INTRODUÇÃO
Seja no mundo físico (interação presencial), seja no virtual, (utilização de redes digitais), a base das relações humanas está na comunicação. Esse processo se refere à capacidade de interação entre duas ou mais pessoas, mediada por comportamentos não simbólicos e por comportamentos simbólicos (ROWLAND, 2011). Comunicação é uma necessidade humana e, ao mesmo tempo, um direito, conforme proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos proposta pela Assembleia Geral das Nações Unidas (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948). Inclusive, o Art. 19 garante a todos a liberdade de opinião e expressão.
À sociedade cabe desenvolver instrumentos culturais1 que derrubem ou minimizem barreiras impostas a pessoas com alguma deficiência e/ou transtorno que apresentem dificuldade em qualquer área. Esse conceito, conhecido também como compensação da deficiência (VIGOTSKI, 1997), é de suma importância para a construção de uma sociedade verdadeiramente inclusiva. Os instrumentos culturais podem favorecer a aprendizagem e o desenvolvimento das pessoas com deficiência, à medida que promovem maior interação com as outras pessoas, além de permitirem acesso a conteúdos socialmente relevantes. Nesse sentido, é natural que pessoas surdas usem a língua de sinais2 para conversar e que pessoas cegas utilizem as pontas dos dedos para ler usando o sistema braille3.
Alguns transtornos do neurodesenvolvimento, como a deficiência intelectual (DI) e o transtorno do espectro autista (TEA) podem ter como comorbidade prejuízos na articulação da palavra falada, apresentando-se de formas diferentes em cada pessoa, desde dificuldades leves na produção fonoarticulatória até a incapacidade de articulação dos sons da língua. Para essas pessoas, adotar meios de comunicação alternativa e ampliada (CAA) é tão importante quanto pessoas cegas usarem braile e pessoas surdas usarem língua de sinais.
Segundo Nunes (2003) CAA é um recurso da tecnologia assistiva que pode ser associado a expressões faciais, gestos manuais e movimentos que envolvem todo o corpo, cujo intuito é substituir a linguagem oralizada, comprometida ou ausente. Com esse objetivo são desenvolvidos recursos de alta ou baixa tecnologia, que consistem na combinação de símbolos gráficos (representações visuais, auditivas ou táteis), recursos (materiais utilizados para proporcionar a troca de mensagens), estratégias (como os recursos são utilizados na prática) e técnicas (maneira como a troca dialógica acontece, ressaltando a importância do parceiro de comunicação), com intuito de favorecer a efetivação de comunicação face a face por pessoas com necessidades complexas de comunicação (NCC)4.
Um recurso que vem conquistando espaço e ganhando visibilidade é o dispositivo gerador de fala (DGF). Uma de suas funções principais é associar palavras a imagens, produzindo fala digitalizada ou sintetizada (ABDALLA, COSTA, 2018; FONSECA, SCHIRMER, 2020).
Para pesquisadores (WADDINGTON et al., 2016; YONG et al., 2021), a vantagem no uso do DGF está associada à produção de saída de voz, o que faz com que as mensagens possam ser melhor compreendidas mesmo que o interlocutor não tenha treinamento algum no seu uso, promovendo maior socialização nos ambientes sociais dos seus usuários.
Esta pesquisa surge do interesse em investigar os efeitos e as contribuições do DGF para a comunicação de crianças com diagnóstico de TEA associado a NCC nos diferentes ambientes: familiar, terapêutico e escolar. Neste artigo, que é um recorte de uma pesquisa de doutorado, daremos ênfase à criança que foi acompanhada no ambiente escolar.
A questão norteadora da investigação foi: quais os efeitos do uso do dispositivo gerador de fala (DGF) na comunicação de crianças com TEA com NCC em situações lúdico-pedagógicas? Seus objetivos foram realizar uma introdução sobre uso dos DGF para a promoção da comunicação alternativa e verificar os efeitos do uso do DGF no comportamento comunicativo de uma criança com TEA no ambiente escolar.
MÉTODO
Esta pesquisa tem um delineamento quase experimental do tipo A-B (A: linha de base; B: intervenção). Esse delineamento preconiza a coleta de dados da variável dependente (VD), ou comportamento-alvo. Na fase A, os dados são coletados sob contingências naturais, de modo que não haja a intervenção do pesquisador. Na fase B, são implementados procedimentos de intervenção ou tratamento, sendo introduzido o uso de uma variável independente (VI) (NUNES, WALTER, 2014b).
