Introdução
Alasdair MacIntyre se consagrou como um dos maiores nomes do pensamento filosófico contemporâneo ligados à ética, especialmente à ética de virtudes, que reabilita a tradicional perspectiva aristotélico-tomista. No desenvolvimento de uma crítica do entendimento liberal da ética e da política, formulou uma teoria moral que tem sido, com frequência, associada à crítica comunitarista do liberalismo, ainda que ele mesmo discorde desse epíteto. De fato, ao lado do comunitarismo, MacIntyre construiu uma poderosa crítica à sociedade liberal contemporânea tendo por base uma teoria moral que, ademais de apresentar um modelo atraente para a explicação dos fenômenos morais, também levanta fortes questões em termos de resolução de conflitos resultantes das relações sociais.
Como desdobramento da sua multifacetada obra, recentemente tem-se discutido a vinculação das suas ideias com a educação (AMAYA & SÁNCHEZ MIGALLÓN, 2011; ARRIOLA, 2000; DUNNE, 2014; KEENEY, 2007; MARADIAGA CÉZAR, 2008 e MURPHY, 2013), com a adição de que, em alguns textos, o próprio autor se volta à temática (MACINTYRE 1987; 1990a; 1991a; 1999; 2002, 2005; e 2006), construindo uma visão de educação que se vincula aos conceitos de tradição, prática, narratividade e virtude, nos termos do florescimento moral, do aprendizado das virtudes, bem como de elementos voltados ao propósito, ao conteúdo e ao currículo da educação, entre outras coisas.
Com efeito, ainda que o pensador escocês tenha espraiado a sua reflexão filosófica para a seara educacional, não permanece uma tarefa fácil discutir a sua filosofia da educação. E isso porque, como adverte Murphy, toda a sua obra é e não é, ao mesmo tempo, sobre a educação, enfatizando que as escolas são principalmente instrumentos da sociedade em geral - na contramão do otimismo de Dewey (MURPHY, 2013, p. 183). É provocador que a ideia de educação pensada por MacIntyre ocorra tacitamente através da participação dos indivíduos numa variedade de instituições, tradições e práticas sociais, de tal modo que o papel da educação, especialmente daquela educação que se dá nas escolas, seja aquele de formar uma resistência às corrupções da vida social, constituindo-se a escola como agente potencial de ampla reforma moral e intelectual (MACINTYRE, 2001; e 2002; MURPHY, 2013, p. 184). Dessa perspectiva, a educação se volta a um propósito claramente moral, vale dizer, recuperar o engajamento nas práticas sociais dentro das quais se forma a virtude.
Com o propósito de cotejar as principais questões voltadas à temática, este artigo assume o propósito de discutir a educação no pensamento de MacIntyre. Para isso, o texto é estruturado como se segue: num primeiro momento, apresenta-se a definição de educação, bem como sua relação com os contextos sociais, no interior dos quais, isto é, em cuja realização, dá-se o envolvimento com as práticas, a saber, a ideia básica para o autor é que a educação, não sendo ela mesma um bem, é um conjunto de habilidades e hábitos colocados a serviço das diferentes formas de práticas, de forma a realizar o florescimento moral humano; num segundo momento, discutem-se os objetivos da educação e das instituições educacionais, vale dizer, a criação de um público educado, o que se traduz no direcionamento do estudante, por parte da educação, a uma função social no interior da sua sociedade e ao pensamento e à reflexão autônomas; por fim, na terceira parte, alterca-se a respeito do conteúdo da educação, ou seja, daqueles elementos que veem certas formas de atividade e conhecimentos como fins em si mesmos. Apresenta-se como o pensador escocês concebe a disposição curricular para que o seu entendimento do que é a educação seja realizado, considerando, inclusive, o papel da universidade nesse empreendimento. Defender-se-á, neste texto, portanto, que, através da educação, MacIntyre pretende dar conta de muitos dos problemas da moralidade contemporânea mediante a criação de critérios de justificação moral (um público educado) e da educação para as virtudes.
