DE ONDE PARTIMOS: SITUAÇÃO MIGRATÓRIA NO BRASIL E QUESTÕES DE POLÍTICAS LINGUÍSTICAS DE ACOLHIMENTO
Estamos cada vez mais imersos em um mundo que se anuncia como globalizado, conectado, mundializado, em um crescente de fluxos: populacionais, das informações e das diversidades. Dentre esses fluxos, a mobilidade de pessoas vem se estabelecendo como fenômeno estruturante da contemporaneidade.
As causas para o intenso aumento das migrações contemporâneas são as mais diversas, noticiadas a todo tempo: crises políticas, perseguições religiosas, desastres naturais, interesses políticos, guerras e ameaças, todas elas sempre motivadas pelo instinto de sobrevivência em busca de melhores oportunidades de vida que não se vislumbram no lugar de origem, resultando em um fluxo intenso de pessoas no globo.
Em seu último relatório, “International Migration Report 2017”, a Organização das Nações Unidas (ONU) contabiliza que o número de migrantes internacionais em todo o mundo, até aquele momento, tenha chegado a cerca de 258 milhões, em contínuo crescimento; estima-se que o número de pessoas refugiadas e buscando asilo seja de 25,9 milhões1. Segundo as Organizações das Nações Unidas (ONU), estamos vivenciando um dos mais intensos fluxos migratórios da história da humanidade. No Brasil, de acordo com o Ministério da Justiça, a partir de extração de parte do banco de dados do Sistema de Tráfego Internacional - Módulo de Alertas e Restrições (STI-MAR), sob responsabilidade da Polícia Federal, o número de solicitações de refúgio, mesmo diante da pandemia, chegou a 3.0972, sem mencionar o recente guerra entre Rússia e Ucrânia.
A região da Associação dos Municípios da Região Carbonífera (AMREC)3 faz parte desse fenômeno migratório, visto o número de migrantes chegados à região e que modificam e impactam a realidade de suas cidades, em especial o fluxo migratório de haitianos e ganeses, sobressaindo-se entre os anos de 2014 a 2016, (no entanto, contínuo) e mais recentemente, se destacando o fluxo de venezuelanos. Estima-se que, em Criciúma, haja ao menos quatro mil haitianos, com residência fixa4, inicialmente atraídos pelas vagas do mercado de trabalho na indústria e construção civil, e que decidiram fazer da região seu lugar de recomeço.
Diante do cenário posto, se colocam diversos fenômenos sociais, culturais, linguísticos, econômicos, etc.; com tantas questões a considerar, propomo-nos aqui, refletir sobre o papel das políticas linguísticas no estabelecimento do acesso ao ensino-aprendizagem do português para migrantes advindos de cenários de crises, contexto que denominamos ensino-aprendizagem do Português como Língua de Acolhimento (PLAc), o qual parte fundamentalmente de uma prática pedagógica e teórica, que se pretende libertária. Refletiremos aqui o direito do aprendizado da língua majoritária do país para o qual se migra, em nosso caso, o Português, não negando, é claro, que as políticas linguísticas de promoção do ensino do português enquanto língua de acolhimento são apenas uma “parcela” das políticas públicas de integração desses migrantes.
A discussão que aqui se coloca, parte principalmente de reflexões baseadas em nossa história como pesquisadoras e práticas docentes no ensino da língua portuguesa a estrangeiros, devidamente sistematizadas e trabalhadas, com envergadura em Cortez (2018).
Para tais reflexões, apoiamo-nos em Bakthin (2006), Freire (2019), Grosso (2010), hooks (2017), Ruíz (1984) como forma de refletir sobre a promoção e ensino da língua portuguesa no contexto de acolhimento, com vistas a uma prática de ensino de língua que não perpetue colonialismos e opressões, mas sim, uma política linguística do ensino de PLAc inclusiva, neste mundo cada vez mais diásporico e multicultural.
