INTRODUÇÃO
Este estudo tem origem a partir das leituras e problematizações realizadas durante o desenvolvimento da disciplina: Educação das Relações Étnico-Raciais de um Programa de PósGraduação em Educação (PPGEdu) que buscou compreender o percurso, desafios e avanços da educação das relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Surge a partir da inserção de estudantes de pós-graduação (em maioria negra) interessados em desenvolver pesquisas sobre a temática étnico-racial. O aumento pelo interesse em desenvolver pesquisas com esta temática foi impulsionado a partir da implantação de políticas de ações afirmativas no Brasil, com destaque para a política educacional, resultante da luta do movimento social negro por uma educação escolar antirracista. O marco dessa política foi a aprovação da Lei n. 10.639/2003, que obriga escolas públicas e privadas a incluírem no currículo escolar o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana.
A questão que problematiza este estudo é: a teoria da afrocentricidade e o pensamento decolonial se configuram como perspectivas epistemológicas para as pesquisas sobre as relações étnico-raciais? Diante dessa questão tem-se como objetivo: identificar a presença da teoria da afrocentricidade e do pensamento decolonial enquanto perspectivas epistemológicas nas pesquisas sobre as relações étnico-raciais no Brasil.
Como procedimento teórico e metodológico, apoia-se numa revisão bibliográfica das referidas correntes epistemológicas, privilegiando as ideias de Quijano (2005; 2009) e Asante (2009; 2014) e nos trabalhos apresentados no grupo de trabalho de Educação e Relações Étnico-Raciais (GT 21) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (ANPEd) e no Congresso de Pesquisadores Negros (COPENE) da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que reúnem pesquisadores(as) negros(as) e/ou pesquisas sobre as relações étnicoraciais.
O artigo está organizado em três itens: apresenta teórica e conceitualmente a afrocentricidade como teoria da mudança social; reflete a respeito do pensamento decolonial através da discussão sobre colonialidade e decolonialidade; e, por último, revela a presença da teoria da afrocentricidade e do pensamento decolonial nas pesquisas do GT 21 e do COPENE.
A teoria da afrocentricidade, elaborada por Molefi Kete Asante, situa o povo e a cultura africana no centro de suas próprias produções materiais e simbólicas em detrimento do paradigma eurocêntrico que, historicamente, tem realizado esforços para dizimar e subalternizar as produções culturais africanas - suas formas de saberes, crenças e valores ancestrais e históricos (ASANTE, 2009; 2014).
O pensamento decolonial será discutido, especialmente, a partir de Aníbal Quijano, por apresentar elementos conceituais potenciais à reflexão a respeito das questões étnico-raciais, ao tratar em suas produções o elemento “raça” como um dos canos por onde se produziu e ainda mantém-se, de certo modo inculcado socialmente, relações de dominação do poder, do saber e do ser.
É neste aspecto que, metodologicamente, por meio de revisão bibliográfica, busca-se nesse texto situar a teoria da afrocentricidade e o pensamento decolonial como abordagens teóricas, defendendo a ideia de uma necessária e urgente disseminação de epistemologias inovadoras para a produção do conhecimento referente às relações étnico-raciais como resistência à colonização do saber e no esforço de recentralização histórica e cultural das pessoas negras.
A TEORIA DA AFROCENTRICIDADE
A teoria da afrocentricidade fora sistematizada por Asante em 1980, a partir da articulação das contribuições de diversos movimentos políticos, artísticos, culturais e intelectuais dos povos de origem africana no mundo. Diretamente relacionada às lutas negras dos anos 1960 e 1970 nos Estados Unidos e no mundo, a afrocentricidade enquanto teoria se materializa no bojo dos primeiros programas de pesquisa e pós-graduação em estudos africanos estabelecidos a partir da luta de estudantes negras e negros no século XX. Conforme Asante (apudMAZAMA, 2009, p. 118), estes são “[...] os quatro grandes blocos que formam a estrutura fundamental da afrocentricidade: a filosofia de Marcus Garvey, o movimento da Negritude, o Kawaida e a historiografia de Diop”. A abrangência continental e diaspórica do trabalho seminal de Asante pode ser notada pela interlocução na concepção citada da afrocentricidade, e que influencia já a publicação de 1980, da militante e pesquisadora negra Lélia Gonzales e de Abdias do Nascimento, ambos nascidos no Brasil (ASANTE, 2014).
