A reflexão que ora proponho se insere num projeto maior que procuro desenvolver, de entender o processo de dissimulação do pensamento de Descartes pela tradição, esforçando-me para restituir-lhe o seu valor original 1 e, ao mesmo tempo, procurando nele descobrir elementos que possam incrementar o debate filosófico atual. Como se sabe, na linguagem comum e mesmo em certas apropriações universitárias da filosofia de Descartes, encontramos acepções que dissimulam, obstruem ou mesmo se opõem ao sentido original da sua formulação. Acredito que o estudo de um texto inacabado de Descartes e pouco lido hoje no Brasil - A busca da verdade - pode contribuir para essa tarefa; texto que, entretanto, na forma de diálogo pode ainda aprofundar a dimensão investigativa de sua filosofia. Dimensão essa, considero ser a que nos permite mais do que o sistema cartesiano aprender a proposta filosófica de Descartes.
Metodologicamente assumimos a noção de filósofo apresentada por Descartes na Sexta Parte do Discurso do método 2, o filósofo só está comprometido com a explicitação do seu próprio pensamento para agir. No entanto, uma das atividades mais ameaçadoras à atitude filosófica é a publicação. Ser autor é, de algum modo, prejudicar o exercício de pensar; ao sustentar teses e, principalmente, ao escrever livros, a reflexão já não se faz em sua total indeterminação. Ademais, a tradição se nutre do textual, principalmente naquilo em que ele encobre o sentido original do próprio pensamento. Para o pensador, a publicação só pode ser propriamente justificada por uma motivação exterior ao filosófico, ou seja, pela sua dimensão prática, pelos seus efeitos técnicos. É mister dizer que o filosófico, nos termos da Carta-Prefácio aos Princípios da Filosofia, não consiste na tradição (no que se inclui a do próprio Descartes), nem mesmo no texto do próprio Descartes, mas no esforço intransferível de explicitação do próprio pensamento. Descartes solicita que “os leitores nunca [lhe] atribuam opinião alguma se não a encontrarem em [seus] escritos”. Mas, acima de tudo, convida os seus leitores a serem filósofos: “não aceitem nenhuma [opinião] como verdadeira, nem os [seus] escritos nem alhures, se não a virem muito claramente ser deduzida dos verdadeiros princípios”. 3
Em termos parecidos podemos entender a inversão que procede A busca da verdade, em seu final; a menos estudada das três personagens, Poliandro, torna-se não só juiz de uma disputa entre Epistemão, representante das Escolas, e Eudoxo, representante do pensamento cartesiano, mas também toma para si a tarefa do filosofar:
Eudoxo: ...Para tanto, como posso opinar, cumpre deixar que só Poliandro fale. Uma vez que não segue nenhum juiz além do senso comum e uma vez que a sua razão não é corrompida por nenhum falso preconceito, dificilmente poderá ocorrer que seja enganado ou ao menos facilmente note isso e sem trabalho se reconduza à via. Por isso, ouçamo-no falar e deixemo-lo expor as coisas que ele próprio disse perceber que estavam contidas no nosso princípio.
Poliandro: Tantas são as coisas contidas na idéia de coisa pensante, que seriam necessários dias inteiros para explicá-las. Tratemos então agora das principais e das que servem para tornar a sua noção mais distinta e que fazem que menos sejam confundidas com aquelas que não lhe concernem. Entendo por coisa pensante... 4
Descartes quer fundar a Filosofia em toda extensão do termo fundar; para tanto, não basta simplesmente recorrer a expedientes de fundamentação lógica, como o faz Epistemão. Cumpre demolir o conhecimento tal como ele se apresenta -
Não conheço outro meio melhor para remediar essa situação do que lançar todo ele por terra e construir um novo, pois não quero ser como esses pequenos artesãos que se dedicam somente a reacomodar velhas obras, porque se sentem incapazes de empreender novas 5
- e recomeçar dos fundamentos, empresa que deve ser feita radicalmente, até mesmo no plano individual: cada um por si só. Nesse sentido, leva às últimas consequências todas as imagens da construção - que são recorrentes em sua obra -, inserindo todo aquele que quer filosofar na prática da própria recherche. A última parte de La recherche ilustra bem esse processo e como que articula a temática exortativa e fundadora, reafirmando as três teses que encontramos no terceiro parágrafo do seu Prólogo: o conhecimento é acessível a todos; como é de todos, não há glória pessoal alguma em encontrá-lo (teses protrépticas) e ele é encadeável (tese fundacional).
