Introduzindo a questão
Em um texto publicado em 2004, Hans Ulrich Gumbrecht anunciava sua intenção de contribuir para a construção de uma “cultura da presença” - de retomada da dimensão da corporeidade e das experiências que só esta dimensão realiza - que pudesse servir de resposta ao que o autor entendia ser, no panorama das Humanidades, a hegemonia da “cultura do sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 9). E isso porque, estabelecida sob as bases de inúmeras dicotomias - espírito e matéria, mente e corpo, profundidade e superfície, significado e significante - a cultura do sentido, privilegiando os primeiros termos às custas da desconsideração dos segundos, acabaria por resultar no fenômeno que o autor denominou “perda do mundo”. Assim, sob declarada influência heideggeriana, Gumbrecht defende a necessidade para as Humanidades de se voltar à “coisidade do mundo”: de se considerar a presença das coisas (res extensa) que estão à nossa frente, que ocupam espaço, que são tangíveis aos nossos corpos, mas não “apreensíveis, exclusiva e necessariamente, por uma relação de sentido” (GUMBRECHT, 2010, p. 9). Insensata proposta: interessa ao autor a “presença daquilo que podemos experimentar, primordialmente, fora da linguagem.” Ou daquilo que, na linguagem, não é sentido, mas ritmo, vibração (GUMBRECHT, 2010, p. 9).
Gumbrecht decerto não ignora que nada nos está disponível de modo imediato: cabe, portanto, desde já essa ressalva quanto à persistência da máxima aristotélica, segundo a qual sensação e representação são, no composto humano, indissociáveis (Arist, DA, III, 7 e 8)1. O problema, comenta Eduardo Jardim no prefácio da edição brasileira da obra (GUMBRECHT, 2010), é a exigência interpretativa que nos acostumamos a introduzir nas experiências vividas. A insistência em decodificar, em interpretar, em isolar o significado, suspende o efeito que as coisas podem exercer sobre nós, atenua seu impacto sobre nosso corpo e nossos sentidos, reduzindo a experiência a uma significação mental. É este, sustenta Gumbrecht, o efeito da metafísica: atenuar o impacto da materialidade e, assim, da presença, pela tentativa de situar-se para além ou para aquém do físico. Nessa perspectiva, diz o autor, a metafísica é o que se opõe de forma sistemática à presença (GUMBRECHT, 2010, p. 14).
Se a questão está longe, porém, de se reduzir a uma querela acadêmica traduzida em crítica sistemática e “desconstrução” da tradição ocidental de pensamento, é porque ela diz respeito, muito mais amplamente, aos modos de ser - de ser humano tanto quanto de “ser sociedade” - que, sob essa égide, se moldaram ao longo da história, e que vêm sendo finalmente enfrentados por análises que põem a nu a face mais sombria da longa e vitoriosa trajetória da razão que as Luzes anunciaram. Não por acaso, essas análises - pós-estruturalismos, feminismos, teorias críticas da raça, estudos pós-coloniais e decoloniais - têm em comum a preocupação renovada com a corporeidade.
Pois é pela abstração da presença - pela sublimação do corpo, pela ideologia desencarnada de uma realidade “toda interior” que nada deve aos atos de supremacia da mente e suas objetivações, que as promessas igualitárias do projeto da razão moderna se impuseram. Mas, em todas essas suas múltiplas facetas, a “perda de mundo” é implicada por uma radical descorporalização, exigida pelo ideal de um conhecimento objetivo e infalível, subentendida no modelo de racionalidade dominante na Modernidade, operante nas práticas coloniais legitimadas pela pretensão universalista da cultura ocidental; mas ela é hoje acentuada pela revolução das tecnologias de informação e de comunicação (GUMBRECHT, 2010, p. 30).
Um aspecto específico dessa questão diz respeito à forma como se instituíram a partir dos tempos modernos a clivagem entre mente (ou alma) e corpo, e sua enorme e sub-reptícia influência sobre a prática da educação. A tendência a privilegiar a dimensão cognitiva do humano e, finalmente, a ela reduzir quase inteiramente sua formação (DO VALLE, 2002) foi decerto alimentada pelas concepções filosóficas da Modernidade, mas foi constantemente enfatizada pelas teorias educacionais até hoje influentes nos meios pedagógicos, além de sedimentada pelas limitações próprias ao modelo escolar instituído - que fazia depender o projeto de uma educação comum de uma exigência de uniformidade unicamente garantida pelos conteúdos didáticos. Eis como se pode descrever a emergência do “sujeito isolado” (DO VALLE, 2005) - tipo antropológico central que, encarnando as imagens de que se servem as práticas formativas, realiza na perda de seu corpo o submetimento, se não do abandono das dimensões da sensibilidade, dos afetos e do enraizamento social e histórico.
A simples constatação da fratura dos modelos educativos e a evidente inadequação dos esquemas mentais e dos conceitos antropológicos em vigor para lidar com as exigências da formação humana na atualidade deveriam indicar a necessidade imperiosa de crítica das definições antropológicas herdadas e de sua predileção por oposições tais como pensamento (consciência)/atividade (movimento), eu (individuação)/outro (socialização), interior/exterior, teoria x prática, razão x sensibilidade - clivagens que têm, todas elas, como ponto de origem e de confluência a oposição alma/corpo que na Antiguidade, sob influência platônica, se forjou, transformando-se em seguida em marca absoluta do pensamento ocidental. Ora ainda na Antiguidade se ergueu o primeiro movimento de resistência a essa dualidade, realizado por Aristóteles e sua fecunda teoria antropológica (DO VALLE, 2008).
