte é um fenômeno com que o médico se depara frequentemente, no entanto o debate sobre ela é muitas vezes considerado mórbido. Por conta disso, o assunto é sempre evitado, como se abordar tal tema fosse uma forma de atrair a morte, o que evidentemente leva à fuga da reflexão sobre o fato. Em contrapartida, ocorre cotidianamente o contato, por meio dos meios de comunicação, com imagens de horror e morte, seja em forma de documentários ou ficção18.
Com base no exposto, pode-se constatar a importância do tema na formação médica, e este artigo objetiva relatar a vivência e percepção sobre a morte entre estudantes de Medicina.
MÉTODOS
Trata-se de um estudo qualitativo, observacional, realizado com 50 alunos de três períodos (segundo, quarto e oitavo) de um curso de Medicina, em Alagoas, no ano de 2016.
Na pesquisa original, adotou-se como instrumento um questionário elaborado pelos pesquisadores com perguntas abertas e fechadas sobre a morte, que foi aplicado em sala de aula. Aqui se apresenta o resultado da análise de uma das perguntas abertas:
Após a vivência da morte durante o curso, o que mudou na sua atuação como estudante e na sua vida?
Os dados foram analisados manualmente seguindo recomendações de Malheiros19. A primeira fase consistiu na organização dos dados, em que se identificaram as ideias que emergiram das respostas à questão norteadora. Nessa fase, realizou-se a pré-análise por meio de uma leitura aprofundada, com o objetivo criar as categorias, uma vez que elas não não foram elaboradas previamente. Essa fase corresponde à identificação da unidade de contexto. Para isso, todos os dados foram transcritos em uma planilha. Na primeira planilha, fez a transcrição dos depoimentos de forma ipsis litteris.
A segunda fase correspondeu à elaboração da segunda planilha que armazenou as ideias explícitas (categorias provisórias) e implícitas (focos) com a identificação dos sentidos, considerando os três princípios do método de Malheiros19. O primeiro princípio refere-se à exclusão, ou seja, quando um dado ou um conjunto de dados pertencer a uma categoria, automaticamente ele será excluído das demais. O segundo princípio está relacionado à pertinência: nesse caso, quando um dado não pode ser integrado a uma categoria por falta de escolha, é necessário que ele seja pertinente à categoria em que foi enquadrado. O terceiro princípio tem a ver com a objetividade: quando se liga um dado a uma categoria, é imprescindível que ele esteja claro para que não haja influência da subjetividade na organização dos resultados da pesquisa.
A terceira fase (terceira planilha) procurou responder à pergunta da pesquisa por meio das unidades de registro, em que se relacionou a fala com o foco ou tema. Essa fase teve como objetivo identificar a inferência obtida fazia sentido. Nesse momento, exemplifica-se no texto como se chegou ao resultado, que é a unidade de registro (uma palavra ou uma frase).
A quarta fase compreendeu a elaboração de duas planilhas. Na primeira, interpretamos os focos e suas unidades de registos, finalizando com a elaboração de síntese para cada foco. A segunda planilha dessa fase se refere à elaboração de ideias que correspondem às categorias e às suas respectivas subcategorias.
O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da universidade, sendo aprovado pelo Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE), Processo nº 45959415.3.0000.5013, não havendo conflitos de interesse.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A vivência da morte pode ocorrer em relação ao outro ou a si mesmo, com diferenças nos dois processos. Este estudo aborda a morte do outro e identifica como ela é vivenciada pelo estudante de Medicina durante a graduação. Os dados obtidos resultaram em três categorias relacionadas à vivência da morte durante a graduação, refletindo o preparo ou não para lidar com o fenômeno.
As categorias identificadas foram significação da morte, qualificação profissional e humanização, que apresentamos no Quadro 1 com suas respectivas subcategorias.
CATEGORIAS | SUBCATEGORIAS |
---|---|
Significação da morte | Na vida pessoal |
Na vida profissional | |
Qualificação profissional | Limites de atuação profissional |
Limites do curso em relação à morte | |
Humanização | Relação médico-paciente |
Cuidados paliativos |
Fonte: elaborado pela autoras
Significação da morte
Essa categoria apresentou duas subcategorias, ou seja, significação na vida pessoal e na vida acadêmica e profissional. Como alguns discentes não haviam passado pelo processo da morte de forma próxima na família ou entre amigos, a vivência na graduação possibilitou a reflexão sobre o tema e a existência da proximidade da morte. Falar da morte nos espaços de ensino e trabalho médico traz olhares diversos, passando pelo suposto fracasso da área médica20,21.