Asante (2009) vem, assim, conceber a afrocentricidade como um sistema de pensamentos e práticas africanas que contemplam os africanos como sujeitos que produzem cultura e podem agir orientados por suas próprias concepções de mundo, crenças e valores. Nas palavras do autor:
Afrocentricidade é um modo de pensamento e ação no qual a centralidade dos interesses, valores e perspectivas africanos predominam. Em teórico é a colaboração do povo africano no centro de qualquer análise de fenômenos africanos. [...]. Em termos de ação e comportamento, é a aceitação/observância da ideia de que tudo o que de melhor serve à consciência africana se encontra no cerne do comportamento ético. Finalmente a Afrocentricidade procura consagrar a ideia de que a negritude em si é um tropo de éticas. (ASANTE, 2014, p. 3).
A teoria da afrocentricidade privilegia, em contraponto ao eurocentrismo, o pensamento e todo sistema cultural africano como centralidade histórica e base dos processos de produção de conhecimentos e valorização da ancestralidade para as pessoas africanas do continente e da diáspora.
Segundo Asante (2014) a resistência dos povos africanos ao racismo subsiste ao tempo e, ainda que sendo nesse processo influenciados também influenciaram outras culturas. Essa dinâmica de resistência pode ser identificada como uma ontologia pedagógica dos africanos enquanto elemento articulador de consciência coletiva. Daí Asante (2014, p. 43) indicar que, na afrocentricidade, há uma força evidente de consciência coletiva - vento que soprou, mas não apagou os elementos culturais do pensamento e ação dos africanos(as), desde o século XVI. Essa consciência é mais que pedagógica, ela “[...] é em parte pedagógica e em parte fenomenológica”. Ou seja, está dada como um pensamento que orienta toda uma práxis social, e não só como uma prática afastada de uma compreensão fundante de sua localização política e cultural afrocêntrica.
O aspecto pedagógico desse pensamento reside no entendimento de Asante (2014) que o caráter dessa consciência coletiva exprime compromissos compartilhados de resistência à opressão racial, colonial e, também, ao destino de sua humanidade, orientado ao respeito pela ancestralidade e aceitação de sua cultura. E, mais, quando se chega a essa consciência, concretiza-se a experiência da afrocentricidade. Essa conscientização converte-se, pois, em algo mais que uma aceitação cultural ou mesmo resistência ao eurocentrismo, ela torna-se socialmente demonstrável, política e psicologicamente (ASANTE, 2014, p. 44).
O potencial da afrocentricidade como campo filosófico africano, que (re)compõe o próprio pensamento e cultura africana estabelece-se tanto ao seu povo em continente e em diásporas quanto ao mundo, como elemento desestabilizador da ideia, até então aceita, de pensamento universal europeu / ocidental como padrão único e legítimo de produção de concepção de mundo e de epistemologias, práticas culturais etc. Isso porque sugere de imediato não só uma mudança de pensamento, mas de lógicas e práticas sociais ao povo africano — em continente e diáspora — orientados por seus próprios sistemas de pensamentos.
Todavia, para o autor, essa conscientização afrocêntrica não se dá de forma automática, mas gradualmente, em cinco níveis: I) reconhecimento da pele, ou seja, quando o indivíduo reconhece “sua cor”; II) está relacionada ao fato de a pessoa perceber como o meio social define sua negritude por meio de discriminação; III) é a consciência da personalidade, o que não quer dizer ainda, que o sujeito já esteja afrocentrado; IV) o interesse pelas questões étnico-raciais; V) é o que o autor chama de Consciência Afrocêntrica, quando o indivíduo já atingiu um nível de comprometimento total com a libertação de sua própria mente. Para o autor, quando o indivíduo atinge esse nível, ele está consciente da determinação da consciência coletiva, que é “[...] um imperativo de determinação poderoso, incessante, enérgico e vital, se move para erradicar qualquer traço da falta de poder” (ASANTE, 2014, p. 78). Tal processo faz transitar o indivíduo contemplado nessa consciência coletiva, que percebe sua própria cultura histórica resistindo às opressões e afirmando-se com tal. Essa é a força motriz da afrocentricidade (ASANTE, 2014).
