PARA INÍCIO DE CONVERSA...
[...] a questão da experiência tem muitas possibilidades no campo educativo, sempre que sejamos capazes de lhe dar um uso afiado e preciso. (Jorge Larrosa, 2011, p. 4)
Nos últimos tempos, a temática indígena, por meio da Lei n. 11.645/2008, tem desafiado as práticas pedagógicas e as propostas curriculares a romper com o modelo de educação homogeneizadora e excludente que ainda persiste no cotidiano escolar, convidando à construção de uma aprendizagem significativa, enfatizando e valorizando outras experiências e outros saberes que fazem parte do conhecimento da diversidade de povos que compõem a população brasileira no contexto latino-americano.
Nessa perspectiva, esse estudo tem como objetivo fazer uma reflexão sobre a implementação da Lei n. 11.645/2008, nas instituições de ensino de Campo Grande - Mato Grosso do Sul (MS), por meio de experiência nas formações de professores da educação básica, em específico sobre os conteúdos voltados para o ensino da história e da cultura indígena, lembrando Larrosa (2011, p. 25) “[...] que a experiência tem a ver, também, com o não saber, com o limite do que já sabemos, com o limite de nosso saber, com a finitude do que dizemos”.
Para isso, servimo-nos das reflexões realizadas nas formações de professores, nas quais as angústias, certezas e incertezas, conceitos e pré-conceitos, conhecimentos e o não conhecimento, relatados pelos professores durante as formações, têm-nos permitido desprender das narrativas ocidentais e buscar modos outros de ensinar e aprender.
As análises e as reflexões pretenderam perceber, num primeiro momento, a partir das políticas educacionais, como as orientações sobre a inclusão e os conteúdos referentes à temática indígena chegam à escola e como são recebidos e traduzidos na prática pedagógica. Num segundo momento, buscamos perceber como os efeitos da colonização atravessam a formação de professores, deixando marcas que ainda nos fazem colonizar e ser colonizados por meio dos processos educativos pelos quais vivenciamos e pelos quais fomos formados.
Para tanto, no sentido de rever e problematizar as marcas coloniais que atravessam o processo educacional, nossos estudos encontram-se situados no campo teórico dos estudos póscoloniais, quando questionamos, a partir da relação binária entre colonizador e colonizado, as formas de dominação e opressão que diferentes povos sofreram com os processos de dominação colonial; e dos estudos decoloniais, em que buscamos, a partir de um olhar outro, de saberes e fazeres outros, desprender-nos das narrativas ocidentais para encontrar modos outros de ensinar e aprender.
COMO A LEI N. 11.645/2008 CHEGA ÀS ESCOLAS?
Para refletir sobre a prática e a formação de professores, buscamos contextualizar historicamente a Lei n. 11.645/2008 e seus desdobramentos legais, tendo em vista compreender como se concretiza nas políticas educacionais e como chega às escolas como um dispositivo legal, técnico e pedagógico, a ser implementado no currículo escolar, tensionando as instituições educativas as quais, segundo Candau (2011, p. 241) foram “[...]construídas fundamentalmente a partir da matriz político-social e epistemológica da modernidade, [que] prioriza o comum, o uniforme, o homogêneo, considerados como elementos constitutivos do universal. Nesta ótica, as diferenças são ignoradas ou consideradas um ‘problema’ a resolver”.
Sobre essa questão, Quijano (2005a, p. 19) indaga: “[...] Onde reside a diferença? A diferença é, sem dúvida, a América”, ou seja, a diferença está naquilo que não condiz com os parâmetros europeus, inferiorizando e subalternizando indígenas, negros e mestiços.
Nesse caso, é necessário questionar e desconstruir as narrativas ocidentais que ainda fundamentam o imaginário latino-americano e compreender que o povo brasileiro é formado por pessoas que pertencem a grupos étnico-raciais distintos, que possuem culturas e histórias próprias, que se constituíram a partir da colonização ou, melhor dizendo, antes da colonização não existia o povo brasileiro.
