INTRODUÇÃO
O conceito de deficiência foi construído social e historicamente, tendo sido objeto de estudo mais detalhado pelas lentes das ciências humanas desde o século passado (DINIZ, 2009; JANNUZZI, 2012; LOBO, 2008; MAZZOTA, 2011). Entre os autores que se dedicaram ao tema, e mais especificamente ao estudo do desenvolvimento ontogenético de pessoas com deficiência, destaca-se o precursor da Teoria Histórico-Cultural, o bielorrusso L. S. Vigotski (1896-1934). Mesmo tendo produzido seus textos em torno dos anos 1920-1930, o teórico tem uma obra extremamente potente e assertiva sobre a temática exatamente por trazer questionamentos de grande reverberação contemporânea. Suas críticas sobre a educação especial e a importância de uma educação inclusiva - mesmo que naquela época não se utilizasse essa denominação - já aparecem de forma pungente nos seus textos.
Em uma sociedade que concebia a pessoa com deficiência como inválida e improdutiva, Vigotski (1997) trouxe novas maneiras de compreender a deficiência, em razão de sua compreensão em relação ao funcionamento sistêmico do psiquismo humano. Para ele, a concepção de ser humano involuído gerava uma valoração negativa em relação às possibilidades ilimitadas de desenvolvimento. A sua defesa trouxe uma visão mais complexa sobre tal problemática, pois entendia os impedimentos orgânicos e/ou psíquicos não como barreiras intransponíveis, mas como possibilidades de desenvolvimento que se materializavam por vias alternativas. Por isso, as pessoas com deficiência deveriam ser compreendidas não por suas limitações, mas por suas potencialidades (VIGOTSKI, 1997).
O trabalho de Vigotski, apesar de não desconsiderar os componentes biológicos, voltouse, centralmente, para questões que envolvem as consequências e as produções sociais da deficiência. Ou seja: como ela era significada culturalmente. Sendo assim, para o autor, “[…] el niño cuyo desarrollo está complicado por el defecto no es simplemente un niño menos desarrollado que sus coetáneos normales, sino desarrollado de otro modo” (VIGOTSKI, 1997, p. 12). Para a Teoria Histórico-Cultural, o desenvolvimento psíquico resulta dos processos de significação que emergem nas relações interpessoais e que são convertidas ao plano intrapsíquico promovendo o desenvolvimento. Isso quer dizer que a forma como a deficiência é compreendida socialmente e o modo de inserção daquele que a possui nas práticas culturais alteram de forma radical suas possibilidades de desenvolvimento.
Partindo dessa linha de argumentação, pretendemos neste artigo compreender os sentidos produzidos por bailarinas cegas ou com baixa visão acerca do ofício da dança em seu processo de desenvolvimento. Discutimos parte dos resultados de uma pesquisa de doutorado (ALBARRÁN, 2017) intitulada O ofício da dança e a bailarina cega ou com baixa visão: um estudo a partir da perspectiva histórico-cultural. O trabalho investigativo foi construído a partir de entrevistas realizadas com bailarinas profissionais cegas ou com baixa visão, em uma companhia de dança brasileira voltada exclusivamente para esse público.
A TEORIA HISTÓRICO-CULTURAL E A DEFICIÊNCIA
Para o marxismo, base epistemológica da Teoria Histórico-Cultural, os órgãos do corpo humano vão além da sua constituição biológica, tornando-se órgãos sociais e assumindo características e funções que também são sociais:
É somente graças à riqueza objetivamente desenvolvida da essência humana que a riqueza da sensibilidade humana subjetiva é em parte cultivada, e é em parte criada, que o ouvido torna-se musical, que o olho percebe a beleza da forma, em resumo, que os sentidos tornam-se capazes de gozo humano, tornam-se sentidos que se confirmam como forças essenciais humanas (MARX, 2004, p. 12).
Assim, por exemplo, o olho e o ouvido humano não são apenas órgãos físicos, mas também sociais. Ou seja: tudo o que é cultural é social, uma vez que a cultura se configura como resultado da vida social do homem (PINO, 2000). Exatamente nesse sentido, a perda da visão ou da audição acarreta uma mudança em relação aos vínculos sociais, portanto, no modo de relacionar-se com o outro e com o meio (VYGOTSKI, 1997; VIGOTSKI, 2018). Isso quer dizer que as relações com o outro significam (positivamente ou negativamente) o corpo com deficiência (SOUZA, 2001). Assim, como advertimos anteriormente, são as práticas sociais e os modos de acesso à participação cultural de pessoas com deficiências que são responsáveis por calar (ou não) e excluir (ou não) a pessoa com deficiência. Em contextos sociais mais conservadores, como os que temos visto prevalecer atualmente, as pessoas com deficiência têm tido seus direitos restringidos, de modo não apenas a não valorizar as suas potencialidades, mas também apostando na segregação.1
No campo da deficiência visual2, interesse do nosso estudo, Vigotski (1997) surpreende ao assumir que se trata de um estado desenvolvimental normal e não patológico. Para fortalecer o seu argumento, o autor (1997) recupera os diferentes sentidos da deficiência visual ao longo da história humana: a mística, a biológica e a moderna. No período místico - que teve vigência na Antiguidade, na Idade Média e em parte da História Moderna -, os cegos eram vistos com superstição e respeito, embora a condição pessoal fosse considerada uma fatalidade. A tendência era de se considerar a pessoa cega mais vinculada ao mundo espiritual, pois acreditava-se que a cegueira trazia o desenvolvimento das forças místicas da alma - a ligação com o divino e a facilidade para desenvolver algum talento filosófico.