Como salienta Asante (2009) a noção de afrocentricidade não se trata de um termo essencialista e sim de uma dinâmica de construção do conhecimento que parte da centralidade da pessoa africana nesse processo. Pois, é somente mediante a conscientização africana que é possível se abordar adequadamente a afrocentricidade. Assim, agência é apontada por este autor como um dispositivo capaz de articular todos os sistemas de crenças e valores da cultura africana se sua orientação estiver centrada. Neste sentido, agência enquanto categoria política e filosófica da afrocentricidade é, ela própria, o reduto por onde se processam práticas e epistemologias “libertadoras”.
Isso sugere ao africano, em continente e em diáspora, reconhecer-se enquanto tal, não como superior ou inferior a quaisquer outros povos, mas o de perceber-se como sujeito cujas matrizes culturais históricas, mesmo sofrendo e resistindo desde antes do século XVI toda forma violenta de suplantação, subalternização e tentativas diversas de apagamento, são os elementos fundantes e constituintes de sua própria história. Implica, portanto, não a negação dos tipos de culturas e crenças diluídos à cultura africana, mas, considerar esta e não aquelas como sendo o radical de sua formação histórica.
Esse processo de conscientização, postulador do recentramento dos povos negros diaspóricos e continental é, pois, tarefa fulcral implicada à afrocentricidade - entendida por Asante (2014) como teoria de mudança social.
O PENSAMENTO DECOLONIAL
O pensamento decolonial, enquanto categoria política e epistemológica, tem lugar histórico na chamada América Latina, com o Grupo Modernidade/Colonialidade (M/C) - criado no fim da década de 1990 por intelectuais latinos, ao divergirem dos estudos pós-coloniais desenvolvidos pelo Grupo de Estudos Subalternos, pois, enquanto para este a superação do eurocentrismo se daria mediante a evocação de uma teorização pós-colonial, isto é, uma crítica à colonialidade, para o grupo M/C tal paradigma só seria possível ser superado mediante uma concepção de mundo que buscasse superar as lógicas dominantes dos paradigmas eurocêntricos de três pilares correlacionados: a) colonialidade do poder; b) do saber; c) do ser; além do que, para este último, carecia-se de estudos latinos em contraponto ao eurocentrismo, evocados por autores do próprio continente almejante de decolonizar-se (QUIJANO, 2005; BALLESTRIN, 2013).
Segundo Ballestrin (2013, p. 99) o termo colonialidade do poder, elaborado por Quijano, em 1989, refere-se de forma simples, ao fato de “[...] que as relações de colonialidade nas esferas econômica e política não findam com a destruição do colonialismo”. Segundo a autora, tal conceito carrega uma dupla intenção. De um lado, demarca uma crítica à continuidade de formas coloniais de dominação mesmo após o fim formal daquele regime. De outro, explica processos de dominação supostamente apagados e/ou superados pela modernidade.
Colonialidade está relacionada à estrutura de poder que se mantém em funcionamento mesmo com o fim da colonização formal, e que reelabora seus modos operantes de controle e de forma violenta à destruição cultural do outro, o não europeu, o colonizado (QUIJANO, 2005). Nessa mesma perspectiva, Grosfoguel (2008) postula que diz respeito a um sistema colonial / moderno de estruturação, articulador das divisões sociais do trabalho e de hierarquia étnico-racial global, que organiza as relações do mundo do trabalho e de produção cultural alinhadas às questões ético-raciais.
Concepção aliás, da qual surge o conceito elaborado por Quijano (2005) pois, para ele, o paradigma Moderno / Ocidental / Eurocêntrico / Colonial está diretamente associado à ideia de raça. Esta, tomada, inclusive, como categoria mental da modernidade, legitimada pelo discurso biológico, ou seja, naturalista. Resultou que, mediante tal discurso, se processou intencionalmente um padrão de classificação, hierarquização e dominação europeia sobre os não europeus, sobretudo, sul-americanos e africanos. Decorreu que essa mentalidade acarretou, nesse processo, identidades sociais “novas”, como índios, negros, cujos papéis sociais e de trabalho passaram a ser agrupados em conformidade à “nova” estrutura global de controle do trabalho.
