INTRODUÇÃO
O debate público e midiático em torno do sofrimento e do adoecimento mental entre universitários tem sido reaberto com frequência nos últimos anos, ocasionado por eventos trágicos ou pela sensibilidade da sociedade às queixas e demandas crescentes endereçadas aos profissionais da saúde mental e a este campo do saber de uma forma geral1)-(4. Com nossa pesquisa visamos contribuir para esse debate, trazendo algumas reflexões a respeito de dados colhidos em um serviço de apoio psicopedagógico voltado para estudantes da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), onde são ministrados os cursos de Medicina, Fonoaudiologia e Tecnologia em Radiologia.
O Núcleo de Apoio Psicopedagógico aos Estudantes da Faculdade de Medicina (Napem) foi criado em 2004 como um órgão de assessoramento da diretoria para assuntos relativos a questões de ordem pedagógica e psicossocial que afetam individual ou coletivamente os estudantes da Faculdade de Medicina da UFMG5. A necessidade de apoio psíquico-pedagógico ao estudante de Medicina que levou a criação do Napem se repete na construção de serviços semelhantes em outras faculdades brasileiras6), (7.
Hoje as iniciativas se multiplicam e são muitas as ações para manter serviços desse gênero. A preocupação com a saúde mental dos estudantes tem sido crescente, com vários trabalhos publicados8 e grupos de trabalho ativos, como o Fórum Nacional de Serviços de Apoio ao Estudante de Medicina (Forsa) da Associação Brasileira de Educação Médica (Abem) que reúne pessoas de todos os serviços de apoio aos estudantes.
Apesar do empenho de várias faculdades em oferecer suporte psíquico a seus estudantes, questões sobre o melhor tipo de abordagem, acompanhamento e encaminhamento dos alunos permanecem em debate. Uma das possíveis razões para isso é que os fatores responsáveis ou que têm contribuído para o adoecimento mental dos estudantes ainda não estão completamente esclarecidos9)-(11.
Neste trabalho, interessamo-nos por analisar, com base nos dados contidos na ficha preenchida pelos alunos no momento em que realizam a demanda de atendimento ao Napem, a ocorrência de tratamento psicológico e/ou psiquiátrico antes do ingresso na universidade. Nossa hipótese é que o sofrimento mental anterior ao ingresso na universidade é um dos fatores que podem levar ao aumento da fragilidade psíquica do aluno, tornando-o mais suscetível às pressões do curso médico.
Considerando ainda que as condições sociais do estudante constituem variável cuja relevância já foi indicada por estudos realizados em serviços similares ao Napem12)-(14 e que diversas mudanças foram introduzidas nas formas de ingresso nas universidades federais com o Sistema de Seleção Unificada (Sisu) e a Lei de Cotas15, como maior mobilidade geográfica dos alunos e, consequentemente, maior distância do convívio familiar, afastamento de núcleos de sociabilidade já estabelecidos e incipiência dos novos relacionamentos, nosso levantamento levou em conta também as circunstâncias sociodemográficas desses estudantes.
METODOLOGIA
O Napem acolhe estudantes de graduação dos cursos de Medicina, Fonoaudiologia e Tecnologia em Radiologia, ofertados pela Faculdade de Medicina da UFMG, que o procuram por demanda espontânea. Este trabalho foi desenvolvido com base nas informações obtidas da ficha de inscrição preenchida pelo próprio aluno ao buscar, pela primeira vez, o atendimento no Napem, na qual, além de dados sociodemográficos, como curso, período, idade, sexo, procedência e tipo de moradia em Belo Horizonte, constavam as seguintes perguntas:
1. Você já fez tratamento psicológico ou psiquiátrico anteriormente ao seu ingresso no curso de graduação?
( ) Não
( ) Sim, psicoterapia
( ) Sim, uso de medicamentos psicoativo
( ) Sim, psicoterapia e medicamentos psicoativos
2. Se você respondeu afirmativamente:
Se medicamento:
1 - Qual(is)?
2 - Por quanto tempo?
Se terapia: Por quanto tempo?
3. Por que você está procurando o Napem?
Analisaram-se os dados de todos os alunos do curso de Medicina que fizeram sua inscrição no Napem durante um ano-calendário, no período compreendido entre 2016 e 2018. O ano não está explicitado para evitar qualquer possibilidade de identificação dos alunos. O curso tem a duração de seis anos e recebe anualmente 320 alunos. No ano avaliado, estavam matriculados 1.986 estudantes (1.066 homens e 920 mulheres).