Com efeito, na “teoria hilemorfista” que o filósofo elabora como crítica à antropologia de seu antigo mestre, o humano é definido como composto (sunolon) de soma e psique (Met., 1029, 2-5) cuja existência se realiza como movimento do devir (AUBRY, 2006, p. 118)2. Em contraposição ao paradigma do ser imutável, a noção de movimento introduz a possibilidade de se pensar o ser em sua encarnação, como ato de contínua autoalteração (DO VALLE, 2015). Contudo, situando-se, tal como afirma M. H. Gauthier-Muzellec (2007, p. 73)3, no entrecruzamento da “biologia, da psicologia, da física”, e ainda que se constituindo em uma “totalidade bastante complexa” (GAUTHIER-MUZELLEC, 2007, p. 73), a formulação aristotélica acaba por revelar, face às extraordinárias exigências de um mundo em completa transformação, seus limites.
Em que pesem as críticas formuladas aqui e ali na tradição filosófica no intento de superar a dicotomia sujeito-objeto/corpo/mundo, que teve como uma de suas mais grandiosas expressões as diversas correntes da fenomenologia, deve-se ao século XX a crítica epistêmica que, há mais de meio século já, se levantou do seio do pensamento europeu contra suas pretensões à validade universal4. Essa crítica foi, desde então, consideravelmente ampliada pela produção dos estudos pós- e de- coloniais, feministas, pelo perspectivismo antropológico; mais ainda, esse amplo movimento crítico, longe contudo de se limitar à sua origem acadêmica, se fez acompanhar por um militantismo ativo - eis que, antecipando a injunção de Bruno Latour, a teoria, até ali empenhada na identificação e na análise dos matters of fact, passou a investir-se nos matters of concern (LATOUR, 2004). Produziram-se, assim, e não cessam atualmente de ser produzidas teorias na primeira pessoa, estritamente ligadas a práticas sociais que, de toda parte, vêm quebrar a apatia política em que as sociedades contemporâneas mergulharam: e dos movimentos negro, feministas e de gênero, antirracismo, ecológicos, das lutas dos sem-terra e dos sem-teto emergem novos modos de ser, novas formas de pensar, de se representar e de se experimentar o humano.
Parece mais do que evidente que todas essas diferentes práticas têm em comum a crítica e o combate às sequelas deixadas por uma histórica dominação, urdida no próprio seio da tradição ocidental. Vale a pena, porém, sublinhar que, nelas, o abandono do discurso impessoal e (por vezes veladamente) dogmático que é parte atuante da herança das Luzes, tanto quanto a exigência de fazer-se presente traduzem-se pela necessidade de revalorização do corpo. Fazer-se corpo é, assim, uma injunção duplamente significada: como atitude intelectual, afirma a importância do testemunho do particular, da reflexão encarnada, da experiência sensível; como metáfora, alude ao enraizamento em uma história e uma cultura compartilhadas e, portanto, a uma militância.
Urgência
Isso não significa, evidentemente, lançar-se na aventura de um materialismo rudimentar que recusa a reflexão e a tradição filosófica, ou que a submete inteiramente ao que em nós é apenas organismo. Se descobrimos, por força dessas múltiplas formas de sermos humanos que a nós se apresentam hoje, que o corpo é, afinal, ambiguidade5, resta que dessa ambiguidade participe também aquilo que por vezes chamamos psique, por vezes subjetividade, por vezes desejo, intelecto ou vontade (ROMANO, 2019, p. 171).6 Por isso, longe de desconsiderar a contribuição clássica, parece evidente que uma das maneiras de honrá-la é hoje ir adiante, buscando mais uma vez elementos conceituais e teóricos que ajudem a enfrentar com alguma produtividade os profundos impasses que se apresentam a quem almeja entender a experiência que, como indivíduos e sociedade, fazemos do corpo.
Porém, se a questão supera em muito a simples busca de entendimento é porque, face às políticas instituídas ou anunciadas por um governo que faz da regressão ultraconservadora sua bandeira, ela se configura como urgência iminentemente política de enfrentamento das múltiplas ameaças que pesam hoje sobre a sociedade brasileira, e particularmente sobre todos os grupos que fazem corpo contra a intolerância, contra o racismo, enfim contra o que Achille Mbembé (2003) denominou necropolítica7. Não por acaso, o território privilegiado desse embate é claramente demarcado pelos insistentes e virulentos ataques desferidos contra a educação pública em todos os seus níveis.
Esses ataques se dão a partir de um duplo movimento: por um lado, pela asfixia financeira e pelas manobras indiretas que visam, ao que tudo indica, o desvio dos fundos públicos para instituições privadas, em grande parte religiosas; por outro lado, que aqui nos interessa mais de perto, pela tentativa de dominação ideológica, através da censura à formação ética e da imposição de valores ultraconservadores. É de se esperar que, insistindo em proibir qualquer menção a temáticas que levem em conta a diversidade étnica, cultural e social do país e suponham o respeito às diferenças de gênero, o governo multiplique iniciativas visando implementar um projeto de doutrinação que, sob pretexto de defesa da família, dos valores religiosos e do patriotismo, de fato exercite a intolerância em relação a tantos que não compartilham de suas convicções, justificando e naturalizando as práticas de desrespeito ao patrimônio ecológico, cultural, humanitário, de que depende a democracia.