Nesse aspecto, raça e divisão social do trabalho foram associados: “[...] consequentemente, o controle de uma forma específica de trabalho podia ser ao mesmo tempo um controle de um grupo todo” (QUIJANO, 2005, p. 108). Ainda segundo o autor, tal lógica de organização hierárquica implicava que a inferioridade racial dos colonizados indicava que os negros não eram dignos de salários, pois estavam por “natureza” obrigados a trabalhar para o bem de seu senhor (QUIJANO, 2005, p. 108).
A colonialidade, então, ancora-se no discurso “naturalista” de raça, enquanto elemento de hierarquização e dominação material / cultural / simbólica. Ademais, colonialidade na concepção elaborada por Quijano (2005) contempla três tipos de colonialidade, como já enunciado: do poder, do saber e do ser. Mignolo (2003, p. 30) acrescenta que é mais do que isso, pois: “[...] a colonialidade é o lado obscuro e necessário da modernidade”. Evoca o controle da autonomia, da autoridade, da natureza e seus recursos, do gênero e da sexualidade, por fim, da subjetividade e do conhecimento (MIGNOLO, 2003, p. 30). Esses três elementos fundamentaram as bases do capitalismo mundial moderno / colonial do século XVI, retroalimentado à ideia de raça até então inédita (QUIJANO, 2009).
Na visão dos autores, eurocentrismo e colonialismo não são sinônimos, mas codependentes e/ou coexistentes; produziram, igualmente, elementos de dominação do outro. Aquele possibilitou lógicas fundamentais à colonialidade do saber. Segundo Quijano (2005), refere-se a modos de produção de conhecimentos elaborados na Europa Ocidental no início do século XVII que, a partir de seus processos de colonização, torna o eurocentrismo hegemônico no mundo, ao passo em que projeta sua concepção padronizadora mundial de poder.
Para Ballestrin (2013), a concepção de decolonialidade já estava presente em Quijano e Dussel. No primeiro, intrínseco ao próprio conceito de colonialidade do poder. No segundo, ao conceito de trans-modernidade - um novo projeto político global de libertação política, religiosa, pedagógica, entre outros.
O pensamento decolonial é um movimento de resistência à colonialidade, a qual se refere à estrutura de poder que se mantém, mesmo com o fim formal da colonização, inculcado de algum modo no comportamento social, o que a configura como mais violenta do que o próprio regime colonial, elemento da modernidade.
Ora, colonialidade e eurocentrismo estão, de forma simplória, relacionados ao padrão eurocêntrico de poder que não finda com o colapso do sistema colonial. O colonialismo, por sua vez, “[...] denota uma relação política e econômica, na qual a soberania de um povo está no poder de outro povo ou nação” (OLIVEIRA, CANDAU, 2010, p. 18). Neste aspecto, para os autores, precede a própria colonialidade, ainda que esta sobreviva após aquele, à medida em que originandose daquele, não se limita a uma relação de poder entre dois povos ou nações, antes estabelece relações também com as formas de trabalho, de poder, de produção do conhecimento e da intersubjetividade articulados entre si mediante o capitalismo mundial e da ideia de raça.
Neste aspecto, decolonialidade e colonialidade apontam uma ruptura aos modos operantes de dominação política e cultural eurocentrista. Eurocentrismo, este produtor de relações de processos múltiplos de dominação e de poder, que não admite no campo das epistemologias nenhuma outra como produção de conhecimentos críticos e científicos (GROSFOGUEL, 2008). Para Oliveira e Candau (2010, p. 24), a decolonialidade supõe também a ideia de criação e luta pela reconstrução do ser, poder, do saber.
AFROCENTRICIDADE E DECOLONIALIDADE NAS PESQUISAS SOBRE AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Podendo ser utilizadas como uma saída para enfrentar a hegemonia das abordagens epistemológicas eurocêntricas nos programas de pós-graduação no Brasil, a teoria da afrocentricidade e o pensamento decolonial apresentam ideias tidas como semelhantes, mas, também que seguem por caminhos diferentes. Tanto a teoria da afrocentricidade quanto o pensamento decolonial foram sistematizados ou criados por autores que estão preocupados com a disseminação de uma única história como a verdadeira e a negação de outras possibilidades de pensar e produzir conhecimento.