Somente com a denominação de Brasil é que o povo brasileiro veio a se constituir enquanto identidade nacional, resultante de um processo histórico, cultural e social composto por diferentes grupos étnicos, habitantes desse território, anterior à colonização, e por diferentes povos vindos de outros continentes com a colonização, em um contexto complexo de relações de poder entre colonizador e colonizado.
Muitas vezes a diferença aparece como uma categoria para legitimar a desigualdade e não como uma categoria para afirmar sua identidade e sua cultura. Pensar e elaborar políticas educacionais nesse contexto exige analisar como as coisas acontecem, emergem, dão sentido e significado às coisas e às relações estabelecidas em cada grupo. Ou seja, compreender historicamente como as diferenças foram, são e continuam sendo construídas num espaço de representação e relações de ser, poder e saber, no qual Walsh (2009, p. 15) enfatiza que é preciso:
[...] destacar a necessidade de tornar visível, confrontar e transformar as estruturas e instituições que posicionam diferentemente grupos, práticas e pensamentos dentro de uma ordem e lógica que, classifica e ainda, é racial, moderna-ocidental e colonial. Uma ordem na qual todos fomos, de uma forma ou de outra, participantes (Tradução nossa, destaques nossos)1 .
Em 2008, a Lei n. 11.645/2008 passa a fazer parte do currículo das escolas, abalando as práticas pedagógicas construídas por uma ordem hegemônica e eurocêntrica, causando muitas tensões na prática educativa, descentrando posições fixas e estáveis não apenas nos conteúdos pedagógicos mas também no pensamento pedagógico, os quais questionam os processos educacionais pelos quais fomos formados e produzidos a partir de uma cultura nacional, comum e única, como um único povo.
Assim, quando a Lei entra na escola, o primeiro entendimento que se teve, ou ainda se tem, é que esta é uma Lei para ser trabalhada nas escolas em territórios indígenas, com as comunidades indígenas, pois até então a legislação educacional voltada para atender os povos indígenas estava direcionada para os territórios indígenas. Diante dessa premissa, apresentamos o seguinte questionamento: quem precisa aprender e conhecer sobre a história e a cultura indígena? Por um lado, entendemos que não são os povos indígenas que precisam aprender sobre sua história e cultura mas, sim, todos aqueles a quem foi negado esse conhecimento, que vivenciaram uma cultura escolarizada chamada universal, acreditando que todos somos iguais. Por outro lado, entendemos, também, que os povos indígenas precisam conhecer sua história. Uma história negada e silenciada a partir dos parâmetros de homogeneização, integração e negação das suas diferenças, na qual segundo Freire (2001, p. 5):
[...] a maioria dos povos que resistiram ao processo de extermínio está em contato com a sociedade nacional, em diferentes graus de intensidade. Portanto, muitos passaram pela experiência traumática e etnocêntrica da sala de aula, cujo desprezo manifestado em relação às línguas e culturas indígenas estará presente na imagem da escola construída pelos índios.
Observa-se, nesse caso, que há necessidade de um retorno à ancestralidade, à cultura e aos saberes que foram negados pela experiência de uma educação escolar que, por muito tempo, exerceu um papel muito importante na anulação e silenciamento das diferenças.
Um outro entendimento que se teve sobre a Lei, foi que esta deveria ser trabalhada em escolas urbanas, onde havia apenas alunos indígenas matriculados. Novamente, fazemos o mesmo questionamento: por que somente os estudantes indígenas precisariam estudar sobre a sua história e não os estudantes não indígenas, sendo que é uma história que faz parte da constituição do Brasil, da formação do povo brasileiro, invisibilizada durante séculos? Um outro destaque é que, quando se compreende que quem precisa estudar sobre os povos indígenas não são os povos indígenas e, sim, todos nós, não indígenas, é que se percebe que em pleno século XXI, não há nada ou quase nada na história oficial do Brasil sobre os povos indígenas, e que o pouco que há é de forma fragmentada e deturpada, registrada a partir de uma visão colonial por aqueles que tinham o domínio de uma escrita estereotipada e distorcida sobre diferentes povos.
