Cara Editora,
Em dezembro de 2019, foi descoberto um novo vírus, denominado SARS-CoV-2, que causa a doença COVID-19, assim denominada pela Organização Mundial da Saúde (OMS). O SARS-CoV-2 surgiu inicialmente na cidade de Wuhan, na China, e se espalhou rapidamente por todo o mundo. Já em 30 de janeiro de 2020, a OMS reconheceu o surto dessa nova doença como uma emergência de saúde pública de importância internacional, que é considerado o maior nível de alerta. Posteriormente, no dia 11 de março de 2020, a OMS caracterizou a COVID-19 como uma pandemia1.
Até o dia 08 de julho de 2020, no mundo, foram registrados 11.994.182 casos da COVID-19 e 547.931 óbitos. No Brasil, nessa mesma data, já haviam sido confirmados 1.716.196 casos da doença e 68.055 óbitos. O vírus é transmitido através de gotículas respiratórias, do contato direto ou objetos e de superfícies contaminadas. Ou seja, a doença possui múltiplas vias de transmissão, fato que justifica a grande necessidade de distanciamento social1.
Com o distanciamento social, medida profilática mais efetiva contra a doença, houve a necessidade de reavaliação do processo de ensino-aprendizagem, visto que o distanciamento social obrigou estudantes de medicina do mundo inteiro a adotar tecnologias da informação e comunicação (TIC) para continuar com a rotina de estudos. Assim, as TICs e a internet têm sido cada vez mais utilizadas pelas instituições de ensino superior para suprir essa ausência nas salas de aulas. No entanto, devemos questionar se esse novo método de ensinar e aprender, denominado homeschooling, pode influenciar na formação de estudantes de medicina.
Com o advento da pandemia, as estratégias de ensino remoto são importantes meios de contenção dos efeitos do distanciamento social; no entanto, as evidências sugerem que inúmeras lacunas serão criadas sem a interação professor-estudante de medicina. Nesse sentido, para o pós-pandemia, é indispensável que as instituições de ensino planejem um robusto conjunto de ações para garantir o contato do estudante de medicina com pacientes, sejam em hospitais, ambulatórios ou na atenção primária em saúde.
Além das estratégias de ensino utilizadas por instituições de educação, é necessária uma regulamentação do Ministério da Educação (MEC) e demais órgãos regulamentadores. Assim, em 28 de abril, o Conselho Nacional de Educação (CNE) aprovou por unanimidade a resolução com diretrizes para orientação sobre aulas remotas durante a pandemia.
A Portaria Nº 343, de 17 de março de 2020, dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas remotas enquanto durar a pandemia da COVID-19. A Portaria veta a substituição de aulas práticas e estágios no curso de medicina. Já em 16 de junho de 2020, o MEC publica a Portaria Nº 544, autorizando a substituição de estágio e práticas por aulas remotas no curso de medicina. Seguindo as recomendações do MEC, as faculdades de medicina do país podem interromper esse contato prático durante a pandemia, o que certamente poderá comprometer o processo de formação de estudantes de medicina, uma vez que o contato com doentes é essencial para sedimentar conhecimentos teóricos.
Além disso, no curso de medicina, as relações humanas são de extrema relevância na construção do conhecimento e no estabelecimento de uma boa inter-relação. A prática médica requer mais do que conhecimento técnico, necessita de habilidades que possibilitem um cuidado humanizado e integral. Essas habilidades são cada vez mais necessárias à sociedade, o que fundamenta a necessidade de contato humano como parte sine qua non na formação médica. A fragilidade psicossocial provocada pela pandemia da COVID-19 é um grande exemplo da necessidade de um médico humanizado e com ampla capacidade de interação com o paciente/familiar2.
Com a mudança do perfil de estudantes de medicina e das instituições de ensino, nunca foi tão necessário diversificar os métodos de ensino-aprendizagem. Assim, no contexto da pandemia da COVID-19, existe a necessidade de uma diversidade de suportes e métodos para apoiar a criação de uma rotina positiva para os estudantes de medicina. Para que os estudantes de medicina consigam superar as barreiras educacionais impostas pela pandemia, é necessário que haja resiliência e que as instituições de ensino garantam um cenário de aprendizagem com metodologias ativas e inovadoras; assim, poderemos herdar um legado no pós-pandemia que possa contribuir na formação de novos médicos.
Seguindo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de graduação em Medicina, de 2014, o graduado em medicina deve ter uma formação generalista baseada no compromisso com o respeito e defesa à cidadania, à dignidade humana e à integralidade do ser humano. Além disso, terá como eixo transversal na sua prática médica diária os determinantes sociais do processo de saúde-doença. No entanto, o homeschooling pode não ser suficiente para atender às necessidades interacionais no processo de formação de um médico mais calcado nos princípios da Política Nacional de Humanização e nas DCN vigentes2),(3.
A aquisição de habilidades de comunicação efetiva é um dos pilares da formação médica, sendo necessária para a interação com colegas de trabalho, usuários e familiares. A efetiva comunicação está na base da formação de médicos, não apenas para a realização da anamnese, mas também para a construção de uma relação de parceria médico-paciente. A educação a distância (ensino remoto) é um grande obstáculo à aquisição dessa habilidade, uma vez que as TICs dificultam a interação professor-estudante e estudante-estudante, processo indispensável à construção de uma boa comunicação2),(4.
A simples observação da interação do professor com o doente em estágios e práticas clínicas permite ao estudante de medicina organizar um raciocínio clínico e inferir possíveis condutas diagnósticas e terapêuticas. Além disso, o contato humano permite ao estudante a compreensão da realidade humana e social em que está inserido e como pode interferir na vida de um doente/familiar4),(5.
Nessa perspectiva, a interação com o professor tem um papel extremamente relevante na construção do conhecimento do estudante de medicina. O papel de facilitador desempenhado pelo docente é mais efetivo quando existe o vínculo garantido pela interação professor-estudante. Nesse sentido, o ensino-aprendizagem à “beira leito” tão necessário à formação médica ficou inviável durante a pandemia da COVID-19. Assim, faz-se necessário um processo de construção de novas metodologias direcionadas à garantia de uma boa formação aos estudantes de medicina à luz da nova legislação e da pandemia da COVID-19.
Por fim, a necessidade de ressignificar o ensino de medicina é extremamente necessária e a pandemia da COVID-19 trouxe consigo as TICs como alternativa ao isolamento social; no entanto, é necessário ter em mente que a formação do médico vai muito além da aquisição de habilidades técnicas (possivelmente garantidas pela TICs); ela requer interação presencial professor-estudante, estudante-estudante e estudante-paciente.