INTRODUÇÃO
Além de demorada, a mentoria em Medicina ocorre em vários níveis e é complexa, pois pode incluir várias combinações de ensino, prática clínica, atendimento ao paciente e pesquisa1. O mentor deve demonstrar consistentemente um caráter íntegro, honesto, confiável, pautado pela ética e moralidade, pois mentorear é um relacionamento complexo2. A capacidade de identificar qual o melhor caminho para o pupilo, independentemente de seu desejo pessoal, de forma altruísta, é outra característica marcante de um bom mentor3.
Na residência médica, é perceptível pelos residentes a importância de ter um mentor, pois, com a relação de mentoria, ampliam-se as chances de excelente preparação para a carreira profissional4. A orientação informal e formal por pares pode aumentar o bem-estar dos médicos residentes e proporcionar o desenvolvimento de competências para suas carreiras5.
O objetivo do relato é descrever como uma profícua experiência individual de mentoria em um programa de residência médica (PRM) pode ser singularmente proveitosa para o mentorado, com resultados extensivos a incontáveis acadêmicos de graduação e pós-graduação.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Sou médica, graduada pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e, em 2014, prestei concurso para o PRM em patologia, iniciando minhas atividades em 2015. Nele, conheci o supervisor do programa, professor titular da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), um patologista extremamente dedicado e qualificado, que com naturalidade e sabedoria conduziu-me em mentoria informal desde então. Sendo a única residente do serviço, tive o privilégio de acompanhar os preceptores em todas as atividades ofertadas. Dada minha inclinação para a docência e pesquisa, vinda do convívio com exímios docentes na UEA, aproximamo-nos pelos interesses em comum. Poucos meses após o início da residência, ele me ofereceu a oportunidade de acompanhá-lo e por vezes substituí-lo em algumas aulas de graduação. Certamente os acadêmicos notaram a pouca experiência da novata, porém, graças à persistência e ao encorajamento do mentor, eu ganharia confiança e crescimento a cada atividade.
Uma das primeiras atribuições que precisei cumprir durante a residência foi a apresentação das sessões anatomoclínicas, de autopsias e casos clínicos, para o corpo clínico e demais residentes do Hospital Universitário Getúlio Vargas. Essa atividade já havia, durante a graduação, despertado em mim o encanto pela patologia, por influência de outro grande mestre, meu professor na graduação, que a apresentava de forma brilhante, na Fundação de Medicina Tropical Dr. Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD). Por influência direta deles, ganhei profundo fascínio pela autopsia, o que trouxe sessões anatomoclínicas memoráveis para os residentes.
Pesquisador nato, rapidamente meu mentor ofereceu-me a oportunidade de cursar o doutorado como aluna especial, durante a residência médica, no Programa de Pós-Graduação em Medicina Tropical da UEA em parceria com a FMT-HVD, expandindo ainda mais meus horizontes profissionais, com a oportunidade de participação de grupos de pesquisa da instituição. A partir de então, passamos a produzir cientificamente com seus pós-graduandos, mestrandos e doutorandos, agregando ainda mais alunos de iniciação científica e demais colaboradores interessados. Reuniões científicas, editais de financiamento e discussões de artigo foram boa parte do nosso dia a dia na residência médica. Um de nossos artigo publicados, meu trabalho de conclusão de curso, sobre erros em patologia6, originou em seguida um capítulo de livro7. Tivemos a oportunidade de aprovar um importante financiamento para três programas de pós-graduação, sendo dois do estado do Amazonas, por meio do Programa Nacional de Cooperação Acadêmica na Amazônia (Procad/Amazônia) da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), em 2018, como parte do meu projeto de doutorado. Vários trabalhos publicados em associação com outros grupos nacionais e internacionais, em diversas linhas de pesquisa além da patologia8),(9),(10),(11, como acidentes por animais peçonhentos12),(13),(14, vírus da imunodeficiência humana/síndrome de imunodeficiência adquirida (human immunodeficiency virus/acquired immunodeficiency syndrome - HIV/Aids15 e, mais recentemente, coronavirus disease 2019 (Covid-19)16),(17, além de trabalhos apresentados em congressos da especialidade e um grande número de estudantes de iniciação científica acompanhados por nós fazem parte dos frutos dessa mentoria.