Tabularam-se as variáveis para cálculo de frequência, e as comparações foram feitas empregando o teste do qui-quadrado. Para comparação entre médias, empregou-se o teste t de Student. Na análise dos dados, adotou-se o programa estatístico SPSS versão 20.0.
O projeto foi aprovado no Comitê de Ética e Pesquisa da UFMG (Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE) nº 73541817.2.0000. 5149).
RESULTADOS
Incluíram-se no estudo 87 alunos (47 do sexo masculino e 40 do sexo feminino). A média de idade foi de 23,3 (±3,7) anos, e a faixa etária variou de 18 a 38 anos. Vinte e seis alunos (29,9%) eram de Belo Horizonte, cidade na qual se localiza a faculdade, e 61 (70,1%) provinham de outras cidades tanto do estado de Minas Gerais quanto de outros estados (São Paulo, Espírito Santo, Bahia, Paraná e Mato Grosso do Sul). Quarenta estudantes (46,0%) residiam com os pais ou com parentes, 27 (31,0%) residiam em repúblicas estudantis ou com amigos e 20 (23,0%) moravam sozinhos em Belo Horizonte.
Com relação à sua localização temporal no curso, 42 (48,3%) estudantes estavam nos dois primeiros anos, 24 (27,6%) no terceiro ou quarto ano e 21 (24,1%) nos dois últimos anos. Considerando uma média de 320 alunos/ano inscritos na Faculdade de Medicina, a procura pelo Napem foi significativamente maior (p = 0,009) entre os que estavam nos dois primeiros anos do curso.
Tratamento psíquico anterior ao ingresso na universidade foi relatado por 53 (60,9%) alunos, dos quais 37 (42,5% do total) declararam ter feito uso de medicamentos psicoativos (associado ou não à psicoterapia) e 16 fizeram psicoterapia sem o uso de medicamentos. Entre os medicamentos utilizados pelos estudantes, foram citados antidepressivos da classe dos inibidores da recaptação da serotonina (ou serotonina/noradrenalina ou dopamina/noradrenalina/serotonina), antidepressivos da classe dos tricíclicos/tetracíclicos e ansiolíticos, como os benzodiazepínicos, estabilizadores de humor, anti-psicóticos, metilfenidato, indutores do sono e prometazina. Os períodos de tratamento medicamentoso e psicoterápico variaram de um mês a cinco anos e de dois meses a dez anos, respectivamente.
O relato de tratamento psíquico antes da entrada na universidade foi significativamente mais frequente (p = 0,04) entre os estudantes que cursavam os dois primeiros anos do que entre os que cursavam os demais anos (Tabela 1). O relato do uso de medicamentos também foi mais frequente (p = 0,046) entre os alunos dos dois primeiros anos (21/42, 50%) quando comparados aos dos dois últimos anos do curso (5/21, 23,8%).
Entretanto, não se observaram diferenças estatisticamente significativas na média de idade, na distribuição por sexo, na procedência ou no tipo de moradia em Belo Horizonte quando se compararam os grupos de estudantes com e sem relato de tratamento psíquico prévio (Tabela 1).
Tratamento psíquico prévio | ||||
Sim | Não | Valor de p | ||
Idade (anos) | Média (DP) | 22,7 (3,3) | 24,2 (4,3) | 0,06 |
Sexo | Masculino (%) | 29 (33,3) | 18 (20,7) | |
Feminino (%) | 24 (27,6) | 16 (18,4) | 0,87 | |
Ano cursado | 1º e 2º (%) | 30 (34,5) | 12 (13,8) | |
3º e 4º (%) | 15 (17,2) | 9 (10,3) | ||
5º e 6º (%) | 8 (9,3) | 13 (14,9) | 0,04 | |
Procedência | Belo Horizonte (%) | 15 (17,2) | 11 (12,6) | |
Outras cidades (%) | 38 (43,8) | 23 (26,4) | 0,68 | |
Tipo de moradia em Belo Horizonte | Pais/parentes (%) | 24 (27,6) | 16 (18,4) | |
Sozinho (%) | 12 (13,7) | 8 (9,3) | ||
República/amigos (%) | 17 (19,5) | 10 (11,5) | 0,96 |
Fonte: Elaborada pelas autoras.
Dentre os motivos para a busca de atendimento no Napem, predominaram “ansiedade”, “depressão/sintomas depressivos” e “instabilidade de humor” que foram relatados por 59 (67,8%) estudantes. “Ideação de morte/suicídio” ou “planejamento de autoextermínio” e/ou “tentativas prévias de autoextermínio/suicídio” estavam presentes em 12 relatos.