1. A definição de educação: seu contexto e prática
De forma mais explícita, a educação é pensada por MacIntyre no quadro dos conceitos de prática1 - particularmente este -, de unidade narrativa de vida2 e de tradição3, conceitos que estruturam e fundamentam toda a sua teoria moral, que apontam para a recuperação do conceito de virtude4 diante do cenário do diagnóstico do estado de desordem moral da sociedade contemporânea. Isso sugere que a educação real ocorre tacitamente no interior da participação de alguém numa das variadas práticas sociais, e aqui se devem ter presentes as instituições e as tradições (MURPHY, 2014, p. 183). Por isso, de um lado, o contexto social é condição necessária para a formação de qualquer indivíduo racional e, de outro, é preciso a existência de ambientes comunitários para que surjam as condições de uma genuína educação (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 369).
Um dos contextos sociais mais importantes para a educação é aquele que proporciona as práticas. MacIntyre considera que não existe uma prática especificamente educativa, mas que a educação tem apenas um caráter de meio em cada prática, de forma a não constituir o bem interno exclusivo de nenhuma atividade. Isso significa dizer que o crescimento humano se realiza por ocasião da participação de alguém em cada prática, sem que o crescimento próprio deva ser o objetivo de uma atividade separada. A aprendizagem, como a virtude, produz-se como uma consequência natural do compromisso humano cooperativo pela busca e realização de diferentes bens, de modo que não se pode conseguir abstratamente, sem a mediação de outros bens e pessoas. Nesse sentido, para MacIntyre, a prática é um tipo de atividade cooperativa que se estende ao longo do tempo, e que possui seus próprios bens internos (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 94).
Observa-se que o aprendizado, que envolve a constituição das habilidades e das qualidades do caráter, dá-se dentro das atividades propriamente definidas como práticas. E esse entendimento do que é o aprendizado através das práticas se firma especialmente sobre a visão que o autor tem da educação. Assim MacIntyre define a educação:
A educação é, antes de tudo, uma iniciação nas práticas dentro das quais o questionamento e o autoquestionamento dialético e confessional são institucionalizados. E esta iniciação deve assumir a forma de uma apropriação por parte de cada indivíduo da história da formação e das transformações da crença através dessas práticas, de modo que a história do pensamento e da prática seja reeditada e o iniciante aprenda essa representação, não apenas quais foram as melhores teses, os melhores argumentos e as melhores doutrinas que aparecem até esse momento, mas também como reexaminá-los para que eles se tornem autenticamente seus e como prolongá-los ainda mais para expô-los aos interrogatórios através dos quais são reconhecidos a responsabilidade (MACINTYRE, 1990a, p. 201-2).
Apesar das questões estarem voltadas à discussão concernente às três versões rivais de investigação moral, a saber, enciclopédia, genealogia e tradição, as investigações de MacIntyre a respeito do conceito de prática se apoiam sobre uma perspectiva aristotélico-tomista. Isso quer dizer que
[...] desde este ponto de vista tomista informado pela tradição, toda afirmação deve ser entendida em seu contexto como a obra de alguém que se faz responsável por sua declaração em alguma comunidade cuja história produziu uma determinada série compartilhada de capacidades para compreender, valorizar e responder a tal declaração (MACINTYRE, 1990a, p. 204-5).
Nesse sentido, apenas através das práticas é que se tem um aprendizado significativo em termos de uma argumentação dialética do caráter intelectual. Com efeito, MacIntyre vai mais longe e afirma que apenas através da prática se pode passar de um estado infantil, no qual os desejos pessoais governam o sujeito, até uma fase de independência, em que as práticas determinam a racionalidade (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 95-7).