DISCUSSÕES FUNDAMENTAIS JUNTO ÀS PRÁTICAS DE ENSINOAPRENDIZAGEM DE PLAC: POLÍTICAS DE MIGRAÇÃO, ACOLHIMENTO E LINGUÍSTICA, PODER DA LÍNGUA, CONCEPÇÃO DE LÍNGUA
Posicionamento diante do cenário
O cenário descrito que vem se avizinhando, de expansão de migrações forçadas e do diagnóstico da falta de políticas linguísticas de acolhimento para os migrantes que chegam em situação de vulnerabilidade, exige da sociedade, principalmente de seus órgãos de maior representatividade (Estado, Universidades, ONGs, etc.) uma postura de responsabilidade e respeito diante das novas circunstâncias multiculturais, de variedades étnicas e linguísticas.
Migrar é um fato histórico, inerente à vida humana, um direito de todo ser humano, garantido na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), documento no qual o Brasil é signatário, De acordo com a DUDH: residência, migração laboral, etc. Portal de Migração. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Governo Federal do Brasil. Disponível em: https://portaldeimigracao.mj.gov.br/pt/dados/microdados/1733obmigra/dados/microdados/401293-sti-mar Acesso em: 24 de mai. 2021.
Artigo 13°
1.Toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher a sua residência no interior de um Estado.
2.Toda a pessoa tem o direito de abandonar o país em que se encontra, incluindo o seu, e o direito de regressar ao seu país.
Além da afirmação dos direitos humanos no plano internacional global, no plano regional, o Brasil participa da Organização dos Estados Americanos (OEA) e ratificou em 1992 a Convenção Americana de Direitos Humanos, inserindo-o no Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humano e reafirmando seu compromisso com os Direitos Humanos. Com isso o Brasil afirmou um compromisso interno com os Direitos Humanos. De acordo com Cabral e Souza (2019):
A positivação dos direitos humanos no plano internacional incluiu a organização de mecanismos que garantissem a proteção e a efetivação dos direitos humanos, com atividades de monitoramento, assessoramento e fiscalização do cumprimento, pelos Estados, das normas internacionais de proteção aos direitos humanos (CABRAL e SOUZA, 2019).
Desse modo, embasado primordialmente pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual as línguas fazem parte (que deu origem a marcos legais como Declaração Universal dos Direitos Linguísticos5, Declaração Universal pela Diversidade Cultural6 (dos quais o Brasil é signatário) e a Carta Europeia das Línguas Regionais e Minoritárias7 que juntos, esses marcos, fortalecem a garantia dos direitos linguísticos) e mesmo com o avanço na legislação migratória no Brasil, com a aprovação da Lei de Migração nº. 13.445.4/2017, o país ainda se vê confrontado não apenas com a regulamentação das garantias de integração no âmbito jurídico, na tentativa de construção de um Estado mais democrático, como também se depara com o desafio de estabelecer políticas públicas que garantam os direitos de acolhida daqueles que chegam.
Importante evidenciar que as políticas públicas de migração e acolhimento mudam de acordo com interesses ideológicos e políticos de determinado contexto sócio-histórico e, apesar de termos avançado significativo durante o período democrático do Brasil, não podemos desconsiderar as mudanças no cenário político e econômico brasileiro que, desde 2019, vem demonstrando uma crescente, na qual determinada parcela da sociedade civil organizada e alas do Executivo e do Legislativo mais conservadoras defendem possíveis retrocessos a direitos humanos universais, já estabelecidos, como o direito humano de migrar. Em 2019, o próprio presidente da República Jair Messias Bolsonaro, depois de anunciar que o Brasil deixaria o Pacto Global de Migração da ONU, escreveu em uma de suas redes sociais:
Jamais recusaremos ajuda aos que precisam, mas a imigração não pode ser indiscriminada. É necessário (ter) critérios, buscando a melhor solução de acordo com a realidade de cada país. Se controlamos quem deixamos entrar em nossas casas, por que faríamos diferente com o nosso Brasil?", escreveu também que quem migrar para o país "deverá estar sujeito às nossas leis, regras e costumes, bem como deverá cantar nosso hino e respeitar nossa cultura (GZH ECONOMIA, 2019).