No século XVIII, a concepção sobre a deficiência visual muda; no lugar da perspectiva mística passou a ter destaque uma concepção apoiada nos saberes biomédicos valorizados na época. Essa compreensão inaugurou, especialmente na Europa, modelos estruturados de educação das crianças cegas, permitindo a elas o acesso - mesmo que precário - à cultura e à vida social (COSTA, 2019; VYGOTSKI, 1997). Já a concepção moderna sobre a cegueira dominou a psicologia da pessoa com deficiência visual. Como detalha Vigotski, esse período é marcado pela psicologia individual da personalidade, proposta por Alfred Adler (1870-1937), que destacou o papel da deficiência orgânica para a formação e o desenvolvimento da personalidade. Se, por um lado, o mundo antigo procurava as forças místicas na cegueira, por outro, a teoria moderna (ainda bastante influenciada pelas premissas biológicas) defendia a supremacia da compensação orgânica como forma de compreender o impacto da cegueira na vida da pessoa.
Adler orientou sua teoria da personalidade para o futuro, defendendo que a esfera social possui tanta importância para a psicologia quanto a dimensão psíquica. Entre as preocupações de Adler estavam as relações humanas em sociedade e como a pessoa vivia e se organizava nesse ambiente. Na sua teoria, a compensação da deficiência é um conceito central que se situa no âmbito de um “[...] equilíbrio/adequação/adaptação/acomodação do indivíduo ao meio” (DAINEZ, SMOLKA, 2014, p. 1999).
Nesse sentido, Adler (1967, 2003) traz a compensação no sentido de luta - luta pela adaptação ao meio, pela consideração social, pela equilibração da vida psíquica e harmonia da vida social -, como uma tendência que acontece em todos os indivíduos, sendo eles deficientes ou não, crianças ou adultos; um mecanismo que é mobilizado diante de uma dificuldade, um obstáculo, que resulta na atrofia ou no desvio do sentimento/senso de sociabilidade (DAINEZ, SMOLKA, 2014, p. 1999).
Nos seus primeiros estudos sobre deficiência, Vigotski (1997) concordava com Adler e considerava a sua ideia sobre compensação bastante oportuna. Porém, em textos da fase final da vida, optou por afastar-se dela, identificando que Adler analisava a compensação por um caráter genérico e automático - como se a reorganização psicológica tivesse um “[...] significado universal en cualquier desarrollo psíquico” (VYGOTSKI, 1997, p. 15). No caso dos cegos, essa crítica permitiu a Vigotski defender que a fonte central para a compensação na cegueira não estava no aperfeiçoamento do tato ou da audição, mas sim da participação linguagem, a saber: a ênfase na centralidade da linguagem - o trabalho com o signo e seu papel na formação do psiquismo -, bem como a experiência de comunicação. Assim, quando consideramos somente o aspecto biológico, poderíamos imaginar que o cego teria mais perdas em relação às possibilidades de desenvolvimento do que o surdo, por exemplo. Por outro lado, quando pensamos na centralidade do signo verbal para o desenvolvimento humano, no qual o plano social e cultural transforma o biológico, a surdez traz mais danos à constituição psíquica do que a cegueira. Nesse sentido, o cego encontra na linguagem amplas possibilidades de incorporação das experiências sociais e modos complexos de constituição do psiquismo: “La palabra vence a la ceguera” (VYGOTSKI, 1997, p. 108).
Para os autores da Teoria Histórico-Cultural, como Albarrán (2017) e Costa (2019), o desenvolvimento da pessoa com deficiência visual, tal como ocorre com o vidente, não se dá de maneira espontânea, pois o contexto sociocultural assume centralidade. Para Vigotski (1997), quando o cego encontra um lugar produtivo na vida, a cegueira não significa uma insuficiência e deixa de ser considerada um defeito. Para ele: “La educación social vencerá a la defectividad. Entonces, probablemente, no nos comprenderán cuando digamos de un niño ciego que es deficiente, sino que dirán de un ciego que es un ciego y de un sordo que es un sordo, y nada más” (VIGOTSKI, 1997, p. 82).
O autor enfatiza que a cegueira não se materializa apenas na ausência de visão, mas sim em um complexo processo de reestruturação do organismo e, consequentemente, da personalidade. Sendo assim, como explica Vigotski (1997, p. 99), “[...] a cegueira, ao criar uma nova e peculiar configuração da personalidade, origina novas forças, modifica as direções normais das funções, reestrutura e de forma criativa e organicamente a psique do homem”.
Por esses argumentos, a criança cega pensa que sua deficiência é um estado normal e não um problema. De fato, ela começa a sentir que possui uma diferença de forma indireta a partir das experiências sociais. A deficiência visual, portanto, não faz uma criança incapaz, mas a experiência social, por diversos mecanismos mediacionais, muitas vezes, a coloca no lugar de incapacidade. O conflito central se instala e se agudiza quando se considera que a deficiência traz dificuldades para que a criança possa inserir-se produtivamente no meio social. Há questões essenciais a serem discutidas quando nos referimos a esse público, especialmente quando tratamos das questões relacionadas ao desenvolvimento e à aprendizagem.
Como sinalizamos antes, o trabalho realizado por Vigotski não valoriza nem se conforma com quaisquer impossibilidades biológicas, reforçando que a deficiência não pode ser vista como um empecilho para o desenvolvimento. Vigotski (1997) vislumbra uma situação hipotética na qual existisse um país onde a cegueira não fosse percebida enquanto insuficiência: nesse local, ela não seria vista como um defeito, mas como uma forma peculiar de desenvolvimento. Isso porque os sentidos estão ligados à forma como compreendemos e estamos no mundo. As pessoas com deficiência visual vivenciam práticas sociais de formas diferenciadas - e não diferentes. Elas podem desenvolver-se plenamente, dentro de um transcurso pleno de aprendizagem e humanização. Entretanto, para que o desenvolvimento ocorra é preciso prover meios de promoção de tal processo, novos contextos mediacionais, os quais devem ser oferecidos para todo ser humano por meio da educação, do trabalho e da arte.