É, pois, e mais do que nunca urgente que se possam instituir práticas de formação humana que engendrem em cada um dos que dela se beneficiam a capacidade de conviver produtivamente em uma sociedade democrática e plural. Isso exige, mais do que a inculcação de valores abstratos, venham eles de onde vierem, o exercício continuado e consciente de um modo de ser de respeito e de interesse pelos outros, a construção de uma curiosidade ativa em relação ao diverso, ao que não se conhece, e uma viva disposição de acolher a pluralidade que constitui nossa existência comum. Mas estaríamos em condições de prover essa formação?
Urge, portanto, recuperar o corpo, desfazendo o poder abstrativo e reducionista do ego incorpóreo da Modernidade, substituindo o formalismo da consciência pela comunicação sensorial sem a qual é impossível habitar o mundo, ou pensá-lo, como queria Kant, com o a priori da razão (STENGERS, 2007).
No entanto, o que se verifica, na atualidade, é a recrudescência de teorias e de práticas que reforçam as antigas clivagens, incubando novos e definitivos projetos de superação da corporeidade: por um lado, o vertiginoso desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação induziram a rápida disseminação de redes que, abolindo a exigência de proximidade e de simultaneidade, tornaram as antigas referências sensíveis obsoletas: os contatos, intercâmbios e relações passam a se dar entre sujeitos perfeitamente desencarnados, vivendo em “redes” qualificadas por força de uma pobre metáfora como “sociais”. Não por acaso, um dos mais entusiásticos defensores da chamada cibercultura comemorava, quando do início desse processo, a realização dos sonhos iluministas (LÉVY, 1998)8. Aplicadas à educação de forma não menos entusiástica e acríticas, as novas tecnologias replicam as piores consequências do cognitivismo, reduzindo irremediavelmente a formação humana à mera aprendizagem. Por outro lado, o não menos vertiginoso sucesso que as neurociências conhecem no campo social, em projetos terapêuticos e educacionais, em muitos casos implicam na introdução de um materialismo radical, à luz do qual diz-se que a corporeidade pode e deve ser reduzida a uma mecânica fisioquímica de um organismo cujos antigos enigmas estariam em vias de ser definitivamente desvendados.
De forma que, hoje, especialmente, deve-se lastimar que a escola pública moderna tenha se especializado nessa abordagem cognitivista da educação que, privilegiando a instrução em detrimento da tarefa de prover uma formação cultural mais ampla, concebe com facilidade que a ética possa se fazer objeto de um ensino puramente intelectual. Ora, ensinava Aristóteles, a ética é uma prática (Arist., EN, II, 3, 1105 a 29-31)9, mais exatamente uma hexis, um hábito, isso é, uma disposição que é adquirida por meio “do exercício e da repetição”, como lembra Pierre Rodrigo (2006, p. 7). É evidente, porém, que não se trata de uma repetição mecânica, de uma reação estereotipada que, suprimindo a reflexão, é fruto de puro adestramento. Pelo contrário: para que se possa realmente falar de formação, é preciso que ela venha acompanhada da exigência de um pensar sobre si e sobre o outro, de considerar sua prática à luz de uma comunidade - no caso, no mundo atual, forçosamente de uma comunidade cada vez mais ampla, mais diversa. A ética é hábito de autoquestionamento, é exigência de uma deliberação que não se realiza no foro íntimo, como uma intenção inconfessada ou um sentimento que jamais passa a ato. Por isso mesmo, a ética depende da convivência em uma comunidade de destino:
Num certo sentido, só há virtude na e pela instituição, uma vez que não pode haver humano fora da cidade, uma vez que a virtude é hexis proairetiké, disposição adquirida para a deliberação, e essa aquisição - que não deve suprimir a proaíresis, a deliberação e a escolha livre - é evidentemente aquisição “a partir de” e “mediante” o que é dado/imposto ao indivíduo pelo nomos da cidade. (CASTORIADIS, 1987, p. 293-294).
Mas, antes que se leiam as palavras de Castoriadis em um sentido com o qual não era evidentemente sua intenção marcá-las, deve-se observar que o nomos da cidade, longe de estar definido de uma vez por todas, é o verdadeiro objeto da instituição política de que a paideía democrática é parte essencial:
Em sua “Oração fúnebre”, Péricles mostra implicitamente a futilidade dos falsos dilemas que contaminam a filosofia política moderna e, de maneira geral, a mentalidade moderna: o “indivíduo” contra a “sociedade”, ou a “sociedade civil” contra o “Estado”. O objetivo da instituição da polis é, a seus olhos, a criação de um ser humano, o cidadão ateniense, que existe e vive na e pela unidade destes três elementos: o amor e a “prática” da beleza, o amor e a “prática” da sabedoria, o cuidado e a responsabilidade para com o bem público, a coletividade e a polis. (CASTORIADIS, 1987, p. 313).
Essa relação direta entre a socialização dos indivíduos e a construção da sociedade não é ignorada por nenhuma forma de regime: contudo, à diferença dos regimes autoritários, que daí implicam a necessidade de uma prática de proselitismo e doutrinação capaz de ser facilmente colocada em prática, nos regimes democráticos a questão da formação ética, estabelecendo a importância da abertura ao outro, é objeto de interrogação permanente.