Embora tenhamos um avanço significativo nas últimas décadas a respeito da legislação migratória, discursos como esse, assumem especial importância no contexto sócio-histórico atual, marcado pela polarização política, corroborando com a construção de um sentimento coletivo de medo, desumanizando e criminalizando o migrante, deslocando o tema da migração internacional do debate de ordem social, com todas suas dimensões: política, econômica, religiosa, ambiental, trabalhista e demográfica para apenas uma condição de ameaça à segurança pública. De acordo com o filósofo polonês Zygmunt Bauman (2017, p. 84):
O efeito geral dessas e de outras acusações, depreciações e calúnias semelhantes (em geral, com pouco apoio nos fatos, se é que há algum) é, em primeiro lugar, a desumanização dos migrantes [...]. A desumanização abre caminho a exclusão da categoria de seres humanos legítimos, portadores de direitos, e leva, com nefastas consequências a passagem do tema da migração da esfera da ética para das ameaças à segurança, prevenção e punição do crime, criminalidade, defesa da ordem e, de modo geral, ao estado de emergência comumente associado à ameaça de agressão e hostilidades militares.
Essa estratégia de governança por meio da insegurança, acaba levantando muros e construindo discursos de exclusão, reforçando preconceitos e estereótipos em relação ao “estranho” que chega, deixando-o ainda mais vulnerável, ao passo que mascara os problemas de ordem social e econômicos do Estado (como distribuição desigual da riqueza, guerras, desemprego, precarização do trabalho, fome e degradação ambiental), depositando a culpa dessas preocupações nos que chegam e não na ingovernabilidade dos problemas que aqui já imperavam. Segundo Bauman (2017), essa batalha dos formadores de opinião pública (noticiários, manchetes, representantes políticos em suas redes sociais, etc.), desencadeia um verdadeiro “pânico moral” 8.
No entanto, demonstrações de firmeza de intenção, como no exemplo escolhido a seguir, das recentes declarações do governo atual brasileiro sobre o tema migração, na qual o presidente Bolsonaro afirma em seu twitter: “O Brasil é soberano para decidir se aceita ou não migrantes”. “Não ao pacto migratório.” (BOLSONARO, 2019), tem a função de persuadir seus simpatizantes que o governo está fazendo todo o possível, com agilidade e autoridade, conferindo-lhe a segurança. Bauman (2017) argumenta, a partir da declaração do presidente francês François Hollande, relatada no Huffington Post, mas que cabe a mesma intenção pelo presidente brasileiro:
Demonstrar a firmeza de sua intenção e a determinação de segui-la é [...] a função “manifesta” dessas exibições. Sua função “latente”, contudo, é bem o oposto: promover e suavizar o processo de “securitização” da multiplicidade de dores de cabeça e preocupações econômicas e sociais das pessoas, nascidas do ambiente de insegurança - gerado, por sua vez, pela fragilidade e cissiparidade da atual condição existencial. As visões mencionadas irão afinal criar atmosfera de um estado de emergência, de um inimigo à porta, de tramas e conspirações, em suma, de um país e também de nossos lares, que enfrentar o perigo mortal. Elas tendem a consumir consolidar os “de cima” firmemente no papel escudo providencial (“único, insubstituível?) Para evitar que catástrofes horrorosas se abatam sobre eles (BAUMAN, 2017, p.31).