Participante: os critérios de inclusão eram: ter entre 5 e 10 anos de idade; estar matriculada/o na rede de ensino da cidade do Rio de Janeiro; ter diagnóstico de TEA e apresentar necessidades complexas de comunicação. Os critérios de exclusão seriam a não assiduidade à escola e/ou a não autorização do responsável. Tivemos como participante o aluno Naoki, que tinha 9 anos na época em que a pesquisa foi iniciada e cursava o terceiro ano do ensino fundamental em uma escola vinculada a uma universidade pública.
Local: o acompanhamento do aluno ocorreu na sala de recursos multifuncionais (SRM), local em que acontece o atendimento educacional especializado (AEE); uma sala ampla, com janelas e ventiladores, arejada e estruturada com mesas, cadeiras, armários, estantes, livros, jogos e computador.
Equipamentos e materiais: aparelho iPhone®5 modelo XR, com câmera para filmar e fotografar; tripé de apoio para uso do aparelho; um iPad®6 9ª geração (2021), com tela tamanho 10.2”, com acesso à internet por Wi-Fi e 256GB de memória; aplicativo LetMe Talk: aplicação grátis de CAA7 (instalado no iPad®); livreto elaborado no powerpoint em tamanho A4, impresso, plastificado e encadernado, contendo as palavras essenciais e categorias presentes no aplicativo; cartaz em tamanho 0,60x1,00 contendo palavras essenciais e expressões sociais, para ser pendurado na parede da sala de aula. Todo o material elaborado foi construído com símbolos disponíveis gratuitamente no ARASAAC.8 Além disso, foram utilizados materiais e atividades lúdico-pedagógicas.
Instrumentos: foram utilizados os seguintes instrumentos, possibilitando montar um perfil da criança a ser atendida:
▪ entrevista semiestruturada: realizada com a/o responsável no início da pesquisa a fim de conhecermos melhor a criança. Continha perguntas como nome, idade, diagnóstico, acompanhamento multidisciplinar, interesse por recursos tecnológicos, uso de jogos e aplicativos, uso de recursos de CAA, autonomia com equipamento tecnológico e acesso à internet;
▪ escala CARS (childhood autism rating scale) (PEREIRA, 2007): utilizada para identificar o nível do acometimento do TEA;
▪ matriz de comunicação (ROWLAND, 2011): aplicada antes do início da linha de base e após a finalização das sessões de intervenção. O objetivo foi identificar o perfil comunicativo, ou seja, a maneira como a criança se comunicava. Aqui, optamos pela triangulação de respostas obtidas por três pessoas entrevistadas (responsável, professora da sala de aula comum, professora do AEE). Os encontros para a coleta das informações solicitadas para o preenchimento da matriz foram realizados através da plataforma Google Meet.9 As questões respondidas utilizam dois marcadores: emergente (quando a pessoa ainda precisa de auxílio para realizar o comportamento ou o faz de maneira pontual) e dominado (quando a pessoa já tem total autonomia sobre os seus atos);
▪ WhatsApp:10 utilizamos esse aplicativo de celular para compartilhar vídeos, fotografias, informações e esclarecer possíveis dúvidas sobre o andamento da pesquisa;
▪ diário de campo: caderno utilizado para anotações de observações e registros feitos pela pesquisadora acerca das sessões realizadas.
Variáveis: a variável independente (VI) consistiu no uso do DGF durante as atividades realizadas com o participante; as variáveis dependentes (VDs) consistiram nos comportamentos comunicativos observados na criança, sendo sua descrição baseada em Fernandes (2011):
▪ pedido de objeto: atos ou emissões usados para solicitar um objeto concreto desejado;
▪ pedido de ação: atos ou emissões usados para solicitar ao outro que execute uma ação, incluindo pedidos de ajuda e ações que envolvem outra pessoa ou outra pessoa e um objeto;
▪ rotina social compartilhada: atos ou emissões usados com o propósito de interagir, comentar ou para iniciar ou continuar uma atividade de interação;
▪ protesto: atos ou emissões (choro, manha, birra ou outro) usados para manifestar protesto (não necessariamente dirigida a objeto, evento ou pessoa) e/ou interromper uma ação indesejada. Inclui oposição de resistência à ação do outro e rejeição de objeto oferecido;
▪ reconhecimento do outro: atos ou emissões usados para obter a atenção do outro e para indicar o reconhecimento de sua presença. Inclui cumprimentos e chamados;
▪ nomear coisas, seres, objetos ou sentimentos: atos ou emissões usados com intuito de nomear um objeto ou evento por meio da sua identificação;
▪ não focalizada: qualquer emissão gestual ou sonora produzida sem que a criança esteja focando sua atenção em algum objeto ou pessoa;
▪ exploratória: atos envolvendo atividades de investigação/exploração de um objeto particular, de uma parte do corpo ou do outro.