A filosofia da educação frente à urgência: um corpo in-diferente?
Mas, estaria a filosofia da educação, ela também, preparada para enfrentar essa urgência, para pensar a partir dela, produzindo contribuições mais do que necessárias na atualidade? Dever-se-ia, se não por convicção, apenas por força do hábito, dizer que sim: afinal de contas, não foi assim que a questão se apresentou a nós pela tradição historiográfica: a emergência da filosofia, como prática social, coetânea à invenção da democracia, regime político que se apresentou a partir daí como modelo? (KÖNIG-PRALONG, 2019, p. 152) 10 Bem sabemos que, a partir daí e ao longo dos séculos depois, a longa marcha da razão em direção à emancipação, confundida como a própria “consciência filosófica do homem” (KÖNIG-PRALONG, 2019, p. 150)11, fez da cultura europeia a lídima herdeira desse momento inaugural que apenas prenunciava o que a Modernidade instalaria duravelmente: a conquista definitiva da racionalidade, a libertação da humanidade do jugo da religião, do dogma e das superstições (KÖNIG-PRALONG, 2019, p. 152)12.
Não há dúvidas de que o movimento intelectual e social que, no século XVIII, inflamou o velho continente, tomando, segundo as particularidades linguísticas e nacionais, a designação de Lumières, Enlightenment, Aufklärung ou Iluminismo, foi essencial para a luta contra as formas estabelecidas de dominação e para a afirmação de significações sociais como a autonomia, a liberdade, a igualdade, o respeito ao humano. E hoje, quando o obscurantismo religioso e o ultraconservadorismo voltam a travar batalha contra a razão e a ciência, buscando exercer um domínio absoluto sobre os indivíduos, pode-se bem aquilatar a importância das lutas empreendidas pelos modernos.
No entanto, nem tudo que se originou no período convergiu para esses valores: tanto quanto foi forte a reação a eles, foi implacável o uso a que se prestaram. Castoriadis analisava como o mesmo contexto social histórico havia dado origem a duas significações imaginárias sociais segundo ele “opostas e complementares”: o projeto de autonomia social e individual e o projeto de expansão ilimitada do domínio supostamente “racional”.13 Mas não foi - hélas! - apenas a firme oposição aberta pelo conservadorismo, aliado ao poder do capitalismo nascente, que desfigurou o sentido profundo do movimento emancipatório: também a arrogância intelectual contaminou desde o início a “consciência moderna”, que a partir daí se autoatribuiu a missão de educar todos povos que, diferentemente do continente europeu, ainda não haviam alcançado o estágio de aperfeiçoamento contínuo que só as Luzes podiam propiciar. Cabia-lhe, pois, como afirmou I. Kant, “dar leis a todos os outros” (KANT, 1994, p. 35).
Essa “concepção geopolítica” da filosofia, como a denomina Catherine König-Pralong, que serviu à legitimação dos impérios nascentes e à dominação econômica que se seguiu, realizou uma “dupla colonização intelectual”:
[...] a colonização do resto do mundo, objeto de missões científicas desde o século XVI, e a do passado, ou passados nacionais. A primeira acompanha a legitimação da superioridade sociocultural do Ocidente. A segunda deriva das concepções da modernidade. As duas são estreitamente imbricadas. (KÖNIG-PRALONG, 2019, p. 13)14
Assim, a “colônia filosófica” avançou na dominação do espaço e do tempo, consagrando a cultura europeia como o lugar natural da filosofia e da ciência e como o ápice do desenvolvimento humano em direção ao progresso. Eis como se constitui aquilo que Walter Mignolo denominou o “lado mais escuro da Modernidade” (MIGNOLO, 2017, p. 2): essa patente “contradição entre os ideais universalistas e as práticas discriminatórias” (DIOUF, 2017, p. 20) que está até hoje em ação e se pratica sob a forma paradoxal de um pensamento desencarnado.
Nessa “colônia”, o argumento político era o progresso da civilização; mas a motivação filosófica, que deu origem à metafísica, era a de que, para tratar de problemas que
[...] escapam às percepções [e cuja] compreensão transcende o senso comum, fruto da experiência sensorial... o homem deveria separar seu espírito dos sentidos, destacando-o, a uma só vez, do mundo tal como por eles é transmitido e das sensações - ou paixões - causadas pelos objetos sensíveis. (ARENDT, 1981, p. 32).
