[...] Não existem leis no mundo que sejam capazes de erradicar as atitudes preconceituosas existentes nas cabeças das pessoas, atitudes essas provenientes dos sistemas culturais de todas as sociedades humanas. No entanto, cremos que a educação é capaz de oferecer tanto aos jovens como aos adultos a possibilidade de questionar e desconstruir os mitos de superioridade e de inferioridade entre grupos humanos, introjetados pela cultura racista na qual foram socializados. (KABENGELE MUNANGA)
INTRODUÇÃO
A epígrafe com que iniciamos esse artigo atesta tanto a importância quanto a relevância política da implementação da Lei n. 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, nas esferas brasileiras da educação básica e superior e na sociedade mais ampla, sendo imprescindível no combate ao racismo institucional, mediado pelo racismo pessoal.
Decorridos mais de uma década e meia da promulgação dessa Lei e de Diretrizes dela decorrentes, os resultados de investigações desenvolvidas por pesquisadores e pesquisadoras dessa temática como, por exemplo, Sales (2012), Siss e Pace (2015), Siss e Fernandes (2016), Oliveira e Costa (2018), entre tantos e tantas outras apontam na direção da atualidade dessa Lei, infelizmente tão timidamente implantada na política educacional brasileira.
Esse é um dos principais desafios históricos colocados para o Estado brasileiro, tendo em vista o fato de sua não superação, por conta da forma tímida que, ao longo do tempo, a temática vem sendo trabalhada. O combate ao racismo que institucionaliza relações sociais e de poder no país enfrenta a operacionalização esquizofrênica do mito da democracia racial1, assim como da ideologia do mérito individual2, posição esta que institucionalmente se atualiza de forma muito intensa contemporaneamente.
Por outro lado, e, felizmente, há muitas experiências educacionais exitosas de intervenção no processo de implantação da educação para as relações étnico-raciais por parte de professores e gestores tanto nas esferas da educação básica como também no ensino superior. Tais sujeitos, por perceberem instituições educacionais — sejam escolas e ou universidades — como territórios culturais e étnico-racialmente seletivas, atuam como agentes da Lei n. 10.639/2003 (PEREIRA, 2007), com o objetivo de poder contribuir para a reversão de quadros de exclusão social em que as reflexões sobre o quesito racial são de fundamental importância, frente ao exercício propositivo de educação antirracista. Tal exercício não está descolado de outros esforços, a saber: a fundamental preocupação com a redução dos elevados índices de fracasso escolar de alunos afro-brasileiros; a invisibilização da cultura e da história africana e afro-brasileira nos currículos escolares; bem como a transformação e estabelecimento, em bases positivas, de novos processos de ensino e de aprendizagem implementados para os alunos.
Não desconhecemos as diferentes, louváveis e exitosas intervenções realizadas por pesquisadores e pesquisadoras desse campo, muitos deles membros do GT 21 Educação e Relações Étnico-Raciais da Anped, dos NEABI’s e de grupos correlatos na formação tanto inicial quanto continuada de professores e demais profissionais da educação, nas perspectivas da Lei n. 10.639/2003 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. A eles nos somamos de forma direta e efetiva na construção da educação das relações étnico-raciais, da qualificação de uma prática docente não excludente de negros e negras bem como da potencialização da luta antirracista, firmes nas trincheiras abertas pela Lei n. 10639/2003 e com a certeza de que juntos somos muitos.
Os processos de formação de professores tanto no seu aspecto inicial quanto continuado ganham aqui centralidade, com profissionais da educação e gestores se qualificando para trabalharem com a educação das relações étnico-raciais (ERERs). Essa qualificação, em muitos casos, deixa de acontecer apenas por iniciativas individuais e passa a integrar políticas de qualificação das secretarias estadual e municipais de educação voltadas para a efetivação da Lei n. 10.639/2003 e de Diretrizes Curriculares. No caso da Baixada Fluminense, por exemplo, as parcerias estabelecidas entre a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro por meio do NEABI-LEAFRO, localizado no campus de Nova Iguaçu, com parcela significativa das secretarias municipais de educação (SEMEDs) têm resultado em importantes e significativas ações interinstitucionais visando à plena implementação dessa Lei, de forma qualificada.