Procedimentos gerais: a pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética e Pesquisa da instituição de ensino (parecer consubstanciado do CEP n. 5.139.299, com emenda aprovada pelo parecer n. 5.280.205). O participante foi selecionado por meio de amostragem por acessibilidade ou conveniência (GIL, 2016). Seu responsável e professores foram contatados pela pesquisadora. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi devidamente lido e assinado por todos; o participante assinou um termo de assentimento.
Procedimentos específicos: os procedimentos de pesquisa foram empregados em duas etapas. A linha de base e de intervenção somadas deram resultado total de 20 sessões, que ocorreram no ano de 2022, realizadas ao longo de 5 meses.
1. Linha de base. Foram feitas quatro sessões de linha de base, com encontros realizados uma vez por semana, com no mínimo 30 minutos de duração, a fim de verificar como o aluno se comunicava durante as atividades lúdico-pedagógicas propostas. O iPad® foi disponibilizado e programado para ficar ligado por 30 minutos ininterruptamente, sem que houvesse mediação sobre o seu uso. O material gravado foi coletado na SRM e acompanhado pela pesquisadora e pela professora do AEE.
2. Intervenção. A intervenção iniciou-se logo após a linha de base, sem intervalo entre as sessões, com um encontro por semana, num total de 16 sessões, com no mínimo 30 minutos de duração cada uma. Os mesmos procedimentos empregados na linha de base foram utilizados aqui, porém, nessa fase, a pesquisadora lançou mão da mediação e da técnica de modelagem, que consiste no ato de usar uma linguagem simples e apontar para os símbolos de CAA, de maneira que o usuário consiga perceber uma conexão entre os símbolos concretos — figuras, pictogramas — e símbolos abstratos, nesse caso, a palavra falada. Não é necessário limitar o uso dos símbolos às palavras ditas oralmente no contexto de uma frase, ou seja, não é preciso associar cada palavra falada a um pictograma. A professora do AEE aprendeu a manusear o recurso e, junto com a pesquisadora, também tinha autonomia para utilizá-lo durante o período em que estivessem com o aluno.
Foram utilizadas quatro estratégias naturalísticas de ensino (GOMES, NUNES, 2014), de modo que foram empregadas no arranjo ambiental, caracterizado pela organização física do ambiente. Os materiais pedagógicos selecionados para o dia da sessão ficavam à vista, porém não ao alcance da criança; ao contrário do iPad® que ficava sempre na sua frente com o app aberto e configurado para não desligar. Além disso, utilizamos: mando com CAA, estratégia presente quando a pesquisadora criava perguntas, tecia comentários ou fazia solicitações, simultaneamente falando e clicando nos símbolos disponíveis no DGF; modelo, suporte físico garantido pelo interlocutor, de maneira a mostrar ao aluno como fazer e espera, que consiste em aguardar de maneira silenciosa a resposta do aluno. Nesse caso, eram dadas também dicas verbais quando necessário.
Procedimentos de análise dos dados: todas as sessões (linha de base e intervenção) foram filmadas para posterior avaliação de dois avaliadores (pesquisadora e assistente de pesquisa). Os comportamentos relativos às VDs foram mensurados por meio de registros de eventos, ou seja, a pesquisadora selecionou os comportamentos que desejou observar e fez o controle de duas maneiras: informou o número absoluto de ocorrências (quantas vezes o comportamento aconteceu) e registrou a duração (cronometrando quanto tempo a criança permaneceu engajada) (FAGUNDES, 2017). Para analisar tais variáveis, foram considerados os dez primeiros minutos de cada sessão, divididos em intervalos de dois minutos.
