INTRODUÇÃO
A temática da violência é desafiadora em diversos aspectos, que vão desde a criação e a pactuação de medidas de prevenção e combate até as formas de atendimento e acompanhamento às pessoas atingidas pelas suas diferentes modalidades. Dentre os tipos de violência, a sexual é entendida como uma questão de saúde e de segurança públicas, que exige do Estado políticas e ações integradas1) que possam fazer frente às consequências causadas por esse tipo de violência, uma vez que estas ultrapassam os limites da vítima e atingem toda a sociedade. Segundo Moreira et al.2, a violência sexual é uma das formas mais graves de violência e de violação de direitos humanos, sexuais e reprodutivos.
Há um importante arcabouço teórico, inclusive legal, que também deve ser conhecido pelos profissionais da saúde e das demais áreas, como estratégia promotora da integralidade do cuidado e da segurança dessas pessoas. Assim, o cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual não pode ser pensado como uma ação isolada e seu enfrentamento depende de iniciativas intersetoriais que possibilitem o atendimento, a proteção e a prevenção de novas ocorrências1, premissas que estão entre as garantias legais para a atenção às pessoas em situação de violência sexual no território brasileiro.
Nesse sentido, o Brasil tem sido signatário de convenções internacionais que discutem e deliberam sobre os direitos humanos das pessoas em situação de violência, criando dispositivos legais que auxiliam a regulamentação e orientam sobre como lidar com essas pessoas, especialmente as que estão expostas à violência sexual3),(4.
Trata-se de diretrizes, protocolos e normas técnicas que visam garantir o atendimento humanizado por profissionais das áreas de saúde e segurança pública5, por exemplo, além da previsão de atendimento obrigatório, emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, com encaminhamentos de qualidade aos serviços da assistência social5, quando isso couber.
Considerando o público composto por pessoas em situação de violência sexual, torna-se oportuno frisar que o atendimento em equipe requer uma postura na qual, somadas à especialização técnica, devem estar presentes outras competências que propiciem o cuidado e o zelo que a condição da pessoa necessita. Entre os muitos desafios no combate às práticas que ferem os direitos dessas pessoas, estão a formação e a capacitação adequadas de profissionais, uma vez que demandam competências voltadas à especificidade da problemática. Há a necessidade de preparação específica para aqueles que atuarão nessas frentes, pois o lidar com as sequelas deixadas pela violência sexual exige saberes que transcendem a formação essencialmente técnica.
Acerca do conceito adotado neste trabalho, competência diz respeito ao conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes (CHA), interdependentes e necessários à consecução de determinado propósito, dentro de um contexto organizacional específico6.
Diante disso, pode-se inferir que ser competente é articular os conhecimentos adquiridos ao longo de um processo formativo, com as habilidades em aplicá-los, bem como ter a disponibilidade em fazê-lo em favor de alguém ou diante de alguma situação com a finalidade de sanar uma situação problema.
Considerando as competências necessárias para a formação dos profissionais de saúde, o Conselho Nacional de Saúde (CNS)7 expressa pressupostos, princípios e diretrizes comuns que devem ser contemplados nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação na área da saúde e que são resultado de uma construção coletiva e democrática.
Com vistas à melhor atuação profissional, as instituições de ensino devem investir em uma formação qualitativa dos atores envolvidos no cuidado destinado às pessoas em situação de violência. E isso deve ocorrer não apenas na graduação dos discentes da área da saúde. Como se trata de um importante processo desde o momento da formação básica, essa formação deve se estender também à pós-graduação, em que os profissionais se especializam para aperfeiçoar seu fazer cotidiano de atuação. Em que pesem as atualizações nas estruturas curriculares no Brasil, ainda há um caminho longo a ser trilhado até que sejam uniformes no que concerne à formação para o trabalho nas situações de violência sexual.
Para Branco et al.8, as lacunas na formação acadêmica, que deveriam ser supridas por treinamentos e capacitações em serviço, são preenchidas nos atendimentos prestados diariamente, percorrendo fluxos por vezes inadequados e não resolutivos. Nesse âmbito, Batista et al.9) afirmam que ''a vivência de aprendizagens interativas na educação interprofissional, por exemplo, é reconhecida como promotora do desenvolvimento de competências para a prática colaborativa''.