A consolidação e institucionalização do NEAB - Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (LEAFRO), no âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), deu-se em 2009 com a implantação da primeira turma de mestrado do Programa de Pós-graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc/UFRRJ). Em função desse Programa de Pós-graduação ficou garantido o desenvolvimento de pesquisas voltadas à produção e divulgação de conhecimentos acadêmicos e de intervenção, em processos de formação inicial e continuada de professores da Baixada Fluminense. A promulgação da Lei n. 11.645/2008 já anunciava a necessidade de uma ampliação temática que incorporasse estudos sobre a temática indígena. Desse modo, naquele contexto, tal eixo temático passou a ser também discutido pelo Laboratório, abrindo assim outra vertente de pesquisas, o que levou à sua ampliação, passando de um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), para um Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (NEABI).
A criação do Laboratório se fez necessária em função da necessidade de produção, incentivo e apoio à difusão de conhecimentos que garantissem a articulação de estudos entre os campos das relações raciais e educação. Atualmente sua sede está localizada no campus Nova Iguaçu, mas já estão em andamento estudos para a descentralização da gestão e administração, visando uma estrutura multicampi. Ademais, sua criação em uma instituição de ensino superior na Baixada Fluminense propiciou a atuação no campo das ações afirmativas e ensino superior, por meio da participação em discussões sobre a necessidade e viabilidade de ações voltadas não só, mas principalmente, para o ingresso e permanência com sucesso de negros3 no ensino superior, particularmente na UFRRJ.
Entre as ações de pesquisa e ou formação já propostas pelo LEAFRO da UFRRJ, ao longo dos anos de seu funcionamento, retomamos nesse artigo a memória do ciclo do curso de aperfeiçoamento em educação das relações étnico-raciais. Tal iniciativa inseriu-se no contexto maior do Programa Uniafro, uma iniciativa da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secadi/MEC) naquela ocasião. Assim como o LEAFRO, os demais Núcleos também trabalham com estudantes pretos e pardos para uma permanência com sucesso na universidade, bem como constituem espaço para discussões e ações que possam mitigar as desigualdades sociorraciais.
Por meio da Resolução CD/FNDE n. 14, de 28 de abril de 2008, em que o Ministério da Educação estabelecia critérios para assistência financeira às instituições de educação superior no âmbito do Programa de Ações Afirmativas para a População Negra, firmava-se mais uma parceria entre a Universidade e o governo federal. Conforme anunciava a resolução:
Art. 2º Os cursos de formação inicial e continuada, assim como os materiais didáticos objetos dessa Resolução, visam à implementação do Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e à promoção do estudo da História da África e Cultura Afro-Brasileira com o objetivo de contribuir para a superação dos preconceitos e atitudes discriminatórias do racismo por meio da aplicação de práticas pedagógicas qualificadas nesses temas nas escolas de Educação Básica no Brasil. (BRASIL, 2008, p. 2)
No conjunto das estratégias propostas estavam os cursos de formação inicial e continuada que deveriam ter por foco viabilizar a implementação do Artigo 26-A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) e a promoção do estudo da História da África e da Cultura AfroBrasileira. A intenção era contribuir para a superação dos preconceitos e atitudes discriminatórias do racismo, por meio da aplicação de práticas pedagógicas qualificadas nesses temas, nas escolas de educação básica no Brasil.
Programas como o Uniafro chegaram às universidades como uma resposta às demandas crescentes tanto da sociedade quanto dos segmentos acadêmicos engajados nas lutas em favor de uma educação comprometida com a edificação de saberes e fazeres antirracistas. Conforme nos mostram Oliveira, Sales, Gouvêa (2014, p. 23), a presença cada vez maior de intelectuais negros e de especialistas no campo das relações étnico-raciais nos espaços acadêmicos está reforçando a inclusão de tais temáticas nos cursos de graduação e, também, de pós-graduação, principalmente na área de educação. O compromisso com a temática da educação para as relações étnico-raciais no contexto do ensino superior em curso na UFRRJ vem apresentando resultados satisfatórios. Um exemplo de tais avanços pode ser o fato de que no campus de Nova Iguaçu, por iniciativa do LEAFRO, desde 2008 a disciplina Cultura Afro-brasileira e Africana é obrigatória para todos os cursos de licenciatura ofertados no Instituto Multidisciplinar. Avançando nessa luta por uma educação voltada para as relações raciais, em 2013 foi aprovada a oferta da disciplina obrigatória Educação e Relações Étnico-Raciais na Escola para todas as licenciaturas do campus de Seropédica.