A fim de verificar como se desenvolveu a rotina social compartilhada do aluno, mensuramos a duração dos comportamentos apresentados nos vídeos, de modo que registramos o intervalo de tempo entre o início e o final de cada ação relacionada a essa variável. Após análise e mensuração de todos os intervalos, a duração de cada um deles foi somada.
O percentual de duração foi obtido de acordo com a equação apresentada na Tabela 1:
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Fonte: Elaborada pelas autoras, 2023 (baseado em FAGUNDES, 2017)
Dessa maneira, foi possível averiguar, de modo preciso, se houve aumento ou diminuição de tal evento no decorrer do estudo, além da evolução apresentada pelo aluno em relação à sua rotina social.
Índice de concordância e fidedignidade: os vídeos do estudo foram analisados pela pesquisadora. Uma segunda observadora participou do processo, recebendo instruções sobre as definições dos comportamentos a serem observados e analisou de forma aleatória 25% das sessões de linha de base e intervenção (total de cinco sessões). Para o cálculo de concordância foi utilizada a fórmula a seguir (Tabela 2):
Após esse cálculo, a média do índice de fidedignidade entre os observadores da investigação foi de 89% de acordo entre eles.
RESULTADOS
Na avaliação da escala CARS (PEREIRA, 2007), Naoki alcançou um total de 52 pontos, correspondente, neste referencial de classificação, a um diagnóstico de autismo grave (acima de 37 pontos). Em nossas observações iniciais, encontramos uma criança carinhosa, parcialmente ativa, que não se comunicava pela fala, utilizava repertório restrito de gestos não-convencionais e vocalizações para sinalizar aquilo que desejava e o pictograma fazer xixi.
Em entrevista, seu responsável nos informou que o aluno usava Picture Exchange Communication System (PECS)11 há alguns anos no ambiente em que realizava terapias, reconhecendo alguns símbolos, principalmente os relacionados à comida. Em conversa pontual com esses profissionais, nos foi relatado que a criança construía pequenas frases; o que, teoricamente, corresponderia à fase IV do PECS. No entanto, em contexto escolar, observamos que o aluno reconhecia e utilizava apenas o símbolo fazer xixi, disposto em uma tira elaborada para organizar sua rotina escolar (Figura 1), confeccionada em uma pesquisa anterior a essa, da qual Naoki também participou.
As atividades12 (Tabela 3) foram pensadas pela pesquisadora e algumas foram sugeridas pela professora do AEE que o acompanhava.
Linha de base | |
Sessão | Materiais utilizados |
1 |
Massa de modelar e moldes de objetos, números e animais. Livro infantojuvenil: BLAND, Nick. O livro errado. Tradução: Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-book, 2014 |
2 |
Desenho livre (papel e giz de cera). Escrita espontânea no quadro (marcador para quadro branco). |
3 | Jogo: montando os números quebra cabeça de 1 ao 20. Fabricante: Brincadeira de criança. |
4 |
Massa de modelar. Jogo: bloco com letras em madeira |
Intervenção | |
5 |
Livro infantojuvenil: NÚMEROS: escreva e apague. São Paulo: Ciranda cultural, 2014. Massa de modelar. Moldes com números e animais. |
6 | Jogo quebra cabeça: associe números e frutas de 1 a 10 (20 peças). Fabricante: Pais & Filhos. |
7 |
Massa de modelar. Moldes com as letras do alfabeto. Jogo: blocos com letras em madeira. |
8 | Jogo: montando os números quebra cabeça de 1 ao 20. Fabricante: Brincadeira de criança. |
9 |
Massa de modelar. Moldes de alimentos (frutas) e animais. |
10 |
Jogo: maxiloto associação de imagens animais. Fabricante: Elka. Livro infantojuvenil: PICTHALL, Chez;GUNZI, Christiane (ed.). No zoológico: levante a aba para saber. Tradução: Paula Brandão Perez Mendes. São Paulo: Gaudí, 2012. |
11 |
Livro infantojuvenil: BLAND, Nick. O livro errado. Tradução Gilda de Aquino. São Paulo: Brinque-book, 2014. Massa de modelar. |
12 | Jogo: memórias educativas: sílabas. Brinquedos Carimbras. Massa de modelar. |
13 |
Jogo: toque e encontre. Fabricante: Babebi. Livro infantojuvenil: FRANÇA, Mary; FRANÇA, Eliardo. O bolo fofo. 2. ed. São Paulo: Ática, 1999. Massa de modelar. |
14 | Atividade sobre partes da planta (em papel A4). |
15 |
Jogo letras e animais App “Ler e contar” (Tablet SRM). |
16 |
Jogo quebra cabeça: associe números e frutas de 1 a 10 (20 peças). Fabricante: Pais & Filhos. Números em material EVA. |
17 | Jogo: alfabeto ilustrado. Escreva e apague. Fabricante: Babebi. App “ABC Autismo” (Tablet SRM). |
18 |
Livro infantojuvenil: SUPERJANELAS: ABC (Escolinha Todolivro). Blumenau: Todolivro, 2018. Jogo: bloco com letras em madeira. |
19 |
Papel A4 e giz de cera colorido. App “Forma palavras ABC” (Tablet SRM). |
20 | Coleção MUNDO LUME. Arco íris e pessoas. Fabricante: MUNDO LUME. |
Fonte: Elaborado pela primeira autora, 2023.
