INTRODUÇÃO
No Brasil, a graduação em Medicina se dá por meio de uma formação teórico-prática, em que o componente teórico é ensinado nas salas de aula das universidades e o componente prático ganha espaço nos serviços de saúde. O estudante é inserido na realidade hospitalar e ambulatorial desde os primeiros semestres de sua formação. Por vezes, o contexto dessas realidades invade a intimidade do paciente e pode promover constrangimento, seja ao paciente ou mesmo ao aluno. Esse é um ponto de relevância a se considerar, pois, se negligenciado, pode comprometer tanto a qualidade assistencial do serviço de saúde quanto o ensino médico.
O cuidado em saúde da mulher abrange não apenas as patologias de natureza orgânica, mas também aspectos sexuais, afetivos e sociais da paciente. Questões delicadas, como as de foro íntimo, podem ser de difícil abordagem no momento da consulta, e a paciente pode ficar inibida e insegura, principalmente quando atendida por um acadêmico de Medicina, mesmo que ele esteja sob supervisão do médico responsável1.
Contudo, a participação do estudante na dinâmica dos serviços de saúde é fundamental à construção de habilidades técnicas do ofício médico, bem como à troca de experiências com profissionais mais antigos. Isso constrói a autonomia do futuro médico e o torna mais seguro para a tomada de decisões clínicas e resolução de problemáticas relacionadas à saúde. Para que isso ocorra de forma humanizada, os modelos curriculares atuais não deixam de considerar os aspectos bioéticos implicados nas consultas ginecológicas e urológicas, garantindo que a assistência se dê de maneira respeitosa para o paciente e que o aprendizado esteja apoiado no desenvolvimento de habilidades e atitudes empáticas2.
A ginecologia e a obstetrícia, assim como as demais clínicas com as quais o estudante de Medicina tem contato ao longo da graduação, são de grande importância para a formação médica. No entanto, a exemplo da sexualidade, alguns aspectos da intimidade individual são inerentes aos cuidados dessa especialidade. Por isso, o constrangimento é particularmente experienciado, tanto por pacientes quanto pelos estudantes, e é com frequência despertado, seja pelas abordagens necessárias nas consultas, seja durante o exame físico3.
Entretanto, alguns estudos revelam que, ao contrário do que se possa imaginar a princípio, as pacientes mostram-se receptivas à presença de estudantes na consulta ginecológica4),(5.
Muitos fatores podem contribuir para uma maior aceitação da presença do estudante, por parte das pacientes, na consulta ginecológica. Algumas habilidades inerentes ao próprio indivíduo, como a forma de se comunicar, demonstrando respeito e gentileza, e de transmitir preocupação, agindo profissionalmente durante a consulta, contribuem para a formação de vínculo e a redução do desconforto6. Além disso, estratégias pedagógicas dirigidas às pacientes, como vídeos educativos sobre a formação dos estudantes de Medicina e suas qualificações, revelam- se eficazes no aumento da receptividade delas7. Dessa forma, ao se incluir a mulher no entendimento do seu próprio cuidado, atenua-se o constrangimento, tornando o ambiente da consulta favorável ao aprendizado acadêmico, bem como à assistência médica.
Nesse sentido, o presente artigo investiga os aspectos psicoafetivos que permeiam o momento da consulta ginecológica, a partir da percepção das pacientes, de modo a encontrar elementos que favoreçam a adequação do processo da formação médica com a humanização do atendimento.
MÉTODO
Trata-se de um estudo transversal, observacional, individuado com análise qualitativa, realizado no período de fevereiro a agosto de 2021, por meio de questionários dirigidos às pacientes do ambulatório de ginecologia do Hospital Universitário Lauro Wanderley (HULW).
Como instrumento de coleta de dados, adotou-se uma entrevista semi estruturada, cujas questões foram fundamentadas em exemplos observados na literatura6),(8)-(11 seguindo as técnicas recomendadas para estudos com abordagens qualitativas12)-(14. As questões contemplaram nove itens cujos temas podem estar relacionados ao constrangimento, como: experiência nesse tipo de consulta; informação prévia sobre a participação de acadêmicos no atendimento; sexo do estudante; habilidades comunicativas do aluno; e possibilidade de aceitação dos discentes caso o serviço fosse privado. Por fim, coletaram-se relatos de experiências, sugestões ou queixas, caso a mulher desejasse compartilhar.