Nesse sentido, Reeves10 diz que a educação interprofissional (EIP) é uma atividade que envolve dois ou mais profissionais que aprendem juntos de modo interativo para melhorar a colaboração e a qualidade da atenção à saúde. Esse conceito retrata de modo singular a ideia de que o trabalho desenvolvido em equipe, com a finalidade de melhoria na qualidade do atendimento para e com o paciente, sua família e comunidade, tende a resultar mais positivamente do que aquela prática desenvolvida individualmente sem considerar a importância da integração com outras profissões, especialmente na saúde.
Ressalta-se, ainda, que, acerca das competências comuns, estas representam as ações que todos os profissionais podem realizar sem que firam a individualidade da sua atuação específica. Fragelli et al.11 aduzem que as competências comuns possuem características que se destacam, como o
[...] compartilhamento de termos comuns, o desenvolvimento de programas, projetos e currículos nos processos de capacitação de pessoal, a contribuição para a definição e consolidação da área, o desenvolvimento profissional contínuo e a promoção de responsabilidade perante o público para as normas de prática.
Esses conceitos fortalecem a ideia de o trabalho em equipe ter instrumentos orientadores para que os profissionais possam construir suas práticas com vistas ao alcance do objetivo precípuo, qual seja, o melhor cuidado destinado às pessoas que demandam suas atuações. Sobre a premissa da busca pela melhoria da prática profissional por meio da colaboração e da integração de duas ou mais profissões, faz-se importante a discussão dessa abordagem na construção de uma proposta de matriz de competências comuns no que tange ao cuidado integral destinado às pessoas em situação de violência sexual, tomando por orientação o questionamento inicial acerca do impacto causado por um instrumento que considere as competências comuns a todos os profissionais que atuam na atenção às pessoas em situação de violência sexual.
Partindo dessa indagação, apresenta-se uma proposta de matriz de competências comuns às profissões envolvidas na atenção às pessoas em situação de violência sexual, com vistas a identificar quais são as competências, considerando-as como o conjunto formado por conhecimentos, habilidades e atitudes, que todas devem possuir para que o cuidado aconteça de forma a promover o máximo benefício à saúde dessas pessoas, segundo os melhores padrões de qualidade e de segurança.
O produto oriundo deste trabalho se propõe a servir como uma ferramenta capaz de fundamentar a formação de profissionais e estudantes nos diversos espaços de atuação profissional e de aprendizagem. Assim, apresenta potencialidade para melhorar a qualidade da atenção prestada por profissionais de várias áreas às pessoas em situação de violência sexual, sobretudo nos cenários de atuação no Sistema Único de Saúde (SUS).
MÉTODO
O estudo foi realizado por meio de uma pesquisa qualitativa de caráter exploratório e descritivo. A ação deflagradora da fase de coleta de informações ocorreu com a organização de um Fórum sobre Violência Sexual12, que articulou serviços de referência estaduais e municipais no atendimento às pessoas em situação de violência sexual, instituições de educação de nível superior e da área de justiça e de garantia de direitos.
Disponibilizou-se aos convidados a opção para o preenchimento de um formulário eletrônico prévio, no qual constavam perguntas de identificação das áreas de formação e locais de atuação, bem como a seguinte pergunta aberta: ''Em sua opinião, quais competências os profissionais devem ter no atendimento às vítimas de violência sexual?''. Essa fase contou com 28 respondentes, e as respostas foram agrupadas em uma planilha.
No dia de realização do fórum, compareceram 76 participantes, sendo profissionais de diferentes áreas e estudantes de graduação e pós-graduação da área da saúde e das ciências sociais.
Uma oficina formativa buscou congregar diversos setores e atores sociais para discutir e encontrar formas de melhorar os serviços de acolhimento às pessoas em situação de violência sexual. Antes da etapa de coleta de dados, os participantes receberam e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e o Termo de Autorização de Imagem.
Em seguida, uma exposição dialogada abordou o conceito de competência e seus elementos constitutivos, quais sejam: os conhecimentos, as habilidades e as atitudes, sua relação com os espaços de ensino e aprendizagem e com os processos de trabalho na atenção às pessoas em situação de violência sexual.
Da mesma forma, a ideia da matriz de competências foi apresentada como instrumento orientador, um conjunto articulado de conhecimentos, habilidades e atitudes para determinada profissão ou grupo de profissões que atuam num mesmo segmento, buscando atingir os mesmos objetivos.
Os participantes compuseram seis grupos de trabalho, os quais foram compostos, intencionalmente, por profissionais e estudantes das diferentes áreas, com o fito de promover uma discussão interdisciplinar e interprofissional sobre o tema.