O filosófico no seu sentido pleno, de recherche enquanto tal, como que se encontraria, entre o protréptico - que convoca para o filosofar na medida em que essa atividade, que lida só com o pensamento, é possível, comunicável e comunitária (em outros termos, se define pelo uso da razão no sentido de logos) - e o fundacional, que encontra verdades e as encadeia. Essa condição intermediária é indissociável do filosófico enquanto tal, de modo que, se por um lado, a reiteração da exigência de pensar por si nunca é abolida, tal exigência tem um escopo, a verdade, por outro lado, o fundacional é mais do que fundamentador simplesmente, é sempre gerador e resistente a toda formalização.
A Filosofia é possível (um desígnio com sentido racionalmente válido) porque não se confunde com a Filosofia. É o paradoxo que encontramos no título de La recherche, pois se trata de uma “investigação para a busca da verdade pela luz natural, [...] pura, sem recorrer à Religião ou à Filosofia”. 6 (grifos nossos)
Ele pode ser entendido se considerarmos que aquilo que usa do nome “Filosofia” é, de fato, uma Anti-Filosofia, cujo sentido da atividade não reside no conhecimento, na recherche da verdade, mas na procura de honrarias, do reconhecimento dos pares, atividade própria de quem quer “atuar como reitor ou disputar nas escolas”. 7 Nesses termos, Descartes não quer afastar os que já reconhecem na Filosofia estabelecida uma Anti-Filosofia: “Receio somente que o título [Princípios da Filosofia] desencoraje muitos dos que [...] nutrem uma opinião desfavorável acerca da Filosofia, porque a que lhes foi ensinada não os satisfez”. 8
A Filosofia é comunicável, pois que o conhecimento e, sobretudo, o conhecimento verdadeiro o é. De sorte que quem o aprende o faz por inteiro. Não há espaço para o iniciático ou misterioso. Há desmistificação do conhecimento, mesmo uma criança pode ter acesso a ele:
No que eu não vos parecerei talvez estar muito falto de fundamento se vós considereis que, como só há uma verdade de cada coisa, todo aquele que a encontra sabe sobre tal coisa tanto quanto se pode saber ; e que, por exemplo, uma criança instruída em Aritmética, tendo feito uma adição seguindo suas regras, pode assegurar-se de ter encontrado, no que diz respeito à soma que examinava, tudo o que o espírito humano poderia encontrar. 9
Conhecimento que, enquanto tal, se for verdadeiro, é o mesmo para todos, pois é aquilo que cada um toma para si, atinge por si mesmo, pelo seu próprio pensamento, pela sua própria experiência. “O que experimentamos em nós mesmos [...são] essas coisas que o mais simples de todos os homens sabe de modo igual ao maior filósofo da Terra”. 10
A Filosofia é comunitária. O conhecimento não pertence a ninguém. A luta pelo reconhecimento da originalidade é vã. Nada é mais antigo do que a cogitatio, do que a mente e o seu tesouro. Descartes não persegue a originalidade autoral, seu propósito é alcançar originaridade. O originário nos abre o pensamento em toda a sua possibilidade, inclusive do tradicional e de tudo o que tenha a pretensão de originalidade.