[...] es preciso eliminar la educación de los ciegos basada en el aislamento y la invalidez, y bordar el límite entre la escuela especial y la común: la educación del niño ciego debe ser organizada como la educación del niño capaz de un desarrollo normal; la educación debe convertir realmente al ciego en una persona normal, socialmente válida, y hacer desaparecer la palabra y el concepto de ‘deficiente’ en lo que concierne al ciego (VYGOTSKI, 1997, p. 112-113).
Importante considerar que neste artigo não adotamos o conceito de deficiência visual advindo do modelo biomédico, mas sim do modelo social. Enquanto o modelo biomédico cataloga a pessoa com deficiência visual enfatizando fatores biológicos e como alguém que não enxerga, o modelo social destaca que a sociedade é quem cria as barreiras sociais para a pessoa com deficiência, de modo que elas passem a enfrentar desvantagens para viver em sociedade (SASSAKI, 1997). Deve-se destacar também que o conceito biomédico de deficiência visual3 é complexo, de modo que as estratégias pedagógicas devem ser refletidas a partir de uma ampla gama de diversidades visuais dos sujeitos da aprendizagem.
Nesta pesquisa, optamos por ampliar as discussões sobre dança a partir da relação entre dança, deficiência e aprendizagem, ao investigar bailarinas com deficiência visual e baixa visão e seu processo de formação técnica. Nossa ideia é resgatar os sentidos produzidos pelas bailarinas sobre os recursos mediacionais utilizados para aprendizagem da dança clássica. O foco principal da análise é explorar as questões relacionadas às especificidades técnicas desenvolvidas pela professora e pelas bailarinas na aprendizagem do ofício, o que nos leva a compreender melhor a relação estabelecida entre inclusão social, arte e desenvolvimento.
A dança das bailarinas com deficiência visual: delimitação do estudo
Na Teoria Histórico-Cultural, assume-se que a arte é um dos elementos transformadores de rotas subjetivas (VIGOTSKI, 1998), em razão dos processos emocionais e imaginativos que ela mobiliza em cada pessoa por meio da catarse. Em relação à arte, Vigotski afirma que, por meio dela, podemos condensar a realidade e conhecer o mundo de maneira mais complexa e profunda, ampliando nossos modos de sentir e perceber o mundo.
Em razão de suas considerações, Vigotski trouxe importantes críticas à educação estética da época, que não valorizava a importância da vivência artística. Para ele, a arte atua no processo de humanização, constituindo o refinamento dos sentidos e da experiência humana (BARROCO; SUPERTI, 2014). Nas palavras de Vigotski (1999, p. 12), “[...] tudo consiste em que a arte sistematiza um campo inteiramente específico do psiquismo do homem social - precisamente o campo do seu sentimento”. Isso não seria diferente com as pessoas com deficiência, pois elas também são profundamente afetadas pelas vivências artísticas. Para Cordeiro et al. (2007), a interseção entre arte e deficiência é muito promissora, pois a criação artística é uma rica possibilidade para conhecer potencialidades sobre possibilidades da pessoa e da cultura.
Em um recorte das diversas expressões artísticas consideramos importante discutir, aqui, o papel da dança na vida da pessoa cega ou com baixa visão. Concordamos com Cazé e Oliveira (2008, p. 01) quando advogam que: “[...] o corpo cego, assim como qualquer outro corpo, possui uma história pessoal. Ele é constituído de movimento, pensamento, emoção, razão, sentimentos e sonhos, muitos sonhos”. Conforme as autoras, a única diferença é que o acesso a essas experiências ocorre por outras vias, devido às particularidades da visão, pois esse público pode encontrar na dança meios para construir uma história para além daquela do corpo considerado incapaz. Como aponta Albright (2012, p. 2), é importante considerar a situação que se agrava quando pensamos nas pessoas com deficiência:
[...] a dança profissional tem sido tradicionalmente estruturada por uma mentalidade exclusivista que projeta uma visão bitoladíssima de um bailarino branco, do sexo feminino, esbelto, de membros alongados, flexível e capaz (não deficiente).
A produção acadêmica que articula os temas dança e deficiência visual tem crescido entre as publicações brasileiras nas últimas décadas (FIGUEIREDO, TAVARES, VENÂNCIO, 1999a, 1999b; FRANCISCO, 2013; GOLIN, 2002; LIMA, ROCHA, 2010; PEREZ et al., 2013; ROCHA, LIMA, 2011, 2012; ROMÃO, 2011; SILVA, RIBEIRO, RABELO, 2008; VALLA, PORTO, TOLOCKA, 2006; ZANIBONI, RODRIGUES, 2013). Os estudos realizados, em grande parte, estão direcionados primordialmente para as habilidades motoras, espaciais e de locomoção que a dança proporciona para a pessoa com deficiência visual, além de aspectos sociais, psíquicos e do aumento da autoestima e da inclusão social.
Outros estudos discutem, além dos benefícios físicos, sociais e psíquicos da dança para a pessoa com deficiência visual, questões relativas à profissionalização. São estudos mais voltados para as questões sobre técnicas e especificidades da dança (ALMEIDA, 2012; BIANCHINI, 2011; FREIRE, 1999, 2000, 2004, 2005; MAYCA, 2008; MELO, 2010; MOTA, 2013). Bianchini (2011), por exemplo, detalha o processo de ensino-aprendizagem focalizando o desenvolvimento da técnica do balé clássico para pessoas com deficiência visual. Conforme a autora, o processo de ensino-aprendizagem ocorre por meio da propriocepção tátil, com explicações verbais e o compartilhamento de experiências entre as bailarinas.