Questões como conflitos familiares ou internos, doença de um dos pais ou do próprio aluno, problemas financeiros, dificuldade de adaptação à cidade, dificuldade com a separação dos pais e uso de álcool e/ou drogas foram relatados por 17 (19,5%) alunos. Questões relacionadas especificamente ao curso foram relatadas por cinco (5,8%) alunos. Dois deles, alunos do último ano, relataram ansiedade por causa da proximidade da finalização do curso, um mencionou ansiedade provocada pelo internato rural, um queixou-se de pressão com cobranças do curso, e um afirmou que queria se desligar do curso, mas não apresentou possíveis justificativas para isso. Seis alunos (6,9%) demandaram atendimento por outras razões.
DISCUSSÃO
Apesar de a amostra que constitui este estudo - estudantes que demandaram de forma espontânea atendimento no Napem - não representar, em nenhum dos parâmetros analisados, a população de estudantes da Faculdade de Medicina, algumas breves considerações merecem ser feitas a partir da comparação com os dados apresentados por Nonato16 em sua pesquisa sobre os processos de escolha dos cursos superiores e o perfil dos estudantes que ingressaram na UFMG em 2012 e 2016. A autora utiliza dados gerados pela Pró-Reitoria de Graduação (Prograd) da UFMG e por um questionário próprio aplicado aos alunos.
No que diz respeito à idade e ao sexo dos ingressantes no curso de Medicina, Nonato16 observa o predomínio daqueles com idades compreendidas entre 18 e 24 anos, bem como de estudantes do sexo masculino. Os dados da nossa amostra - média de idade de 23,3 anos e 54% estudantes do sexo masculino - parecem semelhantes aos da autora, não sugerindo que haja uma concentração da demanda por atendimento no Napem em função da idade ou do sexo.
No que se refere à procedência e ao tipo de moradia atual, variáveis provavelmente relacionadas entre si, a maioria dos estudantes (70,1%) que procurou o Napem provinha de outras cidades que não Belo Horizonte, onde se localiza a Faculdade de Medicina da UFMG. Ainda, e talvez em consequência disso, a maioria (54%) morava, em Belo Horizonte, em repúblicas estudantis, com amigos ou sozinhos. A maior porcentagem de demandas dirigidas ao Napem por parte de alunos provenientes de outras cidades que não Belo Horizonte tampouco evidencia uma característica particular dessa clientela, já que, por causa das possibilidades abertas pelo Sisu, tem-se hoje na UFMG e, em particular, no curso de Medicina um maior número de estudantes provenientes do interior do estado e de outros estados, com relação aos procedentes de Belo Horizonte e região metropolitana. Conforme assinala Nonato16, após a implantação do Sisu, “a concorrência por esse curso [...] deixou de ser predominantemente local para ser nacional (p.198-99)”.
A análise dos dados relativos ao ano cursado pelo estudante quando procurou o atendimento no Napem mostrou predominância dos alunos que estavam nos dois primeiros anos do curso. Estudos com estudantes de Medicina em Portugal revelaram maior estresse psicológico nos primeiros anos do curso17. É notável que os primeiros anos do curso sejam marcados por fortes mudanças na rotina escolar dos estudantes, que se deparam com uma redefinição das dinâmicas de ensino-aprendizado e com a constituição de novos núcleos de sociabilidade entre os colegas. Tais mudanças frequentemente exigem dos alunos algum tipo de reposicionamento subjetivo no que diz respeito às relações que estabelecem com as figuras de autoridade e também com os próprios pares18. Tais exigências podem acarretar sofrimento psíquico, principalmente para os estudantes de Medicina que habitualmente enfrentam intensos processos preparatórios para ingressar no curso e descobrem que o alcance da meta não constitui o fim da sobrecarga, mas sim um recomeço repleto de novos desafios
Em relação ao relato de tratamento psíquico prévio ao ingresso na universidade, mesmo considerando que trabalhamos com uma amostra de alunos que demandaram, espontaneamente, atendimento no Napem e que essa origem condiciona e localiza nossos dados, limitando o alcance de nossas conclusões, pareceu-nos significativo que tal relato tenha sido feito por 61% dos estudantes e que, dentre eles, 37 (42,5% do grupo total) declararam ter feito uso de medicamentos psicoativos.