Com tantas questões a considerar, no campo das políticas públicas de acolhimento, as políticas linguísticas de ensino-aprendizagem de Português como Língua de Acolhimento, construto fundamental desta reflexão, são elementos chaves para a inserção destes migrantes, indo para além do domínio de um novo idioma, compreendido apenas como um sistema de normas e sua estrutura. Quando partimos da concepção de língua(gem) de acolhimento (LA), estamos associando este movimento de ensino-aprendizagem a questões socioeconômicas e culturais, de combate à xenofobia e ao racismo, como também a questões de sobrevivência por meio da legalidade, acesso à saúde, educação e garantia do próprio direito de acesso à língua majoritária, bem como a manutenção das línguas que trazem em sua bagagem, constituintes de quem o são, associando assim, a práxis tal como no sentido freiriano (FREIRE, 2019), um agir e um refletir sobre o mundo a fim de modificá-lo.
Política de Acolhimento: inclusão e resistência
Deste modo, entendemos por linguagem a prática social, não se tratando apenas de um sistema de normas, um sistema estrutural ou apenas palavras a decorar, mas sim, palavras carregadas ideologicamente de significados dentro de dado contexto de uso. Como define Bakhtin (2006, p. 129):
A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema abstrato de formas linguísticas nem pela enunciação monológica isolada, nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações. A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua.
Sendo a linguagem este fenômeno social, histórico e ideológico como aponta Bakhtin (2006), passamos a existir a partir da linguagem que tudo significa. Somos seres constituídos de linguagem. Assim, ensinar uma língua passa a ser mais do que apresentar um sistema de língua a alguém, seu vocabulário e seus significados; discutir cultura dentro do processo de ensinar/aprender uma língua é mais do que registrar ou apontar diferenças comportamentais, de preferência ou de hábito. Ensinar uma língua trata-se de compreender o lugar de enunciação e colocar-se na posição do outro; oferecer artefatos para que o sujeito possa se postar no lugar da língua que aprende e vice-versa, enfim o exercício de alteridade no processo é tão significativo do que o próprio resultado da aprendizagem, levando a compreender mais proximamente o significado de determinada situação de comunicação. Ensinar/aprender língua trata-se de tomar consciência de si e do outro, perceber que a língua trata de certa visão de mundo, ancorada em valores nacionais e locais, em determinada religiosidade, contexto social, etc., perceber suas representações culturais em oposição a do outro, ter consciência do processo de alteridade. De acordo com a professora Zanini (2021)9:
Nas pessoas que vem de outros lugares, em que ou pela cor, ou pela vestimenta, pelos traços fenótipos, elas já estão marcadas, você já vê. Isso é muito forte! A gente pensar que, quando este individuo migra, migra uma construção históricosocial que ele traz, porque ele é alguém que, no seu país de origem, teve uma socialização que permitiu a ele se compreender como um ser social. Então, ele não começa a existir quando ele atravessa a fronteira para se tornar migrante, ele já era uma pessoa antes. Ele já era um ser pleno antes. [...] Isso está na migração. É esta subjetividade que migra.
Compreender o ensino de língua para os que chegam, muita vezes desassistidos pelo Estado, em condições de vulnerabilidade, por meio da concepção de língua de acolhimento, vai ao encontro da proposta de uma educação libertária de Freire (2019), uma vez que a premissa do ensino-aprendizagem de Língua de Acolhimento trata de muito mais do que uma simples aquisição de um sistema linguístico. Dentro do que poderíamos equiparar ao que Paulo Freire nomeou de “educação bancária”10, na qual “tudo o que os alunos precisam fazer é consumir a informação dada por um professor e ser capazes de memorizá-la e armazená-la” (hooks, 2017, p. 26), mas sim, um ensino de língua que problematiza o mundo a sua volta, proporcionando ao aprendente condições de agir de forma autônoma e crítica, por meio da língua, no país para o qual migra. Ao adquirir a língua, o sujeito é instigado ao engajamento crítico, trazendo para a consciência de que se familiarizar com o idioma é uma forma de exercer a mínima cidadania no Brasil igualitariamente, sendo a língua o acesso para a cidadania, estando aí sua função principal de acolhimento, sendo a consciência à prática um dos elementos de uma educação como prática de liberdade.