Com efeito, essa temática da natureza da educação, no seio da obra de MacIntyre, provocou alguns desdobramentos: alguns estudos têm sido formulados no lastro da obra do autor sobre a educação poder ser vista como uma prática, tendo em vista que ela cumpre aparentemente os requisitos definidos pelo autor, em After Virtue5, do que constitui uma prática.6 Numa discussão sobre educação com Dunne, essas questões foram abordadas. Na opinião de Dunne, em primeiro lugar, a educação é certamente uma forma de atividade humana complexa, cooperativa e socialmente estabelecida; define a vida profissional de uma pessoa; tem seus próprios bens específicos, voltados ao desenvolvimento das capacidades dos estudantes; também tem seus próprios padrões de excelência. Em segundo lugar, a atividade educativa é o bem de um certo tipo de vida (assim como o pintor que vive da pintura, o professor que vive da docência). E, finalmente, a dialética entre “prática” e “instituição” reflete-se no ensino e na escola, pois, de um lado, o ensino necessita de um espaço institucional confiável para realizar-se, e, de outro, os ideais e a criatividade, assim como o cuidado cooperativo dos bens comuns do ensino, são sempre vulneráveis à competitividade institucional escolar e a seu poder corruptor, de forma que, mais um vez, são as virtudes que protegem a integridade do ensino, criando e mantendo um certo tipo de ethos na escola (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 7-8) A resposta de MacIntyre é a seguinte:
Não está claro até que ponto discordamos. Você diz que o ensino é em si mesmo uma prática. Eu digo que os professores estão envolvidos numa variedade de práticas e que o ensino é um ingrediente em todas as práticas. E talvez as duas reivindicações representem muito a mesma coisa; mas talvez não. Pois é parte da minha alegação que o ensino nunca é mais do que um meio, que não tem nenhum objetivo e propósito, exceto pelo ponto e propósito das atividades às quais ele inicia os estudantes. Toda a atividade de ensino existe por causa de outra coisa, e o ensino mesmo não tem seus próprios bens. A vida de um professor não é, portanto, um tipo específico de vida. A vida de um professor de matemática, cujos bens são bens da matemática, é uma coisa; a vida de um professor de música cujos bens são bens da música é outra. Esta é uma das razões pelas quais qualquer concepção da filosofia da educação como uma área distinta da investigação filosófica é um erro. As investigações na educação são uma parte importante dos inquéritos sobre a natureza e os bens das atividades em que precisamos ser iniciados pela educação (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 8-9).
Na sequência dessa afirmação, MacIntyre afirma que Dunne está correto a respeito do que disse sobre a relação entre as práticas de ensino e a instituição escolar. Com efeito, MacIntyre afirma que a concepção de escola é empobrecida se ela for entendida apenas como uma instituição preparatória. Para ele, os estudantes se tornam, nas boas escolas, praticantes de artes, ciências e jogos, participantes de atividades como a leitura de romances e de poesias com intensidade, elaborando novas experiências nas quais as suas habilidades matemáticas possam ser usadas, desenhando, pintando e fazendo música para algum propósito. Dessa forma, para o autor, a vida comunitária de uma escola é adequada quando é reconhecida não só como um lugar para o aprendizado através do treinamento por meio de exercícios inescapavelmente laboriosos, mas também como um lugar de conquista cultural genuína, em pequena escala, dentro da qual uma variedade de práticas floresce (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 8-9). Assim, é correto dizer que, para MacIntyre, apesar dessa concordância parcial com Dunne,
[...] a educação não é em si uma prática, mas sim um conjunto de habilidades e hábitos colocados a serviço de diferentes práticas. O professor deve pensar em si mesmo como um matemático, um leitor de poesia, um historiador ou qualquer coisa que seja, envolvendo a transmissão de habilidades e conhecimento para os aprendizes (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 5).
Assim, o ensino não é outra coisa senão um meio, pois não tem objeto e nem propósito que não seja o objeto e o propósito das atividades nas quais os estudantes são introduzidos. Ora, isso quer dizer que sempre se fala do ensino em relação a uma prática, isto é, que o processo de educação se dá no quadro do aprendizado de uma prática, e nunca isoladamente, alheio às práticas. Por sua vez, isso quer dizer também que toda prática necessita de um processo de educação. A educação é, assim, um elemento inerente a toda prática, de forma que a aprendizagem se produz como uma consequência natural do compromisso humano cooperativo na busca da realização de distintos bens, pois “o crescimento humano se realiza com a ocasião da participação em cada prática, sem que o próprio crescimento deva ser objeto de uma atividade separada” (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 369).
Seja como for, e apesar das reticências de MacIntyre, consoante a interpretação de Maradiaga César, pode-se contemplar a possibilidade de que certas atividades pedagógicas possam ser consideradas como práticas e, dessa forma, com seus próprios bens internos, sempre tendo o cuidado de não separar a função pedagógica de seus elementos contextuais (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 369), tendo-se em vista que os professores estão envolvidos numa variedade de práticas e o ensino é um ingrediente de toda prática, podendo ou não ser uma prática.7
Partindo do que Maradiaga César explica, para MacIntyre, todo conceito de educação comporta um fim para o qual deverá tender. Aceitando a visão aristotélica de que o bem tem razão de fim, o autor pensa que o homem se encontra inserido em atividades determinadas por regras orientadas para fins específicos, sejam elas de caráter biológico, isto é, aquelas atividades básicas de autoconservação e crescimento, ou mesmo aquelas provenientes de determinações sociais básicas, isto é, aquelas primeiras relações no seio familiar ou da primeira educação.8 Daí a expressão aristotélica inclinações naturais expressar, na teoria de MacIntyre, de um lado, o modo como se está imerso nas práticas e, de outro, o próprio modo de progredir no interior das práticas. Nesse sentido, necessariamente a compreensão do bem humano estará orientada por esse desenvolvimento e aprendizado através das práticas (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 257).