Oportunamente, estavam presentes profissionais das áreas de educação, saúde, assistência social, segurança pública, defesa de direitos e sistema de justiça, que atuam na rede estadual de atendimento, e também estudantes de graduação e de pós-graduação dos cursos de Medicina, Fisioterapia, Psicologia, Enfermagem, Fonoaudiologia, Farmácia, Serviço Social e Direito.
A partir daí os grupos receberam instruções para representar os elementos constitutivos das competências, por meio da dinâmica da figura humana13, que consiste na confecção de um boneco, no qual os conhecimentos estariam representados pela cabeça, as habilidades pelos membros e as atitudes pelo corpo. Esta Essa atividade teve como objetivo o levantamento de dados referentes à percepção dos participantes acerca das competências profissionais comuns necessárias a todas as profissões envolvidas com o cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual.
Dentre os participantes, três grupos foram demandados a construir a figura humana13 na perspectiva profissional de quem cuida das pessoas em situação de violência sexual, e os outros três o fizeram sob o ponto de vista de quem demandaria o cuidado desses profissionais.
Ao fim, os grupos participantes representaram gráfica e figurativamente os resultados alcançados, sistematizados na sequência de cabeça (conhecimentos), membros (habilidades) e corpo (atitudes). Uma discussão coletiva consensuou a construção de uma figura humana13 única, resultado da fusão das duas perspectivas iniciais demandadas: a do profissional e a da pessoa em situação de violência. A dinâmica da figura humana foi finalizada com a união dos seus componentes e a síntese acerca de quais competências devem ser comuns a todas as categorias profissionais atuantes na atenção às pessoas em situação de violência sexual. Esse momento foi registrado em fotos e vídeos.
A avaliação da reação dos participantes sobre a atividade, realizada por meio de depoimentos verbais, foi positiva, sobretudo por dar visibilidade à temática na sociedade e provocar discussões enriquecedoras de construção e de conhecimento coletivos.
A opção pela pesquisa qualitativa de caráter exploratório se mostrou apropriada ao permitir o acesso aos dados de forma qualitativa e, ao mesmo tempo, promover a valorização do conhecimento e a participação dos indivíduos nas ações educativas.
O percurso metodológico proposto nessa etapa, além da identificação dos dados almejados, permitiu que os participantes contribuíssem ativamente para a construção da proposta da matriz de competências, descrevendo aquelas que são comuns às diversas profissões para o atendimento ao público nos serviços onde atuam ou possam atuar futuramente.
A etapa seguinte subsidiou a elaboração da proposta da matriz de competências comuns por meio da contribuição de profissionais com reconhecida expertise em diferentes áreas do conhecimento em violência sexual e com experiência prática no atendimento às pessoas nessa situação. Com o auxílio de uma ferramenta eletrônica, um questionário foi enviado por meio dos endereços eletrônicos dos participantes, com questões, objetivas e abertas, dirigidas à identificação dos conhecimentos, das habilidades e das atitudes comuns aos profissionais no atendimento às pessoas em situação de violência sexual.
A escolha dos participantes também ocorreu de forma intencional, considerando sua representatividade na área temática deste trabalho. Da mesma forma, a diversidade de áreas de atuação dos participantes também concorreu para que compusessem o rol de pessoas com potencial colaborativo e qualitativo na construção da proposta da matriz de competências.
No grupo de 32 respondentes dessa etapa, estão representantes da gestão dos serviços estaduais de referência no atendimento às pessoas em situação de violência sexual, somados a profissionais que atuam em áreas-chave, como saúde, educação superior, assistência social, Poder Legislativo municipal, sistemas de justiça e de garantia de direitos, entre os quais promotorias, defensorias públicas estaduais, delegacias, instituições do terceiro setor e advocacia privada.
De acordo com a distribuição dos participantes, há uma variedade nas formações acadêmicas, bem como para as áreas de atuação, com destaque para medicina, direito, serviço social e psicologia, seguidas das formações em farmácia e bioquímica, enfermagem, nutrição e publicidade e propaganda, cuja diversidade dos cenários de atuação enriqueceu o processo de construção da proposta deste trabalho.
Para o exame das respostas obtidas, foi utilizada a categorização temática. A técnica consiste em descobrir os núcleos de sentido cuja frequência ou presença faça sentido para o objetivo de análise escolhido. Para Moraes et al.14, a análise textual parte de um conjunto de pressupostos em relação à leitura dos textos que examinamos. Os materiais analisados constituem um conjunto de significantes. Os pesquisadores atribuíram a eles significados sobre seus conhecimentos e teorias. A emergência e a comunicação desses novos sentidos e significados são os objetivos da análise.