Se para os decoloniais, a exemplo do sociólogo peruano Quijano, a superação das relações de dominação simbólica, histórica e colonial requer questionar os modelos de dominação e produzir novas epistemes, para a teoria da afrocentricidade implica a restauração, pelas pessoas negras, de uma orientação que siga a agência africana, isto é, constituir um senso de auto realização baseado nos melhores interesses do povo africano. Esse movimento, por consequência, acabaria por introduzir socialmente o pensamento e a cultura negra como centralidade para os povos negros, em detrimento do eurocentrismo. Todavia, sem nenhuma intenção de reproduzir os mesmos mecanismos de opressão eurocêntrica, pois tal perspectiva teórica e paradigmática visa acionar, no campo político social e de disputa, os africanos para o centro da história, possibilitando a seu povo em diáspora e no continente se reconhecerem como atores e não coadjuvantes no núcleo de sua historicidade.
Dessa forma, um caminho suposto pela teoria da afrocentricidade é que as pessoas, por meio de suas próprias agências, enquanto capacidade de atuar na realidade, possam se apropriar da abordagem afrocentrada para se reorientar a respeito de sua centralidade histórica e social em oposição à ideologia e práticas “[...] de uma ordem societária patricêntrica expansionista, provinda da Eurásia” (MOORE, 2006, p. 6) e, mais recente, do regime colonial, que prima por uma sociedade racista e capitalista que historicamente tem interferido no modo de vida das culturas africanas.
É sabido, porém, que o pensamento decolonial não se refere a uma superação da colonialidade europeia por vias de uma localização centrada na cultura africana e, sim, da chamada cultura latino-americana - ainda que essa esteja em grande medida vinculada e/ou formada pelo processo de apropriação violenta e bastardização daquela. Porém, um ponto central nesse processo de decolonização defendida pelos autores desse pensamento, especialmente o grupo M/C, em que se faz radicalmente presente a afrocentricidade (e seu autor), é o rompimento com o racismo e toda lógica de opressão cultivada pela modernidade / colonialidade europeia.
A compreensão da práxis social orientada por epistemologias e lógicas de pensamentos que rompem com o eurocentrismo, à medida que estabelecem a construção de outros modos de viver e saber acionados por grupos sociais subalternizados historicamente, a exemplo de africanos e indígenas, é um ponto de contato entre a afrocentricidade e o pensamento decolonial. Porém, enquanto para o pensamento decolonial o decolonizar-se “[...] supõe também construção e criação. Sua meta é a reconstrução radical do ser, do poder e do saber” (OLIVEIRA, CANDAU, 2010, p. 25), para a afrocentricidade se dá o inverso: é a restauração do ser africano, a partir de seus próprios critérios, que gera como subproduto a descolonização. Por não ser reativa, a afrocentricidade se empenha primariamente não em desfazer a colonização, mas em retomar a proposta de humanidade que a matriz civilizatória dos povos africanos encarna:
Não há nenhuma outra verdade mais necessária para o avanço intelectual, político, econômico e cultural do mundo do que o povo africano imergindo em si mesmo nas águas do renascimento cultural. Esta é a dura verdade da história, e a única história real que precisamos aprender para a total libertação de nós mesmos e nossos filhos. A colonização do mundo pelos europeus não foi um ato de inocência. Não foi um ato caridoso em qualquer fantasia da imaginação ou em qualquer análise objetiva. Cosmologias inteiras foram jogadas fora na lata do lixo por uma ideologia europeia numa cruzada que significava saquear não apenas a terra e os corpos dos povos, mas também suas mentes (REDDING, 1950). A libertação das mentes do povo africano será uma batalha mais árdua do que a erradicação de regimes de colonização (ASANTE, 2014, p. 185).
Para pesquisadores(as) da temática étnico-racial, mais especificamente aqueles(as) que têm uma história de vida marcada pela luta negra ou antirracista, chegar à pós-graduação e encontrar um caminho teórico que lhe ajude a superar o discurso de uma história única presente na hegemonia das epistemologias eurocêntricas de programas de pós-graduação tornou-se um caminho sem volta. Pesquisadores(as) com este perfil, ao chegarem à pós-graduação, muitas vezes se identificam e se filiam às associações de pertencimento e fortalecimento para enfrentarem tal hegemonia. São elas: o GT 21 da ANPEd e a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN).