Não se trata de mera inclusão curricular. A disciplina sinaliza o urgente compromisso que os futuros educadores devem ter para com a promoção da igualdade racial na educação básica. Tendo por finalidade a valorização da diversidade étnico-racial e o tratamento com igualdade para a promoção de uma educação igualitária que contribua para uma formação cidadã positiva, a disciplina deve promover debates que reflitam sobre as diversidades para além do ambiente escolar.
Ao longo de sua existência, o Laboratório vem se consolidando como um centro de excelência na elaboração/proposição de estudos e pesquisas sobre as relações étnico-raciais e de implementação de políticas públicas em educação, bem como na formação de professores na Baixada Fluminense. Implementando parcerias com diferentes órgãos dos governos federal, estadual e municipais, além de ampliar um ambiente propício a pesquisas voltado para estudos que versem sobre desigualdades étnico-raciais, seja na sociedade como um todo ou na escola em particular, o LEAFRO vem desenvolvendo atividades de ensino, pesquisa e extensão. Tais iniciativas objetivam aprofundar análises das articulações estabelecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe, cultura, gênero e crença religiosa nas suas interseções com as relações raciais brasileiras e com o processo educativo de acordo com o prescrito na Lei n. 10.639/2003 e em conformidade com as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais. Assim sendo, o conjunto de ações implementadas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro pode ser entendido como uma estratégia em favor da promoção da igualdade racial, ratificando a necessidade não só de acesso, mas sobretudo de permanência de negros no ensino superior.
Endossando essa linha de pensamento, retomaremos alguns aspectos da parceria estabelecida entre o LEAFRO e o MEC/Secadi/Sesu no tocante à sua participação no Programa Uniafro, já que uma das frentes de atuação do Laboratório é justamente a promoção de processos formativos para professores.
EDUCAÇÃO, RESISTÊNCIAS CULTURAIS E TRINCHEIRAS ABERTAS PELA LEI N. 10.639/2003
A Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (2009)4 realizada pelo IBGE, órgão oficial da República Federativa do Brasil elenca dados que vêm sendo analisados em estudos como os de Paixão (2010), que demonstram que a população negra tem muito mais dificuldades no acesso e garantia de direitos básicos como saúde, segurança e educação. O recorte racial, deste modo, sinaliza a operacionalização das relações sociais no país em que a marca de cor tem sido argumento a legitimar os cenários de desigualdades sociais. Ainda segundo Paixão (2010), no tocante ao contexto educacional, é possível observar certo avanço5 em relação à escolarização da população negra nos primeiros 20 anos pós-Constituição de 1988, fruto de demandas e pressões dos movimentos negros que passam a tensionar o Estado no sentido da criação de políticas públicas voltadas para a população negra. No bojo das ações afirmativas focadas no contexto educacional o relatório cita a Lei n. 10.639/2003 como uma das principais medidas para “[...] enfrentar o tema das relações raciais dentro do espaço escolar”. Desse modo, nosso entendimento acerca da referida Lei nos convida ao entendimento de que esta passa a tensionar o debate educacional a partir de uma lógica que implica o reconhecimento das diferenças culturais que constituem o país. Tal como uma trincheira de “guerra”, ela se movimenta em busca da delimitação e conquista de novas fronteiras em territórios historicamente ocupados por uma lógica epistêmica do conhecimento hegemonicamente branco, eurocêntrico e cristão.
O desafio de educar para uma sociedade diversificada por gênero, classe social, cultura, raça ou etnia, respeitando-se as diferenças é gigantesco. Implica, entre outras coisas, uma mudança de atitudes, valores e reconhecimento da diversidade, como evidenciado por pesquisas acadêmicas, ensaios e artigos científicos produzidos por variados pesquisadores e pesquisadoras membros do GT 21 da Anped, ou não, cuja veiculação em mídias ratifica tal reconhecimento.
Por pensar a educação enquanto instrumento de luta em favor do protagonismo afrobrasileiro, como ferramenta combativa fazendo frente às visões estereotipadas que invisibilizam contribuições e marcas da presença negra na cultura e na história brasileira é que a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, por meio de seu NEABI, foi buscar parceria para a criação e implementação de cursos de aperfeiçoamento, no âmbito do Programa Uniafro: Política de Promoção da Igualdade Racial na Escola na modalidade semipresencial, além da realização de diversos cursos de pós-graduação lato sensu.
