Introdução
A Teoria da ação comunicativa, título da obra maior do filósofo Jürgen Habermas, publicada na Alemanha em 1981, vem, desde suas primeiras aparições na década de 1970, inspirando diversas reflexões sobre a educação, mesmo não abordando diretamente a temática. A ideia da ação comunicativa como um agir social que estivesse fora do paradigma filosófico da consciência desde o início foi considerada auspiciosa para a educação, sob uma perspectiva crítica. Quais as condições de possibilidade para uma educação emancipatória, porém em bases distintas da relação epistemológica moderna, sujeito-objeto? Como pensar uma educação cujo enfoque central não fosse o domínio teórico e prático do sujeito sobre o objeto? Diversos pensadores educacionais se ativeram à produtividade da teoria da ação comunicativa, tendo em vista oferecer resposta a essas questões. De início na Alemanha, chegando essa discussão ao Brasil na década de 1990, no âmbito da filosofia da educação.
O presente artigo visa contribuir para um aspecto do debate educacional envolvendo a teoria da ação comunicativa, a saber, o que se refere à definição de ação pedagógica. A ação pedagógica é a face concreta da educação, na qual as teorias e políticas estão presentes sob forma prática, na coordenação dos planos de ação dos participantes em referência ao mundo. Segundo Dalbosco (2005, p. 172), a ação pedagógica é “[...] em última instância, o horizonte definitivo no qual ocorre o processo educacional-formativo dos seres humanos”. Essa educação situada - a ação pedagógica - pode ser tomada como um ponto central tanto para se pensar a educação, no caso a Pedagogia, como para transformá-la. A ação comunicativa permite pensar a relação da ação humana com a teoria como continuidade: sob sua ótica a ação é a teoria prática, a pretensão de validade articulada no movimento para a obtenção de determinado sucesso, seja no mundo objetivo ou social. Esse sucesso pode ser de tipo estratégico ou comunicativo. Em princípio, essa visão sobre a ação em geral se estenderia à ação pedagógica. No entanto, já no início dos anos de 1980, na Alemanha, inicia a controvérsia que se tornou o fio condutor do debate, conforme apresentarei à frente.
1. A ação pedagógica nos estudos habermasianos
Habermas (1988, p. 139) define ação como “aquelas manifestações simbólicas em que o ator […] entra em relação ao menos com um mundo (mas sempre também com o mundo objetivo”.1 É dizer, a ação é uma manifestação simbólica com a qual o ator se relaciona, no mínimo, com o mundo objetivo. Embora sendo um conceito teleológico de ação, não se reduz apenas à produção de resultados, mas, ao incluir o comunicativo, a ação se torna ato ilocucionário, que afirma algo proposicionalmente e faz algo ilocucionariamente com essa afirmação. Para fundamentar esse conceito Habermas se vale da teoria dos atos de fala de Austin e Searle, a qual define a ação como tendo duas dimensões ou conteúdos: proposicional e ilocucionária. A ação manifesta o saber tanto proposicional, quanto ilocucionariamente; aliás, ela é o enlace das duas dimensões. Esses autores representam a denominada pragmática formal, cuja ideia central é a dimensão performativa da linguagem, segundo a qual com a linguagem não apenas se diz, mas também se faz. São exemplos conhecidos o batismo, a promessa, o veredicto, dentre outros. Assim, Habermas pode oferecer uma abordagem não dicotômica à relação entre teoria e prática, mas de continuidade, pois a ação (prática) é o saber (teoria) como ilocução. A partir desse conceito geral de ação, é possível passar a dois tipos de ação que aqui são centrais: a ação comunicativa e a ação estratégica.