Segundo Moraes et al.14, as categorias são processos analíticos que agrupam as unidades de um corpus de análise, isto é, dos dados coletados numa pesquisa. Para este trabalho, os vários discursos individuais emitidos como resposta às questões de pesquisa que compuseram o corpus foram agrupados considerando a categorização prévia nas dimensões de conhecimentos, habilidades e atitudes, e, a partir dessa organização, puderam-se identificar e ratificar as frases que se referiam a cada categoria estabelecida para a construção da proposta da matriz de competências comuns para o cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual.
A análise por categorias temáticas busca encontrar uma série de significações que o codificador detecta por meio de indicadores que estão ligados a elas. Para Caregnato et al.15, ''codificar ou caracterizar um segmento é colocá-lo em uma das classes de equivalências definidas, a partir das significações, em função do julgamento do codificador''. Nesse sentido, as autoras aduzem que ''o texto é um meio de expressão do sujeito, onde o analista busca categorizar as unidades de texto, palavras ou frases, que se repetem, inferindo uma expressão que as representem''.
Para auxiliar a apresentação dos dados, foi empregada a técnica nuvem de palavras que, de acordo com Dias et al.16, é uma
[...] forma de visualização de dados linguísticos que mostra a frequência com que as palavras aparecem em um dado contexto [...] e consiste em usar tamanhos de fontes de letras diferentes de acordo com as ocorrências das palavras no texto analisado, mostrando a que mais frequente aparece no centro da imagem e as demais em seu entorno, de modo decrescente.
As nuvens foram formadas a partir das respostas obtidas em todas as fases de coleta. As três perguntas abertas sobre quais conhecimentos, habilidades e atitudes, separadamente, eram considerados essenciais para que todos os profissionais, independentemente da área na qual atuassem, fossem competentes para atender as pessoas em situação de violência sexual com qualidade e segurança.
A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário Onofre Lopes da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN): Parecer nº 3.684.012 e CAAE nº 23936819.8.0000.5292. Para todos os participantes, proporcionou-se a leitura do TCLE, e obtiveram-se a autorização e a assinatura deles.
RESULTADOS
Os resultados obtidos nas três oportunidades de levantamento de informações concernentes à percepção dos participantes sobre as competências para a realização do cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual contribuíram para a construção final das sentenças constitutivas da matriz. Reafirma-se, na concepção deste trabalho, que as competências são compostas por três dimensões: os conhecimentos, as habilidades e as atitudes que orientam a atuação profissional. Com o objetivo de apresentar as percepções sobre cada uma das dimensões, os resultados estão expostos separadamente para otimizar a compreensão.
Ao serem relacionadas e comparadas, as respostas indicaram um alinhamento nas falas dos participantes, tornando possível a elaboração das competências comuns dispostas no quadro adiante, bem como a sua disposição na figura radial exposta posteriormente.
Dentre as respostas coletadas por meio da pergunta ''Na sua opinião, quais as competências que os profissionais devem ter no atendimento às pessoas em situação de violência sexual?'', realizada na inscrição prévia ao fórum, considerando os respondentes de 1 a 28, podem ser citadas algumas com maior grau de alinhamento com as demais coletadas nas fases posteriores, a saber:
Qualificação e conhecimento sobre abordagem adequada à vitima de violência sexual; saber acolher; conhecer os protocolos de atenção para esses casos; conhecer os trâmites legais pós-atenção à saúde para oportunizar tomada de decisão (Respondente 8, psicóloga).
Conhecimento da rede de assistência para que os devidos encaminhamentos sejam realizados da melhor forma possível, com vistas a agilizar a investigação e proporcionar ações mais efetivas. Empatia e simpatia para deixar aquele que foi violentado o mais confortável possível em expor sua situação de fragilidade (Respondente 10, graduanda em Medicina).
Acolhimento, em especial sem julgamento de valores, conhecimento técnico sobre os protocolos de atuação, estratégias junto à equipe interdisciplinar e à rede para direcionamentos assertivos, bem como encaminhamentos que sejam necessários, entre outras competências (Respondente 15, assistente social).
O profissional dever agir de maneira ética frente aos atendimentos de vítimas de violência sexual, sem julgamentos, agindo de forma sigilosa e confidencial. No acolhimento é necessário o conhecimento do tempo da violência até a procura do atendimento, para que os devidos encaminhamentos sejam feitos. O profissional precisa compreender a dinâmica em que a pessoa vítima de violência se encontra e evitar que o relato seja repetido várias vezes, dessa forma registrando o atendimento (Respondente 23, residente multiprofissional).