Ainda durante a residência médica, meu mentor, então presidente da Comissão Estadual de Residência Médica do Amazonas (Cermam), incentivou-me a acompanhá-lo durantes as vistorias de programas de residência e a atuar como vistoriadora, avaliando programas de residência e emitindo pareceres com ele. Em vista dessa experiência, hoje sou coordenadora da Comissão de Residência Médica na instituição em que sou concursada como pesquisadora, a Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (Fcecon-AM). Ainda na Cermam, tive a oportunidade de atuar como professora convidada da disciplina obrigatória de Bioestatística, ofertada anualmente aos residentes, de 2017 a 2020.
Em 2016, participamos do Encontro de Coordenadores dos Programas de Residência Médica em Patologia18, em que colaboramos na redação do documento final, o qual, em reuniões posteriores na diretoria da Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), resultou no documento final proposto como Matriz Curricular da Residência Médica de Patologia19. Essa matriz foi apresentada por nós, em parceria com o secretário-geral e a coordenadora de ensino da SBP, na plenária da Comissão Nacional de Residência Médica (CNRM) em Brasília, no ano seguinte, e aprovada em reunião, servindo de fundamento pedagógico para os PRMs. O início de uma participação ativa na SBP proporcionou-me a assessoria especial de graduação da atual diretoria da instituição, bem como parte na coordenação do Fórum de Ensino em Patologia (FEP).
Durante a residência e ao término dela, acompanhei-o em suas atividades de diagnóstico em laboratório privado e, depois de formada, tornei-me responsável técnica e patologista no serviço em que atualmente trabalho. Passei a ser professora de Patologia em uma Faculdade de Medicina privada, dando continuidade às atividades de docência, e mantive as aulas como professora convidada na Faculdade de Medicina da Ufam, na qual comecei a lecionar, a seu convite, como residente. Mais recentemente, durante a pandemia de Covid-19 em Manaus, no Amazonas, tive a oportunidade de realizar as autopsias completas dos pacientes, gerando até aqui duas publicações16),(17, com outras em andamento, além de materiais didáticos para o FEP, disponibilizados em aulas ministradas por patologistas de todo o Brasil e acessíveis ao público por meio de seu canal no YouTube.
DISCUSSÃO
O objetivo deste relato de experiência é descrever como a relação de mentoria pode beneficiar o mentorado em diversos aspectos e como seus resultados positivos podem se estender a muitos outros alunos, direta e indiretamente. Não existe, no PRM relatado, nenhum registro de mentoria. Nessa experiência, ela foi estabelecida de forma espontânea. Não houve o processo de sistematização de uma mentoria, em que existe uma seleção prévia do mentor. Em pesquisa realizada com acadêmicos de Medicina, a procura e a escolha por seus mentores ocorrem durante estágios de internato, em atividades de pesquisa ou com base em interesses semelhantes20. No caso descrito, certamente os interesses em comum, como a própria especialidade médica, e as afinidades por docência e pesquisa exerceram influência na aproximação mútua entre mentor e mentorada.
A despeito de haver grande progresso na elaboração das novas matrizes de competência dos PRMs na CNRM, incluindo a da patologia, pouca ênfase tem sido dada ao processo de formação de mentorias nessa importante etapa da educação médica. Durante os primeiros estágios de uma carreira, a mentoria está associada a uma alta satisfação e pode orientar o desenvolvimento de uma experiência profissional bem-sucedida4. No entanto, muitas vezes não é abordada ativamente durante o treinamento, o que pode afetar a formação e as competências do residente21),(22.