Embora o imemorial constitua a própria tradição, Descartes àquele recorre para se contrapor a esta. Aceita, pois, que a autoridade seja concedida pela antiguidade, o que, entretanto, lhe permite aniquilar por dentro a posição dos que encontram guarida no tradicional, ao dizer justamente que a sua filosofia é a mais antiga de todas e, portanto, a mais tradicional, a ponto de assimilar mesmo o que funda as tradições, 11 paradoxo explicitado na Epístola ao Padre Dinet. 12
Todavia, o originário não pertence a ninguém. Ele é o próprio pensamento, que é de todos. Em carta, Descartes diz claramente a Beeckman que “ninguém pode arrogar-se proprietário da ciência”. 13
A Filosofia é comunitária, de direito, o conhecimento não pertence a ninguém e, de fato, o seu conhecimento, que é comum, sempre de certo modo houve. A ideia de que as verdades da Filosofia são de conhecimento comum, de que são conhecidas desde sempre, encontramo-na na Carta- Prefácio: “Mas, embora todas as verdades que estão entre meus princípios tenham sido sempre conhecidas por todo o mundo, 14 e na fala de Eudoxo: “Ora, os poucos progressos que fizemos nas ciências cujos princípios são certos e conhecidos de todos mostram que isso é verdadeiro”. 15
A ancianidade da mente funda a sua comunidade, na medida em que o patrimônio mental encontra-se para todos disponível desde sempre. Há uma relação direta entre a antiguidade e a própria ideia comunitária do bom senso, que é o mesmo em cada homem. Em La recherche Descartes usa o termo senso comum não no sentido em que aparece em outros textos, que recupera a noção escolástica de imaginação, mas como bom senso. 16 Assim, o sensus communis é comunitário não só no conceito, mas também no próprio nome. De sorte que estamos em face de um domínio radicalmente comum e imemorial, muito superior às características de antiguidade e de consenso do tradicional.
Diante desse quadro, como podemos entender o fato de que a Filosofia não emerge enquanto tal? Que lhe faz obstáculo? Por que a própria recherche é exigida? Por que devemos recorrer reiteradamente a expedientes catárticos da cogitatio, como o método e a dúvida? Donde provêm os falsos pensamentos (pensées) de La recherche que ocupam a cogitatio? Que nos faz perder a espontaneidade da cogitatio? Que força a nossa inteligência? Como Eudoxo o diz: “Mas não imagines que, para [...] saber, é necessário que nos crucifixemos e forcemos a nossa inteligência.” Que contraria o curso natural da nossa inteligência? Buscar “o gênero próximo ea diferença essencial pelos quais a verdadeira definição delas é composta”. 17 Mais precisamente falando: buscar uma definição para o que não cabe ser definido. Definir é um procedimento linguístico que, como tal, destitui a cogitatio de sua própria condição.
Como diz Poliandro, reconhecendo a distância que pode haver entre o dito e a cogitatio:
Se alguém então, por exemplo, diga que o corpo é substância corpórea e não indica, todavia, o que seja substância corpórea, estes dois vocábulos, substância corpórea, não nos tornam de modo algum mais sapientes do que a palavra corpo. Do mesmo modo, se alguém afirma que o vivo é um corpo animado e que não tenha explicado anteriormente o que seja corpo e o que seja animado, e isso não difere no que diz respeito a todos os outros graus metafísicos: certamente profere palavras e até mesmo de algum modo na mesma ordem, mas nada diz. Pois isso não significa nada que possa ser concebido e possa formar na nossa mente uma idéia clara e distinta. Ou melhor, quando disse que eu era um homem, para responder a tua interrogação, não dirigi o ânimo para todos os entes escolásticos que ignorava e sobre os quais nunca algo havia ouvido e que, como estimo, subsistem apenas na imaginação dos que os inventaram (grifos em negrito nossos). 18
Afora a metafísica que deve ser assumida na definição de homem sem que necessariamente dela se tenha consciência, o que nos impressiona nessa passagem é que a palavra pode nada dizer, nada significar e, enquanto tal, constitui um fator de encobrimento, de formação de falsos pensamentos. O ponto em questão é a materialidade da linguagem, o seu caráter corpóreo e mecânico. 19 Como a Quinta Parte do Discurso lembra: papagaios e autômatos falam, repetem palavras. A cogitatio que pretenda vir a ser cognitio não se deve perder no uso dos seus instrumentos, pois “quem deseja ir além do conhecimento vulgar, deve envergonhar-se de ir buscar razões de dúvida nas formas de falar, encontradas vulgarmente”. 20 O problema é tomar a sonoridade, ou a grafia, ou o traço que a palavra deixa no cérebro 21 (e constitui a materialidade da memória) pelo pensamento naquilo em que ele de fato apreende.
