Quando cheguei em casa era 22,30. Liguei o rádio. Tomei banho. Esquentei comida. Li um pouco. Não sei dormir sem ler. Gosto de manusear um livro. O livro é a melhor invenção do homem. (Carolina Maria de Jesus, 1960, p. 18)
Mais um número de Teias vem a público, nesse tempo de sobressaltos em que a pandemia se expandiu e confirmou as consequências de uma política negacionista que instalou a divisão na população brasileira quanto aos riscos de contaminação e espalhamento do coronavírus amplamente por todo o país.
Teias, mais do que nunca atenta aos clamores da sociedade e às urgências da democracia, faz surgir uma edição que toma a si a responsabilidade de dar voz a pesquisadorxs do campo das relações étnico-raciais que, nos últimos tempos, tornaram-se alvo de ataques das políticas públicas, em vez de as defenderem, como direito inalienável à diversidade, à cultura, à vida criativa que se tece e retece nos contextos cotidianos brasileiros. Apesar das muitas incertezas, das inseguranças, a fertilidade que emerge dos textos é visível e atesta a urgência de temas exacerbados, pela negação de direitos a largos segmentos populacionais, assim como pela ação desqualificadora, sórdida e de deslegitimação de pessoas, ancestralidades, de povos originários e presentes no território antes da fundação da nação.
Por isso, Carolina Maria de Jesus abre nosso editorial, com a epígrafe retirada de Quarto de despejo, obra publicada em 1960, reveladora das condições iníquas das populações de favelas, em maioria, homens e mulheres pretas e pobres. Os anos passaram, mas a iniquidade e a desigualdade se acirraram, especialmente para mulheres e negros/as. Carolina, mulher negra, cuja compreensão / ação no mundo passava pela leitura e pela escrita, para dizer / narrar suas histórias cotidianas de opressão, que não lhe tiravam o gosto de viver, nem impediam seus sonhos de emancipação — o que incluía sua escrita potente.
Carolinas e tantas outras mulheres estão presentes nessa edição, na potência das vozes que teorizam um campo legítimo e em crescente produção, arrombando portas e instituindo lugares de falas autênticas que se pensam, se nutrem e possibilitam a produção de epistemologias outras no meio acadêmico.