INTRODUÇÃO
Em dezembro de 2019, foi identificada uma doença na China que foi chamada de doença causada pelo coronavírus 2019 (coronavirus disease 2019 - Covid-19). Devido à alta taxa de infectividade e transmissibilidade, diversos países adotaram medidas de isolamento social que acarretaram impactos socioeconômicos mundiais, como foi o caso de ensino de graduação em Medicina1),(2. Paralelamente, ferramentas de difusão do conhecimento e métodos baseados no ensino a distância foram sendo propostos como alternativa para minimizar perdas na educação médica2)-(5.
Umas das práticas de ensino que precisaram se adequar à nova realidade foram os programas de mentoria. Esses programas estão inseridos no contexto da educação médica, tornando-se efetivos como uma espécie de relação de troca entre o supervisor e o médico em formação. Essa prática é comumente usada durante toda a formação médica, pois fornece um ambiente seguro e de suporte para que os alunos possam discutir abertamente e refletir sobre seus pontos fortes e limitações, auxiliados por mentores com relacionamentos didáticos de longo prazo, na tentativa de formular planos de desenvolvimento profissional6)-(8).
A mentoria possibilita que cada integrante do grupo apresente suas experiências a partir das suas narrativas. Segundo Benjamin9, a experiência é o que nos passa, nos toca e nos acontece. A cada dia, ocorrem muitas coisas, contudo a experiência se torna cada vez mais rara, e, nesse contexto, destaca-se a importância das narrativas trazidas pelos atores que compõem o grupo de mentoria e esse espaço de trocas singulares9.
Com a pandemia da Covid-19 e o avanço da tecnologia, a telementoria ou mentoria na modalidade virtual trouxe o benefício adicional de conectar mentores e alunos distantes geograficamente, devido à situação de isolamento social, tornando-se uma prática efetiva e relevante no cenário em questão, uma vez que, independentemente do formato, seu objetivo permanece inalterado8),(10.
Desse modo, com base nas necessidades impostas pela situação de pandemia da Covid-19 e na continuidade do processo de formação do futuro médico, elaborou-se a proposta do programa de mentoria virtual, com a finalidade de continuar o processo de suporte aos alunos, de maneira que pudessem ser minimizados os impactos da situação de pandemia na educação médica. Assim, este relato de experiência busca descrever e analisar criticamente as potencialidades e os desafios do processo de mentoria virtual, na perspectiva de um grupo de mentoria de um curso de Medicina do estado de São Paulo.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Inicialmente, a maioria dos grupos de mentoria da escola médica estudada suspendeu as suas atividades durante a pandemia, poucos permaneceram virtualmente. O grupo de mentoria em discussão existe desde 2017 com encontros presenciais quinzenais. Durante a pandemia, em razão do isolamento social, os encontros ocorreram de maneira virtual a partir do mês de julho. Desde então, os encontros passaram a ser quinzenais ou mensais, de acordo com a necessidade.
O mentor do grupo expõe sua opinião sobre a mudança para os encontros virtuais. Segundo ele, como mentor do grupo, os encontros virtuais seriam bem mais difíceis em relação ao presencial, em especial pelo afeto, o qual poderia ser comprometido. No entanto, o grupo teve uma grande surpresa nesse ponto. Um dos pequenos problemas nos encontros presenciais era o atraso dos alunos que se deslocavam de outras atividades. Com a modalidade virtual, os problemas com a pontualidade foram reduzidos, e, muitas vezes, os encontros eram estendidos por mais 30 minutos devido à necessidade de fala um pouco maior.
Em conversa com alguns professores sobre o cancelamento das mentorias, a grande maioria explicou que, por não ser presencial, a atividade seria bastante comprometida e poderia até deixar de ser benéfica. A suspensão era um desejo muito maior dos mentores que dos alunos, mas, ainda assim, esses últimos concordaram com o término de encontros presenciais.
De maneira geral, os mentorandos expressaram suas apreensões e ganhos em relação aos encontros virtuais. Assim, durante a suspensão da mentoria e com a pandemia, isso, claro, aumentou o nível de estresse e ansiedade dos alunos. No primeiro encontro on-line da mentoria, foi perceptível o quanto ela era significativa para a saúde mental de muitos alunos, apresentando uma melhora pós-mentoria na disposição e nas atividades diárias dos envolvidos.
Um relato importante dos alunos foi ressaltar que o acolhimento trazido pelos encontros superou qualquer possível influência negativa da mudança do formato das reuniões. Muito mais que analisar o caráter virtual ou presencial, a troca de falas e discussões em um ambiente acolhedor era o fator preponderante na qualidade da mentoria.