Diante de abordagem similar sobre o assunto, quer seja: o ensino da técnica do balé, Melo (2010) explora a importância dos diferentes meios de se comunicar com os bailarinos com deficiência visual. Como parte fundamental da aprendizagem e da profissionalização, ela identifica três níveis de comunicação: o primeiro nível é a informação verbal - quando ocorre a explicação sobre o que acontecerá durante o ensaio -; o segundo ocorre quando a professora toca o corpo do aluno; e o terceiro se desenvolve quando os alunos tocam o corpo da professora para entender os movimentos a serem realizados.
Chamou nossa atenção a insuficiência de pesquisas que focalizam as narrativas dos próprios sujeitos cegos ou com baixa visão. Em nossa opinião, não os escutar traz limites para compreender como o domínio de uma técnica artística (como a dança clássica) transformou as suas trajetórias subjetivas. Buscando romper com essa lacuna investigativa, indagamos neste artigo: quais são as mediações pedagógicas - identificadas pelas bailarinas - como fundamentais para a aprendizagem da técnica da dança clássica? Nosso foco é analisar os processos mediacionais pedagógicos (comumente desenvolvidos pelo professor vidente) e como eles dão sentido (ou não) à aprendizagem da técnica.
METODOLOGIA
A presente investigação parte da composição de narrativas baseadas em entrevistas realizadas com bailarinas profissionais cegas e com baixa visão que fazem parte de uma companhia de dança clássica brasileira responsável pelo desenvolvimento de técnicas para este público.
As narrativas, tanto como objeto de investigação quanto como método de pesquisa, vêm ganhando, nos últimos tempos, espaço e relevância no campo dos estudos psicossociais. Segundo Oliveira (2012), as narrativas são importantes na canalização de experiências, na organização das memórias coletivas e na constituição da história social de comunidades. De modo geral, o narrar pode ser uma atividade tanto social quanto interpessoal ou pessoal, com possibilidades distintas de orientações epistemológicas. O narrar possibilita, conforme defende Oliveira (2012), recobrar fatos sociais, constituindo-se como “[...] uma atuação subjetiva que mobiliza posicionamentos pessoais e dinâmicas interpessoais”, pois “[...] narrativizar a experiência é mais que enunciar em primeira pessoa textos sociais; envolve sempre agregar à trama dos discursos um plus de sentido subjetivo” (OLIVEIRA, 2012, p. 370, grifos da autora).
Na construção dos dados narrativos, partimos das entrevistas em profundidade semiabertas, com perguntas semiestruturadas às participantes da pesquisa. Essa modalidade de entrevista, conforme Duarte (2012), permite mesclar a flexibilidade oferecida pela questão nãoestruturada com um roteiro de controle. Na entrevista semiaberta, as questões, bem como a ordem em que serão apresentadas, estão subordinadas ao pesquisador, sendo que cada questão pode ser aprofundada de acordo com a resposta do entrevistado.
Por meio de entrevistas com perguntas semiestruturadas, buscamos dialogar com as bailarinas de modo a resgatar os episódios do passado e do presente sobre a deficiência visual, a aprendizagem da técnica e o processo de profissionalização. Por meio dessas entrevistas, as bailarinas experimentaram uma das principais funções da produção de narrativas memorialísticas, qual seja: a experiência da alteridade. Conforme lembram Souza, Branco e Oliveira (2008, p. 368), “[...] ao assumir a posição de narrador do evento vivido, o sujeito necessita assumir uma posição de alteridade em relação à própria experiência”.
As entrevistas foram realizadas com 8 (oito) bailarinas profissionais, de 20-35 anos, com deficiência visual ou baixa visão durante um ano de pesquisa, em uma companhia de dança brasileira que existe desde o ano 1995 (ALBARRÁN, 2017). Nessa, são desenvolvidas técnicas específicas de dança para aquele público e são ofertados cursos de dança clássica, sapateado e a dança contemporânea. O trabalho investigativo envolveu várias etapas: a apresentação da pesquisa, a imersão no trabalho da instituição e a realização de três fases de entrevistas, bem como filmagem das aulas, ensaios e espetáculos.
Participaram do estudo as bailarinas descritas na tabela 01 que, por princípios éticos, tiveram seus nomes trocados visando resguardar suas identidades:
Nome fictício | Idade | Diagnóstico | Idade de ingresso na instituição pesquisada |
---|---|---|---|
Alina | 20 anos | Baixa visão congênita | 18 anos |
Alessandra | 23 anos | Baixa visão | 20 anos |
Marianela | 26 anos | Baixa visão | 16 anos |
Natália | 28 anos | Cegueira congênita | 10 anos |
Misty | 29 anos | Cegueira congênita | 12 anos |
Ana | 29 anos | Cegueira adquirida | 10 anos |
Polina | 31 anos | Cegueira congênita | 16 anos |
Encantada | 35 anos | Cegueira congênita | 30 anos |
Fonte: Elaboração dos autores, 2021.
Ao final da pesquisa, realizamos uma entrevista formal com a diretora da companhia de dança, nomeada aqui de Maria, para obter informações mais detalhadas sobre aspectos relacionados às bailarinas que apareceram ao longo da pesquisa, bem como especificidades técnicas.
ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS
Para este texto optamos por analisar as metodologias de aprendizagem, com foco na mediação instrumental, sígnica e pedagógica, que perpassam as dimensões da deficiência visual e da dança. Nossas análises estão dedicadas a discutir as técnicas e a formação profissional das bailarinas cegas ou com baixa visão, com principal atenção às mediações pedagógicas. Para tanto, dividimos as análises em três subeixos: a) os instrumentos mediacionais e o sentido de leveza; b) a imaginação e o lúdico como mediadores da aprendizagem; e c) o papel do outro na constituição de novos ciclos desenvolvimentais.
Os instrumentos mediacionais e o sentido de leveza
A técnica de ensino de Maria, hoje patenteado, surgiu de um trabalho que é realizado há quase 30 anos, resultando em técnicas especiais para o ensino da dança clássica para pessoas com deficiência visual. Maria explica que o método começou a ser desenvolvido com um grupo de crianças e adolescentes com deficiência visual de um colégio especial, no qual ela era voluntária. Ela narra um episódio específico, ocorrido logo nas primeiras aulas, e que foi determinante para a elaboração do método. Na ocasião, Maria precisou ensinar um passo no qual as meninas tinham que saltar e notou as dificuldades próprias de quem tem deficiência visual para compreender a ideia do salto.
Maria: [...] Eu falei para elas: ‘imaginem que vocês estão saltando fora e dentro de um balde’. Foi aí que uma das alunas levantou a mão e falou: ‘tia, mas o que é um balde? Eu nunca vi!’. Foi neste momento que eu percebi o quanto eu precisava entrar no mundo do cego, entender suas limitações e suas dificuldades, para que depois eu pudesse apresentar o meu mundo da dança clássica, que era o que eu estava disposta a ensinar.
Ao constatar que “precisava entrar no mundo do cego”, Maria percebeu que era necessário repensar as técnicas de ensino da dança clássica. Então, ela foi construindo um método próprio de ensino da dança clássica. Porém, ao contrário de outros professores mais tradicionais, Maria procurou soluções que levassem em conta as especificidades próprias daquelas pessoas, de modo a promover a inclusão das alunas no processo de aprendizado, a partir de uma abordagem e um método mais apropriado e inclusivo.
Maria: [...] Elas dançavam sempre de mãos dadas ou de mãos na cintura, ou de mãos na saia, e um dia eu pensei até em desistir, porque eu falei que nunca ia conseguir torná-las bailarinas completas, que elas sempre iam dançar limitadas e que elas não conseguiam entender a leveza que uma bailarina tem que ter ao dançar [...] Aí, uma noite, eu sonhei que eu dançava e eu não tinha braços, que os meus braços eram duas folhas de palmeira. E se você vê o vento batendo na folha de palmeira, é exatamente o mesmo movimento que uma bailarina tem com a suavidade dos braços. Eu acordei e falei: ‘preciso de folhas de palmeira para levar para o balé!
Misty e Polina narram os primeiros contatos com as folhas de palmeira. Misty comenta: “Então, a bailarina, ela tem que ter firmeza da cintura pra baixo, mas da cintura para cima, ela tem que ser leve. Os braços têm que ser muito leves, muito suaves. Eu mesma, quando eu entrei no balé, eu tinha os braços bem duros e bem pesados”. Polina narra: “a Maria, ela trabalhou com a gente com folhas de palmeira. Ela colocava as folhas no nosso braço assim, todo aqui [ela mostra o antebraço], e fazia o movimento para irmos sentindo como a folha de palmeira se movimentava”.
Na análise desses dados, notamos que as folhas de palmeira foram um recurso didático, um instrumento mediacional que permitiu o desenvolvimento da ideia de leveza - um conceito abstrato representado pelos movimentos superiores do corpo. Sem as palmeiras não era possível explicar o conceito que Maria precisava explorar com as suas bailarinas.
Há dois aspectos interessantes para discutir aqui:
1) a centralidade da função do instrumento na aquisição da aprendizagem.
Para Vigotski, o uso de instrumentos e dos signos são dois processos que mantêm relações estruturais e genéticas e que, por mais que tenham especificidades, não podem ser tratados como categorias distintas e independentes, pois é da união desses dois sistemas (dupla mediação) que se constitui a especificidade do ser humano. Por meio da mediação técnica (a folha de palmeira), as bailarinas foram capazes de aprender novos elementos na sua relação com o meio, ampliando e transformando aspectos de sua própria forma de agir e de se compreender no mundo. Observamos o surgimento de novas habilidades na organização do corpo para atingir objetivos instrucionais fundamentais para a técnica do balé. O domínio da técnica, a ideia de leveza, está, portanto, diretamente ligada ao domínio do próprio instrumento em relação ao corpo. Assim, a pessoa passa a se organizar a partir de um conjunto de recursos externos (o instrumento: a palmeira) dirigidos ao domínio de processos psicológicos próprios internos e externos. Particularmente sobre o instrumento, Vigotski (1987, p. 185) comenta: “[…] la herramienta técnica recrea toda la estructura de las operaciones laborales”.
2) o processo de conversão da significação do sentido de leveza pelo uso da palmeira.
Vigotski (2000, p. 24) estabelece a noção de lei geral do desenvolvimento, a saber: aquilo que inicialmente foi um meio de influência sobre os outros, posteriormente passa a ser sobre si. Ou seja: “[...] todo o desenvolvimento cultural passa por 3 estágios: em si, para os outros, para si”. Para Pino (1995, 2000), esse conceito dá margem a uma leitura mecanicista que rompe com o princípio dialético que orienta o pensamento de Vigotski. O autor explica que aquilo que é internalizado das relações sociais não se restringe à materialidade das coisas, mas a significação que é resultado dessa relação, que é de origem social. No caso das bailarinas, o que está em jogo é o sentido de leveza. E, aqui, precisamos chamar a atenção do leitor para uma contradição típica do pensamento dialético: o sentido de leveza é, ao mesmo tempo, único e indizível para cada bailarina, é também social e (com)partilhado por todas no processo de formação.