Educar-se para educar a outrem é muito difícil, pois há a necessidade de respeito às subjetividades, diversidades e valores que coexistem em sociedades inter ou multiculturais, como a brasileira. Há aqui um caráter didático-pedagógico que dialoga com os compromissos acadêmico-formativos, fazendo com que a relação ensino-aprendizagem se transforme em um fator de crescimento intelectual e social dos estudantes, pois:
Se entendemos a escola como uma instituição social densa de relações educativas onde o ensinar e o aprender pode-se abrir em caminhos para distinguir opressões, comunicar-se com outras culturas, ressignificar conhecimentos por situá-lo dentro de uma lógica marcada por perspectivas do que constitui problemas para nós, [...] vamos ter que apostar que a fabricação de novos lugares para a escola não poderá dispensar professores e alunos [...], acolhendo os desejos dos trabalhadores, das mulheres, dos negros, de saberes que os fortaleçam (LINHARES, 1997, p. 146).
Cumprindo o seu papel como LEAFRO-NEABI-UFRRJ e estando inserido na Baixada Fluminense, as pesquisas, estudos e demais atividades desenvolvidas por seus pesquisadores estão voltadas para a intervenção e transformação de subjetividades e de atitudes racistas bem como das relações de dominação e de exclusão com base nas identidades étnico-raciais nas instituições escolares e na sociedade mais ampla. As atividades de ensino, pesquisa e extensão aprofundando análises das articulações estabelecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe, cultura, gênero, crença religiosa nas suas interseções com as relações raciais brasileiras e com o processo educativo, estão de acordo com o prescrito pela Lei n. 10.639/2003 e enfatizado pela Lei n. 11.645/2008 e com o que determinam as Diretrizes Curriculares para a Educação das Relações Étnico-Raciais.
Neste sentido o LEAFRO-NEABI-UFRRJ ofereceu cursos de aperfeiçoamento e pósgraduação lato sensu aos professores, principalmente da Baixada Fluminense, muitas vezes por intermédio de parcerias desenvolvidas com secretarias de educação dos municípios. Esses cursos propiciaram aos professores inscritos subsídios teóricos para a consolidação de uma nova práxis pedagógica no que diz respeito à educação das relações étnico-raciais, conforme explicitado pela Lei n. 10.639/2003, e em conformidade com o Parecer CNE/CP n. 3/2004 e com as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Podemos dizer que o curso contribuiu para a descolonização dos currículos escolares, tal como proposto por Gomes (2012) e Munanga (2003), entre outros. Romper com a leitura hegemônica do mundo que adota como referência a matriz eurocêntrica, branca, cristã e ocidental requer, antes de tudo, a tomada de uma nova postura diante do fazer pedagógico, abrindo canais de diálogo e reflexão crítica aos padrões simbólicos que permeiam a escola, a sociedade e o currículo. Conforme alerta Gomes (2012, p. 102):
As mudanças sociais, os processos hegemônicos e contra-hegemônicos de globalização e as tensões políticas em torno do conhecimento e dos seus efeitos sobre a sociedade e o meio ambiente introduzem, cada vez mais, outra dinâmica cultural e societária que está a exigir uma nova relação entre desigualdade, diversidade cultural e conhecimento.
A outra dinâmica cultural a que se refere a autora deve, pois, viabilizar a implementação de práticas pedagógicas mergulhadas em uma vivência multicultural para que o currículo esteja aberto a constantes reformulações que ultrapassem leituras hegemônicas já cristalizadas, a partir dos referenciais eurocêntricos. A superação de tais modelos implica considerar a inclusão de conhecimentos outros. Segundo Munanga (2013, p. 29):
Os currículos escolares que temos atualmente são reflexos da história do país. Fundamentalmente, baseiam-se na questão da dominação. Em todas as sociedades ocidentais que conhecemos, a educação é monopólio do Estado. Nós não podemos ficar com currículos escolares do século passado que nada têm a ver com a dinâmica da sociedade. Não temos que ficar com currículo escolar que é simplesmente fundamentado em uma única visão do mundo, numa visão eurocêntrica que não contempla a diversidade, que não contempla as diferenças. Na realidade não é um currículo inclusivo, e sim exclusivo.
