INTRODUÇÃO
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a definição de idoso varia em relação aos países desenvolvidos e àqueles em desenvolvimento, como o Brasil. De acordo com essa definição, são considerados idosos nos países desenvolvidos os indivíduos a partir de 65 anos, enquanto, nos países em desenvolvimento, aqueles a partir de 60 anos. Essa diferença está relacionada ao fato de que, nos países desenvolvidos, existe uma melhor qualidade de vida dos cidadãos por causa das melhores condições de acesso à saúde, ao saneamento básico e à educação. Assim, eles usufruem de uma expectativa de vida superior associada à queda da mortalidade1.
Nesse sentido, é indispensável abordar um dos tópicos importantes para o cuidado relacionado à qualidade de vida: a sexualidade. A saúde sexual é fundamental para o bem-estar tanto físico quanto emocional das pessoas, além de influenciar questões sociais2. Ademais, ela se mostra componente da personalidade do indivíduo e se enquadra como necessidade humana básica, como o desejo de contato, intimidade, expressão emocional, prazer, amor e carinho3.
O assunto sexualidade, quando referente à terceira idade, traz consigo muitos mitos e tabus, principalmente quando o assunto saúde sexual está sempre relacionado à juventude. Essa visão acentua os preconceitos existentes em relação à sexualidade de idosos, e, dessa forma, eles passam a ser tachados como “assexuados”, impossibilitados de ter desejos, o que perpetua esse pensamento completamente equivocado4.
De acordo com Uchôa et al.5, o idoso, que antes era considerado um cidadão ativo no contexto socioeconômico familiar, está hoje relegado a um papel de passividade. Consequentemente, os filhos passam a ter uma visão infantilizada do idoso, ao considerarem o desejo sexual dele como algo depreciativo ou interpretarem isso como um sinal de demência5. Tais ações contribuem para o constrangimento, desconforto e silenciamento da terceira idade sobre esse tema.
Apesar do avanço das medicações, o atendimento e as orientação pelos profissionais de saúde em relação a essa população na abordagem da prática sexual permanecem incompletos. Segundo Souza Júnior et al.6, existem dois principais fatores que interferem na abordagem dessa questão. O primeiro seria o sentimento de vergonha pelos idosos, que muitas vezes ficam envergonhados ao perceberem que ainda possuem desejos, contrariando todos os tabus impostos pela sociedade. O segundo seria o sentimento de respeito pelos profissionais de saúde, que frequentemente possuem uma visão mais conservadora em relação ao assunto, chegando a considerar um desrespeito abordar esse tópico6.
Dessa forma, ao negligenciar o questionamento referente à vida sexual do idoso, o profissional de saúde perde uma oportunidade fundamental na promoção de saúde, visto que o principal fator de risco para infecções sexualmente transmissíveis (IST) nessa população é a prática sexual insegura, que poderia ser modificada com a orientação correta pelo profissional de saúde7.
No Brasil, de acordo com Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), nos últimos dez anos, das 409.958 notificações de síndrome da imunodeficiência humana (Aids), 22.752 (5,6%) eram referentes aos idosos - com 60 anos ou mais8. Em relação à sífilis adquirida, das 908.652 notificações, 75.208 (8,3%) eram referentes aos idosos9.
Diante do exposto, este relato de experiência traz o início de um diálogo com acadêmicos de Medicina de uma universidade pública sobre a complexidade da sexualidade e IST em idosos, buscando identificar o conhecimento desses discentes sobre o assunto e idealizar propostas de ação no contexto citado.
RELATO DE EXPERIÊNCIA
Estrutura da proposta
O presente artigo refere-se a um estudo descritivo com abordagem qualitativa, do tipo relato de experiência, vivenciado por discentes do curso de graduação em Medicina da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) em junho de 2021. O componente curricular em que essa metodologia foi aplicada está no sexto semestre e compõe o módulo de Saúde Coletiva. Nele discutem-se aspectos relacionados ao território sanitário e seus componentes com foco na determinação social do processo saúde-adoecimento-cuidado, aprimorando ações de promoção da saúde, prevenção de agravos e educação em saúde com ênfase nas políticas públicas relacionadas à urgência e emergência, como também o cuidado voltado para doenças crônicas.
É importante ressaltar que a vivência aqui descrita foi realizada de maneira virtual em razão do cenário social ocasionado pela pandemia de Covid-19, que compeliu à adequação docente para continuidade das atividades educativas nas instituições de ensino, concebendo o ensino remoto emergencial10. Diante disso, o ensino remoto proporcionado nesse componente curricular visou construir transformações e melhorias tanto no cuidado quanto na formação médica, sendo essa intencionalidade potencializada pela utilização de metodologias com base na problematização.