Eis, portanto, as origens ideológicas da saga da perda do mundo e do corpo, ela própria derivada de uma clivagem entre a condição de filósofo e a realidade do mundo fenomenal, como Arendt explicou: “o filósofo, na medida em que é filósofo e não (o que, evidentemente, ele também é) ‘um homem como você e eu’ se retira do mundo dos fenômenos...” (ARENDT, 1981, p. 32). Esse é o preço do pensamento que pretende se fazer universal: ele deve seguir o exigente movimento da abstração, que o indispõe contra tudo que define sua inserção no mundo dos seres que habitam um lugar, uma pele, uma história. Ora, a filosofia que assim se institui é o pensamento
[...] não do que se produz em um não-lugar, mas daquilo que, escrito desde um lugar, aparece como válido para todo lugar, sem exceção. As condições terrestres, materiais de produção do universal não parecem em nada determiná-lo. Lugares, rostos, corpos modelados pela filosofia são, assim, meros acidentes. (KISUKIDI, 2017, p. 53)
É, pois, a experiência da corporeidade que se encontra liminarmente abolida da prática do “filósofo na medida que é filósofo”: não visando senão o universal imanente, esse “apoio desde sempre oferecido à potência terrível do entendimento” (CASTORIADIS, 1987, p. 42-43)15, o filósofo faz como se pudesse de fato abstrair-se de toda materialidade, como se pudesse liberar-se da incômoda particularidade que finalmente o determina e o relembra que ele “nada mais é do que um homem [sic] como você e eu” (CASTORIADIS, 1987, p. 42-43). Porém, viu-se ao longo da história que o que deveria ser um artifício destinado a extinguir-se quando, de volta ao mundo dos fenômenos que havia abandonado, o filósofo devesse por fim se prestar, ele também, a essas atividades corriqueiras que definem o cotidiano dos seres que são multitude - o que deveria ser apenas uma escapada acaba por se tornar um modo de vida: modo de vida decerto fantasmático, mas não menos real em suas graves consequências. Não havendo em nenhuma parte um “mundo dos eleitos” (ARENDT, 1981, p. 32) nem um “corpo universal”, o filósofo apenas se ilude ao pensar que habita um corpo in-diferente, um corpo indiferente à realidade sensível: há muito já, as teorias críticas contemporâneas (pós-estruturalismos, feminismos, teorias críticas da raça, estudos pós- e decoloniais) derrubaram por terra essa pretensão:
O corpo do filósofo - por mais espiritualizado que ele seja - não é um corpo indiferente. Em uma palavra: ele é masculino, branco, burguês, europeu, habitante dos centros. É o corpo do dominante. (KISUKIDI, 2017, p. 54)
No entanto, a ruptura com esse modo de ser que influenciou tão duravelmente a cultura ocidental não é uma tarefa simples, pois ela implica, mais do que a mera admissão intelectual de um equívoco, ou retificação de visada epistemológica, a conversão de todo um modo de ser que definiu, pelo menos do século XVII até aqui, o “filósofo profissional”, sua formação, sua prática. Susan Bordo analisou como essa filosofia desencarnada, filosofia de “cabeças falantes”, realizou também a colonização do feminino, em sua “fuga para a objetividade” (BORDO, 1987, p. 3)16: ora a denegação dos afetos e da sensibilidade nada mais é do que adoção de uma “atitude anticultural” que se torna, do ponto de vista teórico, cada vez mais insustentável, ainda que esteja tão profundamente entranhada no fazer filosófico:
A atitude anticultural é profundamente enraizada na filosofia. Ela foi essencial para a concepção da disciplina como “supervisora da cultura”, capaz de, transcendendo a história, identificar uma sua “estrutura neutra” última, a partir da qual situar outros empreendimentos humanos ou descrever a realidade. Essa atitude se provou cada vez mais difícil de ser sustentada pela filosofia... A filosofia foi forçada a reconhecer que suas questões “permanentes” e suas preocupações “atemporais” são o produto de circunstâncias culturais muito particulares. (BORDO, 1987, p. 3)
Não sem razão, Bordo acrescenta que é preciso levar essa lição para a sala de aula, o que não se constitui em nada uma tarefa fácil: ao contrário, supõe uma verdadeira conversão das atitudes, das disposições, dos esquemas mentais, das representações que a área vem instituindo. Contudo, romper com a indiferença parece ser a exigência mais crucial da filosofia se ela pretende ser, de fato, uma prática de questionamento permanente das verdades da tribo - das tribos que povoam a sociedade, mas, antes de qualquer outra coisa, da tribo dos filósofos. E, isso, como bem assinalou Isabelle Stengers, ao criticar o “imenso orgulho” que está implicado na retórica da “defesa” dos outros, não para justiçar aqueles que foram historicamente dominados - nesse domínio, há tempos eles tomaram a palavra e a ação - mas para nos prevenir da completa inutilidade, da mais profunda infertilidade de nosso pensamento:
A maldição proferida contra a “tolerância” não procede de uma preocupação com a justiça. Não se trata de, referindo-me aos “outros”, defendê-los, como se suas práticas, que nós desqualificamos, tivessem necessidade de que nós, nós ainda, lhes façamos justiça. Trata-se ainda e sempre... da referência à ciência a ser construída... (STENGERS, 2017, p. 17)
“Novos” desafios para uma filosofia da educação
Coloca-se, assim, com especial agudeza, a questão da filosofia da educação a ser construída sob as bases das críticas que ecoam, precisamente, das sombras projetadas pelas Luzes da modernidade, e que revelam a face violenta de uma dominação que, na medida em que fez da educação seu instrumento privilegiado, foi naturalizada e interiorizada por aqueles que oprimia (MACEDO, 2016, p. 30)17.