É importante ter em conta que, na opinião de MacIntyre, é esse desenvolvimento, através das práticas, que oferece as condições para uma consideração reflexiva e crítica das pautas de conduta nessas atividades. Veja-se que as práticas oferecem o contexto no qual as ações têm um telos. E, em matéria de educação, o progresso educativo deve ser também caracterizado narrativamente, isto é, deve ser visto como uma história que se aproxima ou não de um final feliz. Esse ponto aqui se refere à visão do autor de que apenas ao final da vida é que se tem os elementos para avaliar se se teve uma vida virtuosa, a qual é dada nos termos de uma história que possa ser narrada. Mais do que isso: MacIntyre está convencido de que o fim de qualquer prática está integrado ao telos da vida humana como um todo. À luz disso, deve existir um critério de excelência para que se faça uma avaliação do ser humano completo, o qual é denominado por MacIntyre de florescimento humano. De fato, esse florescimento será, sobretudo, moral, pois a orientação a um bem moral condiciona o acerto nas demais facetas do ser humano - e isso vale também para os erros, posto que desvios morais causam erros noutros âmbitos da esfera humana.
Nesse cenário, para MacIntyre, o telos da educação é o florescimento humano, o qual tende ao desenvolvimento completo da pessoa humana e se realiza mediante a orientação a verdadeiros bens (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 258). Conforme se disse antes, a educação se dá no interior das práticas. Não há conhecimento separado das práticas. É justamente na realização das atividades práticas que a educação realiza o seu propósito, o seu bem, que é o pleno desenvolvimento da pessoa humana. Ora, isso quer dizer que, para MacIntyre, o bem está no centro do progresso humano, de tal modo que toda educação tem necessariamente uma orientação moral. Trata-se, assim, de uma educação moral que, nesse sentido, não se realiza mediante o ensino teórico, mas através de uma atividade prática, tendo-se em vista que está inserida no contexto da realização de atividades práticas. O caráter virtuoso que confere essa educação moral é, assim, um tipo de hábito prático, e não uma instrução teórica (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 259-60).
Conjuntamente a essas questões, deve-se dizer que a tarefa educativa é uma atividade de tal modo constituída que deve facilitar o desenvolvimento humano. Esse “facilitar”, contudo, não se traduz na realização daquele conjunto de coisas que deve ser feito pelo educando. Para MacIntyre, essa tarefa educativa implica no fato de que não se pode suprimir o empenho pessoal para adquirir as destrezas e descobrir os bens que se persegue no interior da atividade. Considerando que o crescimento é pessoal, isto é, que todos aqueles aspectos de responsabilidade individual não devem ser omitidos, não se deve desprezar aqueles fatores sociais relevantes. Na verdade, sem esses fatores sociais, não é possível a orientação necessária à educação. Isso sugere que sem um contexto que aporte referência, o que é dado pelos bons professores e determinados âmbitos comunitários, não há orientação social (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 260).
Assim, a educação tende ao florescimento humano, que comporta chegar à plenitude de um agente racional independente.9 Para ser mais preciso, esse florescimento deve ser entendido em termos de desenvolvimento físico, técnico, social e intelectual, pois que são também, somando-se ao florescimento moral, componentes do bem humano integral. Desta feita, a construção do caráter moral não se realiza abstratamente, mas sempre em relação aos contextos sociais dentro dos quais se desenvolvem atividades cooperativas - tenham-se presente os jogos, a convivência familiar, entre outros. E os bens que a educação persegue são aqueles, entre outros, da aquisição de virtudes e destrezas, necessários e dados nas práticas que os ensejam: são elementos imprescindíveis a toda a educação. Assim, para que se possa ter uma verdadeira educação, deve-se respeitar o âmbito próprio de cada uma das práticas (MARADIAGA CÉSAR, 2009, p. 262-3).