Atualmente, os documentos que norteiam e orientam a educação brasileira são: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN n. 9.394/96); as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica (Parecer CNE/CEB n. 7/2010 e Resolução CNE/CEB n. 4/2010) entre outros pareceres do Conselho Nacional de Educação e respectivas resoluções que consubstanciam as modalidades de ensino (Educação Básica do Campo, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar Quilombola, Educação Especial, Educação de Jovens e Adultos, Educação Profissional e Tecnológica e Educação a Distância); e as temáticas específicas presentes no currículo escolar como, por exemplo, no caso desse estudo, a Educação para as Relações Étnicoraciais e o Ensino de História e das Culturas Afro-brasileira e Indígena na Educação Básica, em decorrência da Lei n. 10.639/2003 e da Lei n. 11.645/2008 (Parecer CNE/CP n. 3/2004, Resolução CNE/CP n. 1/2004 e o Parecer n. 14/2015); o Plano Nacional de Educação (PNE 2014/2024); e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de caráter normativo que, segundo o documento “[...] define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e modalidades da Educação Básica” (BRASIL, 2017, p. 7).
Nos estudos realizados por Russo e Paladino (2014, p. 23):
[...] até 2003, não houve uma legislação ou qualquer diretriz que definisse políticas para o reconhecimento da diversidade étnico-racial no ensino básico. Cabe destacar que na LDB sancionada em 1996, não aparece de forma clara este reconhecimento, tão somente no artigo 3⁰, determina-se que o ensino será ministrado com base nos princípios de pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas e valorização da experiência extraescolar. E no artigo 26 estabelecese que: ‘Os currículos do ensino fundamental e médio passam a compreender uma base nacional comum que deve ser complementada por uma parte diversificada, de acordo com as características regionais’. Isto é, fica sugerida uma flexibilização dos currículos, na medida em que se admite a incorporação de disciplinas que podem ser escolhidas levando em conta o contexto e a clientela. No ensino nas zonas rurais, é admitida inclusive a possibilidade de um currículo apropriado às necessidades e interesses dos alunos (Art. 28, inciso I). (destaques nossos)
De acordo com as autoras e analisando os documentos que orientam a educação brasileira, escritos sob a concepção que tem como pretensão uma educação plural, observa-se que para as escolas urbanas há uma base universal comum a todos, apoiada numa matriz de modelo único, sem levar em conta que a escola é um espaço múltiplo e aberto, permeado por diversas culturas, costumes e valores que devem ser respeitados de acordo com as particularidades e especificidades de cada sujeito. Para as escolas indígenas, quilombolas, ribeirinhas, do campo, entre outras, que possuem legislações próprias, é garantido o ensino sobre uma base comum e uma parte diversificada, enfatizando que isso foi um grande avanço. Porém, o que se problematiza aqui, é que quando falamos em diferenças e nos direitos conquistados e garantidos, verifica-se que as políticas públicas as posicionam em determinados lugares, ou seja, o direito garantido às suas diferenças estão localizados em Aldeias, Quilombos, Zonas Rurais, entre outras modalidades que, quando não estão nesses lugares, são assimiladas pela lógica homogênea e universal que ainda persiste na educação brasileira.