Esses profissionais devem saber acolhê-las, respeitar as individualidades dessas pessoas que estão procurando sua ajuda e fornecer o cuidado que elas precisam (Respondente 26, fisioterapeuta).
As respostas alcançadas nas oportunidades de coleta dos dados foram dispostas nas figuras de nuvens de palavras, sendo classificadas segundo as dimensões que formam as competências. As palavras que mais se destacaram na dimensão conhecimentos estão ilustradas na Figura 1 e remetem ao cuidado em caráter de urgência. A partir dessas conexões, foi possível subsidiar a elaboração de sentenças, como: “Reconhecer que o prazo ideal para instituição de profilaxia pós-exposição para IST é de 72 horas”.
Na dimensão habilidades, conforme apresenta a Figura 2, os termos mais relevantes evocaram as conexões entre o cuidado ágil e a habilidade de comunicação. Considerando o contexto pesquisado, foi possível realizar conexões para a elaboração de sentenças, como: “Atender com agilidade e presteza as pessoas em situação de violência sexual'' e ''Realizar acolhimento e escuta qualificada evitando que a pessoa repita o relato várias vezes''.
A Figura 3 demonstra que, nas respostas para a dimensão atitudes, houve prevalência das palavras que aludiam ao cuidado humanizado, respeitoso e empático. A construção da sentença “Realizar atendimento humanizado, sempre respeitando a privacidade da pessoa” é uma amostra de tal conexão. Nessa dimensão, identificou-se uma maior facilidade entre os participantes ao formularem suas respostas, possivelmente por considerarem a subjetividade, os valores e os aspectos mais pessoais que o tema carrega.
As significações detectadas por meio da análise por categorias temáticas possibilitaram a construção de sentenças que expressaram aquilo que os participantes apontaram como mais importante e permitiram a proposição de uma matriz com 15 competências comuns de referência para a prática interprofissional no cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual. O Quadro 1 apresenta essas competências.
Competências comuns para a prática interprofissional no cuidado às pessoas em situação de violência sexual | |||||
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1. Identificar as populações potencialmente mais vulneráveis à violência sexual e promover acesso facilitado aos serviços que integram a rede de cuidado. | 6. Conhecer a rede e o fluxo de encaminhamentos para o cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual. | 11. Garantir acesso ao acompanhamento clínico-laboratorial das pessoas expostas. | |||
2. Acolher a pessoa em situação de violência sexual em local adequado, garantindo privacidade e confidencialidade. | 7. Compreender as atribuições de sua categoria profissional e instituição de atuação como integrante da rede de cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual. | 12. Compreender a importância do registro adequado das informações para os procedimentos de vigilância epidemiológica, legais e assistenciais à pessoa em situação de violência sexual. | |||
3. Atuar com senso de urgência para o atendimento das situações de violência sexual. | 8. Reconhecer a necessidade de se instituir, em tempo hábil, profilaxia pós-exposição (PEP) para infecções sexualmente transmissíveis virais e não virais (HIV, IST e hepatites virais). | 13. Orientar sobre a importância da realização do boletim de ocorrência e das providências policiais e judiciais cabíveis, de acordo com a faixa etária, deixando claro que tais providências não são condicionantes para a obtenção do atendimento no serviço de saúde. | |||
4. Realizar a escuta qualificada da pessoa em situação de violência sexual, adotando o princípio da presunção de veracidade e evitando julgamentos de qualquer natureza. | 9. Reconhecer as indicações para se instituir, em tempo hábil, a prescrição de anticoncepção de emergência com vistas à prevenção da gravidez em mulheres de idade fértil. | 14. Utilizar adequadamente os meios e as ferramentas de comunicação interpessoal para evitar ou reduzir riscos e contribuir para a segurança em saúde. | |||
5. Evitar condutas e encaminhamentos desnecessários que possam induzir a revitimização da pessoa em situação de violência sexual. | 10. Reconhecer o direito à interrupção legal da gestação resultante de estupro e orientar as pessoas em relação a esse direito, evitando emitir julgamentos de qualquer natureza. | 15. Manter-se atualizado sobre os protocolos de condutas, as boas práticas e as legislações referentes à atenção às pessoas em situação de violência sexual. | |||
CONHECIMENTOS | REF. | HABILIDADES | REF. | ATITUDES | REF |