Os alunos ainda foram além ao afirmarem que não imaginavam quão proveitosos poderiam ser os encontros virtuais. Mesmo com a ausência de olho no olho e dos abraços afetuosos, os encontros eram tidos como incríveis, segundo os alunos do grupo. O grande ponto, na verdade, era a conexão humana intragrupo.
Ao longo das mentorias virtuais, ficou estabelecido que as câmeras de todos os integrantes permaneceriam abertas, para que fosse possível estabelecer uma conexão no olhar. Ver cada mentorando e seu mentor revelarem por suas câmeras um pouco de suas casas, seus quartos, animais de estimação e objetos pessoais trouxe um sentimento de intimidade e aproximação.
Foi feita uma opção como grupo de discutir temas leves durante a pandemia. A ideia era abordar não apenas assuntos como poesia, filmes, amor e sexo, mas também discutir um pouco sobre as aulas a distância. Inevitavelmente, surgiram dores, angústias e medos, os quais foram acolhidos durante os encontros. O formato virtual para alguns alunos permitiu a conversa com menos timidez sobre assuntos difíceis de serem abordados pessoalmente.
Em alguns momentos, a dinâmica do grupo se abalou pelo fato de os integrantes estarem mais sensíveis e fragilizados. No entanto, a necessidade de se reinventar em meio a rotinas completamente distintas reforçou a confiança e o carinho entre os integrantes da mentoria.
Um dos pontos marcantes das mentorias virtuais é que ser a distância e on-line não acarretou nenhuma influência negativa para o processo. O sofrimento e a dor da pandemia eram os pontos de maior destaque e discussão no grupo.
Sem dúvidas, a mentoria foi um dos pilares do enfrentamento do isolamento social decorrente da pandemia do novo coronavírus. Quando se resolveu escrever este relato de experiência de mentoria virtual, diferentemente dos docentes que desenvolveram uma refratariedade à modalidade virtual, percebeu-se que, de forma geral, os mentorandos queriam ter direito à fala e ser acolhidos. Esses pontos foram os mais importantes nesse grupo de mentoria virtual durante a pandemia.
DISCUSSÃO
As práticas de mentoria nos cursos de Medicina já estão bem estabelecidas como uma intervenção que melhora a qualidade de vida, saúde mental e trajetória dos alunos desde o começo do curso, como já foi descrito por Akinia et al.11 na revisão sistemática que avaliou o impacto da mentoria dos discentes no primeiro ano de Medicina. Uma das grandes mudanças de paradigma que deveriam existir nos programas de mentoria refere-se ao treinamento dos mentores, o qual, de forma geral, é deficiente, conforme estabelecido na revisão de scoping de Sheri et al.12. Esse treinamento faz muita diferença na qualidade da mentoria.
A importância do treinamento se revelou ainda mais significativa com a mudança da mentoria presencial para a virtual, exigindo modificações de ação durante a dinâmica dos encontros, especialmente com o estabelecimento das câmeras abertas. Esse treinamento da nova mentoria deveria ser realizado pelos programas de mentorias.
Dessa forma, os programas de mentoria favorecem o pensar a experiência pela narrativa de mentores e mentorandos. O narrar é viver ou experimentar, segundo Benjamin. Os participantes manifestam suas subjetividades ao narrarem e vivenciarem tais encontros13. Esse espaço da mentoria serve como campo possível para a emergência de relações entre narrativa e experiência, conforme se percebeu no grupo estudado. Analisar os relatos dessas experiências torna-se então um desafio na medida em que, por meio da linguagem, busca-se passar ideias e vivências que não conseguem ser totalmente expressas nessa transmissão14),(15.
Além disso, a mentoria ganha destaque por permitir um espaço genuíno e singular para seus participantes, uma vez que rompe com o dispositivo moderno de obsessão pela informação e opinião, movimento que contrapõe o ideal de percepção total da experiência. Ou seja, esses espaços para compartilhamento de narrativas dão lugar à vivência da experiência e daquilo que nos toca, e vêm se tornando cada vez mais raros na atualidade pela falta de tempo e pelo excesso de trabalho. Por isso, a mentoria tem sua importância por representar um gesto de interrupção, quase impossível nos tempos atuais, e permitir aos mentorandos, principalmente, um momento que traz a possibilidade de parar, olhar, escutar e sentir, além de eles suspenderem a opinião, o juízo e o automatismo da ação, para que possam cultivar a delicadeza e a arte do encontro, segundo Bondía16.
