A dislexia é definida na literatura como um transtorno específico de origem genética e neurológica que compromete a leitura e a escrita do escolar decorrente de déficits fonológico, cognitivo-linguístico e alterações em habilidades motoras e visomotoras (LYON; SHAYWITZ; SHAYWITZ, 2003; GERMANO; PINHEIRO; CAPELLINI, 2013; MACHADO; CAPELLINI, 2014).
Complementando tal definição, Reid (2016) define que a dislexia é decorrente de diferenças nos processamentos individuais, que são frequentemente caracterizados por dificuldades no início da alfabetização, o que compromete a aquisição da leitura, da escrita e da ortografia, além de apresentar falhas nos processos cognitivos, fonológicos e/ou visuais.
Por conta dos déficits citados, os escolares com dislexia apresentam desempenho inferior nas provas de decodificação e memória operacional fonológica, bem como tarefa de fluência verbal, afetando, assim, seu desenvolvimento em leitura e escrita (CARVALHO et al., 2014; BARBOSA et al., 2015).
Já a dificuldade de aprendizagem é descrita na literatura como obstáculos ou barreiras que dificultam o processo de ensino-aprendizagem do escolar, podendo ser dificuldades relacionadas à assimilação de conteúdos propostos ou outras dificuldades que impede os escolares de acompanharem seu grupo-classe (REBELO, 1993). Tais dificuldades podem ser duradouras ou passageiras, levando o escolar ao baixo rendimento, reprovação, atraso no tempo de aprendizagem e necessidade de ajuda especializada (SUEHIRO; MAGALHÃES, 2014).
As dificuldades de aprendizagem podem ser desencadeadas por fatores relacionados à metodologia de alfabetização utilizada, fatores emocionais ou socioeconômico-cultural. Já a dislexia é decorrente da combinação de fatores genéticos e neurológicos, que causam déficits no processamento da informação. Por conta disso, os escolares com dislexia podem apresentar desorganização no nível fonológico, causando problemas na conversão fonografêmica, o que também causará problemas nas representações, acesso e recuperação da palavra por meio do acesso fonológico da informação lexical, ocasionando problemas na aprendizagem da escrita ortográfica (FRANÇA et al., 2004; VAZ et al., 2015).
Como o sistema de escrita do português brasileiro é caracterizado pela sua transparência e opacidade, tanto a leitura como a escrita apresentam palavras regulares e irregulares (ALÉGRIA et al., 1997; SCLIAR-CABRAL, 2003; OLIVEIRA; GERMANO; CAPELLINI, 2016). Contudo, a escrita ortográfica apresenta mais opacidade, gerando erros mais graves, quando comparada à leitura, uma vez que o fonema mais complexo a ser codificado é o /s/, podendo ter dez variações, como por exemplo sapato, cebola, experiência, paz, criança, pássaro, crescer, nasça, exceto e exsudar. Já na leitura, o grafema mais complexo a ser decodificado é o [x], podendo ter quatro variações, como por exemplo, xale, exato, experiência e táxi.
É sabido que escolares apresentam maior facilidade na escrita ortográfica de palavras regulares e de alta frequência quando comparada às palavras de baixa frequência ou pseudopalavras, demonstrando que, quanto maior for a exposição auditiva, visual e perceptiva da palavra para com o escolar, mais familiar a palavra se torna, o que facilita a recuperação lexical ortográfica no momento da codificação (ALGOZZINE et al., 2008; CAPELLINI; LANZA, 2010; SAMPAIO et al., 2017).
Diante do citado, é possível afirmar que as imprecisões das representações fonológicas ou as representações pouco específicas podem causar déficit no processamento fonológico, afetando tanto o sistema fonológico como a recuperação lexical da palavra (NICOLIELO; HAGE, 2014; GERMANO; CAPELLINI, 2015; TORPPA et al., 2017; SANTOS; FERRAZ, 2017).
Para leitores iniciantes, várias habilidades devem entrar em ação para que ocorra a decodificação e a compreensão textual para o sucesso da aprendizagem. Nesse início de aprendizagem da leitura, o escolar utiliza a maior parte da sua atenção para realizar a decodificação das palavras, ocasionando sobrecarga de memória de trabalho. Assim, a menor parte da sua atenção é focada no processo de compreensão, que deve ir aumentando conforme o escolar melhore o seu desempenho nos processos de decodificação, também à medida que ocorrer o aumento dos anos escolares, pois as suas técnicas de leitura serão aprimoradas com a automaticidade do reconhecimento das palavras e com o processamento de leitura mais rápido. Dessa forma, a maior parte da sua atenção pode se deslocar para processos ligados à compreensão, adquirindo e aprimorando a fluência durante a leitura e aumentando a compreensão (SNELLINGS et al., 2009).