Reconhecer que as situações de violência sexual são atendimentos de urgência. | 1-5, 6-8, 11, 14, 15 | Atender com agilidade e presteza as pessoas em situação de violência sexual. | 1-15 | Acolher sem julgar a vítima por estereótipos (forma como se veste, se tem tatuagens, locais que frequenta, entre outros). | 2, 4, 11, 14 |
Compreender e diferenciar os conceitos relacionados à temática da violência sexual, como estupro, abuso sexual, exploração sexual. | 2, 4, 11, 12, 13, 14, 15 | Demonstrar habilidade para avaliar informações válidas e para lidar com produtos e serviços na área da violência sexual. | 2, 3, 4, 11, 12, 13, 14, 15 | Confiar no relato da pessoa, garantindo que será ouvida e acolhida nas suas necessidades. | 2, 4, 10 |
Reconhecer que o prazo ideal para instituição de profilaxia pós-exposição para IST é de 72 horas. | 1, 2,3, 5, 6, 7, 8, 11, 14, 15 | Encaminhar em tempo hábil para a profilaxia das IST, se exposição aguda. | 3, 6, 8, 11, 15 | Garantir o sigilo das informações obtidas durante os atendimentos. | 2, 4, 10, 12, 13, 14 |
Compreender a importância de incentivar a adesão à profilaxia das IST. | 7, 8, 11, 14, 15 | Definir atendimentos e encaminhamentos em equipes multiprofissionais, quando necessário. | 6, 7, 11, 14, 15 | Realizar atendimento humanizado, sempre respeitando a privacidade da pessoa. | 2, 4, 10, 11, 13, 14,15 |
Diferenciar as situações de exposição crônica e aguda para os encaminhamentos pertinentes a cada situação. | 1, 3, 5, 6, 8, 9, 12, 13, 15 | Demonstrar disponibilidade para ouvir a pessoa em situação de violência. | 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 13,14 | Respeitar as individualidades, pois cada pessoa é única. | 2, 4, 10, 11, 13, 14 |
Saber que não precisa apresentar o boletim de ocorrência para os atendimentos e procedimentos em situações de violência sexual. | 1-15 | Encaminhar para o acompanhamento de gravidez resultante de estupro, se for o caso. | 6, 9, 10, 11 | Ser disponível para a prática do trabalho em equipe. | 1-15 |
Saber que é importante realizar a anticoncepção de emergência para mulheres em idade fértil. | 1, 3, 9, 10, 11, 14, 15 | Comunicar o fato ao Conselho Tutelar quando a vítima for menor de 14 anos. | 1, 4, 6, 12, 13, 14, 15 | Ser empático, colocar-se no lugar do outro e ser cordial nas relações interpessoais. | 2, 4, 10, 11, 13, 14 |
Saber que não é necessária autorização judicial para a interrupção da gravidez decorrente de estupro. | 4, 5, 9, 10, 13, 14, 15 | Realizar acolhimento e escuta qualificada evitando que a pessoa repita o relato várias vezes. | 2, 4, 5, 14 | Ser sensível e capaz de acolher a diversidade humana. | 2, 4, 10, 11, 13, 14 |
Reconhecer o direito à manutenção da gravidez, se for o caso | 6, 10, 11, 14, 15 | Demonstrar a importância da realização da queixa ou denúncia na delegacia para as pessoas acima de 18 anos. | 12, 13, 14 | Ser disponível para o constante aprimoramento profissional. | 6, 7, 15 |
Reconhecer o direito de a pessoa ser informada sobre todos os procedimentos realizados durante os atendimentos. | 6-15 | Preencher as informações de forma clara e legível para facilitar o registro nos sistemas de vigilância epidemiológica | 12, 14 | ||
Saber sobre o funcionamento das delegacias gerais e especializadas para a prestação de queixas, denúncias e realização de investigação. | 5, 6, 13, 14, 15 | Encaminhar corretamente a pessoa em situação de violência para que seja assegurado o acompanhamento clínico-laboratorial. | 3, 5, 6, 7, 8, 9, 11, 14, 15 | ||
Conhecer o fluxo de encaminhamento para as promotorias de justiça. | 5, 6, 13, 14, 15 | Respeitar o tempo/momento da pessoa em situação de violência, inclusive o direito ao silêncio. | 2, 4, 11 | ||
Saber que o Conselho Tutelar existe em todas as cidades e trabalha em regime de plantão. | 5, 6, 13, 14, 15 | Utilizar comunicação acessível, falar de forma que a pessoa entenda o que está sendo explicado durante o acolhimento ou atendimento. | 2, 3, 11, 13, 14 | ||
Saber que o Instituto Técnico-Científico de Perícia (Itep) do Rio Grande do Norte realiza perícia psicológica, exame de corpo de delito e coleta de vestígios para produção de provas no processo. | 5, 6, 13, 14, 15 | Utilizar estratégias de comunicação não verbal para estabelecimento de vínculo, como não expressar aversão, impaciência durante o relato, olhar de repreensão ou de julgamento. | 2, 4, 14, 15 | ||
Identificar sinais de outras violações de direitos. | 4, 12, 13, 14, 15 | ||||
Reconhecer que a ficha do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), de notificação individual de violência interpessoal/autoprovocada, é de preenchimento obrigatório. | 7, 12, 14, 15 | ||||
Entender a importância do trabalho em equipe com profissionais de várias áreas para a rede de cuidado destinado às pessoas em situação de violência. | 1-15 |
Fonte: Elaborado pelos autores.