As folhas de palmeira foram fundamentais para aprendizagem da leveza dos braços - um dos aspectos apontados, por elas, como um dos mais difíceis de serem aprendidos. Natalia resume:
Então, como é que você vai ter leveza de algo que você nunca viu? O que é que é leveza para você? Então, assim, até as pessoas que já enxergam um pouco, ou que enxergam... elas têm uma facilidade de aprender. [...] Quando você já viu um corpo se movimentar no espaço, é muito mais fácil de você saber o que é que o professor está querendo. Então, por exemplo, eu nunca vi o braço de uma bailarina. Eu vou imaginar isso como? Não tem como imaginar. Eu preciso de exemplos práticos.
Como veremos adiante, um outro elemento importante na aprendizagem da dança clássica para pessoas com deficiência visual diz respeito aos recursos imaginativos e lúdicos.
A imaginação e o lúdico como mediadores da aprendizagem
Entre as integrantes mais antigas da companhia de dança pesquisada está Ana, que perdeu a visão aos nove anos. Ela recebeu o convite para começar a dançar quando tinha dez anos. Ana narra as experiências iniciais com a dança clássica.
Eu lembro muito das primeiras aulas, né?! Elas eram totalmente lúdicas, na verdade, era pura imaginação! A Maria falava que a bailarina era leve. Então, era para imaginarmos como se estivéssemos voando, né?! Então, assim, eu, na verdade, já vi algo voando; um pássaro, um avião. Eu já tinha noção do que era. Já as minhas amigas que nunca tiveram visão tinham um pouco de dificuldade em saber como era um pássaro voando, uma borboleta.
Os primeiros contatos que Ana teve com a dança partiram de elementos imaginativos propostos a partir da mediação da professora, por meio da linguagem. Ao imaginar, por exemplo, um pássaro ou avião voando, Ana encontrava nas imagens e nos sentidos, por elas, evocados, os elementos para compreender e aprender os movimentos.
Como a imaginação está ligada à produção de imagens (VIGOTSKI, 2009), é claro que para as crianças que foram videntes era mais fácil compreender o que a professora estava falando. Isso, entretanto, não quer dizer que as crianças cegas congênitas não imaginem. Costa (2019) evidencia o modo de configuração das atividades criadoras dessas crianças, mas ressalta que a maneira de configuração da atividade criadora é diferenciada, quando comparamos com as videntes.
Não é possível entender os recursos imaginativos e lúdicos sem a centralidade da participação da linguagem. Como explica Orrú (2012), a linguagem possibilita ao sujeito distanciarse da experiência imediata e ceder lugar para a imaginação. É por meio da linguagem que se constituem complexas formas do pensamento abstrato e generalizado. A palavra é, na concepção vigotskiana, a unidade da relação entre pensamento e linguagem, transformando todo o comportamento (VIGOTSKI, 2012).
Lira e Schlindwein (2008, p. 187), por sua vez, pontuam que a criança cega pode se “[...] apropriar das significações de seu meio e participar das práticas sociais, pois dispõe do instrumento necessário para isso - a linguagem”. Para as autoras, o homem pode transformar sua relação com o mundo a partir do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, de modo que se minimizem as limitações decorrentes da deficiência visual. Assim sendo, além das folhas de palmeira e da imaginação, outros elementos eram utilizados na aprendizagem da dança clássica, a saber: os recursos lúdicos.
Outra integrante bastante antiga na companhia e na pesquisa é Natália, que relata que a dança na infância, para ela, representava um momento lúdico. Ela conta: “Na verdade, para mim, tudo aquilo era uma grande diversão, assim, uma grande brincadeira!”. Natália explica que até mesmo os movimentos mais difíceis eram ensinados com o objetivo de que as crianças também pudessem se divertir nas aulas: “[...] a gente brincava mesmo assim, de, por exemplo, uma ficar forçando a perna da outra para melhorar a abertura. Então, às vezes, a gente realmente brincava disso!”.
O papel do outro na constituição de novos ciclos desenvolvimentais
Ao longo do trabalho, notamos que a mediação pedagógica, termo cunhado por Fontana 1996), possibilitou que as bailarinas conseguissem imaginar e compreender os movimentos e, com isso, atribuir novos sentidos a eles. Podemos dizer que Maria utilizou-se, em termos vigotskianos, de rotas alternativas (VYGOTSKI, 1997; VIGOTSKI, 2018) para o desenvolvimento das bailarinas, de modo que elas pudessem aprender e se profissionalizar na técnica da dança clássica. Para Vigotski (1997), a pessoa com deficiência encontra nessas rotas alternativas possibilidades para desenvolver-se, destacando-se novamente o papel do outro e dos recursos instrumentais e linguísticos nesse processo. Conforme dito anteriormente, por meio da linguagem, as bailarinas puderam imaginar elementos que se tornaram suportes na representação e desempenho técnico da dança; uma ação orientada pela professora que alargou a experiência imaginativa dessas bailarinas e viabilizou o próprio ensino da dança.
Toda esta discussão nos remete ao conceito de Zona de Desenvolvimento Proximal, a ZDP, de Vigotski (2007). Para o autor, a ZDP é a distância existente entre o nível de desenvolvimento real (solução dos problemas sem colaboração do outro) e o nível de desenvolvimento potencial - aquele que conseguimos alcançar com o apoio do outro e/ou de recursos instrumentais. A partir da relação entre professora-aluna e aluna-aluna, percebemos a importância das dinâmicas sociais para o desenvolvimento potencial das bailarinas cegas ou com baixa visão. Nos trechos narrados sobre o conceito de leveza, por exemplo, é possível verificar dois processos mediacionais que promovem o desenvolvimento potencial. Um deles é a mediação instrumental, que ocorre por meio das folhas de palmeira; o outro é a mediação pedagógica que mobiliza recursos imaginativos e lúdicos durante a aprendizagem. Tanto no primeiro caso, como no segundo, é a linguagem (com)partilhada o foco central do processo de construção do conhecimento.