Ação comunicativa é o tipo de ação em que os participantes coordenam os seus planos através da tomada de posição quanto a pretensões de validade, orientados ao entendimento intersubjetivo. Habermas defende a tese, segundo a qual, a ação comunicativa pressupõe uma relação formal, descentrada com o mundo, pois, do contrário, as pretensões de validade não seriam falíveis, ou seja, sequer seriam pretensões. Apenas os portadores de saberes hipotéticos podem agir comunicativamente. O tipo de ação contrária é a estratégica, em que os atores interagem orientados pela expectativa de êxito, considerando uns aos outros como sistemas decisórios e não sujeitos imputáveis. Assim, o outro me interessa apenas enquanto obstáculo a ser superado para o meu êxito, sendo seu posicionamento objeto de cálculos de minha parte. Nesses conceitos transparecem certos motivos da Teoria Crítica, contexto onde Habermas obteve grande parcela de sua formação acadêmica, por exemplo, a emancipação. A concepção habermasiana de emancipação está no uso comunicativo da linguagem, no qual todos são, em princípio, simétricos, tanto para tomarem posição quanto na capacidade de responderem ou assumirem compromisso pelas consequências dessa tomada de posição. Essa nova abordagem tomou forma na virada da década de 1960 para 1970, quando foi também sendo recebida nas discussões pedagógicas.
Na Alemanha existe uma tradição de estudos pedagógicos e didáticos, a qual foi re-impulsionada por Dilthey, ainda na virada do século XIX para XX, e continuada por seus orientandos. São representantes dessa corrente Hermann Nohl, Erich Weniger, Theodor Litt, Herwig Blankertz, Wolfgang Klafki, dentre outros. A entrada desse campo de estudos na América Latina deu-se nas décadas de 1940 e 1950, através do pedagogo espanhol radicado na Argentina Lorenzo Luzuriaga, que traduziu as principais obras pedagógicas de Dilthey e publicou diversos textos próprios dentro da linha, designada por ele pedagogia filosófica (LUZURIAGA, 1963), alguns traduzidos no Brasil pela Companhia Editora Nacional. Contudo, ao menos no Brasil, foi uma aparição muito pontual e situada, que não teve como prosseguimento significativo.
O pedagogo alemão Klaus Mollenhauer, orientando de Weniger, publicou em 1972 o texto que parece ser o locus inaugural do debate aproximando ação comunicativa e pedagógica, intitulado Teoria da Educação. Nesse livro apresenta uma concepção educacional a partir das então recentes ideias de Habermas acerca da ação comunicativa, dentre as quais se encontra um conceito de ação pedagógica. Garz (1993), Miedema (1994) e Coutinho (2002) dão a conhecer algumas das propostas presentes nesse estudo:
A ação pedagógica é relação intersubjetiva.
A participação no discurso possui importante papel na ação pedagógica.
A ação pedagógica antecipa a simetria da ação comunicativa.
Esse modo de abordar o conceito de ação pedagógica, pelo viés da ação comunicativa, definiu os parâmetros do debate, fornecendo material tanto para objeções quanto para concordâncias e aprofundamentos. Que tipo de ação intersubjetiva? Como é possível a participação de sujeitos em formação básica no discurso? De que modo a simetria pode ser antecipada e o que isso significa? São questões que tem motivado muitas discussões desde então.
Jürgen Oelkers, em 1983, publica o artigo Observações pedagógicas sobre a ‘Teoria da Ação Comunicativa’ deHabermas, colocando, conforme Miedema (1994) e Hermann (1999), forte objeção à proposta de Mollenhauer. O cerne do seu argumento aponta a incompatibilidade entre ação comunicativa e ação pedagógica, devido à exigência de simetria na primeira e de assimetria na segunda. Enquanto na ação comunicativa os participantes devem igualmente poder consentir ou dissentir frente às pretensões de validade ofertadas, a ação pedagógica é instaurada precisamente pela ausência dessa igualdade ou simetria de condições. Ao contrário, sem a assimetria entre professor e alunos a ação pedagógica deixa de existir. Essa objeção às bases da proposta inicial de Mollenhauer se tornou incontornável nas discussões acadêmicas sobre o tema, sendo aqui o ponto para o qual pretendo oferecer uma resposta a partir da teoria da ação comunicativa, na terceira parte deste artigo. Em texto de 1990, também segundo Hermann (1999), Oelkers reafirma sua posição, acrescentando que um conceito de ação pedagógica deveria sintetizar ação comunicativa e estratégica, o que seria insustentável em uma perspectiva habermasiana. Essa objeção se tornou muito importante, como apresento a seguir.