De acordo com o Parecer n. 7/2010, que define as Diretrizes Curriculares para Educação Básica (2010, p. 12):
A Educação Básica é direito universal e alicerce indispensável para a capacidade de exercer em plenitude o direito à cidadania. É o tempo, o espaço e o contexto em que o sujeito aprende a constituir e reconstituir a sua identidade, em meio a transformações corporais, afetivo-emocionais, socioemocionais, cognitivas e socioculturais, respeitando e valorizando as diferenças. [...] (destaques nossos)
No que se refere aos territórios indígenas, os avanços conquistados e garantidos na Constituição Federal de 1988 e na LDBEN n. 9.394/1996 que, posteriormente, somaram-se a outros dispositivos legais garantindo educação escolar indígena específica diferenciada, nota-se que só foram pensadas para dentro de suas comunidades, dentro de seus espaços territoriais e culturais próprios e não fora deles. Reconhecendo que a legislação vigente foi um avanço para as comunidades indígenas, porque para esses espaços territoriais foram garantidos o diálogo entre uma educação escolar indígena pautada nos princípios epistemológicos, cosmológicos e linguísticos, de acordo com cada grupo étnico, com uma educação universal ou, melhor dizendo, com os conhecimentos ocidentais.
Assim, nota-se que para dentro de suas comunidades, os currículos cumpriram seu papel de garantir, por meio de legislação específica, uma educação no diálogo com uma parte universal e outra diferenciada, com isso assegurando seus processos próprios de aprendizagens. Porém, para fora desses espaços, não foram garantidos os mesmos direitos. Continuamos com uma educação ocidental, homogeneizadora e excludente, sem o diálogo com outros conhecimentos e outros saberes que fazem parte da diversidade brasileira. Desse modo, entende-se que para as políticas públicas educacionais, a educação escolar indígena já estaria garantida dentro dos seus limites territoriais e culturais, e fora desse território estes deveriam se adequar aos conteúdos curriculares nacionais ou universais.
Anterior à criação da Lei n. 11.645/2008, houve lutas e mobilizações do movimento negro em defesa de diretrizes que orientassem o trabalho pedagógico e curricular a partir da Lei n. 10.639/2003, que significou uma ruptura / transgressão no pensamento educacional, modificando o Artigo 26-A da LDBEN n. 9.394/1996, e permitindo que uma história negada e silenciada durante séculos nas narrativas ocidentais fosse incluída nos currículos, determinando a obrigatoriedade da temática "História e Cultura Afro-Brasileira”.
Nesse primeiro momento, a temática indígena não estava contemplada, e somente em 2008, na mesma perspectiva do movimento negro, o movimento indígena reivindicou que os conteúdos sobre a cultura e a história indígena no currículo escolar também fossem trabalhados nos currículos escolares, alterando a redação da Lei n. 10.639/2003, passando a vigorar a Lei n. 11.645/2008 por meio da redação:
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afrobrasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil.
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afro-brasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de educação artística e de literatura e história brasileiras.
Devemos reconhecer que as leis determinaram grandes avanços no campo educacional, favorecendo a real compreensão da história do Brasil e a contribuição desses povos na formação do povo brasileiro. Porém, no contexto da criação da Lei n. 10.639/2003, foi organizada uma série de documentos orientadores de como trabalhar a cultura e história africana nas escolas. No âmbito da criação da Lei n. 11.645/2008 não foram disponibilizadas orientações de como trabalhar as questões indígenas na prática pedagógica, que muitas vezes ficaram à parte, ou quando trabalhadas, as atividades apresentavam conteúdos descontextualizados, apenas como uma forma de cumprir a Lei.
Ao acrescentar o termo “indígena”, a Lei n. 11.645/2008, sem as devidas orientações, gerou equívocos, como o entendimento de que as atividades a serem trabalhadas poderiam ser as mesmas para ambos os povos, apenas substituindo o afrodescendente pelo indígena. Segundo Russo e Paladino (2014, p. 39):
[...] consideramos que a Lei 11.645 aponta poucos conteúdos de aprendizagem que podem ser trabalhados sobre o assunto. Se comparada com o conteúdo da Lei 10.639 [...] vemos que apenas houve um acréscimo à menção dos povos indígenas, não se incorporaram conteúdos específicos referentes aos mesmos.