O tema escolhido para a atividade retratada foi designado com base na situação epidemiológica das IST no contexto de saúde pública atual11. A emergência e reemergência dessas doenças no Brasil, na América Latina e no mundo levam à necessidade de ações de educação e trabalhos integrados entre os diferentes setores e serviços do Sistema Único de Saúde (SUS)12),(13. Destarte, a compreensão desses fatores perpassa pelo conhecimento dos determinantes sociais de saúde, em territórios definidos, onde as pessoas vivem e no qual se relacionam com as políticas públicas de saúde.
Para que os serviços de saúde possam se tornar exequíveis e mais eficientes, de modo a oferecerem à população assistida uma saúde de qualidade, as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em Medicina propõem formar profissionais orientados para as necessidades sociais de saúde do país14. Assim, o docente responsável pelo componente curricular estruturou a estratégia de ensino-aprendizagem apresentada neste relato, cuja abordagem consistiu na aplicação da metodologia do Arco de Maguerez para o debate sobre IST no contexto da saúde pública brasileira, o qual foi realizado com base nas diretrizes do ensino remoto emergencial.
O Arco de Charles Maguerez, apresentado pela primeira vez por Bordenave et al.15, é uma metodologia que possui embasamento teórico nas inferências das metodologias ativas, partindo da necessidade da problematização de determinado assunto para compreensão de seus determinantes e sua aplicação no contexto social a que ele está relacionado16)-(18. A metodologia da problematização tem como prerrogativa a execução das etapas propostas pelo Arco de Maguerez: a observação da realidade - em que se identificam o problema e os pontos-chave, a teorização do assunto, a enunciação das hipóteses de solução e a aplicação prática dessas hipóteses à realidade - e a relação com a prática médica a partir das vivências em serviços de saúde e de educação16)-(18. A Figura 1 apresenta a estrutura do Arco.
Sequência de realização da atividade:
No primeiro momento, o docente explicou os detalhes de como aconteceria a atividade. Ele salientou que os discentes participassem de forma ativa e colaborativa para a construção do conhecimento. Para avaliar o nível de conhecimento da turma sobre o assunto, não foi disponibilizado nenhum texto-base para fomentar a discussão. Esperava-se que os participantes apresentassem seus conhecimentos sobre o assunto a partir dos princípios pessoais e das experiências acadêmicas e extracurriculares (estágios e similares).
No próximo passo, o professor apresentou a metodologia-base do Arco de Maguerez. O objetivo de cada etapa do Arco está descrito nos quadros 1 e 2 da seção “Resultados alcançados”.
Em seguida, os alunos receberam o link da plataforma Google Jamboard (GJ). Trata-se de uma lousa interativa na qual os participantes conseguem alterar as informações em tempo real. Na interface constavam as etapas do Arco de Maguerez previamente elaboradas pelo educador. Ao término do preenchimento das ideias no GJ e da discussão em cada etapa, era possível que os discentes avançassem para as etapas seguintes. Cada uma das etapas supracitadas era coordenada pelo docente.
Depois de alcançarem a quarta etapa (hipóteses de solução), os alunos foram divididos em grupos de seis e alocados em salas de reunião do Microsoft Teams. Então eles tiveram um prazo de 40 minutos para elaborar propostas de solução que impactassem o controle da propagação de IST na população geriátrica, com base nos pontos-chave levantados pela turma previamente. Ao término do prazo, eles voltaram para a sala virtual geral, e os grupos apresentaram suas propostas.
Por fim, na quinta etapa (aplicação a realidade), a turma foi estimulada a questionar os grupos se as propostas deles eram de fácil implementação no âmbito da atenção primária à saúde, com o intuito de prevenir doenças e promover a saúde para a população-alvo.
Antes da apresentação dos resultados alcançados, deve-se informar que este trabalho seguiu todos os passos definidos pelos Standards for QUality Improvement Reporting Excellence in Education (SQUIRE-EDU)19. Ademais, todos os discentes participantes da atividade estavam cientes da utilização dos resultados alcançados, assim como da publicação das perspectivas elucidadas.
DISCUSSÃO
O conceito deteriorado e negativo da velhice, especialmente no âmbito sexual, impede que o idoso busque o apoio dos profissionais de saúde; além disso, os obstáculos impostos pelos familiares impossibilitam que esse indivíduo continue a ser sexualmente ativo. Até os próprios meios de comunicação proporcionam uma visão pouco atrativa do processo de envelhecimento e da pessoa idosa por consequência4.