Nas duas últimas décadas diversos autores têm dado continuidade a esse debate dentro e fora da Europa. Um ponto reincidente é a indicação de síntese ou integração entre ação comunicativa e estratégica na ação pedagógica (MIEDEMA, 1994; RUSSO, SGRÓ e DIAZ, 1998; CULLEN, 2005; LONGHI, 2005), para resolver a dificuldade. Tal ênfase nessa conexão, embora seja muito problemática em Habermas, não deixa de ser esperada, conforme apontado por Oelkers.
O problema da compatibilidade entre ação comunicativa e ação pedagógica consiste na compatibilidade entre simetria e assimetria de condições para a obtenção do entendimento. À primeira vista, é difícil negar que o pedagógico se apresenta com aspecto técnico, instrumental, em última análise, estratégico. Conforme aprendemos nos manuais de didática, o ensino é composto de planejamento, metodologia, avaliação, dentre outros elementos. Tais fatores, se isoladamente considerados, parecem configurar um sistema de monitoramento, em que os alunos são submetidos a um processo sempre igual, um fluxograma composto de fases dentro do qual são mais objetos que sujeitos. Ademais, a assimetria na ação pedagógica pressupõe a necessidade de aprendizagem por parte do aluno, o que lhe coloca em lugar de menoridade em termos decisórios quanto aos processos escolares. Mas o papel de aluno necessariamente implica ser objeto da ação pedagógica? Uma tentativa de resposta muitas vezes é a seguinte: sendo a finalidade da ação pedagógica o desenvolvimento da competência comunicativa, e com ela a simetria, a obtenção de condições para participar na ação comunicativa estaria no êxito de uma ação estratégica. Ou seja, a ação pedagógica consistiria em ação estratégica com finalidade comunicativa. Se tal ação estratégica obtiver êxito, haverá a simetria necessária para a ação comunicativa. Porém, a ação estratégica, na tipologia habermasiana da ação social, é praticamente antípoda à ação comunicativa; nela os não protagonistas são meros sistemas decisórios e não sujeitos. Como dar conta de um processo de desenvolvimento da competência comunicativa por meio de racionalidade estratégica? Pode alguém alcançar as exigentes condições para participar do discurso como resultado exitoso de um sistema de influências? Por outro lado, a racionalidade comunicativa, para a qual os interlocutores são participantes corresponsáveis, pode explicar esse peculiar distanciamento da ação pedagógica, sem enquadrá-lo na ação estratégica? O enfrentamento a esse subproblema, por assim dizer, não poderia simplesmente negar a semelhança do pedagógico com o estratégico, mas deveria demonstrar que se trata de um estratégico aparente. Para esboçar resposta a essa questão é preciso introduzir outro importante conceito da teoria da ação comunicativa: o discurso.
2. Ação pedagógica e discurso
As tentativas de compreensão da ação pedagógica na teoria da ação comunicativa, segundo diversas publicações mais recentes (MARTINI, 1996; BOUFLEUER, 1997; CULLEN, 1999; TREVISAN, 2000; GOERGEN, 2001; DALBOSCO, 2007; GOMES, 2007), caminharam para o que se poderia denominar processo argumentativo. Habermas desenvolveu uma teoria da argumentação cujo cerne está no conceito de discurso, como ele denomina a fala argumentativa. Sendo assim, a ação pedagógica seria considerada discurso? De que modo? Quais as implicações para o problema simetria-assimetria, e junto, a dificuldade envolvendo o caráter aparentemente estratégico da ação pedagógica? Vejamos sucintamente o conceito habermasiano de discurso.
Discurso é o prosseguimento reflexivo da ação comunicativa, em que os participantes tematizam as pretensões de validade sobre as quais não obtiveram o entendimento. É um processo reflexivo porque as pretensões de validade, nas práticas cotidianas, são apenas subentendidas, aceitas tacitamente nas interações que, como diz Habermas, reproduzem o mundo da vida sociocultural. Os participantes de certa forma descobrem as pretensões de validade que possuem quando elas não são validadas pelos outros. É o que Habermas (1994) denomina a explicitação da reflexividade, propriedade da linguagem natural. Na ação comunicativa a reflexividade está presente, porém implícita. Argumentação, portanto, é a defesa racional de pretensões de validade, em que os participantes procuram identificar e sanar, reflexivamente, o que impossibilitou o entendimento, ocorrendo assim a troca de argumentos. Os participantes do discurso assumem o que Habermas denomina atitude hipotética, pois entram em relação com o mundo através de hipóteses, ou seja, indiretamente. O discurso tem como condição a coordenação de ações livre de coerção, apenas a partir da força racional dos argumentos, o que o torna central no pensamento habermasiano, herdeiro da teoria crítica. Esse caráter não coercitivo do discurso possui relação interna com a atitude hipotética, no sentido da relação exonerada com a prática comunicativa e o mundo.