O que precisamos compreender é que são povos e histórias muito distintas, embora ambos tenham sofrido o mesmo processo de exclusão e subalternização com os processos de colonização da América Latina. Os povos indígenas são povos originários, que estavam aqui na chegada dos colonizadores e os povos africanos foram trazidos de fora, desterritorializados de suas matrizes culturais, de sua língua, de seus costumes para serem submetidos a serviços escravos.
De acordo com o Parecer n. 14/2015, que institui as Diretrizes Operacionais para implementação da história e das culturas dos povos indígenas na Educação Básica, em decorrência da Lei n. 11.645/2008, segue-se que:
[...] a Lei tem favorecido a compreensão de que é preciso construir representações sociais positivas que valorizem as diferentes origens culturais da população brasileira como um valor e, ao mesmo tempo, crie um ambiente escolar que permita a manifestação criativa e transformadora da diversidade como forma de superar situações de preconceito e discriminações étnico-raciais (BRASIL, 2008, p. 2)
Após a sanção das Leis em questão, elas começam a fazer parte de um conjunto de dispositivos políticos e educacionais no sistema educacional brasileiro, como itens de avaliações do Ministério da Educação, de mudanças nos conteúdos de livros didáticos, de formações para implementação e aplicabilidade da lei.
Na rede municipal de ensino de Campo Grande - MS, a Lei n. 11.645/2008, como em outros lugares do Brasil, é incluída nos currículos das escolas sem que tenha acontecido formação e reflexão mais profundas sobre seu teor e sua aplicação. Não são problematizadas as dificuldades enfrentadas pelos professores, que vêm de um processo de escolarização homogeneizador e excludente que não permite enxergar e valorizar as diferenças, e o questionamento básico então é: o quê e como trabalhar conteúdos referentes ao ensino de história e cultura indígena? Para tanto, o grande desafio está em romper com os padrões e modelos construídos a partir de uma história linear e eurocêntrica, na qual nossa escolarização está centrada. Se por um lado a Lei n. 11.645/2008 significa um grande avanço na história brasileira, por outro lado essa mesma história precisa ser questionada, problematizada e estudada, não apenas quanto ao cumprimento da Lei, mas para rever como os conteúdos sobre a história dos povos indígenas são apresentados nos livros didáticos, são estudados nas formações de professores e como são reproduzidos em salas de aula.
ESTRATÉGIAS PARA UMA EDUCAÇÃO DECOLONIAL NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES
A experiência com a formação de professores tem-nos motivado a buscar compreensões sobre o nosso processo histórico de escolarização, revisitar o que aprendemos sobre os povos indígenas, sua história e cultura, e desconstruir conteúdos que se fixaram como verdades e que nos impossibilitaram de nos relacionar e aprender com diferentes saberes.
Neste sentido, entendemos que o estudo sobre os povos e as culturas indígenas não deve ser conteúdo / matéria, mas uma base para pensar, com conhecimento, a história e a descendência dos povos indígenas, enquanto sujeitos situados em outra tradição cultural.
Num período de pouco mais de dez anos da criação da Lei, ainda ouvimos nas formações de professores questionamentos como: por que a necessidade de uma Lei para estudar os povos indígenas? E como ficam os outros povos descendentes de italianos, japoneses, libaneses, alemães, entre outros que também têm outras culturas, outras línguas?
Então, começamos nosso diálogo, conforme Souza e Fleuri (2003, p. 53) com “[...] uma provocação à desconstrução de modelos unívocos de educação e à busca de construção de novas perspectivas educacionais” e, de modo muito específico e particular para cada contexto, buscamos nas escolas municipais, tanto para a educação infantil quanto para o ensino fundamental, romper com modelos de práticas pedagógicas homogeneizadoras que não permitem visibilizar as diferenças.