Entendemos que a proposição dos cursos de aperfeiçoamento e pós-graduação lato sensu contemplou tal premissa, contribuindo para o exercício crítico do olhar docente, sendo ferramenta para ampliar conhecimentos, possibilitando aos atores envolvidos a experiência de reformulação de suas práticas em favor das diversidades.
Pesquisadores como Barreto (2009, 2011), Gomes (1995, 1997, 2004), Paixão (2010), Rosemberg (1987), Siss (2012) e Siss, Barreto (2012) demonstram que muitos professores se relacionam com alunos negros e alunas negras de forma diferenciada, chegando mesmo a resistir à ideia de que o racismo exista na sociedade brasileira e que, por essa razão, se manifeste tanto nas salas de aula quanto na escola em geral. Essa visão encobre uma dura realidade e evidencia a força operante do mito da democracia racial, segundo o qual a sociedade brasileira é uma comunidade imaginada sem racismo, preconceito ou discriminação.
Para Siss, Barreto (2012), o sistema educacional no Brasil reproduz, com frequência, práticas discriminatórias, racializadas e racistas, existindo um círculo vicioso que combina racismo, pobreza, fracasso escolar e marginalização social — práticas que impedem o desenvolvimento dos direitos humanos, o exercício pleno da cidadania e a possibilidade de participação social, econômica, cultural e política do segmento populacional negro majoritariamente aí inserido de forma subalternizada. Essa realidade é o que delineia e estabelece as duras fronteiras da exclusão da população negra desse país, sendo urgente no contexto educacional a construção de uma política de formação inicial e continuada de professores baseada em princípios antirracistas, educando para as relações étnico-raciais e valorizando a diversidade, a equidade e a justiça social. Segue um demonstrativo das ações do LEAFRO-NEABI-UFRRJ na oferta dos cursos.
Curso/nível | Período | Recursos | Coordenador |
---|---|---|---|
Extensão I- Afro-brasileiros, desigualdades étnico-raciais e educação no Brasil | 2007 | Realizado sem verba pública | Dr. Ahyas Siss |
Extensão II - Afro-brasileiros, desigualdades raciais e educação no Brasil | 2008 | Realizado sem verba pública | Dr. Ahyas Siss |
Aperfeiçoamento - Diversidade étnica e educação brasileira | 2009 | Uniafro | Dr. Ahyas Siss |
Aperfeiçoamento - Política de promoção da igualdade racial na escola | 2014 | Uniafro | Dr. Ahyas Siss |
Aperfeiçoamento - História e cultura afrobrasileira e africana | 2015 | Ação 20RJ | Dr. Ahyas Siss |
Pós-graduação Lato sensu - Diversidade étnica e educação superior brasileira | 2009/2010 | Uniafro | Dr. Ahyas Siss |
Pós-graduação Lato sensu - Diversidade étnica e educação superior brasileira | 2011/2012 | Realizado sem verba pública | Dr. Renato Nogueira |
Pós-graduação Lato sensu - História e cultura afro-brasileira e africana | 2015/2016 | Ação 20RJ | Dr. Ahyas Siss |
Fonte: Relatório Interno/UFRRJ - 2020
Os cursos de aperfeiçoamento em História e Cultura Afro-brasileira e Africana proposto em 2015, assim como o de Pós-graduação Lato sensu História e Cultura Afro-brasileira e Africana de 2015/2016 contaram com recursos financeiros. Esses recursos chegaram por meio da Ação 20RJ com apoio à capacitação e formação inicial e continuada para a educação básica no Brasil, dando suporte às políticas públicas de educação e promovendo a valorização dos profissionais de educação. Tal ação orçamentária faz parte do Programa 2030 Educação Básica, do Ministério da Educação (MEC), juntamente com o Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), cujos informes dão conta de que as ações orçamentárias específicas daquele Programa tiveram início em 2012 sendo o último registro em 2015.