Significação na vida pessoal
A significação da morte na vida pessoal vem relatada pelos pesquisados na forma de “passar a enxergar a morte como natural”, dentro do processo da vida que é inevitável a todos seres vivos. A morte está enraizada no dia a dia da vida humana, e a consciência dela é uma das características da humanidade, uma vez que o ser humano é o único animal que tem a sensibilidade de conceituá-la e captá-la 4. No entanto, apesar de certa, a morte aparece ainda nos dias atuais como um mistério e, por isso, vem provocando a busca de conhecimentos no sentido de melhor entendê-la.
Apesar de certa e por mais que se estude, os resultados das pesquisas realizadas pouco têm ajudado ante o muito que ainda é desconhecido sobre o fenômeno, que é temido por causar o desparecimento físico e a consequente anulação do ser, levando à dificuldade do sentido que lhe é dado4.
[...] ver a morte do paciente me fez perceber o quanto é difícil lidar com a morte (João, 20 anos).
Me tornei mais reflexiva, depois que vi o paciente falecer na enfermaria [...] (Isa, 21 anos).
Lidar com a morte exige entrar em contato com a terminalidade da vida material e a amenização das forças do ego, sendo um desafio para o enfrentamento das emoções de perda e desapego que ela carrega. Refletir sobre o fenômeno e assumir a dificuldade em lidar com ele possibilita ao estudante a mudança na forma de ver o fenômeno e lidar com ele, gerando uma maior aproximação e possibilitando deixar de negá-lo ao assumir sua existência e possiblidade no cotidiano.
Kübler-Ross11 identificou cinco estágios de uma paciente com doença terminal incurável. O primeiro estágio é a negação, quando não se admite o diagnóstico. A negação funciona como um anteparo às notícias inesperadas e chocantes, trata-se de uma defesa temporária que é substituída por uma aceitação parcial. A raiva encontra-se no segundo estágio, momento em que o paciente se torna intransigente e impaciente em relação às terapias propostas. O terceiro estágio refere-se à barganha, quando se busca uma nova tática com o propósito de aceitar a situação desde que se possa negociar com Deus o recebimento do milagre da cura.
O quarto estágio é o insucesso da barganha que traz a depressão, momento muito importante para cuidar de quem está morrendo. Existem nesse momento dois tipos de depressão: aquela que envolve as preocupações de quem quer deixar a vida organizada e a outra que leva em conta perdas iminentes. O quinto e último estágio traz a aceitação por quem teve ajuda e tempo para superar os estágios anteriores. Kübler-Ross11 descreve um grau de “tranquila expectativa” que não deve ser confundido com felicidade. Trata-se da fuga de sentimentos, do estado de profundo cansaço e da necessidade de aumentar as horas de sono. É nessa hora final que os familiares necessitam de compreensão e apoio.
Significação na vida acadêmica e profissional
Em relação a essa subcategoria, obtivemos as seguintes afirmações:
Tive de aprender a lidar com o fato de que a morte existe e que temos de tentar lidar com ela sem que esta afete o nosso trabalho, sendo que não é fácil (Maia, 22 anos).
Depois de tantos anos estudo e convivência no hospital, passei a encarar a morte com menos sofrimento e entender que nem sempre conseguiremos a cura (Paulo, 24 anos).
A visão que o estudante tem sobre a morte poderá determinar a disponibilidade interna, os valores, os conceitos e os preconceitos relacionados a ela e ao morrer. O entendimento da morte como uma condição intrínseca da vida é importante para o mundo, considerando-se atitudes e competências notadamente entre os que lidam diretamente com ela em sua vida profissional. Os médicos e os estudantes de Medicina, em seu início de vida profissional, deparam-se com a responsabilidade de decidir sobre as condições de saúde e vida de seus pacientes13,14. Isso traz angústia e ansiedades quando eles não possuem subsídios necessários para encarar o ocorrido na vida acadêmica.
Muitos médicos não se sentem preparados para prestar cuidados de fim de vida ou se comunicar com os pacientes e as famílias sobre questões sensíveis relacionadas com a morte e o morrer. Os médicos geralmente atribuem sua falta de preparação a uma formação inadequada na escola de Medicina3,5,20,21. Verificou-se que os estudantes valorizam o preparo profissional para enfrentar a morte durante o curso, com a apreensão e aplicação dos princípios dos cuidados paliativos, o que leva à compreensão dos limites do conhecimento da Medicina e da atuação do profissional médico perante a morte, despertando o sentimento de humanização no cuidado com ele próprio, com o paciente e com a família.