À violência física do campo de batalha sucedeu a violência psicológica da sala de aula. Enquanto a brutalidade da primeira saltava aos olhos, a da segunda se vestia de boas intenções... (THIONG’O, 2011, p. 28)
Pois, tal como o movimento filosófico que lhe servia de base, a escola também contribuiu, ali onde se implantou, para a instalação desse “lado mais escuro da Modernidade” de que fala Walter Mignolo, operando a sistemática desconstrução da cultura dos povos colonizados, nativos das Américas, da África, da Ásia. Como observa Ngugi wa Thiong’o, o controle colonial se efetivou como uma dupla operação, na qual à destruição ou sistemática desvalorização da cultura dos colonizados respondia a glorificação incessante da língua e da cultura do colonizador (THIONG’O, 2011, p. 38-39) - em nosso caso, a sistemática desvalorização das culturas negras e ameríndias. Foi longo, portanto, o caminho daqueles que, sem voz e sem língua, sem cultura e sem lugar na geopolítica da dominação, empreenderam tomar em mãos o relato de sua história, na defesa de seu território:
O pessoal da FUNAI me deu uma rede muito grande de algodão, e todo tipo de roupas. Tudo isso me deixava muito feliz. Eu me dizia: “Por que não imitar os brancos e tornar-me um deles?” Eu já não desejava senão uma coisa: parecer-me com eles! [...] Muito mais tarde, eu cresci e tornei-me adulto... Voltando para a floresta, eu me disse: “Eu ainda sou jovem, no entanto conheço um pouco de português”. Nos primeiros tempos, Omama nos deu essa terra... Não devo protege-la? [...] Eu não sei falar com os brancos. Quando eu tento imitá-los, minhas palavras fogem e ou se embaraçam, mesmo se meu pensamento permanece de pé! Minha língua não estaria tão confusa se eu falasse aos meus! Mas, que importa!, como vocês não me escutam, eu vou tentar! Assim minhas palavras ficarão mais fortes e talvez um dia cheguem a inquietar os grandes homens dos brancos! (KOPENAWA; ALBERT, 2010, p. 510-512)
Não é possível, porém, deixar de mencionar este outro aspecto constitutivo da cultura escolar, que é a imposição de um ideal de nação, de família, de moralidade consistente com a ideologia dominante - e que alguns pretendem ressuscitar na atualidade brasileira. O pesado histórico da atuação educativa e, particularmente, da escola pública moderna não pode, contudo, servir de álibi para o abandono de sua causa. Como bem observa Stengers, o professor não é decerto culpado dos crimes cometidos em nome da pedagogia, mas ele é ainda “seu herdeiro”, e deve pensar e falar tendo em mente a multitude daqueles que jamais entenderam o que o ensino deles pretendia (STENGERS, 2017, p. 130), forçados a se submeter a uma lógica tão implacável quanto irrealizável.
Ainda aqui, a questão não se mostra nada simples: ela diz respeito ao sentido que a noção de formação comum pode ainda ter entre nós, hoje, quando sofremos o enorme contraste entre, por um lado, o que a sociedade deveras avançou na direção da crítica ao dogmatismo e da abertura à pluralidade e, por outro, as ameaças de recrudescimento do dogmatismo e da intolerância.
A filosofia da educação, não há como negar, é tributária das virtudes e dos males da “colônia filosófica” que a engendrou, tanto quanto é ativa protagonista do que em nome da educação para a Modernidade se praticou. Muito especialmente, no entanto, ela se vê confrontada à problemática que envolve a própria concepção de uma formação comum, que depende de redefinição do próprio conceito de “universal”.
Não existe exemplo concreto de uma abstração que possa pretender ser somente a encarnação dessa ideia abstrata, e nada mais. Não existe, pois, país que possa ser um modelo para um outro país, ainda que a concepção da modernidade como “recuperação do atraso” impunha justamente tais modelos. [...] Os conceitos universais da Modernidade política encontram conceitos, categorias, instituições e práticas que lhes preexistem, e através dos quais eles são diferentemente traduzidos e configurados. (CHAKRABARTY, 2009, p. 19-20)
Essa problemática impõe, inicialmente, o respeito e, mesmo, o cultivo da tensão entre a necessidade de uma representação que inspire e comunique o humano e as múltiplas formas de realmente encarná-lo. (CHAKRABARTY, 2009). Como bem propõe Judith Butler, não basta que aceitemos o limite de nossas representações antropológicas, que entendamos que elas são bem sucedidas ali mesmo onde fracassam, indicando-nos o que ainda está por descobrir, o que ainda nos falta no conhecimento da pluralidade de que é feito nosso mundo; é preciso, pois, que nossa representação do humano estampe claramente seu fracasso: “Há algo de irrepresentável que entretanto buscamos representar, e esse paradoxo deve ser preservado pela representação que fornecemos ao humano” (BUTLER, 2005, p. 178).
A natureza da teoria é falar a língua do conceito: refletindo sobre o humano, sua tarefa é “reencontrar no isto individual o que ultrapassa o indivíduo e nele representa o universal” (CASTORIADIS, 1987, p. 47); no entanto, ela se defronta constantemente com o fato de que o humano, tanto individual quanto coletivamente, é irredutível à linguagem do universal (CASTORIADIS, 1987, p. 47). Assim, o “fracasso” das tentativas de representar o humano são a vitória do pensamento da pluralidade contra as tentações do dogmatismo; de forma que, longe de pretender recusar o universal necessário à vida do pensamento, é preciso saber, a cada vez, expor seus limites, criticando incessantemente as noções correntes de universalidade. Para tanto, a autora propõe a estratégia do “não ainda” (not yet):
[...] aquilo que permanece “irrealizado” pelo universal o constitui essencialmente. O universal começa a se articular precisamente através de desafios à sua formulação existente, e este desafio emerge daqueles [indivíduos e grupos] que ele deixa a descoberto, que não têm direito de ocupar o lugar do “quem”, mas que, no entanto, exigem que o universal como tal os inclua. (BUTLER, 2002, p. 47)
Mas como contribuir para a formação de profissionais da educação dispostos a enfrentar o desafio cotidiano de colocar em dúvida suas certezas, e fazer-se disponíveis para este “não ainda” que é condição do próprio pensamento? Como fazê-lo de forma a que eles, por sua vez, possam formar indivíduos capazes de encarnar o que esta definição de Butler propõe? Sem qualquer dúvida, não por meio de ensinamentos teóricos, destinados a permanecer abstratos e vazios. Este é o grande equívoco com que se esbarraram, nas últimas décadas, os projetos de educação ética da escola pública brasileira: o esquecimento da lição de Aristóteles, de que a ética não é um conhecimento, mas uma prática.