A amostra do estudo foi por acessibilidade15, composta pelas pacientes atendidas no ambulatório de ginecologia do Hulw ou que estivessem aguardando na sala de espera para uma consulta de primeira vez ou de seguimento. Incluíram-se todas as pacientes que estavam na sala de espera para atendimento no momento da coleta dos dados. Por questões éticas, excluí ram-se as pacientes menores de 15 anos, bem como aquelas com comprometimento psiquiátrico ou cognitivo, que pudessem apresentar limitações à coleta dos dados.
As entrevistas ocorreram de forma presencial, e as falas foram gravadas e posteriormente transcritas. Incluíram-se no estudo, exclusivamente, as pacientes que leram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A pesquisa seguiu os critérios éticos estabelecidos pela Resolução do Conselho Nacional de Saúde (CNS) nº 466/201216 e teve a aprovação do Comitê de Ética para Pesquisas com Seres Humanos - CAAE nº 12753619.0.0000.8069.
As respostas foram transcritas, e seu conteúdo textual constituiu o corpus submetido à análise lexicográfica pelo software IRaMuTeQ 0.7 alpha 2. Esse programa apresenta funcionalidades que permitem, de modo estatístico, analisar discursos e questionários de pesquisas, e ajudam na interpretação textual, a partir da identificação do contexto, do vocabulário, da separação e especificidade de palavras, da diferença entre autores, além de outras possibilidades, como confecção de gráficos e nuvens de palavras. Os discursos foram então organizados na classificação hierárquica descendente (CHD) obtida pelo software. A partir dessa análise, obtiveram-se os segmentos de texto (ST) para comparação entre as diferentes classes de palavras17.
RESULTADOS
Realizaram-se 50 entrevistas. A maioria das mulheres já havia sido atendida na presença de estudantes (94%), tinha mais de 40 anos (68%) e exercia atividades laborais (58,8%): donas de casa (16,2%), trabalhadoras autônomas (16,2%) e trabalhadoras contratadas (26,4%). As demais eram estudantes (12,2%) ou aposentadas (29%). Quanto ao domicílio, 60% das entrevistadas residiam na capital, enquanto as outras (40%) eram de cidades do interior do estado.
A análise lexicográfica reconheceu 50 unidades de texto, 227 ST aproveitados, com uma retenção de 84,14%, e 7.651 registros de ocorrência, entre palavras, formas e vocábulos. O conteúdo foi categorizado em seis classes: 1 com 26 ST (13,6%); 2 com 29 ST (15,2%); 3 com 37 ST (19,4%); 4 com 31 ST (16,2%); 5 com 42 ST (22%); e 6 com 26 ST (13,6%).
O corpus de análise foi dividido em subcorpora até que se chegasse às classes finais. É o que mostra o dendograma da Figura 1. Percebemos que, inicialmente, o corpus foi repartido em dois subcorpora, que chamamos de subcorpus 1 e subcorpus 2. Dentro do subcorpus 1, temos os subcorpora 1 A, 1 B e 1 C.
O subcorpus 1 B, por sua vez, originou a classe 1 e também o subcorpus 1 C. Os discursos da classe 1, “Conhecimento prévio da presença de estudantes”, revelam como o conhecimento prévio acerca da presença de estudantes se relaciona com o constrangimento durante a consulta.
Já o subcorpus 1 C divide-se em outras duas classes de palavras: 2 e 3. A classe 2, nomeada “Sentimentos no momento da consulta”, agrupa expressões sobre os sentimentos despertados pela mulher ao se ver no atendimento em que estão presentes os estudantes. Esses sentimentos estão relacionados principalmente ao sexo masculino e à percepção sobre as habilidades comunicativas dos estudantes. A classe 3, “Experiência versus constrangimento”, por sua vez, traz falas relacionando o número de atendimentos já experienciados, a quantidade de estudantes presentes no atendimento e os anos decorridos desde o primeiro contato com alunos, com o grau de constrangimento durante a consulta ginecológica.
O subcorpus 2 traz as classes 4 e 5. A classe 4, “A consulta na formação médica”, revela a observação, por parte das mulheres, do conhecimento médico sendo construido pelos estudantes durante as consultas. E a classe 5, “Importância da prática para a formação profissional”, demonstra a avaliação geral das pacientes acerca da importância da prática no aprendizado em Medicina.
O subcorpus 1 A originou a classe 6, “Hospital particular”, que traz falas sobre a possibilidade de aceitação da presença de estudantes, caso o atendimento acontecesse em um hospital privado. Nesses discursos, demonstra-se como o entendimento sobre se estar contribuindo para a formação médica atenua o constrangimento. Fragmentos de falas de cada uma das classes revelados pelos ST mais representativos encontram-se expostos no Quadro 1.