Começamos nossa conversa explicando que, durante muito tempo, na história do Brasil, os povos indígenas não nos foram apresentados como sujeitos da história e da construção do Brasil. Desde a época da colonização, e nos dias atuais, foram povos marginalizados, subalternizados e inferiorizados na sociedade brasileira, acreditando que seriam extintos, assimilados e integrados à sociedade nacional.
Somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, pela primeira vez na história, os povos indígenas tiveram garantidas suas formas próprias de organização social; a territorialidade tradicional; a valorização dos sistemas epistemológicos e cosmológicos; a valorização, a manutenção e proteção das suas línguas; a produção e a transmissão de suas tradições; a transmissão do patrimônio sociocultural, linguístico e histórico às gerações futuras.
Um dos questionamentos que fazemos aos professores, na formação, é perguntar: qual indígena mora na nossa cabeça?2. Entre os olhares receosos e desconfiados, as respostas começam a surgir timidamente como, por exemplo, do indígena caçando, pescando, seminu, vivendo em matas, morando em ocas3, entre outras, embora estes mesmos professores digam que sabem que não é assim, que são como nós, mas a memória reporta a imagens folclorizadas e estereotipadas, construídas ao longo de um processo histórico e colonizador que produziu no imaginário da população nacional um indígena primitivo, selvagem, distante, que permanece no passado.
Um outro questionamento que fizemos, junto aos professores, se refere às atividades realizadas no Dia do Índio4. Perguntamos quem são os indígenas que os estudantes desenham na sala de aula, nos dias de hoje? Como as imagens estereotipadas dos povos indígenas ainda são reproduzidas no contexto escolar e em diferentes contextos?
Os depoimentos dos professores apontam que as práticas pedagógicas que vivenciamos em nosso tempo de escolarização, num período de 20 a 30 anos atrás, ainda se mantêm, se reproduzem nas salas de aula nos dias de hoje, pois foi o que conheceram e aprenderam. Conforme Woodward (2000, p. 17): “Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar”.
Para Calderoni (2016, p. 145):
Ao refletirmos sobre a temática indígena e os efeitos pedagógicos na educação, mais precisamente na educação escolar formal, entendemos que esse movimento implica em um processo de desconstrução, num exercício de descolonização dos equívocos geradores de preconceitos que seguem sendo reproduzidos historicamente em diversos espaços educativos, incluindo-se os artefatos culturais que transitam na escola.
Ao abordar os pontos de que trata a Lei, como ações pedagógicas, atividades, planejamentos e conteúdos escolares, percebemos que, ao longo dos anos, o que aprendemos em nossa trajetória escolar sobre os indígenas marcou e construiu representações em nosso imaginário, acabando por serem reproduzidas na prática pedagógica, como o que achamos que conhecemos sobre os povos indígenas.
A palestra proferida pelo professor José Ribamar Bessa Freire, Mídias e Terras Indígenas5, em 2014, se inicia com a seguinte fala: “[...] dos 210 milhões de brasileiros vivendo no Brasil, não temos 0,5% da população, ou seja, um milhão de brasileiros que tenham convivido com povos indígenas, mas todos têm uma opinião sobre os indígenas”. No discurso, o professor questiona de onde as pessoas tiram essa opinião sobre os povos indígenas, se não os conhecem? Quando falamos em indígenas, o que sabemos sobre esses povos? E questiona qual tem sido o trabalho da escola e da mídia nesse caso?
Seguindo essa perspectiva, Pimentel (2012) ressalta que o maior desafio / obstáculo que nós (não indígenas) temos para entender os povos indígenas não está no que não sabemos, mas no que pensamos que sabemos.
Diante desse ponto de vista, observa-se que ainda temos muito a conhecer sobre a diversidade de povos que constituem a população brasileira. Para isso, precisamos rever e desconstruir alguns conceitos construídos em um projeto progressivo e ordenado que, na tentativa de trabalhar os conteúdos sobre a história dos povos indígenas, acaba por reforçar e reafirmar ainda mais estereótipos e preconceitos que levam à inferiorização e subalternização dos sujeitos.