Como explica Fontana (1996, p. 22), quando a criança encontra um conceito sistematizado desconhecido, ela procura a significação desse conceito a partir da aproximação com outros signos que ela já conhece - os quais já foram anteriormente criados e internalizados. Percebemos assim que, a partir dos recursos instrumentais e pedagógicos desenvolvidos pela professora, houve uma mudança na aprendizagem das bailarinas. Interessante notar que, depois de um tempo, por meio da internalização do sentido de leveza, as folhas de palmeira deixaram de ser necessárias. Desse modo, o outro assume o papel de apresentar ao sujeito uma dimensão do meio muito mais complexa do que a cotidiana, produzindo mudanças na sua trajetória de desenvolvimento. No caso das bailarinas, a experiência deslocada a partir do outro permitiu a elas aprenderem conteúdos novos sobre dança clássica.
Observamos, também, que os toques são necessários para o desenvolvimento da técnica e aquisição do aprendizado. Sobre isso, ressaltamos que Bianchini (2011), Cazé e Oliveira (2008), Golin (2002), entre outros, têm estudado o uso da propriocepção tátil para o ensino da dança para a pessoa com deficiência visual. Sobre isso, Maria explica que: “[...] as bailarinas vão tocando o meu corpo, sentindo o movimento e depois tentando reproduzir no próprio corpo delas. Então, no começo, elas aprendiam fácil o movimento das pernas, que é mais dinâmico [...] quanto mais elas puderem tocar e sentir o que você quer passar, melhor”. A bailarina Encantada conta que: “[...] a gente acaba ganhando mais experiência até do que uma pessoa que enxerga [...] a gente tira mais conhecimento do professor, a gente pergunta para o professor: ‘Professor, é para ficarmos com o corpo para tal lugar? O que que é preciso fazer?’. Aí, ele vai lá e mostra no corpo dele mesmo”. Em relação ao mesmo assunto, Alina comenta: “[...] a gente acaba prestando atenção nas coisas que as pessoas que enxergam não prestariam, entendeu?! A gente presta mais atenção no nosso corpo, nos passos realmente, porque as pessoas que enxergam têm essa mania de copiar, olhar a frente, olhar do lado e copiar. A gente não tem isso, então, a gente realmente aprende, entendeu?!”.
Além do toque, a equipe de professores também trabalha com comandos verbais e com outros comandos de base sonora como o estalar dos dedos, para explorar o sentido da audição. Maria explica que: “os comandos verbais, isso foi uma coisa que veio com o aprendizado, com muitos erros e acertos mesmo, né?! Então, hoje, os professores chegam e eles já sabem mais ou menos o que eles precisam fazer, mas tudo isso foi criado, tudo isso foi desenvolvido”. Alessandra, por exemplo, explica que a audição e os comandos verbais dos professores e dos bailarinos direcionam como uma bailarina cega ou com baixa visão deve se movimentar nas aulas, ensaios e apresentações. A diferença, porém, é que, enquanto o toque é articulado aos comandos verbais durante as aulas e ensaios, nas apresentações do grupo, apenas as informações verbais estão presentes, uma vez que a equipe de professoras orienta as bailarinas a partir das coxias. Durante as apresentações, o toque é utilizado apenas quando a bailarina dança com um bailarino. Além disso, antes das apresentações, as bailarinas são guiadas pela equipe técnica por todo o palco, para conhecerem antecipadamente o local em que irão se apresentar. Alessandra explica:
[...] como a pessoa não tem o sentido de enxergar, ela precisa apurar outro sentido, então não só o toque, a audição também e a concentração são primordiais. Por quê? Porque o toque é utilizado para você aprender a fazer o passo. Mas quando você está no palco, você não toca em ninguém, entendeu?! Então, quando você está dançando no palco, além da própria concepção que você tem que ter do corpo e do espaço, a concepção do espaço, você tem que estar com o ouvido apurado e atento ao que as pessoas estão falando para você, para você se ajeitar no palco e conseguir escutar a música. O toque é fundamental para o ensino, agora, para você dançar no palco, aí, os outros sentidos são mais importantes do que o toque em si.
A mesma opinião em relação ao toque e aos comandos verbais é compartilhada por Ana que relata: “[...] é através do toque que realmente a gente aprende, a gente sente como que é feito cada movimento. E a audição, a gente tem que estar sempre ligada, porque não só aqui, mas nos palcos, quando a gente está dançando, tem as pessoas falando ‘Ana, corpo para a direita, vai mais para frente’”.
Percebemos, a partir das experiências narradas pelas bailarinas, que a linguagem possibilita a elas uma aprendizagem bem-sucedida, uma vez que Maria encontra meios para que elas possam contar com o toque e com os comandos verbais durante as aulas, ensaios e apresentações. Assim, destacamos que vários recursos fazem parte da aprendizagem do balé; o toque e os comandos verbais durante as aulas, ensaios e apresentações são fundamentais. A professora utiliza, então, a linguagem verbal para os comandos verbais e, também, utiliza a linguagem não verbal - o toque e o estalar dos dedos - para instruir as bailarinas em relação aos movimentos a serem realizados. Assim, tanto nos comandos verbais quanto no aprendizado e no uso de comandos não verbais, o que está em questão é a participação do outro por meio da mediação pedagógica. Os bailarinos videntes, por exemplo, são profissionais importantes na companhia. E, todas as bailarinas ressaltaram o papel deles não apenas na condução - algo comum na dança clássica -, mas especialmente na parceria durante as aulas, ensaios e apresentações.