2. Os objetivos da educação e das instituições educacionais: a criação de um público educado
A luz do diagnóstico do problema de moralidade enfrentado pela sociedade moderna e contemporânea, discutidos em AV e em Justiça de quem? Qual racionalidade?, em The Idea of the an Educated Public, MacIntyre apresenta os dois objetivos para serem alcançados pelos professores e pela educação, a saber: (i) direcionar o jovem de tal modo que se possa adaptar a um determinado trabalho e a uma função social em sua sociedade; e (ii) ensinar os jovens a pensar por si mesmos, fazendo com que eles adquiram independência mental. E isso porque, para MacIntyre, o que é exigido pela própria natureza da educação é que ela “[...] deve ser uma preparação para o engajamento construtivo no conflito” (MACINTYRE, 1998, p. 107). Como explica Dunne,
Estudantes bem-educados tomarão uma atitude questionadora em relação a essa ordem e suas instituições dominantes, tornando-os, em grande parte, incapazes de participar de forma complacente e exitosa nas maiores sociedades a que pertencem. Mas se a educação adota uma postura de oposição à ordem existente, ela tem que fazê-lo nos termos ditados por esta mesma ordem, que são completamente incompatíveis com sua própria natureza - termos que a assimilam a um modelo de produção em que as escolas são julgadas com base em resultados, como resultados de exames, credenciais e posicionamentos relativos a “tabelas de liga” (rankings de desempenho escolar), alcançados com o mínimo de insumos e, portanto, com a máxima produtividade. Assim como críticos radicais antes dele, MacIntyre enfrenta [...] o que parece ser um círculo vicioso: para produzir a boa sociedade, é preciso uma boa educação; mas, inversamente, tal educação dificilmente parece possível a menos que a boa sociedade já exista (DUNNE, 2014, p. 502).
Com efeito, na visão de MacIntyre, os objetivos da educação, muito embora factíveis, são incompatíveis, pois que dependem das condições internas da comunidade para que possam ser realizados no mesmo sistema educativo. Por isso, segundo ele,
O primeiro está entre os propósitos de quase todas as ações educativas em quase todos os lugares: consiste em moldar o (ou a) jovem de tal forma que possa se adaptar a um determinado papel e função social que requer importância. O segundo propósito deriva, na sua forma mais específica, da cultura do Iluminismo do século XVIII, embora tenha, naturalmente, seus antecedentes. É o propósito de ensinar os jovens a pensar por si mesmos, a adquirir independência mental, a serem esclarecidos ao modo como Kant entendeu “A Ilustração” (MACINTYRE, 1991, p. 325).
Na análise que MacIntyre realiza, as condições enfrentadas pelos sistemas de ensino contemporâneos do pós-iluminismo anulam a possibilidade de realização dos dois objetivos da educação e de todos os que participam do sistema educativo. A mera constatação indica que as instituições educacionais estão distantes desses objetivos, pois receber uma educação baseada nesses objetivos implica a criação da disposição de se questionar a ordem econômica e social, de forma a se ter o engajamento do sujeito nas atividades da sua comunidade. Sobre isso, MacIntyre afirma:
Que esses dois projetos totais sejam incompatíveis, que o sucesso de um esteja ligado ao fracasso seguro do outro, não é uma tese conceitual inoportuna. Não estou propondo que o conceito de ser treinado para pensar por si mesmo possa necessariamente ter aplicação apenas quando o conceito de ser adaptado para assumir seu papel na vida social é anulado, ou vice-versa. Porque defendo que, sob certos tipos de condição social ou cultural, ambos os conceitos podem encontrar a aplicação sob um mesmo sistema educacional. Mas, também, vou defender que, devido a circunstâncias especiais, concretamente as sociedades e culturas modernas do pós-Iluminismo anulam as condições que tornam possível essa coexistência (MACINTYRE, 1991, p. 326).
Com efeito, a realização desses objetivos pelas instituições educacionais permitiria a criação do que MacIntyre chama de público educado - ainda que a maior tarefa, deve-se dizer, fique a cabo das universidades, não há como negar que as instituições educacionais anteriores, como as escolas, têm um papel importante nesse processo. MacIntyre se refere a uma experiência histórica, o Iluminismo Escocês, do século XVIII, o qual permitiu o florescimento desse público educado. Para a formação desse público, MacIntyre explica que são necessárias três condições: (i) a existência de um conjunto razoavelmente amplo de indivíduos educados no hábito e na possibilidade de organizar um debate racional, a cujo veredito apelam os intelectuais protagonistas; (ii) o consenso a respeito de parâmetros invocados para julgar o erro e o acerto das argumentações; (iii) o compartilhamento de amplo espectro de crenças e ações, formadas pela leitura originada de uma compilação comum de textos, os quais são vistos como tendo um status canônico e autêntico dentro dessa comunidade concreta (MACINTYRE, 1991, p. 120-3). Na opinião de MacIntyre, esse público educado apenas se formou porque as reformas educacionais possibilitaram a existência de um modelo compartilhado de justificação racional, e é justamente à existência desse público educado que os objetivos da educação devem conduzir. Evidentemente, para isso, o currículo conta com alguma importância, ainda que seus traços mais específicos estejam voltados aos ditames das próprias práticas.