Sendo assim, começamos a problematizar o significado dos termos índio e indígena, que não têm suas origens questionadas. Quando falamos esses termos, referindo-nos a um grupo étnico ou pessoa, na maioria das vezes desconhecemos a carga de preconceitos que os termos carregam, pois foram produzidos em um discurso colonial, forjando identidades étnicas, anulando diferenças culturais e linguísticas.
O termo índio contém um equívoco geográfico, ou seja, é uma denominação que surgiu a partir do olhar europeu sobre quem haveriam encontrado quando aqui chegaram, entre os séculos XV e XVI, supondo terem chegado às Índias. Segundo Rosa (2015, p. 164):
[...] O termo ‘índio’ insere-se em um discurso que faz da palavra um atributo, um artifício sígnico de domesticação, em que todas as diferenças e particularidades se desfazem em meio, e contrapondo-se, ao discurso universalista do homem branco, civilizado, letrado e cristão.
Muitas vezes, paramos e nos interrogamos sobre o que ocorreu em nosso processo de escolarização, por não termos sido instigados a perceber, questionar ou problematizar tais termos, os quais simplesmente foram incorporados e naturalizados em nosso vocabulário, sendo reproduzidos como verdades6.
Já o termo indígena, que não é uma derivação da palavra índio, embora parecido, possui significados e histórias bem distintas. Conforme consulta no site Ciberdúvidas da Língua Portuguesa7, “[...] a palavra indígena vem do latim, significa natural do lugar em que vive, gerado dentro da terra que lhe é própria (in- movimento para dentro, de dentro + gena, gigno, gignĕre que significa gerar). O termo foi atribuído aos povos ameríndios que habitavam as Américas em período anterior à sua colonização por europeus”.
São conceitos produzidos sob o olhar ocidental, que trazem carga negativa no seu uso e a normalização de um discurso de inferiorização e desumanização do outro, de povos que foram classificados dentro de ordem racial. Quijano (2005b, p. 107) assevera a ideia de que:
A formação de relações sociais fundadas nessa ideia produziu na América identidades sociais historicamente novas: índios, negros e mestiços, e redefiniu outras. [...]. E na medida em que as relações sociais que se estavam configurando eram relações de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas delas, e, consequentemente, ao padrão de dominação que se impunha. Em outras palavras, raça e identidade racial foram estabelecidas como instrumentos de classificação social básica da população.
O termo bugre também foi por muito tempo utilizado pela população em geral para referirse aos indígenas, de forma depreciativa, remetendo à condição de uma cultura inferior. De acordo com estudos de Eremites de Oliveira e Pereira (2009, p. 212):
“Bugre” é um termo pejorativo originário do francês bougre. Foi popularizado no Brasil desde a época colonial, quando os portugueses disputaram com os franceses e os holandeses a posse de parte do atual território brasileiro. Trata-se de um vocábulo colonialista empregado como designação genérica dada ao índio, sobretudo ao indivíduo tido como “bravio e/ou aguerrido”, “desconfiado, arredio”.
O que precisamos entender é que os povos indígenas são grupos étnicos com características sociais, culturais e linguísticas distintas, orientados por diferentes matrizes epistemológicas e cosmológicas que posicionam seus modos de ser e estar no mundo. Os povos indígenas não são um estágio atrasado da evolução humana! São grupos de pessoas que viveram processos históricos distintos em suas trajetórias de vida. Desde o contato com os colonizadores muitas trocas foram efetuadas, porém nosso registro histórico é contado por uma visão única daqueles que tinham domínio da escrita, a partir de uma visão eurocêntrica nos postulados da modernidade.