A matriz tem como objetivo evidenciar, através de um gráfico ilustrativo (BONOTTO, 2016; ROWLAND, 2011) denominado perfil comunicativo, como a pessoa se comunica e quais comportamentos utiliza para isso.
Rowland (2011) destaca que os seres humanos têm quatro razões para se comunicar: o desejo de rejeitar algo; de obter mais de algo, pedir algo ou fazer escolhas; intenção de conviver, demonstrar interesse ou afeto, com foco no social; por fim, desejo de obter ou fornecer informação, nesse caso para compartilhar ou conhecer algo ou alguém. O instrumento foi criado para avaliar o uso da comunicação funcional de uma pessoa envolvendo principalmente dois aspectos: por quais razões as pessoas se comunicam e quais comportamentos (Tabela 4) apresentam para isso.
Formas de se comunicar | |
Comportamentos pré-simbólicos ou não simbólicos | Comportamentos simbólicos |
Movimentos corporais Primeiros sons Expressões faciais Contato visual Gestos simples Gestos convencionais ou vocalizações |
Símbolos concretos (imagens, fotos, pictogramas, desenhos) Símbolos abstratos (palavra, braille, língua de sinais, vocalizadores) Linguagem (combinação de dois ou mais símbolos) |
Fonte: Rowland, 2011.
Os comportamentos, por sua vez, são distribuídos por sete níveis (estágios) de comunicação: comportamento pré-intencional e intencional, que expressam estados (sentimentos e desejos a partir da interpretação de um adulto); comunicação não convencional e convencional, os quais apontam o início da comunicação intencional, (a pessoa tem a intenção de fazer ou falar algo, mas ainda precisa da ajuda de um adulto); símbolos concretos, símbolos abstratos e linguagem, que é a comunicação intencional (a pessoa tem autonomia para utilizar símbolos concretos e/ou abstratos — ou suas combinações — para comunicar o que quiser).
A avaliação inicial de Naoki (Figura 2) apontou para a necessidade urgente de introduzir um recurso de CAA que o auxiliasse a se expressar em contexto escolar e em outros ambientes.
O resultado inicial da matriz mostrou uma criança que ainda apresentava, basicamente, comportamentos pré-simbólicos na sua comunicação. Os comportamentos da categoria pré-intencional e o intencional já haviam sido dominados, mas não superados e o comportamento não convencional ainda aparecia de maneira discreta, utilizado apenas para rejeitar ou solicitar objetos.
Nesse sentido, nosso foco foi potencializar o uso da comunicação tendo como recurso um iPad® com o aplicativo LetMe Talk: aplicação grátis de CAA, que associa aos símbolos um DGF. Na tela inicial, disponibilizamos as palavras essenciais propostas pelo Project Core13 (Figura 3), que podem ser utilizadas por seus usuários tanto de maneira isolada quanto em combinações para se expressarem; e pastas (dentro do próprio app) separadas por categorias (sentimentos, pessoas, escola, comida e expressões sociais).
Embora nosso enfoque tenha sido avaliar a utilização do DGF e preocupadas em manter uma forma de comunicação durante a nossa ausência, elaboramos um livreto como maneira de garantir seu acesso à comunicação em qualquer ambiente. Além disso, criamos um poster em tamanho 1,00m x 0,60m com as palavras essenciais, palavras acessórias e pequenas frases, para ficar exposto na sala de aula. Ficou combinado que a professora do AEE auxiliaria e mediaria o conhecimento de todos acerca do seu uso.