Dessa maneira, de acordo com a pesquisadora portuguesa Maria José dos Reis Grosso (2010), por definição, Língua de Acolhimento (LA) é a língua recebida como a Segunda Língua (L2), porém, no contexto de migração, sendo a língua majoritária do país para o qual se migra, no entanto, diferentemente do que se tem denominado ensino de Segunda Língua, ou seja, aquela que pode ser adquirida em contextos formais de aprendizagem, como a sala de aula, um intercâmbio em imersão, um interesse pessoal, etc. Para Grosso (2010, p.71) a proficiência na língua-alvo do país de acolhimento
[...] ultrapassa a motivação turística ou acadêmica, interliga-se à realidade socioeconômica e político-cultural em que se encontra. O conhecimento sociocultural, a competência sociolinguística são importantes no desenvolvimento da competência comunicativa e servem como base de debate e de diálogo para uma cidadania plena e consciente, aspecto fundamental na língua de acolhimento.
Língua de Acolhimento, em face do exposto, tem seu papel fundamental promover a integração social e responder a demandas de sobrevivência ao país para o qual se migrou, através de ajudas, trabalho, da consciência intercultural e das relações interpessoais dos refugiados à sociedade. É reconhecer no aprendizado da língua majoritária para o país no qual se migra, um lugar possível de uma educação libertadora, não se limitando à “língua do opressor”, como narra bell hooks (2017), em seu capítulo “A língua”, de Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. Após a leitura do poema de Adrienne Rich, a professora descreve que: https://www.youtube.com/watch?v=kZbd0zVW0SI&list=PL_heomuE0_s3v0BXRM9n_E5NtwzA2RHA&index=9&t=4330s Acesso em: 16 out. 2021.
De início, resisto a ideia da “língua do opressor”, certo de que esse conceito tem um potencial de enfraquecer aqueles entre nós que estão apenas aprendendo a falar, apenas aprendendo a tomar posse da língua como um território de nos transformamos em sujeitos (hooks, 2017, p. 224).
Política Linguística: ação contra a invisibilidade
No entanto, em contextos diásporicos, o acesso à língua majoritária ou de maior prestígio de um Estado-Nação torna-se o espaço possível para o exercício da autonomia e luta por direitos e, muitas vezes, caminho para saída da invisibilidade. Compreendemos que qualquer ação sobre a língua(guem) trata-se de uma ação política, e que, portanto, como toda ação política, possui um caráter eminentemente social, uma vez que as políticas linguísticas se realizam todo o tempo, no interior de uma comunidade linguística, frequentemente são nomeadas como tal, solvidas em outras políticas como as educacionais, culturais, de inclusão ou dentro dos posicionamentos dos falantes em suas eleições diárias, mas facilmente observáveis e nunca desassociadas do contexto social das relações humanas.
A maior parte das políticas linguísticas são realizadas sob outros nomes, embutidas dentro de outras políticas, de modo que podem ser imediatamente identificáveis. Isso não ocorre por um suposto secretismo dos agentes de políticas linguísticas - os Estados, por exemplo - mas porque as línguas e os seus usos estão conectados a todo o agir social do homem. (OLIVEIRA, 2016, p.382).
Por sua vez, a política linguística reflete as práticas sociais de sua época, de acordo com as ideologias, preocupações e interesses políticos do seu tempo e do espaço linguístico em questão. Assim, a língua está sempre com quem possui o poder. Se pensarmos as ações sobre a língua, pelo viés da política linguística, observaremos que por seu caráter eminentemente social, as políticas linguísticas fazem parte das práticas sociais humanas, em uma forte tensão de poder, desde sempre, não sendo diferente nos contextos de migração.