O termo mais comumente utilizado pela CNRM para descrever os responsáveis diretos pela formação dos residentes é “preceptor/supervisor”23. Mentor22),(24 é um termo utilizado por aquele que se relaciona com o jovem mentorado fora de seu ambiente imediato de prática profissional, com as funções de guiar, orientar e aconselhar na realização de objetivos pessoais, buscando o desenvolvimento interpessoal, psicossocial, educacional e o estímulo ao raciocínio crítico. A mentoria pode se desenvolver de forma coletiva ou particular, e até mesmo confidencial, de forma atemporal. Não tem função avaliativa, representando uma forma de transferência de conhecimento de um profissional mais experiente e maduro para um residente neófito, em formação, capacitando-o para a tomada de decisões. O mentor exerce um papel importante na formação do residente ao ensiná-lo a reconhecer suas fraquezas e virtudes profissionais, influenciando e aconselhado em sua vida pessoal, incluindo aspectos relacionados à espiritualidade24)-(26.
Esse relacionamento pode ocorrer naturalmente, como uma atividade poderosa para transmitir sabedoria e conhecimento do sábio para o aluno, resultando em sucesso do pupilo e realização do mentor27. A mentoria informal é o encontro natural de um mentor e um pupilo, baseado em um relacionamento de amizade, respeito pessoal e profissional, e na admiração de um pelo outro. Sendo assim, a mentoria formal difere da mentoria informal porque, na primeira, a instituição desenvolve um programa e um processo para que a mentoria ocorra28. A despeito de ampla discussão sobre a satisfação e qualidade das mentorias informais, é certo que os programas de mentoria formal precisam refletir e absorver muitas das características da mentoria informal29. Neste relato, descrevem-se a construção desse relacionamento e os benefícios de uma mentoria informal em um PRM, a despeito da ausência de um programa formal.
Evidências sugerem que algumas atitudes características e qualidades pessoais, conhecimentos, habilidades e comportamentos são comuns entre mentores de sucesso2. Relacionamentos de mentoria bem-sucedidos são caracterizados por reciprocidade, respeito mútuo, expectativas claras, conexão pessoal e valores compartilhados. Por sua vez, relacionamentos de mentoria fracassados foram caracterizados por comunicação deficiente, falta de compromisso, diferenças de personalidade, competição percebida (ou real), conflitos de interesse e inexperiência do mentor3. É inegável, dado o volume de tarefas em comum exercidas nessa mentoria, a quantidade de tempo despendida no exercício das atividades profissionais. Naturalmente, a conexão pessoal, o incentivo contínuo por parte do mentor e o compartilhamento de valores éticos em comum influenciaram no bom andamento da mentoria, contribuindo para a evolução no desempenho da mentorada. A ausência de qualquer sentimento de egoísmo, egocentrismo ou vaidade do mentor, orientado apenas pelo desejo altruísta de ver o desenvolvimento e crescimento de seu mentorado, é fundamental para que a relação entre ambos seja saudável. Certamente esse comportamento é perceptível nas inúmeras oportunidades acadêmicas e profissionais cedidas pelo mentor neste relato.
Mentores eficazes devem, de forma altruísta e abnegada, estar compromissados com o sucesso de seu mentorado, colocando-o acima de quaisquer considerações pessoais30. O mentor deve ter boa reputação e experiência suficiente para levar riqueza de conhecimentos, habilidades e recursos ao mentorado e demonstrar constantemente em seu caráter integridade, honestidade, confiabilidade, ética e moralidade20. Um dever essencial do mentor é criar um ambiente seguro e não ameaçador, para que o mentorado se sinta livre para expressar seus sentimentos, suas preocupações e opiniões interiores21, especialmente em contextos delicados, como depressão e burnout21),(30.
Um dos principais desafios para mentores e pupilos é a falta de tempo. Os participantes de pesquisa conduzida por Straus et al. (3 afirmaram que mentores eficazes garantiram que permanecessem acessíveis aos seus pupilos, mesmo localizados a distância. Embora eles possam não ser capazes de se encontrar em pessoa regularmente, mentores eficazes usavam e-mail e telefone para garantir a acessibilidade. Neste relato, devido às múltiplas atividades em comum exercidas pelos profissionais, foram necessárias, durante o período de distanciamento físico na pandemia de Covid-19, a utilização de serviços de conferência remota para discussão de casos de patologia cirúrgica, autopsia e atividades de pesquisa.