Ao retomar a ideia da urgente necessidade de respeito e valorização da diversidade étnicoracial presente nas escolas brasileiras, a Resolução CD/FNDE n. 14, de 28 de abril de 2008 pode ser compreendida como uma resposta do Estado brasileiro às demandas dos movimentos sociais que vêm clamando pelo reconhecimento não só da importância como também do protagonismo afro-brasileiro no contexto nacional brasileiro. A Resolução vem para oportunizar ciclos formativos que dialoguem com desejos de uma sociedade mais justa e democrática, já apontados no Parecer CNE n. 03/2004:
O parecer procura oferecer uma resposta, entre outras, na área da educação, à demanda da população afrodescendente, no sentido de políticas de ações afirmativas, isto é, de políticas de reparações, e de reconhecimento e valorização de sua história, cultura, identidade. Trata, ele, de política curricular, fundada em dimensões históricas, sociais, antropológicas oriundas da realidade brasileira, e busca combater o racismo e as discriminações que atingem particularmente os negros. Nesta perspectiva, propõe a divulgação e produção de conhecimentos, a formação de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos orgulhosos de seu pertencimento étnico-racial - descendentes de africanos, povos indígenas, descendentes de europeus, de asiáticos - para interagirem na construção de uma nação democrática, em que todos, igualmente, tenham seus direitos garantidos e sua identidade valorizada. (BRASIL, 2004, p. 1)
O ciclo formativo aprovado e implementado pelo LEAFRO-NEABI-UFRRJ no campus de Nova Iguaçu ofertou mais de 45 vagas destinadas a profissionais da educação atuantes na rede pública de ensino da região da Baixada Fluminense. Os cursos tinham carga horária de 210 horas (aperfeiçoamento), sendo 110 horas presenciais e outras 100 horas a distância. Os cursos lato sensu tiveram carga horária superior a 360 horas. Os encontros presenciais aconteceram com a oferta de dez eixos temáticos que abordaram conteúdos de relevante importância para o conhecimento da história e da cultura afro-brasileira e africana.
No conjunto dos temas desenvolvidos, observamos a recorrência da temática identidade negra, para o que foram apresentados os seguintes projetos: Cabelo e Identidade Negra no Espaço Escolar; Interferindo Positivamente na Construção da Identidade Negra no Espaço Escolar; A Identidade Negra no Chão da Escola e Cabelos e Diversidade Estética: a beleza dos cabelos crespos. A leitura que fazemos acerca das escolhas pode estar diretamente associada ao fato de o perfil da turma ser majoritariamente formado por mulheres. Do total de professores concluintes, 81% eram do sexo feminino. Outro aspecto que pode ter contribuído para essa recorrência temática foi o quesito cor, quando 72% das docentes se autodeclararam pretas e pardas. Vale observar como interessante a maior representatividade de docentes que atuam nas redes municipais de educação, cujo percentual de inscritos foi da ordem de 62%. Como é sabido, cabe às instâncias municipais a oferta da educação para os anos iniciais e finais do ensino fundamental, momento de crucial importância para a construção da identidade. Os relatos dos docentes reforçam a leitura dos números, posto que ao longo dos módulos colhemos depoimentos que evidenciavam o maior grau de dificuldades para as docentes no trato pedagógico da valorização da autoestima da população de origem afro-brasileira.
Ainda que a oferta de vagas tenha sido limitada a um quantitativo de 50 observamos, ao longo dos encontros, a partir dos relatos do público atendido, a necessidade de ampliação dessas redes formativas na Baixada Fluminense para um número maior de professores. Há uma demanda reprimida, fala corrente entre os cursistas, no sentido de reconhecerem a possibilidade valiosa de poderem fazer o curso de aperfeiçoamento Uniafro, mas em contrapartida o reconhecimento de que não é tarefa fácil conciliar rotina de trabalho e formação acadêmica. A ideia de que não é possível haver docência sem discência (FREIRE, 1996), mais que atual, é de fundamental importância. Garantir essa práxis pedagógica implica desenvolver esforços que superem as dificuldades da rotina docente, em que cada vez mais o espaço destinado à pesquisa e formação em serviço tem sido otimizado em detrimento de uma produtividade avassaladora que compromete a qualidade do processo educacional.