A exemplo de como aponta hooks (2017), na perspectiva histórica da língua inglesa para os escravizados e deslocados forçadamente aos Estados Unidos da América, para a qual, inclusive, pode-se traçar um paralelo com a história da escravização no Brasil e a língua portuguesa, para ambas, nesses contextos históricos, as políticas linguísticas refletiram-se traumáticas e como mecanismo de dominação, assumindo o papel da “língua do opressor”, como define hooks (2017), “transformada pelos opressores em tal, em um território que limita e define, a tornam uma arma capaz de envergonhar, humilhar, colonizar”.
Como descrever o que devem ter sentido os africanos, cujos laços mais profundos haviam sido sempre forjados do espaço de uma língua comum, mas foram transportados abruptamente para um mundo onde o próprio som de sua língua materna não tinha sentido? Imagino-os ouvindo inglês falado com a língua dos preços, mas também os imagino percebendo que essa língua teria de ser adquirida, tomada, reclamada como espaço de resistência. Imagino que foi feliz no momento em que perceberam que a língua do opressor, confiscada e falada pelas línguas dos colonizados, poderia ser um espaço de formação de laços. Nesse reconhecimento reside a compreensão de que a intimidade poderia ser recuperada, que poderia ser formada uma cultura de resistência que possibilitaria o resgate do trauma da escravidão. Imagino, portanto, os africanos ouvindo inglês pela primeira vez como “a língua do opressor” e depois ouvindo-o outra vez como foco potencial de resistência. Aprender o inglês, aprenderam a falar a língua estrangeira, foi o modo pelo qual os africanos escravizados começavam a recuperar seu poder pessoal dentro de um contexto de dominação. (hooks, 2017, p. 225-226).
Como demostra hooks, essa língua, quando reclamada como “língua do opressor”, pelo viés de uma política linguística que entende a variedade linguística como um problema11, possibilitou invisibilizar esse escravizado, com a intenção de homogeneizar, unificar, proibindo outras línguas de serem usadas, com uma postura colonizadora e coibitiva que acreditava na impossibilidade de se gerir um Estado com multiplicidade de línguas, enfraquecendo qualquer tentativa de prática de liberdade e colonizando-os.
No entanto, quando essa língua é tomada no contexto diaspórico, como idioma comum possível, interpretada pelo viés das políticas linguísticas como Língua como Direito (RUÍZ, 1998), abre a possibilidade para políticas que garantam a defesa das línguas que trazem consigo os grupos migrantes, assim como, o acesso à língua que os circunda, desde perspectivas de relações locais, nacionais, transnacionais com enfoque na valorização e divulgação de línguas e culturas que chegam.
A garantia do direito às línguas por sua vez, pode proporcionar espaços para o surgimento de ações de política de acolhimento que valorizem a pluridiversidade em vários campos: na construção de conhecimento nas universidades, nas relações humanas, nas culturas estabelecidas ao redor do mundo, inclusive, no ramo da ciência da língua e ensino-aprendizagem das línguas, em favor dessas pluridiversidades.
Ruíz (1998) propõe uma mescla equilibrada dos dois conceitos de Língua como Problema e Língua como Direito, formulando a proposta de uma visão de Língua como Recurso, em que as preocupações com as línguas deixam de ser apenas registrar, organizar e apre(e)nder o código, mas passam a ocupar espaços de ligação cada vez maior, neste novo mundo globalizado, ou seja, o argumento reside em compreender que a diversidade linguística constitui um recurso a ser explorado social, política e economicamente pela sociedade.
Nesse sentido, garantir políticas linguísticas de acesso à língua majoritária, o entendimento do Português como Língua de Acolhimento dentro do contexto de migração, no qual a língua assume o papel de colaboração com a prática pedagógica, é além de garantir o direito à língua, é ocupar um lugar de resistência, torna-se poderoso mecanismo para a libertação, acesso à educação, tornando esses sujeitos agentes que operam e transformam o mundo.