Durante as sessões de linha de base, o iPad® foi disponibilizado, porém o aluno não demonstrou interesse. Durante as sessões de intervenção, à medida que propúnhamos atividades e mediávamos o uso dos símbolos no display através do mando de CAA e da modelagem, percebemos interesse do aluno, observando que ele direcionava o olhar, ainda que não diretamente, para o recurso tecnológico.
Na modelagem, é importante dizer tudo de forma natural e oferecer oportunidade de utilizar os símbolos disponíveis, sem criar a expectativa de que a criança utilize o modelo de imediato (DORNEY, ERICKSON, 2019; GEIST, 2020).
Além disso, a cada pergunta ou comentário, aguardávamos uma resposta do aluno e/ou atribuíamos sentido a qualquer toque em algum símbolo, como por exemplo, em uma das sessões em que ele apertou o símbolo parar, questionamos: “Você quer parar a atividade?” Ele sorriu; em outra, ele clicou em dentro e apontou para a direção do peito, então validamos: “O que tem dentro de você? O que você está sentindo?” E ele começou a chorar, pois naquele dia estava se sentindo mal.
Durante as sessões, utilizávamos apenas o iPad® para apoiar nossa comunicação. O livreto (Figura 4) e o cartaz (Figura 5) foram deixados na escola como material de apoio. Ressaltamos que, ainda que não tenhamos identificado uso dos símbolos conforme orientado pelo PECS, mas validando o que a mãe relatou em entrevista e o fato de o aluno ter uma tira de CAA, alguns símbolos foram feitos de maneira que pudessem ser destacados.
Fonte: Elaborado pela primeira autora com auxílio do powerpoint e símbolos disponíveis no ARASAAC, 2022.
Durante o período de intervenção, observou-se avanço discreto, porém significativo, nas habilidades comunicativas do aluno. Os resultados demonstraram que o ato de apontar, que praticamente não existia, foi sendo desenvolvido, além disso, o aluno passou a conhecer e a utilizar mais os símbolos para se comunicar e o DGF contribuiu para que ele pudesse expressar de maneira oralizada desejos e sentimentos. A Figura 6 apresenta as seguintes conquistas:
O aluno progrediu e já passou a dominar fases antes apenas superadas (comportamento pré-intencional e comportamento intencional). Ele foi substituindo comportamentos considerados não-convencionais (por exemplo, puxar o braço para chamar atenção) por aspectos convencionais (como apontar); ou seja, características comunicativas antes não percebidas no nível 3 e 4 foram mediadas e favorecidas pelo processo de intervenção e, na situação atual, aparecem como dominadas. Observamos também que o nível cinco, antes totalmente em branco, aparece como emergente, enfatizando assim a importância de uma criança com NCC ter acesso a um recurso que favoreça sua comunicação.
Naoki tinha familiaridade com o iPad® e sabia que poderia colocá-lo na posição horizontal ou na vertical, preferindo essa última. Sua participação na rotina social e ao explorar os materiais oferecidos aumentou, ele passou a reconhecer e interagir mais com a pesquisadora e com a professora do AEE; sendo assim, ao observar a Figura 7, verifica-se, na linha ascendente, aumento de tais interações. Entretanto, o aluno não conseguiu avançar e usar o recurso para nomear coisas, tampouco para protestar, por exemplo.
Tal comportamento pode ser reiterado por meio da progressiva evolução da rotina social compartilhada entre aluno, professora do AEE e pesquisadora, de modo que o tempo de engajamento social foi aumentado. Oferecer atividades diversificadas (Tabela 3) com tempo curto de duração (começo, meio e fim), mesclando atividades de interesse do aluno (massa de modelar, por exemplo), estimulando e promovendo a troca contribuíram para que o tempo nesse engajamento fosse elevado (Figura 8).
Os dados apontados indicam uma ligação direta entre eles e, a partir disso, podemos afirmar que o fato de perceber e reconhecer no outro a possibilidade de ter com quem compartilhar e interagir, nesse caso, promoveu interesse e permanência nas atividades realizadas.
Nas sessões da intervenção, o aluno conseguiu manter-se engajado em boa parte do tempo, atingindo marca bem próxima de 100% em sete das 16 sessões. Esse foi, portanto, um dos maiores ganhos proporcionados ao aluno por meio da interação realizada com o DGF.