3. O conteúdo da educação: uma educação liberal, ma non tropo
Conforme a sumarização de Dunne, MacIntyre pensa o conteúdo real da educação muito próximo das concepções tradicionais de educação liberal. Com efeito, não a concebe como uma concepção voltada à liberdade como objeto da educação, em termos de liberdade individual como superando o bem comum, mas, ao contrário, como certas formas de atividade e conhecimento concebidos como fins em si mesmos, isto é, como atividades que não possuem caráter instrumental ou externo.10
Desse ponto de vista, o conteúdo previsto por essa visão educacional inclui o inglês (dentro do mundo anglofônico), outro idioma e literatura; história, matemática - até o cálculo diferencial -, e ciência experimental e observacional; inclui igualmente artes visuais, música e vários jogos e modalidades de esportes, no que seria a educação física. Prevê, também, algumas capacidades genéricas - tais como a percepção sensorial precisa para a narração de histórias - e habilidades práticas - por exemplo, habilidade de reparar carros, construção de paredes e programação de computadores (DUNNE, 2014, p. 502).
Seguindo Dunne, pode-se dizer que esse entendimento, quanto ao conteúdo previsto para a educação, que deve ser oferecido para todos os estudantes, independentemente da riqueza dos pais ou das suas atividades extraclasse, indica que MacIntyre não se vincula a qualquer concepção de educação liberal, sobretudo aquelas que eram cúmplices de vários tipos de elitismo acadêmico e socioeconômico. Na verdade, MacIntyre pensa o conteúdo da educação a partir de práticas, ou melhor, da sua própria abordagem dos conceitos de virtude, prática, unidade narrativa de uma vida e de tradição. Isso quer dizer que as disciplinas escolares podem ser vistas como práticas nas quais os jovens devem ser iniciados, uma vez que sejam
[...] domínios de atividade padronizados de forma complexa que evoluíram colaborativa e cumulativamente, cada um com seus próprios padrões de definição de excelência, com a capacidade de resposta a qual permite a realização de seus fins ou bens específicos (DUNNE, 2014, p. 503).
Conforme se disse anteriormente, as práticas envolvem bens internos e externos e, no caso das disciplinas escolares, esses bens envolvem, de um lado, os resultados visados por e através de uma prática e, de outro, as capacidades que os profissionais devem adquirir e exercitar, dentro das quais se incluem tanto as competências específicas da prática como as virtudes do caráter, como a honestidade, a coragem, a justiça, entre outras, que transcendem qualquer prática única, apesar de serem necessárias em todas elas. Como Dunne explica, as práticas são importantes para a educação não apenas porque oferecem uma forma útil de conceber diferentes áreas curriculares, mas especialmente porque, uma vez que fornecem os caminhos mais significativos para o desenvolvimento e a extensão das capacidades humanas, incluindo a aquisição sistemática de virtudes, são essenciais na constituição de uma vida boa e realizadora dos indivíduos e das comunidades (DUNNE, 2014, p. 503).
Para MacIntyre, como se apontou anteriormente, a vida boa implica a integração dos bens das práticas à unidade narrativa de uma vida e à tradição, cada uma das quais possuindo também sua própria influência sobre como a educação deve ser conduzida. Isso quer dizer que a vida humana não está dispersa em zonas compartimentadas descontinuamente, podendo, assim, ter em vista um bem particular para a vida de cada um, o qual pode ser perseguido significativamente. No entendimento de Dunne, preparar os alunos para essa busca é o objetivo central da educação, razão pela qual a literatura e a história têm um destacado valor, já que contribuem especialmente para que esse objetivo seja alcançado - cada uma dessas áreas pode, de diferentes maneiras, divulgar o enraizamento narrativo das vidas humanas, formas que auxiliam os estudantes a ver a direção do desdobramento de suas próprias vidas (DUNNE, 2014, p. 503).