Gersem Baniwa, em entrevista concedida a Bergamaschi (2012, p. 141), diz que:
[...] a Lei 11.645 é um instrumento fundamental para combater principalmente o preconceito e a discriminação, porque estou convencido de que a origem principal da discriminação e do preconceito é a ignorância, o desconhecimento. Não se pode respeitar e valorizar o que não se conhece. Ou pior ainda, não se pode respeitar e valorizar o que se conhece de forma deturpada, equivocada e pré-conceitualmente (destaques nossos).
A valorização da diferença passa pelo seu reconhecimento. Reconhecer a diferença e respeitá-la na mesma proporção em que queremos ser respeitados. Há, porém, muitos equívocos na forma como são tratados os povos indígenas no material didático, por exemplo. Os livros que são disponibilizados para as escolas, um importante instrumento para a prática pedagógica em sala de aula, segundo Calderoni (2016, p. 123), “[...] ao invés de desvelar e desnaturalizar os preconceitos, ainda acabam reforçando processos de discriminação”.
Continuando na mesma linha de pensamento, Calderoni (2016, p. 123) complementa que:
[...] a presença dos indígenas nos livros didáticos é quase sempre fragmentada, depreciativa e, muitas vezes, de uma forma secundária, associando-se à ideia de que falar de “índio” é falar de passado. Nos livros de História, principalmente, a figura do índio aparece em função do colonizador e quando percebidos, o são de forma secundária, folclorizada ou colocados em um tempo e com práticas culturais do passado. E da mesma forma que aparecem na história do Brasil, acabam por desaparecer como um passe de mágica ou simplesmente como uma cegueira histórica!
Há uma lacuna na história do Brasil que precisa ser problematizada, questionada, pesquisada e recontada. De acordo com as orientações do Parecer n. 14/2015, precisamos reconhecer a contemporaneidade dos povos indígenas e constituir uma consciência crítica e reflexiva da sociedade e da história.
No que diz respeito à temática, observa-se a falta de conhecimento sobre esses povos, sua história e suas diferenças sociais, culturais e linguísticas, generalizando todos os povos a um povo. As narrativas curriculares e históricas que, por séculos, ocultaram os povos indígenas da história do Brasil, valorizando apenas os conhecimentos eurocêntricos, contados a partir da colonização, ainda permanecem no imaginário social e cultural da população brasileira.
O que temos observado, nas formações que realizamos, é que ainda há muito estudo e trabalho a ser feito para desnaturalizar a imagem do indígena genérico e primitivo, pois suas culturas não estão paradas no tempo, estão em constante transformação, como qualquer outra. Como enfatiza Walsh (2009, p. 15) precisamos assumir “[...] Um trabalho que procura desafiar e derrubar as estruturas sociais, políticas e epistêmicas da colonialidade e incentivar novos processos, práticas e estratégias de intervenção para criticamente ler o mundo, como disse Freire, e entender, (re)aprender e agir no presente8 ” (Tradução nossa).
Para Nascimento (2014, p. 35) “[...] a questão de fundo é fazer emergir um debate com novas configurações em torno da produção de conhecimento, outras formas constituídas de saber e suas relações com os campos disciplinares instituídos pela e na modernidade”. Por esse entendimento, verifica-se a necessidade de aprender a dialogar com os fatos consequenciais — impostos pelo mundo moderno e capitalista constituído a partir de uma perspectiva eurocêntrica — que, na contemporaneidade, ainda habitam nosso imaginário.
Nesse caso, as narrativas históricas contadas sobre a colonização do Brasil, que sempre ignoraram as diferenças sociais, culturais, étnicas e linguísticas, precisam ser recontadas e estudadas no contexto escolar, pois as dificuldades de planejar e projetar uma educação escolar a partir das diferenças estão implícitas nos processos de ocultação e negação da história brasileira.
O desafio, então, está em deslocar-se para outros contextos, os quais estão presentes no cotidiano escolar, e fazer o diálogo no encontro com diferentes sujeitos, sem anular suas diferenças e suas histórias, evidenciando que outros saberes e outros fazeres são possíveis.