Embora a forma de obtenção dos dados do presente estudo - questões pontuais contidas na ficha de inscrição no Napem - não nos autorize a estabelecer diagnósticos ou avaliar os critérios empregados para a prescrição de medicamentos, podemos levantar a hipótese de que o relato de tratamento psíquico é um indício da existência de sofrimento mental. Apesar da constatação de que medicamentos psicoativos têm sido, cada vez mais, prescritos com diferentes objetivos, nas mais variadas especialidades médicas19), (20, aqui, no entanto, a sua utilização parece estar associada à presença de dificuldades ou queixas de ordem psíquica, que também foram apontadas pela maior parte dos estudantes (68%) como justificativa para a busca de apoio no Napem.
Partindo dessa premissa, constatamos que a frequência de sofrimento mental (61%) prévio ao ingresso na universidade na amostra por nós analisada foi superior às taxas de transtornos depressivos (5,8%) e de ansiedade (9,3%) estimadas pela Organização Mundial da Saúde para a população geral do Brasil21, bem como superior às taxas descritas para o “transtorno mental comum” na nossa população (variação entre 17% e 35%)22. Também elevado foi o percentual de alunos que relataram uso de medicamentos psicoativos, resultados que nos parecem compatíveis com pesquisas que indicam o alto consumo de psicotrópicos na atualidade19), (20.
Relato de tratamento psíquico prévio (p = 0,04) e de uso de medicamentos (p = 0,04) foi visto mais frequentemente entre estudantes que cursavam o primeiro ou o segundo ano do que entre os dos demais anos. É possível que a existência de sofrimento mental antes do ingresso na universidade seja um fator predisponente ao sofrimento mental do estudante universitário, o que faz com que a busca de suporte psíquico se dê precocemente durante o curso. Também apontando para a presença de transtorno psíquico logo no início do curso médico, Puthran, Zhang, Tam e Ho23, em meta-análise que incluiu 64 estudos, observaram maior prevalência de depressão entre aqueles do primeiro ano (33,5%) do que entre os do quinto ano (20,5%). Embora o estudo não analise as condições de saúde mental dos estudantes antes do ingresso na universidade, é razoável supor que pelo menos uma parte desses alunos do primeiro ano tenha ingressado na universidade com algum grau de sofrimento mental.
Dentre os estudos consultados, uma comunicação de pesquisa publicada em 200824 nos chamou a atenção por trabalhar dados colhidos em questionários de pré-admissão à universidade, que interrogam, como as fichas aqui utilizadas, a respeito da existência de problemas psíquicos anteriores ao ingresso na faculdade. Trata-se de uma pesquisa retrospectiva que dispôs de informações sobre os estudantes de Medicina a partir do banco de dados do Serviço de Saúde Ocupacional de Nottingham, no Reino Unido. Constata-se, nessa pesquisa, maior frequência de relato de adoecimento mental prévio ao ingresso na faculdade entre os estudantes que se desligaram do curso quando comparados aos que o finalizaram. No curso de Medicina da UFMG, o número de alunos que desistem do curso tem sido bastante inexpressivo. De acordo com o Departamento de Registro e Controle Acadêmico da UFMG, no ano estudado, foram nove desistências formais e três exclusões por rendimento insuficiente.
Essas pesquisas indicam, tal como a nossa, a relevância da história pregressa de sofrimento mental dos estudantes na compreensão das dificuldades por eles enfrentadas em sua formação acadêmica. Uma hipótese a ser considerada é que o tratamento psíquico prévio possa ser um indicador de maior grau de fragilidade emocional, o que pode estar associado a uma maior dificuldade do indivíduo em lidar com as exigências acadêmicas do curso.
Embora não seja objetivo deste estudo (e nem seu desenho o permitiria) esclarecer a que se deve esse índice elevado de uso de medicações psicoativas entre jovens que ingressam na universidade, parece relevante tecer alguns comentários.