Marianela destaca o papel dos bailarinos, especialmente nos passos de dois, quando eles dançam com as bailarinas:
Quando a gente dança de casal, é muito mais fácil porque a gente se sente totalmente segura, porque eles estão ali, independentemente de qualquer coisa, a gente pode confiar que eles estão ali. Eles estão falando “mais para frente, mais para trás”. Mas, enfim, se a gente não tiver eles, se a gente estiver dançando uma coreografia mais de grupo, também tem as pessoas que ficam ao lado, nas coxias, assim, elas ficam falando, para frente, para trás, para o lado.
Cabe considerar que o contato com o outro na dança possibilita à pessoa com deficiência visual a percepção da imagem corporal e da relação com o espaço circundante. Para Cazé e Oliveira (2008), ao perceber o movimento de outro corpo, a pessoa com deficiência visual pode conhecer a si própria, expondo ideias por meio dos seus movimentos e do seu corpo, ganhando propriedade sobre parâmetros sensório motores. A segurança que as bailarinas percebem quando estão dançando com o apoio de um bailarino colabora, como explica Marianela, para que ela possa “confiar que eles estão ali”. A relação de confiança no aprendizado entre elas e os bailarinos e entre elas mesmas é fundamental. Interessante notar que as bailarinas cooperam entre si e incentivam o processo de ensino e aprendizagem como troca de conhecimento. Fontana (1996) ressalta que, a partir do aprendizado recíproco entre professores e alunos, é possível redimensionar os espaços do ensino e da aprendizagem. Quando essa tradicional barreira é quebrada, “[...] os espaços do ensinar, do aprender e do pesquisar” se redimensionam em um “[...] espaço do ensinar aprendendo, do aprender ensinando, do ensinar/aprender pesquisando, do pesquisar ensinando/aprendendo” (FONTANA, 1996, p. 170).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Teoria Histórico-Cultural confrontou a antiga psicologia de modo a possibilitar um olhar mais atento no que diz respeito a várias temáticas, entre elas, tudo o que envolve o desenvolvimento das pessoas com deficiência. A ideia de Vigotski baseava-se nos princípios da incapacidade profissional - seja um médico, um psicólogo ou um pedagogo - de prever até onde vai o desenvolvimento de uma pessoa, seja ela considerada normal (ou não). Como foi possível verificar nesta pesquisa, a aprendizagem da técnica da dança clássica mobilizou diferentes recursos psíquicos que, se não fossem acionados, não teriam como promover novos e potentes ciclos de desenvolvimento.
Por meio do instrumento, da linguagem e pela participação do outro, recursos mediacionais foram criados e aperfeiçoados para a aquisição e domínio de uma técnica artística. O que parecia impossível - dançar profissionalmente - passou a ser realidade para essas bailarinas, redimensionando por completo o sentido de suas vidas pelo trabalho.
O mais interessante é observar que tudo só foi possível porque o foco pedagógico estava no campo das potencialidades do desenvolvimento - não em suas limitações. Isso, contudo, não significou ignorar o fato de as bailarinas necessitarem de especificidades para aprender. Pelo contrário, o desafio partiu da identificação dessas particularidades para criação de rotas alternativas para o desenvolvimento de novas habilidades necessárias para a aprendizagem do ofício da dança clássica.
A deficiência não foi um fator limitante, mas algo a ser considerado na criação de estratégias pedagógicas que viabilizaram o aprendizado e o domínio da técnica. As folhas de palmeiras, os toques, os estalos de dedos, os bailarinos videntes, os professores, as colegas de palco etc., tudo fez parte de um conjunto de elementos pedagógicos que, em consonância, criam a atmosfera para a aprendizagem e domínio da técnica. O conceito de mediação pedagógica é central aqui, já que ele agrega a ideia de que o instrumento, o signo e o outro (seja o adulto ou outro parceiro) mobilizam de forma integrada a aprendizagem de conceitos, proporcionando o desenvolvimento de novos ciclos desenvolvimentais, em razão da mobilização de zonas proximais de desenvolvimento.
O percurso para a profissionalização foi longo e árduo. Isso é uma verdade para qualquer bailarina, seja ela vidente ou não. No caso das bailarinas pesquisadas, é importante salientar que muitas barreiras foram transpostas, particularmente, aquelas crenças pessoais concernentes à ideia de que elas próprias não seriam capazes de aprender. Sobre isso, certa vez, Vigotski (1997, p. 104) comentou que “[…] la ceguera pone a su portador en una posición social particular y difícil. El sentimiento de inferioridad, la inseguridad y la debilidad surgen como resultado de la valoración que el ciego hace de su posición”. Contudo, o acúmulo de aprendizagens até o domínio da técnica - o que leva bastante tempo - permitiu que as bailarinas atribuíssem novos sentidos aos próprios corpos e às possibilidades inusitadas de movimento. Tudo assumiu uma nova perspectiva, como pode ser visto nas narrativas destacadas neste artigo. Além disso, tornar-se profissional - o direito e o acesso ao trabalho - foi um outro ganho importantíssimo para suas trajetórias pessoais. Uma profissionalização “[…] no en sus formas humillantes, filantrópicas [...], sino en formas que respondan a la auténtica esencia del trabajo, la única capaz de crear para la personalidad la necesaria posición social (VYGOTSKI, 1997, p. 113). A única que verdadeiramente nos coloca com sentido produtivo e participativo na sociedade.