Habermas, na obra Teoria da ação comunicativa, apresenta três tipos de discurso: o teórico, o prático e o explicativo. O discurso teórico é a tematização de pretensões de validade referentes à verdade, ou seja, à existência de estados de coisas. O discurso prático tematiza as pretensões de validade acerca da correção de normas, constituindo os seus princípios a denominada Ética do Discurso. Já o discurso explicativo tematiza as pretensões de inteligibilidade dos proferimentos linguísticos ou atos de fala. Segundo Habermas (1988), a inteligibilidade é uma condição para o entendimento, anterior às ofertas de pretensões de validade; uma premissa para a comunicação. Contudo, afirma ele, quando tematizada, a inteligibilidade assume o caráter de pretensão universal de validade. Esse é um tipo diferente dos dois primeiros, pois sua referência é a linguagem e não o mundo. Ou seja, a argumentação envolvendo a inteligibilidade não trata da verdade e nem da correção; seu âmbito é o da clareza de significados, e não o da comprovação de fatos ou do consenso sobre as normas. Pode-se dizer que, no discurso explicativo, a reflexividade é ainda mais explícita que nos outros tipos, pois se faz uso auto referencial da linguagem para que se consiga lidar com o difícil problema da ausência de inteligibilidade. É preciso auto referencialidade para lidar com o ininteligível, pois se a inteligibilidade é condição para os demais usos da linguagem, não há outro recurso para lidar com sua ausência senão o que a linguagem mesma oferece.
3. Ação pedagógica como discurso
Voltando ao tema direto do trabalho, pode-se considerar a ação pedagógica como discurso? A resposta a essa questão está subordinada à outra resposta, anterior, ao subproblema do estratégico aparente. Se a dificuldade central da incompatibilidade simetria-assimetria assumiu, no debate, a abordagem referente ao estratégico aparente, toda conceituação da ação pedagógica deverá fazer frente ao segundo para alcançar o primeiro. Ou seja, lidando com o estratégico aparente se lida com a compatibilidade simetria-assimetria.
Recapitulando, o discurso como tipo de ação possui algumas características peculiares: a atitude hipotética, a troca de argumentos, a exoneração, em síntese, a manifestação simbólica relacionada indiretamente ao mundo. Na ação pedagógica, os participantes não estão em condições de coordenarem suas ações segundo o entendimento, mas sua interação visa a obtenção dessas condições, ou seja, a aprendizagem. Assim, ela teria como finalidade ou télos a aprendizagem e não, ao menos diretamente, o entendimento. O tema da aprendizagem na teoria da ação comunicativa (HABERMAS, 1988; 1989) já foi objeto de diversos textos (FREITAG, 1985; KESSELRING, 1997; BANNWART JR., 2008), porém aqui não será foco de problematização.
Ao considerarmos os tipos de discurso como candidatos à articulação com a ação pedagógica, já, à primeira vista, podem ser descartados o teórico e o prático, pois ambos visam, respectivamente, o acordo quanto à verdade e à correção, pressupondo a competência comunicativa dos interlocutores. Ademais, a ação pedagógica não parece poder ser definida como uma busca da verdade e da correção, mas sim um preparo para esse tipo de interação. Assim sendo, resta o discurso explicativo, cuja finalidade é o acordo quanto à inteligibilidade.