Diante das informações aqui expostas, é possível observar que a sobrecarga de memória operacional fonológica pode prejudicar tanto o aprendizado da escrita quanto o aprendizado da leitura, dificuldades essas que podem ser manifestações de escolares com dislexia quando não são sanadas com a progressão escolar do aluno.
Desta forma, este estudo teve por objetivo relacionar e comparar as regularidades e irregularidades dos erros de leitura e de escrita em escolares com dislexia do desenvolvimento e dificuldades de aprendizagem.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Este estudo foi realizado após a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP) - Marília, sob o protocolo número 56551816.7.0000.5406.
Participaram deste estudo 75 escolares na faixa etária de 8 anos a 11 anos e 11 meses de idade, do 3º ao 5º ano do Ensino Fundamental I, de ambos os sexos, sendo 39 escolares do sexo feminino e 36 escolares do sexo masculino, distribuídos em três grupos:
Grupo I (GI): composto por 25 escolares com diagnóstico interdisciplinar de Dislexia do Desenvolvimento;
Grupo II (GII): composto por 25 escolares com dificuldades de aprendizagem;
Grupo III (GIII): composto por 25 escolares com bom desempenho acadêmico, pareado com a faixa etária e ano escolar com os escolares do GI e GII.
Para realizar o pareamento dos escolares, foram selecionados primeiramente os escolares do GI e, a partir da idade e escolaridade desses, os escolares do GII e GIII foram selecionados de forma pareada. Em vista disso, cada grupo foi composto por 9 escolares do 3º ano, 7 escolares do 4º ano e 9 escolares do 5º ano.
Os participantes de todos os grupos foram escolares regularmente matriculados em escolas públicas municipais de duas cidades do interior paulista que utilizaram do mesmo material didático e que foram submetidos ao mesmo método de ensino, a fim de evitar que materiais e métodos distintos acarretassem viés nos resultados obtidos por este estudo.
Os participantes do Grupo I (GI) deste estudo foram sujeitos com diagnóstico interdisciplinar de Dislexia do Desenvolvimento realizado por equipe interdisciplinar do Laboratório de Investigação dos Desvios da Aprendizagem - LIDA/FFC/UNESP, que incluiu avaliação fonoaudiológica, pedagógica e neuropsicológica. Esses escolares estavam em lista de espera para atendimento fonoaudiológico no Estágio Supervisionado em Terapia Fonoaudiológica: Linguagem Escrita no Centro Especializado em Reabilitação II - CER II/FFC/UNESP-Marília-SP e não foram submetidos a nenhum tipo de intervenção antes da avaliação.
O diagnóstico de Dislexia foi realizado de acordo com critérios citados na literatura (GERMANO; CAPELLINI, 2011; 2015). Os escolares foram considerados disléxicos quando apresentaram os seguintes critérios em situação de avaliação interdisciplinar: alteração quanto ao equilíbrio estático e à coordenação apendicular, persistência motora, equilíbrio dinâmico, coordenação tronco-membro e sensibilidade no exame neurológico evolutivo; nível cognitivo normal, alteração quanto à memória na bateria neuropsicológica; alterações de consciência fonológica, velocidade de leitura oral abaixo da esperada para idade e escolaridade, desempenho considerado inferior em provas de leitura de palavras isoladas e textos seriados, desempenho abaixo do esperado em provas de escrita sob ditado e compreensão de leitura considerada parcial do texto lido.
Os escolares do Grupo II (GII) e do Grupo III (GIII) foram indicados por seus professores com dificuldades de aprendizagem e com bom desempenho acadêmico, respectivamente. A partir dessa indicação, os escolares foram submetidos à aplicação do Teste de Desempenho Escolar - TDE (STEIN, 1994) e somente foram distribuídos, no GIII deste estudo, os escolares que obtiveram desempenho superior nos subtestes de escrita, aritmética e leitura do TDE e, no GII, os escolares que obtiveram desempenho médio-inferior nos subtestes de escrita, aritmética e leitura do TDE. Foram excluídos os escolares que apresentaram presença de deficiência visual, auditiva, intelectual ou física referida em prontuário escolar.