Alguns estudos sugerem que o adoecimento mental não só tem se tornado mais frequente na sociedade contemporânea, como também tem atingido cada vez mais a população jovem8), (24), (25), (26. Outros enfatizam a generalização e banalização do consumo de medicamentos psicoativos na contemporaneidade, em busca de tratamento para sofrimentos psicológicos pontuais, com aumento significativo da prescrição de medicamentos antidepressivos por médicos de todas as especialidades19), (20. Outros, ainda, estudam as mudanças introduzidas no saber e na prática psiquiátricos em função da descoberta de moléculas psicoativas, discutindo não só a revitalização da psiquiatria biológica, mas também os interesses econômicos, de pesquisadores, médicos e pacientes envolvidos nessa aposta27)-(29. Para Rose30, os avanços nesse campo vêm acumulando recursos imagéticos e de linguagem que conduzem à afirmação de uma subjetividade que se compreende a partir do funcionamento cerebral e que busca soluções medicamentosas. A relação estabelecida entre sintomas como depressão e ansiedade e os déficits ou anomalias no funcionamento do sistema de serotonina pode ser citada como um exemplo do tipo de argumento que embasa essa subjetividade. No entanto, é ainda difícil avaliar em que medida essa maneira neurobiológica de pensar substituirá os discursos psicológicos na oferta de elementos para a compreensão das dificuldades e para a sustentação de si.
Ainda em relação a essa questão, alguns resultados obtidos com a amostra avaliada merecem destaque. Assim, por exemplo, podemos interrogar se períodos muito curtos de uso de medicação (um/dois meses), presentes nos relatos, poderiam sugerir prescrições visando atuar sobre manifestações de mal-estar pontuais. Ou se esse dado poderia apontar para a não adesão ao tratamento, questão significativa no contexto do atendimento psiquiátrico e da realidade vivida pelos profissionais que atuam no Napem. Podemos também interrogar se o uso simultâneo de drogas antipsicóticas e de estabilizadores de humor, presentes em alguns relatos, poderiam indicar com grau maior de certeza a presença de doença mental. Corroborando essa possibilidade, é interessante citar que 20 dos 87 estudantes da nossa amostra foram encaminhados para acompanhamento psiquiátrico e que, dentre eles, 13 apresentavam relatos de tratamento medicamentoso prévio ao ingresso na universidade e oito de ideação suicida ou tentativa de autoextermínio.
Por fim, chama-nos a atenção o fato de que apenas cinco alunos tenham procurado atendimento no Napem por queixas relacionadas ao curso. Problemas relacionados ao internato e, especialmente, à finalização do curso, situações vividas com relativa frequência não só pelos estudantes de Medicina e provavelmente associadas à insegurança ante novas situações, foram relatados por três estudantes. Apesar de o aluno que declarou sua vontade de se desligar do curso não ter registrado seus motivos, pode-se pensar que essa situação de incerteza quanto à escolha profissional tenha sido uma causa de sofrimento psíquico, especialmente por se tratar do curso mais concorrido de uma reconhecida instituição pública de ensino superior. A equipe no Napem tem observado que esse dilema se tornou mais frequente após a instituição do Sisu como forma de seleção para admissão às universidades, quando a nota obtida, e não o desejo de exercer determinada profissão, passa a interferir na escolha do curso.
Em somente um questionário, encontramos queixa relativa às exigências do curso. De fato, a sobrecarga de horas de estudo do curso de Medicina, a competitividade entre os próprios estudantes e a insegurança provocada pelo fato de terem que lidar com o sofrimento do outro na área da saúde são fatores favorecedores e geradores de sofrimento mental em uma parcela dos alunos e não podem ser negados ou desconsiderados em nenhuma discussão sobre a saúde mental de estudantes31), (32. Na interpretação dos nossos dados, é possível supor que, enquanto o sofrimento mental prévio apresenta relevância na procura de atendimento no Napem pelos alunos do início do curso, fatores contingenciais (familiares, financeiros e outros) e os associados diretamente à sobrecarga do curso podem ter maior importância para alunos dos anos mais avançados.
A mais importante limitação do presente trabalho se refere à especificidade da amostra avaliada, constituída por estudantes que procuraram espontaneamente por um serviço de suporte disponibilizado pela faculdade, o que, portanto, não permite a generalização dos resultados obtidos para o universo de alunos do curso. Além disso, a abordagem foi retrospectiva e limitada à análise de um único ano, fornecendo, portanto, dados preliminares sobre a questão proposta. Para melhor esclarecimento do assunto, serão necessários trabalhos que avaliem longitudinalmente a qualidade de vida e a percepção sobre a saúde mental dos estudantes. Nesse sentido, alguns deles já estão em andamento na instituição e poderão permitir melhor compreensão do problema.
Em conclusão, os resultados obtidos mostraram elevada prevalência de alunos com histórico de tratamento psíquico prévio ao ingresso na universidade e buscando suporte nos primeiros anos do curso, o que sugere que esse seja um fator a ser identificado e abordado nas medidas a serem tomadas pelas universidades com o propósito de melhorar a saúde mental de seus estudantes.