Como se pode verificar, a questão assume aqui uma dupla dimensão: uma face propriamente epistemológica, que diz respeito à crítica de nosso fazer filosófico e outra relativa ao objeto desse fazer, que é a prática de formação humana. Dupla dimensão, mas uma só questão, profunda, múltipla, abrangente, que convocamos ao insistir na urgência de, em ambas as atividades, recuperarmos a corporeidade esquecida e voltarmos a estar - se é que algum dia de fato estivemos - presentes no mundo compartilhado, vastíssimo mundo da multiplicidade humana, compulsoriamente aproximado de nós por uma crise climática e civilizacional sem precedentes na história da humanidade, de que a filosofia se fez cúmplice (cf. DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO, 2017; VALENTIM, 2018).
O problema com que nos defrontamos é tratado com extraordinária destreza e ousadia por Bruno Latour, que demonstra, sob as luzes da mais estrita contemporaneidade, que o paradoxo da universalidade não é um problema lógico da mais alta importância senão por ser um problema político crucial, por ele definido como exigência de conciliação de “dois movimentos complementares que a modernização havia tornado contraditórios: se apegar a um solo, por um lado, se mundializar, por outro.” (LATOUR, 2017, p. 117)18
Querer fazer caber em fronteiras nacionais, regionais, étnicas, identitárias os seres que animam os territórios em luta que compõem o Terrestre não tem sentido; pretender esquivar-se dessas lutas de territórios para “passar a um nível global” e tomar a Terra “como um todo”, tampouco. (LATOUR, 2017, p. 118)
A proposta de Latour, coerente com seu pensamento, é a de que comecemos por dar a palavra a outros testemunhos, fazer valer outras experiências que somente elas poderão nos permitir reconstituir a intensa pluralidade de modos de ser a que o corpo no mundo dá acesso - ou, em suas palavras, de “retomar a descrição dos terrenos de vida tornados invisíveis” (LATOUR, 2017, 119).
O que fazer? Para começar, descrever. Como poderíamos agir politicamente sem ter inventoriado, esquadrinhado, medido, centímetro por centímetro, ilustração por ilustração, indivíduo por indivíduo, do que se compõe para nós o Terrestre? (LATOUR, 2017, p. 119)
A proposta de Latour não é demissão em relação à reflexão é, ao contrário, o de retomada dessa reflexão em acepção mais radical, inventiva, que é aquela capaz de responder, não às questões internas de uma prática voltada para seu umbigo conceitual, mas aos desafios de seu tempo (LATOUR, 2004, p. 232)19.
… Recuperar o corpo-mundo20
[...] Educados pelo conhecimento filosófico e científico, nós não temos qualquer dificuldade hoje em renunciar à nossa própria experiência ou em desvalorizar nosso próprio ponto de vista sobre o mundo para adotar o do “Eu-penso”. (STENGERS, 2017, p. 83)
“O que se faz com o corpo em sala de aula?” - pergunta bell hooks (1999, p. 145), observando não conseguir se lembrar dos corpos de seus professores e professoras: é como se eles não tivessem estado lá. Mas, como é apenas possível que do trato pedagógico tenha estado apartada esta dimensão imediata da presença? A resposta é evidente: na tradição do ambiente escolar moderno, o corpo é aquilo que, em benefício da potência da cognição, mas também da disciplina (FOUCAULT, 1975), deve ser calado em suas expressões próprias. Faz-se portanto do corpo um recurso, uma alavanca, um trampolim, um complexo de sensações que, treinadas e controladas, dão finalmente acesso às operações mentais mais sofisticadas - mas, até lá, porém, será preciso cuidar para que esse ineliminável ponto de apoio da aprendizagem não se transforme em empecilho. Porém, também em nome da socialização, busca-se acostumar o corpo a habitar o espaço comum de acordo com as regras preestabelecidas de convivência e de disciplina sobretudo no trato com os recém-chegados, a turbulenta imediatez deve ser neutralizada, de forma que, ali onde estava o ímpeto corpóreo seja, agora, a atenção e a disposição mental para a aquisição de novos hábitos e conhecimentos.
Mas, no ambiente escolar, a denegação do corpo responde também pela histórica recusa que marca essa instituição no tratamento de toda a complexa pluralidade que os corpos trazem inexoravelmente à tona no convívio diário: sexualidade, pertencimento de raça, gênero e religião... Mas, se hoje é urgente, e é “[...] crucial que aprendamos a entrar na sala de aula ‘inteiras’, e não como ‘espíritos descorporificados’” (hooks, 1999, p. 147), é porque, queira-se ou não, em nossa sociedade torna-se cada vez mais impossível continuar a ignorar sistematicamente a corporeidade sem que, ao invés de se controlarem, os conflitos explodam em sala de aula com ainda maior virulência.