Isso remete à categoria qualificação profissional que apresenta as duas subcategorias descritas a seguir.
Limites de atuação profissional
Apesar de o tema da morte ser discutido há muito tempo e o assunto ser debatido em vários âmbitos, os médicos geralmente não se sentem capazes de enfrentar o processo, encarando a morte com sentimento de culpa, impotência e fracasso, embora sejam capacitados para lidar com doenças terminais21.
A Medicina prepara o profissional para lutar em favor da vida a todo momento, no entanto é necessário que o médico diminua sua onipotência e reconheça que a ciência tem limites ante as decisões que a vida traz. Isso proporcionará proteção para lidar com temores perante a morte e a culpabilização. Existe um compromisso entre o médico, o paciente e a família no sentido do cuidado e da cura, havendo a crença de que o médico tem o domínio sobre a vida e a morte, o que cria uma onipotência imaginária no profissional e provoca uma gratificação narcísica, que ajuda o profissional a superar seus temores de fracasso ante a morte22.
Nesse sentido, o médico oscila entre a sensação de tudo poder e a frustração de nada conseguir fazer diante dos imprevisíveis processos biológicos, e assim a piora do paciente constitui a destruição da construção imaginária de onipotência22,23. O médico deve enfrentar o momento da morte dos seus pacientes, e, para isso, são fundamentais a competência e o reconhecimento dos limites das terapias disponíveis.
Isso está claro nas falas dos discentes pesquisados:
[...] é preciso ter noção de limite entre intervenção e curso natural da vida, ter a capacidade de perceber que às vezes, por mais que você faça bem o seu trabalho, a natureza tem sua própria programação (Paulo 21 anos).
Ver a morte como uma passagem. Ter ciência que eu fiz tudo que estava ao meu alcance (Paula, 23 anos).
Apesar de tantos conhecimentos, muitas vezes não somos capazes de conseguirmos “salvar” a vida do paciente, porém devemos dar sempre o melhor de nós (Laura, 23 anos).
Geralmente a morte ocorre em hospitais visando ao processo de cura, e assim o paciente com doença terminal é visto como um fracasso, sendo comum pensar que o importante é vencer a doença a qualquer custo. Dessa forma, vencer a morte é vencer um adversário3.
Quando admitimos o medo que temos da morte, assumimos o medo da vida, ao mesmo tempo que passamos a reconhecer a grandeza de viver e o valor que isso representa. Nesse processo, aceitamos a precariedade da existência e o risco sempre presente de perda definitiva de nós mesmos e daqueles que amamos e conseguimos assumir a angústia da perda23.
Limites do curso em relação à morte
A temática da morte pode ser explicada de forma biológica ou ser discutida de forma plural e interdisciplinar. O professor deve refletir naturalmente e de forma sensível e possibilitar a percepção da transcendência humana. Educar com a consideração da dimensão da transcendência humana é educar para livrar o estudante do medo da morte5,7,16,22.
A morte é um tema discutido pelos profissionais da saúde, e muitas dessas discussões abrangem questões técnicas sobre como realizar procedimentos corretos e administrar os medicamentos. Entretanto, poucos são os espaços em que se questionam os sentimentos e as percepções diante da morte3.
As DCN referentes ao curso de Medicina oficializaram o acompanhamento do processo de morte como habilidade a ser desenvolvida no ensino médico15, todavia as escolas ainda encontram dificuldades para incluir o tema na grade curricular. Entre os fatores para essa dificuldade, está a qualificação dos docentes para discutir sobre o assunto com os estudantes, uma vez que falar da morte remete à própria morte, trazendo angústia e medos. Contudo, é imprescindível despertar a reflexão sobre os limites do saber médico para que seja possível a criação de um espaço além do saber biológico que capacite também os docentes24.
Visualiza-se que a dificuldade de inclusão do desenvolvimento da competência e da habilidade para lidar com a morte na formação acadêmica não é um fato acidental do ensino medico, estando implicadas questões epistemológicas que embasam a biomedicina, que remetem ao enigma de lidar com a dor, o sofrimento e a morte24.
Vontade de estar mais capacitada (Paula, 22 anos).
Busquei compreender mais a morte de forma a me preparar melhor, apesar de tantos conhecimentos médico recebidos no curso, muitas vezes não somos capazes de conseguirmos “salvar” a vida do paciente, porém devemos dar sempre o melhor de nós (João, 19 anos).