Os escolares deste estudo foram submetidos à aplicação da prova de Leitura de Palavras presente no Protocolo de Provas de Habilidades Metalinguísticas e de Leitura - PROHMELE (CUNHA; CAPELLINI, 2009). A prova de leitura foi realizada em voz alta e filmada para posterior análise, com duração de aproximadamente 30 minutos em sessão única. A caracterização dos tipos de erros da leitura de palavras reais foi realizada a partir de critérios estabelecidos para o português brasileiro, proposto por Scliar-Cabral (2003).
Os escolares também foram submetidos à prova de Ditado de Palavras do Protocolo de Avaliação da Ortografia - Pró-Ortografia (BATISTA et al., 2014), em uma sessão individual com duração de cerca de 30 minutos.
A pontuação dos erros da escrita foi realizada segundo a classificação da semiologia dos erros, proposta por Batista e Capellini (2011), seguindo a tipologia de erros de ortografia natural e de ortografia arbitrária.
Os erros de ortografia natural têm uma relação direta com o processamento de linguagem, enquanto os erros de ortografia arbitrária, tanto para a ortografia dependente quanto independente de regras, estão diretamente relacionados com a memória visual, conhecimento de regras ortográficas, de léxico e de morfologia. Entre os erros de ortografia natural, espera-se destacar os erros de correspondência fonema-grafema unívoca, os erros na sequencialização dos grafemas que compõem a palavra, os erros de omissão, adição e alteração na ordem dos segmentos e o erro de segmentação da cadeia de fala, que se relaciona com as junções e separações indevidas na escrita.
Entre os erros de ortografia arbitrária estão os erros de correspondência fonografêmica dependentes do contexto fonético e os erros de correspondência fonografêmica independentes de regras. Além disso, serão acrescidos a essa classificação os erros por ausência ou presença inadequada de acentuação e outros achados, relacionados com letras com problemas no traçado, letras escritas por meio de inversão ou reversão, palavras ilegíveis e escrita de outras palavras sem significado.
Após a classificação da ortografia, os erros foram selecionados em C1, C2 e C4, sendo: C1 correspondente à somatória do total de erros de correspondência Fonografêmica Unívoca, que os escolares de cada grupo apresentaram no Pró-Ortografia; C2 correspondente à somatória do total de erros de correspondência Fonografêmica Dependente de Contexto do Pró-ortografia; e C4 correspondente à somatória do total de erros de Correspondência Fonografêmica Independente de Contexto que os escolares de cada grupo apresentaram no Pró-Ortografia. Na classificação da leitura, D1 corresponde à somatória dos erros da regra D1 apresentados na prova de Leitura de Palavras Reais do PROHMELE; D2 corresponde à somatória de todos os erros de regra D2 apresentados na prova de Leitura de Palavras Reais do PROHMELE; e D4 corresponde à somatória dos erros da regra D4 apresentados na prova de Leitura de Palavras Reais do PROHMELE.
Para verificar o grau de relacionamento entre as variáveis deste estudo, foi utilizado o Teste da Razão de Verossimilhança. Os resultados foram analisados estatisticamente no nível de significância de 5% (0,050), indicados com asterisco nas tabelas referentes aos resultados.
RESULTADOS
As tabelas nomeadas como Tabela 1, Tabela 2 e Tabela 3 apresentam os resultados do teste de Razão de Verossimilhança, a fim de verificar o grau de relacionamento entre as variáveis.
Grupo | C1 | D1 | Valor (p) | ||
---|---|---|---|---|---|
Freq. | Perc. | Freq. | Perc. | ||
GI | 507 | 62,83% | 231 | 59,08% | |
GII | 205 | 25,40% | 120 | 30,69% | 0,144 |
GIII | 95 | 11,77% | 40 | 10,23% |
(Teste Razão de Verossimilhança; p≥0,05).
Grupo | C2 | D2 | Valor (p) | ||
---|---|---|---|---|---|
Freq. | Perc. | Freq. | Perc. | ||
GI | 515 | 39,07% | 376 | 47,12% | |
GII | 533 | 40,44% | 285 | 35,71% | 0,001* |
GIII | 270 | 20,49% | 137 | 17,17% |
(Teste Razão de Verossimilhança; p≥0,05);
Grupo | C4 | D4 | Valor (p) | ||
---|---|---|---|---|---|
Freq. | Perc. | Freq. | Perc. | ||
GI | 521 | 36,16% | 62 | 33,70% | |
GII | 581 | 40,32% | 82 | 44,57% | 0,544 |
GIII | 339 | 23,53% | 40 | 21,74% |
(Teste Razão de Verossimilhança; p≥0,05)
Na Tabela 1 é possível observar que não houve diferença estatisticamente significante entre C1xD1. Porém, é possível observar que a frequência de erros, tanto do tipo C1 quanto do tipo D1, em GI é maior quando comparado com GII e a frequência de erros de GII é maior quando comparado com GIII.