Como dito, as pesquisas sobre relações étnico-raciais no Brasil — desenvolvidas por décadas sem reconhecimento acadêmico ou governamental — só ganham impulso nas universidades brasileiras a partir de políticas públicas de ações afirmativas implementadas durante o governo Lula, tendo como marco a Lei n. 10.639/2003. A referida Lei, apesar de ainda não ter feito superar o racismo institucional e a hegemonia eurocêntrica no debate intelectual / acadêmico tem contribuído com respaldo teórico — ainda que lentamente, não só no chão da escola, como também em estudos e pesquisas referente às relações étnico-raciais em várias universidades e programas de pós-graduação nas áreas de ciências sociais, especialmente no campo da educação — e com outras epistemologias, como o pensamento decolonial e a teoria da afrocentricidade.
Em reuniões do GT 21 da ANPEd e do COPENE1 este estudo buscou localizar trabalhos cujos títulos mencionam as abordagens afrocentrada e decolonial. Com recorte temporal dos últimos dez anos, essa busca se deu através dos títulos dos trabalhos, pensando na importância que este tem para o destaque de um determinado estudo. As informações foram encontradas nas páginas eletrônicas das referidas associações. Como descritores para a busca estiveram: afrocentricidade, afrocentrada(o), afrocêntrica(o), pensamento decolonial, colonialidade e decolonialidade.
Conforme informações no site oficial da ANPEd (www.anped.org.br) o GT 21 foi criado como Grupo de Estudo (GE) Relações Raciais / Étnica e Educação em 2001, durante a realização da 24ª Reunião Anual da Associação. No ano de 2003, o GE passou a ser considerado Grupo de Trabalho (GT) Afro-brasileiro. Porém, devido às reflexões sobre a ampliação das pesquisas apresentadas no GT que também contemplassem questões indígenas, torna a ser denominado de GT Educação e Relações Étnico-Raciais. Até o ano de 2013 as reuniões eram anuais, passando, em seguida, à periodicidade bienal.
No período estudado (2010-2019), a ANPEd realizou sete reuniões nacionais (2010, 2011, 2012, 2013, 2015, 2017 e 2019). Em 2010, foram aprovados 13 trabalhos e, em 2019, foram aprovados 30 trabalhos para apresentação nas reuniões nacionais. Esses números indicam o avanço de pesquisas desenvolvidas e de pesquisadores envolvidos com relações étnico-raciais.
Diante dos critérios preestabelecidos nessa pesquisa, foi encontrado apenas um trabalho aprovado pelo GT 21 em 2019: “Exu e a Pedagogia das encruzilhadas: educação, antirracismo e decolonialidade”, apresentado na reunião nacional de 2019.
Com relação à coleta realizada nos anais do COPENE, percebe-se uma grande diferença em relação ao GT 21. Sobre este Congresso, é importante saber que, diferentemente do GT 21, que aglutina pesquisadores apenas da área de educação, o COPENE aglutina todas as áreas do conhecimento.
Abaixo, encontram-se duas tabelas que apresentam os achados dessa pesquisa. A Tabela 1 refere-se ao número e títulos de trabalhos encontrados nos anais do COPENE, realizado durante os últimos dez anos, que fazem menção à teoria da afrocentricidade. Na Tabela 2 encontram-se o número e os títulos de trabalhos presentes nos anais do referido Congresso, que fazem menção ao pensamento decolonial.