PERCURSO QUE SEGUE: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tentamos brevemente discutir de modo ensaístico, as relações entre o estabelecimento de políticas públicas de acolhimento às migrações contemporâneas, nos limitando às políticas linguísticas para tal e suas relações com o conceito de PLAc. Diante disso, pudemos perceber que o ensino-aprendizagem de uma língua se relaciona com a identidade que constituímos, mas também pode ser campo de reflexão, debate por meio do qual pode-se, ao longo do aprendizado, problematizar desigualdades sociais (sobretudo de raça, classe) e desigualdades linguística (a língua padrão, a língua do falante nativo, as diversas variações linguísticas de estatutos diversos), sentidos na e pela língua que são relevantes para uma prática de ensino libertadora que não se centra apenas na estrutura da língua, por meio de suas normas e regras, mas uma língua viva, pela qual nos constituímos em oposição ao outro.
Deste modo, pensar políticas linguísticas que possibilitem o ensino-aprendizado da língua portuguesa, de forma que acolha de maneira digna estes migrantes que aqui chegam, para que se familiarizarem com o idioma, podendo, a partir daí, exercer a cidadania no Brasil igualitariamente, para que então, como sonham, possam buscar trabalho, inserindo-se em diversas práticas sociais: universidade, religião, relações para além dos seus núcleos de migração, integrando de fato a sociedade na qual estão inseridos.
No entanto, nos cabe ainda um imenso desafio de compreender e tomar consciência das implicações nas práticas pedagógicas de PLAc e da relevância de um planejamento linguístico estabelecido de acordo com as necessidades daqueles migrantes que chegam a um aprendizado “formal”. Lidar com o entendimento das diversas identidades em sala de aula, suas representações discursivas, pode favorecer a compreensão do entorno e também ser um facilitador do processo de aprendizagem da nova língua, menos doloroso e mais acolhedor. Por conseguinte, o ensino na perspectiva do PLAc, deve girar em torno de uma língua que acolha os diversos letramentos nos quais os sujeitos aprendizes estão imersos, bem como a pluralidade de suas línguas e identidades sociais, sendo a língua o acesso para a cidadania, estando aí sua função principal de acolhimento.
Vê-se aí a importância de compreender a concepção do ensino-aprendizagem do português na condição de acolhimento, pelo Estado (por meio das políticas públicas linguísticas de acolhimento) e pelo professor (por meio de uma formação que o prepare para a diferenciação de atuação entre o ensino de língua materna e língua de acolhimento e outros status), percebendo o ensino de português como língua de acolhimento, como uma prática educadora e não bancária, para que os aprendentes possam existir e agir no mundo por meio da língua, se inserindo de fato nas práticas sociais, entendo que o ensino-aprendizado da língua de acolhimento pode ser uma ferramenta poderosa para a mudança do status quo da realidade dos aprendentes, de acordo com hooks (2017, p. 86):
Quando nossa experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada a processos de auto recuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre a teoria e a prática. Com efeito, o que essa experiência mais evidencia é o elo entre as duas -um processo que, em última análise, é recíproco, onde uma capacita outra.
Assim sendo, o lugar teórico a partir das políticas linguísticas da língua de acolhimento assegura, entre tantos olhares, um olhar para a importância de vários atores na participação da construção de políticas públicas, das quais as políticas linguísticas devem fazer parte, para a melhor integração, de fato, de migrantes, para além de sua documentação ou inserção laboral, mas uma integração real, para que o ensino-aprendizagem da língua faça sentido, e, consequentemente, proporcione o agir no contexto social, para que possam, de forma autônoma, operar no mundo. Desta maneira, a língua reflete seu caráter de acolhimento, muito além da mera aquisição do sistema linguístico.
Para que isso ocorra, é necessário ampliarmos as discussões sobre as migrações contemporâneas, seus impactos locais e globais, bem como entender as diversas frentes de atuação da condição de acolhimento, inclusive a linguística, direcionando investimento para tal e fortalecendo a área de atuação, pesquisa e formação de PLAc.