A necessidade de inteligibilidade é diferente das demais faltas de entendimento que demandam a passagem ao discurso. Ela é a falta de entendimento em um sentido mais radical, básico: é o desentendimento quanto ao uso da linguagem e, consequentemente, a ausência de sentido na manifestação em si. A resolução intersubjetiva da ininteligibilidade, pode-se dizer, implica aprendizagem, pois, do contrário, como obter sentido? Como superar diferenças tão profundas sem aprendizagem? Esse tipo de discurso parece ser o mais apropriado para dar conta do preparo para a participação em discursos, pelo seu caráter auto referencial. Assim sendo, proponho compreender a ação pedagógica como discurso, especificamente, explicativo. Se o sucesso do discurso explicativo é a obtenção de inteligibilidade; se a inteligibilidade exige aprendizagem; se a aprendizagem é a finalidade da ação pedagógica; então o discurso explicativo pressupõe ação pedagógica. Ou seja, a ação pedagógica seria inscrita e correalizada no discurso explicativo.
Habermas (1988), em passagem acerca do conceito de ação, estabelece uma diferenciação entre ações independentes e não independentes. A ação independente seria aquela que estabelece relação ao menos com o mundo objetivo, por exemplo, erguer o braço para abrir a janela. Já a ação não independente não tem relação direta com o mundo, por exemplo, erguer o braço. Esse tipo de ação, afirma Habermas, só se torna independente no quadro de um exercício, ou seja, com finalidade didática, ou seja, para a aprendizagem. Uma pessoa, nesse sentido, poderia erguer o braço para alongar ou fortalecer seus músculos. A rigor, ela não está fazendo nada, mas o movimento corporal ou operação exigida para a ação, no exercício, torna-se ação. Com isso, pode-se compreender o estatuto da ação pedagógica como exercício, ou seja, como parte necessária do discurso explicativo, recorte, que se torna independente tendo em vista a aprendizagem.
Além disso, outras características do discurso convêm à ação pedagógica. A aprendizagem, tendo em vista a maioria dos processos formativos, não se dá diretamente na prática cotidiana, em relação direta com o mundo. É preciso certo distanciamento, pois seria uma violência expor uma pessoa em formação imediatamente à realidade. Os atores na ação pedagógica se relacionam indiretamente com o mundo, exoneradamente. E isto ela compartilha com o discurso ou, por outro lado, o discurso concede a ela. A atitude dos interlocutores é hipotética, pois lidam com hipóteses, nesse caso, com significados a serem esclarecidos. Se a ação pedagógica estivesse articulada, em primeiro lugar, ao discurso teórico ou prático, não pareceria possível preparar uma atitude hipotética, pois a verdade e a correção, a quem está em formação básica, e diante da instituição escolar, são dificilmente contestáveis, ao contrário de problemas envolvendo o significado de manifestações. Ademais, sendo a inteligibilidade condição para o engajamento nos outros modos de discurso, parece lógico que o discurso explicativo também apresente essa anterioridade no aspecto formativo, ou seja, ofereça condições para preparar a participação na argumentação teórica e prática.
Com isso, posso retornar à objeção recebida à compatibilidade entre ação pedagógica e ação comunicativa, a qual consiste no conflito entre simetria e assimetria, expresso em termos do estratégico aparente. O distanciamento característico da ação pedagógica, sob o ângulo do discurso explicativo, pode ser compreendido como condição necessária para resolver um problema de inteligibilidade, que exige aprendizagem. O que num primeiro momento foi classificado na atitude estratégica de quem observa sem estar implicado, transfigura-se na atitude hipotética de quem participa de discurso, que, no fundo, é uma atitude hermenêutica. Habermas prevê em sua teoria dois modos de distanciamento: o estratégico e o discursivo. Ambos derivam do uso da linguagem na terceira pessoa, da perspectiva do observador. Porém na atitude estratégica é como se o observador estivesse fora da situação de ação, a qual ele descreve como um estado de coisas. No discurso, os participantes fazem uso da linguagem na terceira pessoa, porém estão implicados em uma situação de ação; o que eles objetualizam são saberes, pretensões de validade, e não pessoas e relações interpessoais. Assim, o estratégico da ação pedagógica pode ser encarado efetivamente como aparente, respondendo o discursivo e suas propriedades pelo caráter distanciado necessário e constituinte da ação pedagógica. Essa conceituação possui a vantagem da intersubjetividade, a qual confere viés completamente diferente à ação pedagógica, com múltiplas consequências. Com isso, a questão central da relação entre simetria e assimetria se torna tematizável.