Na Tabela 2 é possível observar que houve diferença estatisticamente significante entre C2 x D2, sendo possível observar que GII apresentou maior frequência de erros do tipo C2 quando comparado ao GI e GIII e GI apresentou maior frequência de erros quando comparado a GIII. Já nos erros do tipo D2, é possível observar que GI apresentou maior frequência de erros quando comparado a GII e GII apresentou maior frequência de erros quando comparado a GIII.
Na Tabela 3 é possível observar que não houve diferença estatisticamente significante entre C4 x D4. Porém, é possível observar que a frequência de erros, tanto do tipo C4 quanto do tipo D4, foi maior em GII quando comparado a GI e a frequência de erros de GI foi maior quando comparado a GIII.
DISCUSSÃO
Neste estudo foi possível observar relação existente entre a frequência e a porcentagem de erros do tipo C2 e D2 entre os escolares com dislexia, dificuldades de aprendizagem e bom desempenho acadêmico, corroborando com evidências científicas a existência de relação entre linguagem oral e escrita, onde o sucesso da aprendizagem da escrita está relacionado ao bom desenvolvimento e desempenho em linguagem oral (BISHOP; ADAMS, 1990; CARDOSO; ROMERO; CAPELLINI, 2012; OUELLETTE; TIMS, 2014).
Tais alterações no processamento fonológico de escolares com dislexia estão associadas às dificuldades de leitura e escrita por conta da dificuldade no momento de realizar a discriminação fonológica. Dessa forma, já era esperado que ocorressem maior frequência e porcentagem de erros do tipo unívoco tanto na escrita como na leitura, C1 e D1, respectivamente, de escolares com dislexia, quando comparados aos escolares com dificuldades de aprendizagem ou bom desempenho acadêmico. Isso ocorre porque os escolares com dislexia tendem a apresentar mais erros unívocos, devido à alteração de processamento fonológico que compromete a conversão fonografêmica ou grafofonêmica (CAPOVILLA, 2002; SILVA; CAPELLINI, 2015; ALVES et al., 2016).
Para que ocorra a aprendizagem da leitura e da escrita é necessário que os escolares tenham o ensino explícito, principalmente da ortografia, pois esta é mais opaca quando comparada com a leitura, no sistema de escrita alfabética do português brasileiro (ALÉGRIA et al., 1997; SCLIAR-CABRAL, 2003; ANGELELLI et al., 2016). Como a maioria das escolas brasileiras não apresentam um ensino formal e explícito sobre a escrita ortográfica devido à formação teórica e prática inadequada de professores (CAPELLINI et al., 2011; SAMPAIO et al., 2017), os escolares deste estudo que compõem o grupo com dificuldades de aprendizagem podem ter apresentado maior frequência de erros ortográficos do tipo C2, que se refere às regras ortográficas existentes no português brasileiro, pois não estão tendo o ensino formal adequado, enquanto os escolares com dislexia utilizam a rota sublexical para realizar tanto a leitura quanto a escrita de forma mais precisa, pois as letras são retomadas fonologicamente (MARTENS; DE JONG, 2006). Esse acerto de leitura ou escrita por meio da rota sublexical ocorre nas palavras regulares, pois a transparência do sistema alfabético deixa os disléxicos compensarem a sua atenção desenvolvida pelo fato de reconhecerem as suas dificuldades.
Diante do não ensino explícito da ortografia em sala de aula e da pouca exposição a palavras irregulares e de alta frequência, os erros de codificação e decodificação irregulares, C3 e D4, respectivamente, entre os escolares com dislexia e com dificuldades de aprendizagem são próximos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante dos achados deste estudo é possível concluir que existe relação entre a porcentagem e frequência de erros do tipo C2 na escrita e D2 na leitura.
Também é possível concluir que escolares com dislexia apresentam maior porcentagem e frequência de erros dos tipos C1 e D1 quando comparados aos demais escolares deste estudo. Já a porcentagem e frequência dos erros C2, C3 e D2 e D4 assemelham-se entre os escolares com dislexia e dificuldades de aprendizagem, por conta da falta de instrução formal e explícita das regras de decodificação e codificação para a aprendizagem do mecanismo de conversão grafofonêmico, exigido para a leitura, e fonografêmico, exigido para a escrita em um sistema de escrita com base alfabética como o português do Brasil.