Um dos grandes dilemas enfrentados pelos mentores durante a pandemia foi conseguir transformar a mentoria presencial em virtual. A grande maioria das pessoas não acreditava nesse modelo. Claramente, isso ocorre porque somos considerados imigrantes digitais, como descreveu Marc Prensky17. Esse fator foi muitas vezes decisivo para a suspensão da mentoria. Além disso, não podemos esquecer que a maioria dos mentores dessa escola de Medicina pertence às gerações baby boomers e X, e tem como mentorandos indivíduos da geração Z. Mais uma vez, neste momento histórico, o conflito geracional se potencializa desde as primeiras descrições dos problemas geracionais discutidos por Karl Mannheim18.
Os conflitos, as incertezas, o aumento do sofrimento mental e físico durante a pandemia e a suspensão das atividades presenciais elevaram em muito a angústia dos alunos2, mais uma constatação clara na prática docente da educação médica, neste momento de tanta fragilidade suspensa. Quando neste relato de experiência temos um retorno às atividades, ainda com os alunos no seu domicílio, a mentoria virtual foi uma alternativa muito saudável para minimizar esses problemas. Um resultado claro que trazemos a partir deste estudo foi que, neste momento de pandemia, a mentoria virtual sofreu muito pouco impacto negativo na qualidade dos seus encontros e conseguiu atingir os objetivos propostos no processo de mentoria. O foco dos encontros se manteve na promoção de discussões benéficas tanto no âmbito profissional quanto no pessoal, tornando secundárias as mudanças trazidas pelo novo formato de mentoria.
Para tanto, Bondía16) nos evoca que o pensar não é somente raciocinar, calcular ou argumentar, como nos tem sido ensinado algumas vezes, mas é sobretudo dar sentido ao que somos e nos acontece. Isso se relaciona com a forma como nos colocamos diante de nós mesmos, dos outros e do mundo.
Nesse contexto, esse processo reflexivo encontra um espaço muito potente nas mentorias, ajudando na construção desses alunos e, claro, permitindo uma troca muito rica entre mentores e mentorandos. Já que nem sempre temos a oportunidade de discutir a experiência que nos passa, que nos acontece ou que nos toca, a mentoria, como espaço de troca de informações e vivências, pode favorecer o processo de aprendizagem significativa e valorização da formação pessoal e humanística13),(16.
Segundo Clot19, o trabalho carrega uma fonte de alteridade, um centro de iniciativa e criatividade para os sujeitos. Para Clot19, trata-se, de acordo com Vigotski, do “social estando em nós”. Tais forças são consideradas fontes de energia vital, uma vez que se entende esse social que está em nós como sendo antes de tudo um conflito. Nesse sentido, o que se produz nesse tipo de experiência diz respeito ao conflito de um social que acessa essa experiência. E como os cursos de Medicina ocupam uma carga horária tão excessiva dos alunos e com muita informação a ser digerida, mais uma vez acreditamos na mentoria, mesmo que virtual, para refletir sobre todos esses processos.
Como limitações do estudo, este relato de experiência descreve a visão de um grupo de mentoria de uma escola médica apenas, o que permite generalizações com cautela para populações distintas. Seria importante uma abrangência de mais grupos e mais instituições. Entretanto, temos conclusões que são importantes para refletir sobre a mentoria virtual no período de pandemia da Covid-19.
CONCLUSÃO
O relato de experiência acerca da mentoria virtual demonstra, claramente, que o processo mais importante foi a manutenção do acolhimento e dos efeitos promotores de saúde mental e desenvolvimento pessoal da mentoria. A transição para a modalidade virtual acarretou poucos impactos negativos no grupo estudado, prevalecendo os efeitos positivos no enfrentamento do isolamento social e na manutenção de contato intragrupo.
Ademais, agrupar relatos de experiência e analisá-los sob a ótica de narrativas que expressam vivências humanas reforça o pensamento de Benjamin, na medida em que expôs a troca de momentos de vida entre mentores e mentorandos. Os participantes estão a todo momento antepondo narrativas e expressando suas singularidades perante o grupo, em um espaço singular e disruptivo do cotidiano tão ocupado e cheio de afazeres e preocupações.
Acreditamos que, no futuro pós-pandemia, as mentorias devam voltar para o presencial, mas não existiriam dificuldades para que alguns encontros ocorressem virtualmente. A essência dos encontros, como sua singularidade e seu espaço de apreço dos pequenos momentos, agrega muito como experiência humana, suspendendo o automatismo de ação do cotidiano.