Esse velamento perpetrado pela linguagem corrobora os preconceitos de escola, cuja referência são as autoridades. Por outro lado, há os preconceitos naturais, 22 o que qualifica o nativismo cartesiano - a tese de que o horizonte do conhecimento surge na busca do estado originário da mente. Esse tipo de nativismo não é do homem; não é um retorno à infância ou a épocas primitivas. Embora aqueles que mais se aproximam da condição nativista pensada por Descartes não tenham frequentado as universidades, são eles letrados e habituados ao convívio social. Em A busca da verdade, quem representa esse tipo de homem, que tem menos preconceitos, é Poliandro. Mas ele é um cavalheiro, um homem da corte. A ingenuidade franca cartesiana não é idiotia, não é a recusa da experiência de nenhum modo de experiência. O nativismo é menos histórico ou psicológico que uma idéia regulativa, uma possibilidade lógica a ser buscada. A naturalidade da infância constitui mesmo grande óbice ao nativismo mental, como no seu comentário à Segunda Parte do Discurso bem assinala Gilson:
essas impressões [sensoriais] são tão mais fortes e invasivas quanto as necessidades do corpo sejam mais exigentes; elas atingem o seu maximum durante o período embrionário e sua importância decresce progressivamente à medida que, acabando o corpo sua formação, o pensamento torna-se mais capaz de pensar, não para viver, mas para pensar; [...] essas impressões são primeiro impressões de prazer e dor seguidas pelos “apetites” que as acompanham: desejo ou aversão; depois as sensações de menor caráter afetivo: odores, sabores, sons, cores, etc; nosso erro inicial consiste em exteriorizar espontaneamente nossas sensações, em virtude de seu caráter afetivo, e julgar que as coisas são em si mesmas em função de nossas necessidades. 23
Isso posto, há que se encontrar a condição mental nativista para que se adquira a espontaneidade originária da cogitatio. O trajeto da cogitatio-pensée em La recherche vai do plural ao singular, vai dos falsos pensamentos, dos preconceitos, passando pelos atos de pensamento, pelas cogitationes que querem anular a força dos falsos pensées, até La pensée, a cogitatio ela mesma. A cogitatio aparece no final, após o seu modo dubitativo ter descoberto a existência, no que o dubito revela a natureza imediata, experiencial, concreta e não reflexiva do cogito. O existo não exige ego como pressuposto lógico, mas o apreende diretamente. Como pergunta Eudoxo: “Vês certamente que podes duvidar com razão de todas as coisas [...] Mas, da tua dúvida podes acaso duvidar e, se duvidas ou não, podes manter-te duvidoso?”. 24 A certeza vem da própria orientação de preservar a intensidade da dúvida.