Em um relacionamento de mentoria, naturalmente as redes de influência profissional de colegas e colaboradores beneficiam diretamente o mentorado3, facilmente percebidas neste relato por meio de sua inserção em diferentes atividades de pesquisa e ensino, que repercutiram positivamente em suas atuais atuações profissionais. As oportunidades de publicações e a orientação do trabalho de conclusão de curso são bastante valorizadas em uma mentoria30),(31. Os residentes procuram também aconselhamento na tomada de decisões futuras, e o mentor geralmente atua como um guia de carreira, fellowship, orientador de subáreas de PRM ou na pós-graduação stricto sensu. Para o recém-formado, o mentor é um grande auxílio na implantação de laboratórios de patologia e na compra de materiais básicos em início de carreira, além de um conselheiro em longo prazo32),(33.
Aagaard et al.20 descrevem as múltiplas funções que podem ser desempenhadas por um mentor: apoio pessoal (motivação, apoio moral, conselho pessoal); aconselhamento de carreira (auxiliando nas decisões de escolha de carreira e no avanço nela); modelagem de papel para carreira e família; e colaboração em pesquisas/projetos. Tais atribuições podem ser facilmente percebidas no relacionamento aqui descrito entre mentor e mentorada. Indubitavelmente, a abrangência holística da mentoria pode ser percebida nas diferentes formas de influência que o mentor exerce ao longo do tempo de mentoria, mantendo e respeitando a individualidade e o desenvolvimento da mentorada. O bom mentor é acessível e capaz de identificar e apoiar o desenvolvimento de potenciais forças e habilidades em seus pupilos3. Na relação de mentoria descrita, não houve qualquer exigência ou intimidação para o cumprimento de atividades, apenas a presença de um estímulo constante e recíproco ao crescimento e desenvolvimento mútuos.
Sabidamente, há benefícios diretos para o mentor nas mentorias: o desenvolvimento de habilidades de comunicação, ensino e liderança, bem como a satisfação pessoal. Para o mentorado, os benefícios são abrangentes: a possibilidade de desenvolvimento pessoal e profissional por meio de um feedback construtivo e observação de um modelo positivo, o desenvolvimento de habilidades de comunicação, a orientação de carreira e de possibilidades de socialização dentro dela, além de oportunidades de pesquisa34. Neste relato, pode-se observar que os benefícios da mentoria ultrapassam a relação entre as duas pessoas envolvidas. Na mentoria, há muitos personagens de diferentes ambientes acadêmicos, o que expande os horizontes dos muitos discentes de graduação e pós-graduação envolvidos.
Nossa experiência de mentoria se desenvolveu de forma exitosa, visto que a mentorada adquiriu, além dos conhecimentos necessários para um médico especialista, as habilidades acadêmicas e científicas almejadas. A mentoria relatada demonstra que, quando esse relacionamento é exercido entre mentor e residente dedicados e compromissados, as chances de êxito profissional são potencializadas.
CONCLUSÃO
Diversos benefícios individuais e coletivos foram contemplados neste breve relato, e esperamos que ainda mais discentes possam se beneficiar desse exemplo de mentoria a partir de um PRM. A despeito da tentativa de impessoalidade adotada na redação deste relato de experiência, é praticamente impossível não imprimir sentimentos próprios. Mais do que um artigo científico, ele retrata o sentimento de gratidão a todos os mestres e em especial ao meu mentor. Esses profissionais da educação abdicam de parte de si, de seu tempo e de sua vida ao abnegadamente entregarem sua experiência para que seus alunos cresçam em conhecimento e sabedoria. Grande satisfação é a minha durante a docência e a pesquisa ao compartilhar com meus alunos os benefícios que pude obter de tão valorosa ancestralidade acadêmica e científica.