Acho que o curso devia preparar melhor profissionalmente para lidar com a morte (Mariana, 24 anos).
Com base nos relatos, este estudo mostrou que são necessários debates sobre a morte e o morrer durante a graduação, para que os estudantes de Medicina se sintam preparados para vivenciar a morte de pacientes e realizar a comunicação aos familiares.
A terceira categoria foi a humanização, que apresentou duas subcategorias: relação médico- paciente e cuidados paliativos.
A formação médica, para seu pleno exercício profissional, necessita unir ciência e formação humanista20. Para tal, o currículo médico foi atualizado por meio das DCN11 que contêm disciplinas baseadas na formação humanista, como cuidados paliativos, psicologia, relações humanas, bioética, entre outras6,21-24.
A humanização valoriza o ser humano e oportuniza a autonomia e a ampliação de sua capacidade de ver e modificar o meio em que vive, por meio da responsabilidade com a criação de vínculos solidários coletivamente nos processos de produção de saúde. Uma das ferramentas usadas no processo da humanização é a clínica ampliada que possibilita o desenvolvimento de uma clínica humanizada. Essa clínica contribui com uma abordagem do adoecimento e do sofrimento, que considera a singularidade do sujeito e a complexidade do processo saúde/doença25.
A abordagem da relação médico-paciente no curso pesquisado acontece em três disciplinas do eixo de desenvolvimento pessoal, durante o ciclo básico, sendo posteriormente orientada pela conduta dos professores das demais disciplinas, levando-os a diversas posturas26. Geralmente, espera-se que eles possuam em sua experiência pessoal comportamentos e atitudes que os predisponham à humanização e que sejam aplicados na vida de estudante e do profissional16,17,27.
Nesta pesquisa, muitos depoimentos que comprovam o despertar em relação ao processo de humanização:
Vivenciar a morte durante o curso aumentou a minha sensibilidade e a vontade de se preparar melhor para lidar com a morte (Joana, 21 anos).
Tento me colocar na situação da família afetada, e termos um médico mais humano (José, 22 anos).
Me fez me forçar a ver o paciente como um ser humano (com seus sentimentos, conflitos e sonhos) igual a mim e menos como um boneco cheio de enigmas que eu deveria desvendar (Patrícia, 24 anos).
Os cuidados paliativos são ações que procuram agir na qualidade de vida de pessoas doentes e familiares durante uma doença terminal, e seu ensino no currículo da graduação em Medicina auxilia aos discentes a encarar limitações que enfrentarão em sua vida profissional e também durante a graduação22,28.
O trabalho de médicos que lidam com a morte e doenças terminais deve ser realizado em equipe multiprofissional, que deve estar preparada para lidar com sentimentos de medo, angústia e sofrimento tanto dos pacientes como de seus familiares, atuando com equilíbrio e respeito ante a finitude e as necessidades do paciente5,6,14,16. A morte é vista como um processo natural que deve ocorrer em seu tempo28.
Observam-se, nas falas dos discentes, afirmações que remetem a esse cuidado:
Pude perceber como a morte às vezes é necessária, principalmente em pacientes que vivem em sofrimento (Ana, 21 anos).
Passei a considerar mais a dor do paciente e aliviar o sofrimento mesmo em situação de morte iminente (Carlos, 24 anos).
Passei a ter mais atenção e carinho com pacientes em estado crítico, mais paciência e atenção nos cuidados com o paciente (Feliciana, 23 anos).
Essas afirmações remetem ao aprendizado, durante o curso, dos aspectos da humanização ligados à relação médico-paciente e aos cuidados paliativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No Brasil, os cursos médicos vêm buscando trabalhar com situações que aproximam os estudantes de vivências necessárias para melhor significar a morte, com ações que podem influir na maneira de pensar do futuro profissional perante a terminalidade da vida do paciente e o agir com os familiares.
O estudo mostrou que os discentes modificaram sua visão da morte após a vivência no curso, tanto em relação à morte do outro como à sua própria. A vivência da morte despertou a atenção dos discentes para o tema, de modo a aproximá-los, no cotidiano, do fenômeno e revelar a importância dele para a formação dos futuros profissionais. Isso trouxe a percepção da necessidade de ampliar discussões e adquirir novos conhecimentos durante a graduação.
Apesar de existirem no curso estudado disciplinas como Comunicação e Habilidades, Ética e Relações Pessoais, percebeu-se a necessidade de maiores investimentos em relação ao tema abordado, tanto para docentes como para discentes, que repercutirão positivamente na formação de todos e no tratamento com pacientes e familiares.