Quando duvido de tudo, não sei nada, atinjo a intensidade máxima da dúvida, pois que pensar que se duvida é seguir a dúvida como operação e já não plenamente duvidar; duvidar assim é esse modo de pensamento vazio, que neutraliza o mundo, que não representa nada, mas só apresenta, só exibe, e, por isso, me revela, no sentido mais originário. Ademais, se se quer duvidar de modo radical, não se pode duvidar de que se duvida, pois assim se duvidaria menos. Trata-se de o duvidar de todo se exibir como o existir desse duvidar. A dúvida aqui se torna o próprio ponto arquimediano, inconcusso, como diz Eudoxo: “A partir desta dúvida universal, como de um ponto fixo e imóvel, resolvi derivar o conhecimento de Deus, de tu mesmo e de todas as coisas que existem no mundo”. 25 A dubitatio de tudo recobre a própria cogitatio e a mostra como ilusão, 26 no sentido de posição em um ludus, em um jogo, no jogo do puro aparecer, como diria Michel Henry, do, por assim dizer, campo fenomenal originário. 27
Nessa perspectiva, a cogitatio, a dubitatio e a existentia corresponderiam às naturezas simples das Regulae 28 e às noções primitivas das Cartas a Elisabeth, 29 que são pressupostas pelas outras coisas, mas que nada pressupõem, de modo que requerem uma apreensão direta. Diz Eudoxo:
Mas todo aquele que deseja por si mesmo examinar as coisas e que julga como as concebe, não pode ter tão pouca inteligência que não tenha bastante daquela luz pela qual conheça suficientemente o que dúvida, o que pensamento, o que existência sejam, todas as vezes que presta a elas atenção e para que não tenha necessariamente de ser ensinado sobre as suas distinções. Além disso, há coisas que tornamos obscuras querendo defini-las, porque, como são muito simples e muito claras, digo que o que ocorre é que não podemos melhor conhecê-las ou percebê-las do que por elas mesmas. 30
Formulação que nos lembra o décimo parágrafo dos Principia, I: “Que as coisas que são as mais simples e por si conhecidas são tornadas mais obscuras pelas definições lógicas, e que tais coisas não devem ser enumeradas entre os conhecimentos adquiridos pelo estudo”. 31
A explicitação da cogitatio originária (do aparecer puro) no sentido de rechercher a verdade a trata como evidência, que é noção correlativa, é um aparecer correlativo. A cogitatio deve-se ater ao evidente para que o seu valor originário seja restituído, na medida em que foi ocupada pelos falsos pensamentos, e para que aquela condição ideal de atividade espontânea seja encontrada. De algum modo a linguagem, os preconceitos, a infância, a memória-traço cerebral nos distanciam de nós mesmos, da cogitatio originária.
Nessa perspectiva, quando procuro o evidente na cogitatio, procuro restituir-lhe a sua condição originária. Ao descrevermos a cogitatio, descrevemos o ter consciência, o que se dá de várias maneiras. A questão crucial é o caso da cognitio e cognitio certa, a scientia. A noção de falso pensamento só tem sentido em face do conhecimento, da cognição. Nela, saímos da mera consciência para aprender o que a ela se opõe (obversari). É na elaboração desse obversari que surge a teoria cartesiana da representação, da objetividade e da difícil relação de conformidade com a exterioridade, com o que transcende à consciência. Cumpre graduar o obversari, para definir o representativo-objetivo.
Além disso, o campo da evidência recobre o da ideia como mero modo de pensar (modus cogitandi). A ideia é o que a consciência apreende de modo imediato e certo como o que se lhe opõe. Ideias que consideradas nelas mesmas resguardam a sua evidência, pelo ato de vontade do sujeito de se abster a ceder ao maior dos erros: o de tratar o representativo nas ideias enquanto impressão das próprias coisas, de transigir com o tanquam imagem de coisas, que funda o representativo de outro modo. Nesses termos de abstenção da afirmação de existência da exterioridade, mesmo as ideias sensíveis são evidentes, como mostra o início da Terceira Meditação. Quando se refere à evidência sensível, reconhece a sua evidência no que elas são efetivamente claras: “Que eu percebia claramente em tais coisas? Percebia que as próprias idéias ou pensamentos (ideas, sive cogitationes) de tais coisas deparavam-se (opunham-se, obversari) à minha mente”. 32 O caso é que o campo da evidência da ideia é mais amplo que o da ideia representativa em sentido forte, que forma propriamente a objetividade, que define a representação verdadeira. De um lado, o seu caráter representativo como que não é bem sucedido na ideia sensível materialmente falsa, que só pode ser entendida como representação em sentido fraco, como indício (signo, sinal) da coisa e não como representação que a exiba objetivamente. Revela, com efeito, o corpo próprio de quem sente. O exhibere (“illae quae [...] mihi exhibent”) 33 do texto pode situar bem a discussão de um representativo pensado não a partir do que é representado mas do aparecer, do ser próprio do exibir. De outro lado, há ideia de infinito, cuja realidade objetiva não é suportada pela ideia representação; trata-se de uma ideia que tem realidade objetiva demais, em que há mais ser do que o que se exibe, do que posso inteligir, de sorte que a consciência não é capaz de produzi-la - o que, por sua vez, para Lévinas, rompe com o caráter correlativo da evidência, remetendo-nos a uma instância pré-originária. A explicitação dessa ruptura fundará não propriamente o verdadeiro mas o veraz, que permite a própria legitimação da evidência e a sua comunicação, bem como torna possível o acesso de algum modo ao exterior, ao que transcende à consciência.