Complementarmente, foi construído um infográfico de disposição radial, expresso na Figura 4, no qual as dimensões que formam as competências, quais sejam, os conhecimentos, as habilidades e as atitudes estão relacionadas à totalidade das 15 competências comuns e foram apresentados no centro (core) da representação gráfica, com distribuição centrífuga daqueles que se relacionam com número decrescente de competências comuns, com os respectivos números das competências comuns abaixo de cada um deles.
DISCUSSÃO
Com os resultados obtidos nesse percurso foram identificadas questões que perpassam desde a formação para as profissões da saúde até os desafios para atuar diante de um contexto tão específico como o da violência sexual. Para Rojas et al.17, a violência sexual é um tema frequentemente mal compreendido pelo público em geral e pelos profissionais de saúde. A inclusão rotineira desse tópico nos currículos de graduação deve melhorar a apreensão do tema pelos profissionais e, por consequência, o cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual.
Na obtenção das informações que subsidiaram a construção das competências, considerando o conjunto formado pelas dimensões do conhecimento, das habilidades e das atitudes, foi possível apreender que a dimensão dos conhecimentos relacionados ao cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual foi reconhecida como a maior necessidade para prática profissional. Na representação do infográfico (Figura 4), essa dimensão ocupa praticamente a metade da figura radial e faz relação com todas as competências comuns de referência.
O desconhecimento sobre informações importantes para a efetividade do cuidado e para a segurança das pessoas emergiu como um grande desafio a ser superado pela formação e pela educação continuada das diferentes profissões implicadas com esse cuidado. Para Menezes et al.18, o processo de interação entre os vários setores que integram a rede só se concretizará por meio da obtenção do conhecimento mútuo, o que envolve informações sobre competências, atribuições, localização, tramitações interna e externa, bem como horários de funcionamento.
Identificou-se que ações que se baseiam nos fluxos de atendimento e nos procedimentos para acolher e garantir seguimento qualificado para redução de danos, como profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis e possibilidade de interrupção de uma gravidez indesejada, ainda representam grandes lacunas de conhecimento para um importante contingente de profissionais que integram a rede de cuidado.
Há um nítido desconhecimento do papel das diferentes profissões que integram a rede de cuidado, o que pode acarretar dificuldade para a execução do cuidado integral. O profissional de saúde desconhece informações básicas sobre rotinas procedimentais legais ou da autoridade policial, o que, sabidamente, pode comprometer a integralidade do cuidado. A ideia de rede constitui uma imagem emergente para a representação do conhecimento, inspirada, em grande parte, nas tecnologias informacionais. Nessa perspectiva, conhecer é enredar, tecer significações, partilhar significados19.
Aqueles que não são profissionais da saúde desconhecem o caráter urgente que as medidas profiláticas devem assumir para a segurança das pessoas violentadas. Compreender o que é específico de cada profissão também permite reconhecer e diferenciar o que deve ser comum a todas elas e como as práticas de uma podem interferir na efetividade do cuidado prestado por outra, com todos aprimorando a qualidade da atenção.
Entender a importância do trabalho em equipe com profissionais de várias áreas para a rede de cuidado, atender com agilidade e presteza às pessoas em situação de violência sexual e ser disponível para a prática do trabalho em equipe referem-se, respectivamente, ao conhecimento, à habilidade e à atitude relacionados com todas as competências comuns para a prática interprofissional no cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual.