Face a essa situação, as alternativas com que se defronta hoje a prática da educação comum são, ao que parece, apenas duas: a mais trabalhosa e difícil implica em transformar radicalmente a formação dos professores, preparando-os para enfim convocar sem medo a corporeidade para sua sala de aula; a mais rápida e seguramente a mais danosa é tentar introduzir, pela via da doutrinação e da censura institucionais, um improvável controle que, de fato, acarretará em enormes conflitos e substancial retrocesso para a educação e, assim, para sociedade brasileira. E isso porque
[...] a crítica da hegemonia do discurso ocidental é já antiga, mas sofre uma aceleração na atualidade, quando somos todos chamados a “[...] viver com os migrantes e outras multitudes que, à primeira vista, não são absolutamente dos nossos”. (MBEMBÉ; SARR, 2017, p. 10)
Cabe-nos, portanto, na condição de pesquisadores interessados e comprometidos com a formação humana e, mais particularmente, com a educação comum, refletir sobre as condições, os meios e as vias necessárias à tarefa da formação do professor capaz de integrar a corporeidade em sua prática docente. Uma parte essencial desta tarefa implica em proceder à crítica das representações antropológicas que vêm servindo de base à teoria e prática da educação, e a ela buscamos nos dedicar em nossas pesquisas há já algum tempo. Contudo, se a urgência que descrevemos como componente central de nossa atualidade nos impele a ir além da crítica à filosofia herdada e às clivagens que instituiu tão duravelmente, é porque parece ter chegado a hora de, ampliando o alcance dessa crítica, voltá-la para nosso próprio fazer filosófico. Para tanto, o ambiente intelectual nunca foi paradoxalmente mais propício: pois é quando as ameaças de retrocesso impostas pela ressurgência por toda parte da intolerância e do ódio mais se avolumam que a crítica à “colonialidade” (MIGNOLO, 2017, p. 2)21 da filosofia se faz mais difundida e profícua, e que numerosos trabalhos nos anunciam a enorme riqueza de modos de vida outros, que, instalados em culturas outras, nos convidam a pensar o multiverso (STENGERS, 2007).
Trata-se, então, de realizar um duplo movimento, indo e vindo em duas operações consecutivas e complementares: por um lado, seguindo o conselho de Dipesh Chakrabarty e aplicando-o ao campo específico de atuação que é o nosso, provincializar a filosofia da educação (CHAKABARTY, 2009, p. 22), isso é, reconhecer o caráter particular e histórico de conceitos, teorias e hábitos mentais que são o patrimônio dessa disciplina e que, tendo sido longamente apresentados como universais, devem agora se submeter a um sistemático controle que visa, longe de recusá-los, “criar uma produtiva tensão entre os gestos de pensamento que se situam em lugar nenhum e as maneiras particulares de estar no mundo” (CHAKABARTY, 2009, p. 28).
Por outro lado, e complementarmente, trata-se de abrir o discurso da filosofia da educação às dimensões do cosmos (STENGERS, 2007, p. 74)22 , isso é, justamente a essas “diversas maneiras possíveis de ser do mundo, de ser mundo, de fazer mundo” (MBEMBÉ; SARR, 2017, p. 7-8), tal como delas hoje testemunham aqueles e aquelas que aceitam
[...] retomar para si a tarefa essencial que não poderia ser delegada a outros - ler, escrever, decifrar, descodificar, desenhar e interrogar nossa época, bloqueando essas línguas (nossas e dos outros) nas quais nos falam palavras mudas; reabilitar, do próprio ato do pensamento, uma forma de errância que é condição da surpresa... (MBEMBE; SARR, 2017, p. 8-9).
Os dois movimentos, opostos, não são, evidentemente, isolados nem muito menos irreconciliáveis: a verificação sistemática da regionalidade do saber instituído e identificação de seus limites é condição para o questionamento da “diferença colonial” (MIGNOLO, 2013)23 e, assim, talvez, para a adoção de uma atitude de disponibilidade aos “mundos múltiplos e divergentes” que, por sua total estranheza, promovem o curto-circuito de nossas referências mais básicas e essenciais (VALENTIM, 2018). Mas deve-se convir que eles correspondem a um enorme desafio, que é o de nos estranharmos da “[...] colonialidade de nossa experiência de sentir, da æsthetika que até aqui nos definiu” (MIGNOLO, 2015, p. 32-33).
Nessa tarefa, somos, portanto, e mais do que nunca, sujeitos de uma investigação que nos visa como primeiros objetos da conversão que propõe. De forma que, também no que nos concerne, não é apenas a força do convencimento intelectual, da justeza conceitual que nos guiará. Será preciso fazer apelo a uma outra dimensão: porque não se trata apenas de produzir discursos críticos, mas de aprender, com uma “multiplicidade de gestos, de campos e de estilos que vão da música à dança, da arquitetura à fotografia e ao cinema” (MBEMBÉ; SARR, 2017, p. 11), com essas “artes do vivente” que se ilustram nas práticas da escritura, da criação, da interpretação e da imaginação, de quantos modos é possível ser humano, and yet (MBEMBÉ; SARR, 2017, p. 11).