Classes semânticas | Principais segmentos de textos |
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Classe 1 - “Conhecimento prévio da presença de estudantes” | “[...] foi constrangedor com os estudantes... não fui informada sobre a presença deles [...] seria interessante se informassem sobre a presença do estudante porque por algumas vezes eu já estive aguardando na recepção e alguém descobriu e ficou com má vontade [...].” |
Classe 2 - “Sentimentos no momento da consulta” | “[...] quando fui atendida por estudantes, eu deixei só as mulheres... os homens eu não quis que participassem [...] o [estudante] mais desinibido chega na frente, conversa e deixa a gente mais confortável [...] se comunicar deixa o ambiente bom, saudável, alegre [...].” |
Classe 3 - “Experiência versus constrangimento” | “No começo me senti constrangida e nervosa, mas depois fui me acostumando [...]. Com uma pessoa só a gente já fica constrangida, imagina com várias... [...] eu vinha ser atendida na adolescência... geralmente tinham vários estudantes junto com o doutor... fiquei, no início, um pouco constrangida [...] eu fiquei um pouco constrangida porque eu era muito jovem ainda… [...].” |
Classe 4 - “A consulta na formação médica” | “Eu acho que os estudantes acompanharem o atendimento faz eles aprenderem mais [...]. Eu fico só observando o doutor explicando e eles perguntando também, olhando os exames... [...].” |
Classe 5 - “Importância da prática para a formação profissional” | “Os estudantes precisam da prática para aprenderem e serem doutores melhores no futuro [...] como é que eles vão aprender se não tiverem o material humano para trabalharem? [...] eu entendo a importância para eles aprenderem [...] é uma coisa que você sabe que é para a vida. Todo mundo precisa estar se capacitando e aprendendo [...].” |
Classe 6 - “Hospital particular” | “Se fosse para eles concluírem o seu curso, eu aceitaria sim [...] aceitaria, porque de todo jeito eles têm que aprender as coisas com os doutores [...] se fosse para o bem deles, eu aceitaria [...] eu aceitaria... Por que sem eles como vai ser o futuro da gente? ” |
Fonte: Elaborado pelas autoras.
Por meio da análise fatorial por correspondência (AFC) obtida pelo IRaMuTeQ, é possível observar a associação entre as classes de palavras em um plano cartesiano, conforme o Gráfico 1. Denota-se que as classes 2 e 3 não apresentam separação significativa uma da outra, havendo uma tendência de aproximação entre elas. O mesmo se pode dizer das classes 4 e 5. Considerando o conteúdo de cada classe de palavras, pode-se inferir que o eixo X separa as falas sobre a assistência das falas sobre ensino; enquanto o eixo Y separa as falas sobre o eu das falas sobre o outro.
O corpus original foi dividido em subcorpus 1, que dá origem às classes 1, 2, 3 e 6, e subcorpus 2, que origina as classes 4 e 5. Essa primeira divisão do subcorpus corresponde, no gráfico, à separação feita pelo eixo Y. De um lado, todos os discursos das pacientes que dizem respeito a si próprias: classes 1, 2, 3 e 6. De outro lado, as percepções acerca da situação alheia (no caso, dos estudantes): classes 4 e 5.
Quando se analisa o subcorpus 1, como mostra o dendograma da Figura 1, ele se divide em subcorpus 1 A (classe 6) e subcorpus 1 B (classes 1, 2 e 3). Essa separação, por sua vez, corresponde, no gráfico, à divisão estabelecida pelo eixo X. Acima dele, os discursos que se referem à assistência (classes 1, 2 e 3); abaixo, os discursos sobre o ensino (classe 6).
Sob a ótica das pacientes, o momento da consulta envolve duas esferas de interesse principais: a assistência médico-ginecológica dada a elas e o ensino-aprendizado destinado aos estudantes. Dentro dessa divisão, entram dois pontos de vista: aquele que parte da perspectiva da paciente e aquele que considera o interesse do outro (o estudante). Observa-se que a classe que se encontra na intersecção entre o eu e o ensino é justamente a classe 6, em que se fala sobre a aceitação de estudantes mesmo sob a hipótese de se estar em um atendimento particular (pago). Isso mostra como o entendimento de se estar contribuindo para o ensino médico é um atenuante para o constrangimento vivenciado nesse tipo de consulta.