A noção de evidência, de certo modo, articula o protréptico com o fundacional, na medida em que se torna uma regra universal e se lhe consigna o caráter atemporal. 34 Dessa maneira, o pensamento se faz cognitio certa e a ciência pode encadear teses, recorrendo legitimamente a instrumentos como a linguagem, para registrar com maior precisão os traços da memória no cérebro. Esse quadro também ajuda a explicar o paradoxo do menos lido ser mais apto a desenvolver a Filosofia e a dispor de pensamentos verdadeiros do que os mais lidos, ou seja, dos filósofos de profissão serem menos razoáveis do que os não estudados; ou como pode ocorrer que Poliandro, a personagem menos douta no diálogo, éa que mais dificilmente se enganará no conhecimento das coisas.
Poderíamos dizer que Descartes na apresentação da cogitatio recorre ao descritivo, ao “inventário dos próprios pensamentos”, àquilo que é acessível ao mais simples dos homens, à experiência que se tem imediatamente, ao que é natural e espontâneo. O desafio é manter a força dessa espontaneidade no que transcende o imediato, naquilo que envolve a causalidade, a dedução, a linguagem e a memória. Trata-se do desafio da cognitio, nela o que lhe é estranho - seja materialmente, seja por uma questão de finalidade - se imiscui, de modo a solapar a espontaneidade originária da cogitatio. Esse enfraquecimento da espontaneidade se dá num como que círculo vicioso pela situação própria da infância, pelos preconceitos de escola, que, em última instância a todos atingem em virtude da força de uma linguagem comprometida estruturalmente com esses preconceitos. Esse quadro se refere à finalidade da cognitio, dessa atividade cujo fim é o conhecimento, o conhecimento verdadeiro, o descobrimento da verdade. Desse modo, o esforço para buscar a verdade se torna também um esforço para restituir o valor originário e restabelecer a situação própria da cogitatio.
A Carta a Mersenne, de 20 de novembro de 1629, articula muito bem a questão da espontaneidade da cogitatio no quadro do conhecimento, da mente menos prevenida e da linguagem:
E se alguém tivesse explicado satisfatoriamente quais são as idéias simples que se encontram na imaginação dos homens, das quais se compõe tudo o que eles pensam, e que isso fosse aceito por todo o mundo, eu ousaria esperar em seguida uma língua universal muito fácil de aprender, pronunciar e escrever, e o que é o principal, que ajudaria no juízo, lhe representando tão distintamente todas as coisas, de modo que lhe seria quase impossível se enganar; ao passo que, inteiramente ao contrário, as palavras que temos não têm quase senão significações confusas, às quais o espírito dos homens está acostumado de longa data: essa é causa que ele não entende quase nada perfeitamente. Ora, considero que essa língua seja possível e que se pode encontrar a ciência que dela depende, por intermédio da qual os camponeses poderiam julgar melhor a verdade das coisas do que no momento os filósofos o fazem.35