Ano2 | Nº Geral/Específico | Título |
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2016 | 260/01 | - Pós-colonialidade, afrocentricidade e quilombismo: notas para uma utopia epistêmica e democrática |
2018 | 477/04 | - Uma revisão de literatura para refletir o ensino de ciências, os saberes populares e a afrocentricidade - Currículo afrocentrado no ensino de física - Análise da memória da educação em saúde na Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileira e Saúde e a sua contribuição na construção da Política Integral de Atenção à Saúde da População Negra do SUS numa perspectiva afrocêntrica - Africanas: o feminismo em perspectiva afrocentrada |
Fonte: Elaboração própria a partir do site: abpn.org.br
Ano3 | Nº Geral/Específico | Título |
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2010 | 473/01 | Racismo epistêmico e a decolonização da educação baiana a partir da Lei 10.639/03 |
2014 | 187/03 | - Conhecimentos, imagens e percepções sobre os povos africanos e afrobrasileiros nos livros didáticos: um olhar decolonial - Eurocentrismo e colonialidade na construção do imaginário europeu através da pintura alegórica de eckhout no Brasil - A colonialidade do saber e a invisibilização do pensamento africano |
2016 | 260/03 | - Os movimentos contra-hegemônicos na América e sua epistemologia decolonial -Uma visão decolonial das epistemologias de um programa de pósgraduação em educação científica e tecnológica - Intelectuais negros e mestre(a)s dos saberes tradicionais: no limiar de um pensamento decolonial |
2018 | 260/08 | - Pedagogia decolonial no ensino da geografia - Quando a igreja se decoloniza - Perspectivas feministas decoloniais - A capoeira e a descolonização curricular - A colonialidade e os saberes da terra Guarani - Por uma geografia decolonial - Mulheres que educam: Movimento de Mulheres Negras - “o sim-lugar”: religação, decolonialidade e construção de contra-poderes - Transgredir para educar: das mulatas de Di Cavalcanti às propostas pedagógicas engajadas e decoloniais |
Fonte: Elaboração própria a partir do site: abpn.org.br
A Tabela 1 demonstra que o primeiro trabalho dos últimos dez anos a apresentar em seu título os descritores da afrocentricidade surge em 2016. Em 2018, o número aumenta para quatro trabalhos. Isso sugere que pesquisadores(as) estão, a seu tempo, superando a base epistêmica eurocêntrica para analisar seus próprios objetos de estudo.
Sendo a teoria da afrocentricidade mais que um conceito, portanto, um modo de pensamento e ação vinculado aos interesses e processos culturais diversos dos povos africanos sobre si mesmos, que os reorientam no centro de sua própria produção histórica, material e simbólica, percebe-se na Tabela 1 que os(as) pesquisadores(as) no contexto brasileiro ainda não adotaram a possibilidade de usá-la como perspectiva epistemológica em suas pesquisas e, mais ainda, de dar a ela visibilidade na ocasião de suas publicações.
Na Tabela 2 é perceptível que o pensamento decolonial tem logrado lugar no debate intelectual e de pesquisas sociais, porém os saberes e epistemologias de matriz eurocêntrica ainda são hegemônicas, ao passo que os saberes “subalternizados” quase não possuem espaço no debate científico brasileiro, ainda banhado pela colonialidade do saber. Nesse aspecto, é oportuno perceber que, dos 1.480 trabalhos apresentados e publicados nos COPENE entre 2010 e 2018 (em edições bienais, totalizando cinco edições), apenas 15 dessas publicações foram orientadas pela perspectiva teórica decolonial; e, como vimos na Tabela 1, apenas cinco textos fundamentavam-se em abordagem que visa à superação da supremacia epistemológica eurocêntrica. Isso aponta que, apesar da inserção de epistemologias que visam ao rompimento do colonialismo epistemológico, ainda predomina a colonialidade do saber (QUIJANO, 2005) no debate intelectual, e nas pesquisas referentes ao estudo das relações étnico-raciais.
Apesar do aumento de pesquisadores(as) negros(as) nos programas de pós-graduação e de pesquisa sobre relações étnico-raciais, ainda é baixa a presença de estudos a partir das duas epistemologias pesquisadas, que se declaram em ruptura aberta com o eurocentrismo. As expressões nos títulos de trabalhos apresentados nos dois congressos que aglutinam grande número desses pesquisadores revelam que, possivelmente, ainda é predominante a hegemonia do eurocentrismo para a fundamentação teórica das pesquisas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso esforço até aqui, como se pode perceber nas entrelinhas do texto em tela, não foi o de apresentar, mediante a concepção de colonialidade / decolonialidade e de afrocentricidade, um caminho de orientação pedagógica específica que contemplasse um certo cano de epistemologias; antes, a tentativa foi de pensar a partir do esforço teórico reflexivo e problematizador da teoria da afrocentricidade e da compreensão teleológica do pensamento decolonial (tendo como principal referência Aníbal Quijano, mesmo sem limitar-se unicamente a este) como pensamentos pedagógicos, e perceber como essas abordagens epistemológicas estão presentes nas pesquisas que tomam com objeto as relações étnico-raciais.