DISCUSSÃO
A presença do estudante durante o atendimento ginecológico revelou-se como um fator de desconforto para as pacientes neste estudo, achado concordante com os já existentes na literatura3),(18),(19. Pesquisas anteriores destacam o gênero masculino do estudante como um dos principais aspectos relacionados ao constrangimento18),(20),(22, o que é confirmado, nesta pesquisa, nas falas da classe 2. Segundo registros dessa mesma classe, o maior número de pessoas presentes na sala no momento da consulta também apontou para o maior constrangimento das mulheres. Possivelmente esse dado se relaciona ao desconhecimento acerca da formação médica e do treinamento técnico dos estudantes de Medicina, bem como ao compromisso deles com o fornecimento de um cuidado empático7. Ademais, em consonância com dados preexistentes21, o não conhecimento prévio sobre a presença dos estudantes durante a consulta também mostrou contribuir para o desconforto das mulheres, segundo as falas da classe 1.
Entretanto, merecem destaque os atenuantes desse desconforto, entre os quais se destaca a experiência com atendimentos anteriores6),(18),(23. Quanto mais vezes a paciente foi atendida por estudantes, menor o constrangimento referido no atendimento atual. É o que se revela nos discursos da classe 3, reforçando o entendimento de que, à medida que as mulheres experimentam o ambiente acadêmico, elas tendem a não se opor à presença de estudantes em atendimentos futuros6. Além disso, a compreensão das mulheres sobre a importância da prática no aprendizado médico também mostrou ser capaz de torná-las mais receptivas aos estudantes, como apresentado nas falas daclasse 5, levando-as, inclusive, a desejar contribuir para o aprendizado de futuros médicos23, de acordo com relatos da classe 6.
A própria percepção das pacientes aponta a prática como a forma mais usual para se aprender no contexto médico-acadêmico18),(23, servindo de aprendizado para elas mesmas, como se verifica nas falas da classe 4. Nessa classe de palavras, as pacientes também revelam que a presença de estudantes lhes permite ter maiores informações sobre seu estado de saúde, graças à discussão clínica que se dá durante a consulta21),(24.
Ainda como aspectos modificáveis capazes de diminuir o constrangimento, é válido destacar a construção de habilidades de comunicação interpessoal. Reforçando dados da literatura, as falas da classe 2 mostram que os atributos de comunicação interpessoal dos estudantes parecem ter valor preditivo positivo no consentimento para a sua participação na consulta ginecológica, desempenhando um efeito moderador sobre os sentimentos das pacientes em relação à presença dos discentes durante a consulta6. Pacientes com uma percepção mais positiva da comunicação interpessoal com o estudante ou um profissional de saúde em experiências anteriores estariam mais inclinadas a consentir a presença de discentes no atendimento. Contudo, se tivessem uma percepção negativa dessas habilidades, poderiam ser mais propensas a discordar da presença do estudante25.
As limitações do presente estudo concentram-se no fato de ter sido realizado no serviço que promoveu a pesquisa, por meio de seus estudantes universitários26. Além disso, há o viés de seleção de mulheres, já que a maioria entrevistada na sala de espera já tinha experiência com estudantes, e a restrição da coleta de entrevistas em um único serviço público de atendimento médico, o que dificulta a generalização de seus resultados.
Em contrapartida, o trabalho reforça achados já relatados na literatura, contribuindo com elementos facilitadores para a construção de uma relação médico-paciente humana nos serviços públicos de saúde.
CONCLUSÕES
Os resultados apontam que as usuárias do ambulatório do hospital universitário, nos seus atendimentos ginecológicos com a presença dos estudantes, enfrentam o sentimento de constrangimento. No entanto, esse sentimento tende a diminuir com o uso continuado do serviço, bem como com a percepção de se estar contribuindo para a formação médica. Entretanto, a falta de informação prévia de que o atendimento será realizado na presença dos estudantes é uma fonte de insatisfação e mal-estar na assistência.
Desse modo, a orientação às usuárias sobre como será a consulta, e a conscientização sobre a importância da presença do estudante no atendimento revelam-se como elementos aliados do bem-estar das mulheres submetidas à consulta ginecológica no ambiente universitário. Trata-se de achados de percepções positivas a serem reforçadas, configurando-se como fatores que podem ser utilizados como facilitadores de situações desconfortáveis que possam ocorrer nos cenários de práticas da formação médica, a exemplo do atendimento ginecológico.