Nessa seara, a formação para as profissões da saúde deve atentar para estratégias educacionais especificamente voltadas para oportunizar o desenvolvimento dessas competências comuns. Menezes et al.18 aduzem que o trabalho em equipe multidisciplinar é um dos requisitos descritos nos documentos internacionais e nacionais, qualificando e proporcionando o cuidado integral destinado à mulher e às pessoas em situação de violência sexual. Para tanto, faz-se necessária a articulação dos diferentes saberes para trabalhar de forma conjunta e centrada.
Hasse et al.20) afirmam que os currículos acadêmicos da área de saúde e mesmo os processos de formação no âmbito profissional parecem não ter se adequado ao que é proposto pelos documentos que regulamentam a questão. Sabe-se que ainda há hegemonia do modelo biologicista na formação do saber em saúde, demonstrando a necessidade de investimento numa formação que contemple, para além da técnica, as competências atitudinais, as colaborativas e as habilidades para o trabalho em equipe.
A interação com os saberes das ciências sociais e humanas pode potencializar a superação da perspectiva reducionista, incapaz de entender a complexidade do fenômeno da violência sexual desconectado de todo contexto social no qual agressor e vítima estão inseridos. Para Ferreira et al.21 o/a estudante deve ser preparado/a para compor equipes multiprofissionais e participar de atividades de educação voltadas não apenas às mulheres, mas também a cônjuges, familiares e comunidades, envolvendo-os na rede de apoio.
Rodrigues22 aduz que essa prática precisa ser delineada e desenvolvida ao longo da formação continuada em serviço, a fim de aprimorar e contextualizar uma sólida formação teórica e de conteúdo pedagógico de modo autêntico às necessidades formativas. Esse aspecto foi um dos resultados identificados no trabalho, qual seja: a menção à contribuição da formação continuada para a prevenção de agravos, uma vez que o investimento em educação traz benefícios para os profissionais e para as pessoas por eles assistidas.
A estruturação gráfica da matriz buscou considerar a essência das contribuições dos participantes, bem como seus diversos perfis profissionais e níveis de compreensão dos elementos que compõem as competências, as quais devem ser comuns a todos os profissionais que lidam com as situações de violência sexual nos seus espaços ocupacionais.
As sentenças expressas separadamente pelos elementos que compõem as competências buscam responder a um dos principais resultados alcançados pelas etapas da pesquisa que se refere ao distanciamento dos profissionais de conhecimentos, que deveriam ser basilares para a qualificação do cuidado.
Observa-se que a representação utilizada nas nuvens de palavras retrata menções significativas e que remete à necessidade clara de investimentos na educação interprofissional visando a um trabalho realizado em equipe e, consequentemente, à qualificação da atuação com a população em situação de violência sexual.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A proposição de uma matriz de competências comuns para a prática interprofissional no cuidado destinado às pessoas em situação de violência sexual pode contribuir para alicerçar a prática profissional e qualificar a formação de profissionais que integram a rede de serviços e instituições para atendimento e acompanhamento a essas pessoas, sobretudo na direção da efetividade e da integralidade do cuidado.
O processo constitutivo da proposta teve como premissas a participação ativa dos próprios sujeitos que integram a rede de atendimento e, assim, a valorização da sua práxis. Tais premissas legitimam a aplicação prática dessa matriz com características genuínas, por conter elementos atribuídos por aqueles que vivenciam em seus cotidianos profissionais a complexa realidade da temática retratada e, portanto, com propriedades únicas.
Essa dinâmica permitiu aos atores contribuir ativamente nas fases de recolha de dados e na construção de um instrumento em que lhes seja possível melhor apreensão e utilização nos diversos espaços de atuação profissional, nos espaços acadêmicos e nos demais cenários envolvidos com a temática da violência sexual. Da mesma forma, pode incentivar novas pesquisas e fomentar o aprimoramento das estratégias de atuação no cuidado a esse público.
Quando se considera que os espaços sócio-ocupacionais e de formação profissional contam com um instrumento que colabora para agregar diferentes saberes, infere-se que o público atendido tenha maior possibilidade de receber uma atenção com efetiva qualidade. Em outras palavras, a proposta representada na matriz de competências comuns é que ela seja um elemento que agrega e contribui para que as equipes profissionais possam desenvolver uma prática interdisciplinar, centrando sua atuação no usuário e na usuária, de modo a garantir-lhes a integralidade do cuidado.
Acredita-se que a construção de tal instrumento possa elevar a qualidade dos serviços, bem como aprimorar a execução dos preceitos da prática em saúde, sobretudo aquela desenvolvida nos cenários do SUS.