DISCUSSÃO: AUTISMO, CAA E DGF
Estudos apontam que 20 a 30% de crianças com TEA nunca irão desenvolver a fala, necessitando, portanto, de suporte de comunicação que as auxiliem em todos os processos da sua vida (MARYA, FRAMPTON, SCHILLINGSBURG, 2021; WADDINGTON et al, 2016). Walter (2017) afirma que as dificuldades de comunicação de crianças com TEA são relacionadas pelos professores como fator que favorece o fracasso escolar. Tais dificuldades podem ser caracterizadas por ausência de fala funcional, vocabulário restrito, ecolalia, além de falha ao responder ou fazer perguntas e solicitar algo desejado.
A fala é apenas uma das maneiras pelas quais nós, seres humanos, podemos nos comunicar; no entanto, não é o único modo de comunicação possível. Pesquisas têm demonstrado que quanto mais precoce o uso da CAA, maior a chance de a criança desenvolver comunicação e, portanto, de ser beneficiada (WALTER, 2017). É importante, inclusive, que pessoas envolvidas diretamente no processo de aprendizagem desse aluno, professores e pares, parceiros de comunicação, sejam formados de maneira que possam auxiliar, interagir e interpretar o que o usuário de CAA quiser expressar (BORGES, LOURENÇO, 2023).
Pesquisas apontam sucesso no uso da CAA por pessoas que apresentam NCC (TOGASHI, WALTER, 2016); os apps que possuem um DGF agregam possibilidade da visualização dos símbolos pictográficos associados a uma voz digitalizada ou sintetizada, com benefício de poderem ser customizados, ou seja, adequados ao perfil do seu usuário, favorecendo de maneira potencial a comunicação dessas pessoas (ABDALLA, COSTA, 2018; SCHIRMER, 2020; WENDT, 2017; XIN, LEONARD, 2015).
Além disso, celulares e tablets já fazem parte do nosso cotidiano, são multifuncionais, seu uso livre é intuitivo (sem necessidade de orientação formal), com acesso através de um simples toque na tela. São recursos cada vez mais presentes nos espaços sociais.
A exposição dos gráficos e a evolução do perfil comunicativo do aluno, confirmam estudos anteriores que ressaltam a importância de um recurso de CAA acessível e do uso de DGF como uma ferramenta potencial enquanto instrumento para favorecer a comunicação de crianças com diagnósticos e características semelhantes. No caso desse aluno, a matriz de comunicação foi importante instrumento para evidenciar conquistas promovidas pela intervenção proposta e principalmente no aumento do uso de símbolos concretos (a partir do material de apoio - Figuras 4 e 5), possibilitando, de maneira emergente, certa autonomia para solicitar, recusar e fazer escolhas, e a responder sim ou não para perguntas que lhe eram direcionadas.
CONCLUSÃO
Quando a escola assume o compromisso de promover um ambiente educacional democrático, lócus privilegiado de aprendizagem formal para todos, é fundamental fomentar estratégias e recursos que favoreçam a comunicação, pensando principalmente em alunos que precisam de um suporte diferenciado. Quando isso falha devido a deficiências ou transtornos do aluno, a comunicação é empobrecida, suas possibilidades de interação com o professor, colegas e demais pessoas da/na escola, bem como a tarefa de acessar os conteúdos acadêmicos, ficam extremamente comprometidas, o que contribui para o fracasso escolar.
Na ausência ou na dificuldade de comunicação se encontram igualmente diminuídas as possibilidades de expressão e de compreensão do mundo; nesse caso, diante de tantos recursos tecnológicos disponíveis e acessíveis de maneira gratuita por qualquer pessoa (bastando para isso ter um equipamento disponível), não se comunicar em qualquer ambiente, principalmente dentro dos espaços escolares, não é mais uma alternativa.
Considerando o conceito de compensação da deficiência (VIGOTSKI, 1997), é importante (in)formar-se e promover o acesso do professor para que ele possa adotar recursos e tecnologias conforme as descritas neste estudo, como maneira de possibilitar e dar suporte à comunicação de alunos com necessidades complexas nessa área, favorecendo, assim, a acessibilidade a conteúdos educacionais e da sua cultura. Para garantir o direito à educação e à comunicação, a escola precisa se especializar, cada vez mais, na arte de ultrapassar barreiras impostas. As tecnologias estão aí para auxiliar nessa conquista.