Os interlocutores na ação pedagógica, em papéis docentes e discentes, engajam-se, fazendo uso argumentativo da linguagem, em superar certa necessidade de aprendizagem, para que obtenham inteligibilidade. Esse engajamento exige o especial cuidado em compreender as condições de aprendizagem discentes, atitude que se poderia definir como mais do que escuta: ausculta. Procura-se antecipar as tomadas de posição discentes refletindo-as de tal modo que esses possam se identificar com elas e discernir uma atitude linguística nova - a de quem argumenta. A ação comunicativa e o discurso pressupõem a reflexividade da linguagem, respectivamente, implícita e explícita. Se a ação pedagógica está no discurso explicativo, ela também explicita a reflexividade. Porém, aí está o seu diferencial ou especificidade: a reflexividade na ação pedagógica é orientada à aprendizagem, a partir das condições de aprendizagem dos discentes, antecipadas pelo docente. E esse uso da linguagem é que permite certa sintonia, por assim dizer, entre assimetria e simetria. As pretensões de validade discentes, tematizadas em antecipação pelo docente, adquirem caráter articulador, mediador ou, na expressão de Davini (2006), bisagra. O proferimento ou ato de fala pedagógico articula o conteúdo proposicional segundo a lógica das condições de aprendizagem do aluno, e esse é o seu conteúdo ilocucionário, o que cria uma ponte ou simetria provisória, situacional, entre professor e alunos. O aluno, reconhecendo-se na pretensão de validade com que o professor constituiu seu proferimento, pode em princípio dar o próximo passo e considerar a problematização também presente na manifestação docente, a qual é uma totalidade das duas dimensões. Assim, sob essas condições, a assimetria instituinte da ação pedagógica pode ser provisoriamente equilibrada, simetrizada, em uma tematização obtida nas condições de aprendizagem do aluno. Desse modo, a simetria pode constituir a ação pedagógica tanto quanto a assimetria, sendo ambas, assim, compatíveis.
Considerações finais
A análise da conexão entre ação comunicativa e ação pedagógica exige considerar especificidade do discurso ou fala argumentativa. O procedimento de refletir os temas em dissenso na forma de argumentos é condição de possibilidade da própria ação comunicativa. Se os atores não pudessem resgatar suas pretensões de validade e defendê-las, a tomada de posição necessária à ação comunicativa não seria racional. A rigor, o que se faz é defender a racionalidade dos próprios saberes. Essa possibilidade se apoia na reflexividade, para Habermas, essa possibilidade se apoia na reflexividade, propriedade de qualquer linguagem natural. O uso da linguagem que possibilita a coordenação de planos de ação e atores na ação pedagógica, estando ela inscrita no discurso, há de ter relação com essa reflexividade. Contudo, a ação pedagógica é uma argumentação que, embora condição para a obtenção de inteligibilidade, orienta-se para a aprendizagem. Com isso, seu modo de empregar a reflexividade da linguagem é outro e, proponho, pode ser denominado didático. Esse uso da linguagem orientado à aprendizagem seria uma derivação do explicativo, com o qual se procura clarear significados, para que o interlocutor os discirna e, assim, haja inteligibilidade nas manifestações. A diferença da ação pedagógica é que esse clarear significados para discerni-los reflete a operação mesma do discernimento, pois se trata de mostrar para suscitar aprendizagem. Essa operação faz parte da competência comunicativa, e, no caso, aponta novo horizonte dessa para os discentes - a participação em discursos. Então se pode falar aqui em uso didático da linguagem, com o qual a tematização discursiva mostra o discernimento de significados e, ao mesmo tempo, o modo de utilizar a linguagem para tanto. Por refletir para a aprendizagem é que proponho aqui denominá-la didática.
Esse artigo tencionou enfrentar uma problemática situada no encontro entre Filosofia e Pedagogia: a definição do conceito de ação pedagógica a partir da perspectiva intersubjetiva proporcionada pela teoria da ação comunicativa. A produtividade do referencial habermasiano, apesar dos limites apontados por muitos, suscita novas reflexões sobre as possibilidades da experiência compartilhada de ensinar e aprender, a ação pedagógica. Dentre elas, se destaca a hipótese do uso didático da linguagem, a qual, se procedente, quiçá possa encaminhar por sua vez a outras reflexões sobre a disciplina de Didática, no sentido de repensá-la em termos não tecnicistas e sim comunicativos.