Outra coisa também que merece ser destacada é que a preocupação tanto de Quijano, quanto do grupo M/C está voltada a todo o processo de colonialidade europeia e que, portanto, suas produções intelectuais se dão no sentido de superação daquele modelo social opressor. Suas produções indicam que decolonizar implica necessariamente visibilizar as lutas contra todo aquele sistema.
Já a teoria da afrocentricidade localiza-se em um campo específico: a cultura africana, como sendo ela própria fonte para a agência e processo de produção de conhecimentos e valor orientador de práxis social do povo africano. A afrocentricidade se propõe a questionar: quem nós seríamos como africanas e africanos sem a interferência do racismo?
Ao menos em dois pontos pode-se estabelecer relação e contraste entre colonialidade / decolonialidade e a teoria da afrocentricidade. O primeiro, é o contraponto político-ideológico aos moldes operantes da modernidade eurocentrista colonial sobre os povos não europeus. Nesse ponto, pode-se afirmar (salvo outras postulações), que o que difere entre os autores do grupo M/C, especialmente a concepção de colonialidade do poder em Quijano, em relação à teoria da afrocentricidade é que, para esta, a pauta central de contraponto ao eurocentrismo refere-se à restauração ou renascimento do povo e cultura africana em continente e em diáspora, a partir de seus próprios termos; para aqueles, contempla a resistência à opressão e subalternização, a partir de uma agenda sul-americana.
O segundo, diz respeito à questão étnico-racial. Para os dois campos conceituais acionados, a noção de raça foi o principal operador de hierarquização e dominação da colonização europeia sob os povos africanos em várias diásporas na chamada América Latina, que subalternizou e oprimiu o povo negro e suas crenças, seus valores — sua cultura.
O pensamento decolonial entende, porém, que esta é uma categoria que foi produzida teórica e ideologicamente, e posteriormente “universalizada”, não só como conceito, mas sobretudo enquanto ação estabelecida como um novo paradigma social. A raça seria, para este campo, um produto da modernidade / colonialidade.
Para afrocentricidade, os processos de dominação racial não são resultado de operações intelectuais ou ideológicas, mas dinâmicas sócio-históricas de longa duração que culminaram com a emergência da empresa colonial europeia e na modernidade, enquanto projeto.
Em busca de respostas para entender como a teoria da afrocentricidade e o pensamento decolonial se configuram como perspectivas epistemológicas distintas para as pesquisas sobre relações étnico-raciais, a revisão bibliográfica das referidas correntes ajudou a entender os aspectos centrais das mesmas e sua luta contra o epistemicídio dos saberes produzidos por povos e pesquisadores(as) que não aprovam o eurocentrismo tão exterminador e presente nas universidades brasileiras.
Esse estudo apontou que trabalhos apresentados no GT 21 e no COPENE que trazem em seus títulos referências às duas abordagens aqui apresentadas, revelam que os(as) pesquisadores(as) da temática étnico-racial, no enfrentamento à hegemonia do eurocentrismo nos espaços acadêmicos, podem se beneficiar da adoção de uma dessas duas abordagens ainda pouco adotadas no Brasil. Foi possível reconhecer contribuições de ambas as perspectivas teóricas à medida que pensam possibilidades, saberes, epistemologias, formas de conceber o mundo e a vida, que não unicamente pela ótica eurocêntrica.
Como os idealizadores da afrocentricidade e do grupo M/C que, incomodados com a ausência da história dos grupos subalternos nas universidade propuseram outros olhares epistemológicos, faz-se necessário que pesquisadores(as) brasileiros(as), se apropriem dessas possibilidades para mudar o rumo das narrativas históricas e práticas científicas, nos levando a refletir sobre que olhar epistemológico estamos direcionando às vidas negras e indígenas no Brasil. Ou seja, é preciso responder a pergunta realizada no estudo de Reis, Lima e Nascimento (2019, p. 123): “Quando que as abordagens eurocêntricas privilegiaram nossas vidas?”