Outro aspecto interessante a ser pontuado neste balanço após a conclusão do ciclo de formação é a constatação de que tais iniciativas fortalecem as redes de saberes e fazeres em âmbito acadêmico articuladas ao universo da prática escolar. Docentes que empoderam seus discursos fortalecem a luta antirracista, que precisa ser diária e contínua para além das escolas, alcançando a sociedade como um todo. Há um misto de academicismo e consciência política do papel social do educador como formador de opinião e que, agora de forma mais sistêmica, percebe o quanto é preciso estar atento ao combate dos discursos hegemônicos, excludentes e cheios de preconceitos. No universo dos professores cursistas que participaram da turma 2014 do curso de aperfeiçoamento Uniafro, observamos como vale a pena estabelecer o elo que não pode mais se quebrar entre o espaço da pesquisa acadêmica e o universo dinâmico da realidade escolar! Reiteramos aqui que o professor precisa dar continuidade ao seu processo de formação inicial, lembrando que a formação continuada implica necessariamente a postura assumida pelo profissional frente à ampliação de sua formação inicial, entrelaçando seus saberes-fazeres, integrando e interagindo com os diferentes, visando à produção da educação das relações étnicoraciais em prol do aprimoramento dessas relações e do respeito às diferenças (SISS, BARRETO, 2012). Esse é, pois, o caráter complexo do desafio da educação das relações étnico-raciais como formação humana, sendo importantíssimo, nesse contexto, a qualificação de professores, gestores e demais profissionais da educação para trabalhar na perspectiva étnica, racialmente referenciada e não excludente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os NEAB’s e NEABI’s têm, ao longo do tempo, construído uma história relevante com significativa atuação nas instituições de ensino superior tanto no campo da implementação das Leis Federais n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008 quanto na das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana. A referida atuação, que se dá no campo interno das instituições de ensino superior demanda principalmente, junto às instâncias acadêmicas, a adequação dos currículos dos cursos de licenciatura e de bacharelado à referida legislação. Essa adequação, por sua vez, vai interferir de forma direta no processo de formação de professores, fazendo com que estes sejam atores fundamentais no processo de desconstrução das desigualdades sociais e étnico-raciais que contribuem de forma decisiva para a exclusão dos afro-brasileiros.
Fortalecer e incentivar a formação qualificada, tanto inicial quanto continuada, de professores da Baixada Fluminense constitui um dos pilares do LEAFRO-NEABI-UFRRJ, firme e atuante nas trincheiras abertas pela Lei n. 10.639/2003, ao lado de tantos e tantas combatentes pela plena implementação dessa tão importante e necessária Lei, assim como do Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana.
Entendemos que processos de formação continuada de professores são um direito dos profissionais e, como tal, a ser oferecido pelo Estado por intermédio de políticas públicas implantadas e implementadas com esta finalidade direcionada. As universidades, por sua vez, são responsáveis pela elaboração de programas de capacitação desses profissionais. Esses programas devem ter em seus conteúdos programáticos enfoques que estimulem a discussão de práticas antirracistas, que valorizem os legados da ancestralidade negra e indígena visando preparar melhor os estudantes para uma realidade social ainda mergulhada em contextos de estereótipos e preconceitos raciais que só ratificam abordagens racistas.
Ressalta-se, além do papel das diversas secretarias municipais de educação que, por sua vez incentivaram e proporcionaram a seus professores condições de participar e concluir os cursos oferecidos pela universidade, o interesse dos professores na ampliação de sua formação acadêmica, mesmo diante do quadro de desmonte e sucateamento pelo qual a educação nacional brasileira vem passando. Tais processos de precarização da profissão contribuem para que muitos profissionais não consigam avançar no necessário exercício de práticas reflexivas que os impulsionem à reinvenção da práxis pedagógica, a partir dos contextos históricos nos quais estão inseridos.
A atuação na luta antirracista exige dos professores formação acadêmica cada vez mais qualificada, tal qual explicitam o Parecer CNE/CP n. 3/2004, a Lei n. 10.639/2003 e a Lei n. 11.645/2008, propiciando-lhes transformações qualitativas e positivas de suas práxis pedagógicas, no que diz respeito à educação das relações étnico-raciais na escola e na sociedade, ampliando o legado da formação inicial. Neste sentido, os cursos de aperfeiçoamento e pós-graduação lato sensu oferecidos pelo LEAFRO-NEABI-UFRRJ têm contribuído sobremaneira para esta qualificação, com os egressos desses cursos voltando a ingressar em novos cursos, e concluir com êxito dissertações de mestrado e teses de doutorado em diferentes Programas de Pós-graduação, como por exemplo o Programa de Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc) da UFRRJ.