Nossos resultados vão de encontro a outros autores que buscaram compreender as representações sociais acerca da sexualidade dos idosos. Eles verificaram que as representações sociais acerca da sexualidade na terceira idade assemelham-se à descrição científica, apresentando similitude entre o senso comum e o conhecimento erudito4),(20,(21.
Em face do pouco conhecimento desse público sobre a complexidade das IST, o estudo descritivo realizado por Brito et al.22 com grupos de idosos identificou que a população estudada se considera pouco vulnerável à contaminação ou não se percebe em risco, o que os torna susceptíveis ao perigo da infecção, favorecendo o aumento do índice de idosos infectados no cenário nacional.
Segundo os autores, grande parte dos idosos não teve condições de discutir assuntos como sexualidade e prevenção de IST ao longo da vida, e ainda mais grave: os profissionais não desenvolvem ações específicas à saúde sexual da pessoa idosa, apoiando-se no discurso de que são temas complexos e de difícil manejo para essa população, o que apenas reforça os preconceitos e mitos que circundam esse assunto23),(24.
Em contrapartida, outros estudos realizados com idosos no Brasil evidenciaram que a maioria dos indivíduos conhece algumas formas de prevenção de doenças transmitidas por via sexual e que o preservativo pode conter a transmissão do HIV/Aids, além de outras infecções. Porém, a maioria adota comportamentos de riscos, como não utilizar preservativos durante as relações sexuais25),(26.
Diante da discrepância descrita na literatura quanto aos conceitos errôneos por parte dos idosos, dos familiares e pelos profissionais de saúde acerca da sexualidade na terceira idade27, são imprescindíveis a realização de campanhas e o desenvolvimento de medidas e estratégias preventivas voltadas para idosos, a fim reduzir a incidência de IST nessa comunidade21.
Para isso, são necessárias estratégias de educação em saúde no ensino acadêmico e de educação profissional continuada para sedimentar os conhecimentos necessários na idealização de propostas eficazes. A educação em saúde é apontada como uma importante estratégia para a identificação de pontos falhos do conhecimento de uma população sobre determinado tema em saúde e para a intervenção eficaz para o seu controle4.
No contexto das IST em idosos, uma revisão da literatura informa que diversas campanhas de educação em saúde foram realizadas com foco na prevenção da transmissão dessas doenças na população idosa brasileira, embora só recentemente campanhas mais robustas tenham sido elaboradas, ainda que de forma diluída, na assistência aos mais velhos23.
No cenário das unidades básicas de saúde e unidades básicas de saúde da família, há a descrição de rodas de conversa e trabalhos em grupo de idosos que já frequentavam esses serviços24),(28),(29. Na maior parte dos estudos supracitados, as mulheres idosas foram as mais participativas, e os temas discutidos envolveram a sexualidade, uso/conhecimento sobre preservativos e transmissão de IST. Quanto à prevenção, a distribuição de lubrificantes e preservativos masculinos e femininos foi realizada em apenas uma das referências incluídas nessa revisão24. Além disso, entende-se que o assunto permanece em segundo plano nos serviços de atenção básica23.
A OMS sinaliza que o programa brasileiro de combate à Aids é internacionalmente conhecido, uma vez que desenvolve ações que reduzem a propagação da doença por promoverem medidas inovadoras de prevenção e a cobertura gratuita no tratamento, assegurada pelo SUS22.
Por fim, acredita-se que o diálogo iniciado nesta experiência resultará numa formação mais capacitada dos acadêmicos sobre o assunto, uma vez que as DCN prezam o desenvolvimento de competências, habilidades e atitudes para os médicos atuarem no SUS em consonância com a realidade de saúde pública. Tais competências exigem a substituição de um modelo de ensino biomédico e curativo por outro com foco no processo saúde-doença, nos diferentes níveis de atenção, contemplando ações de promoção, prevenção, recuperação e reabilitação em uma dimensão coletiva23.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entendimento da importância da sexualidade entre idosos é fundamental para os profissionais de saúde e a população leiga, pois o público da terceira idade não é composto por pessoas desprovidas de desejos e de atividade sexual. A sexualidade é um componente fundamental da qualidade de vida, essencial para manter relações interpessoais saudáveis e um senso de integridade próprio, ligado à autoestima, o que, se desvalorizado, pode ter efeitos deletérios que ultrapassam a sexualidade, trazendo prejuízos para a autoimagem e saúde mental dos idosos. A partir da formação médica adequada, discutindo aspectos complexos sobre o assunto, serão possíveis a construção, a implementação e a avaliação de políticas públicas de saúde para o enfrentamento das IST, de modo a diminuir as barreiras relacionadas à prevenção de doenças e à promoção de saúde sexual na população idosa.