3.1. A questão curricular
MacIntyre se priva a determinar um currículo específico, uma vez que, em sua opinião, o conteúdo está vinculado aos elementos inerentes às práticas. Apesar disso, em alguns escritos mais recentes, em especial na entrevista concedida a Dunne, MacIntyre acena para alguns elementos curriculares que o vinculam à versão de uma educação liberal, isto é, de uma educação, como apontado anteriormente, que prepara para as artes liberais - para aquelas atividades que não são instrumentais, mas fins em si mesmas. Nessa entrevista, quando perguntado sobre se o Estado deveria ensinar alguma forma de educação para a cidadania comum, a questão curricular aparece quando MacIntyre explica que o liberalismo é uma forma de disfarce ideológico, e que ele encobre duas verdades: (i) a primeira delas é que tanto os indivíduos como as comunidades locais têm de lidar de forma construtiva em suas vidas com o Estado como uma instituição coercitiva que legisla e regula, que impõe encargos e prestações de serviços, e que é possuidor de recursos - nesse sentido, “[...] os alunos precisam de instruções para o que eles precisam saber para um envolvimento tão construtivo” (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 13); e (ii) a segunda delas é que existem alguns deveres particulares para a comunidade local que só podem ser realizados através das agências do Estado, e há alguns bens que só podem ser alcançados através da participação e, talvez, da reforma do trabalho de tais agências. Para o autor, em relação a isso,
[...] os estudantes precisam aprender que isso não só é assim, mas que, no interesse de objetivos concretos e imediatos, as políticas de tais intervenções, geralmente aquelas que têm a ver com os interesses da própria comunidade local, precisam ser compreendidas de uma maneira muito diferente daquela oferecida pela política do Estado moderno e dos seus instrumentos, os partidos políticos (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 14).
Nesse contexto, MacIntyre entende que os alunos - e aqui se tem presente aqueles que estão na formação pré-universitária - devem ser ensinados, de um lado, a identificar as necessidades de suas comunidades, bem como a distinguir as mais urgentes daquelas menos urgentes; e, de outro, a encontrar seu caminho dentro do sistema político. Além disso, MacIntyre sinaliza que as crianças também devem aprender a reconhecer que existem aqueles que arriscam suas vidas por causa da segurança da comunidade, sejam eles policiais e militares, ou mesmo criminosos. As crianças devem ter a percepção de que ser uma pessoa é uma vocação que vale a pena ter, isto é, que deve ser realizada (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 14).
Isso significa dizer que há, na visão de MacIntyre, algumas coisas que devem ser ensinadas às crianças nos termos de um currículo derivativo. Nesse currículo, e ele se refere a um contexto anglofônico, contam disciplinas e matérias tais como:
[...] a matemática até e incluindo o cálculo diferencial, a língua e a literatura inglesas, incluindo as histórias que eu mencionei anteriormente (algumas delas traduzidas de outras línguas),11 mas também incluindo pelo menos uma saga islandesa, algumas de Chaucer, e outras de Shakespeare; pelo menos um outro idioma e uma boa parte de história, juntamente com o tipo de estudos cívicos que descrevi acima; e, claro, algumas ciências experimentais e observacionais. Aqui é um erro começar com a física com a química. A astronomia, a meteorologia e a geologia são ciências muito mais acessíveis para um nível elementar. E a física e química que são necessárias para entender a explicação dos movimentos planetários ou do que é um cometa e por qual razão os vulcões irrompem ou por que os furacões continuam imprevisíveis, ou o que afeta a erosão do litoral, tem sido melhor e mais facilmente aprendido no curso de procurar respostas para essas questões (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 14).
Para dar conta da realização desse currículo, as escolas devem se orquestrar de forma a serem abrangentes no que se refere à perspectiva da formação. Para isso, na opinião do autor, existem diferentes formas de as escolas se destacarem em sua efetivação, uma vez que não há uma única forma de ele ser concretizado. Mas, ainda assim, esse currículo deve ser mais amplo e incluir muito mais do que os estudos acadêmicos. A esse respeito, MacIntyre pensa em determinados aspectos, tais como:
[...] as artes visuais, uma vez que as crianças precisam aprender a como ver e a como olhar para uma pintura, bem como aprender a desenhar e a pintar; a música e o canto, uma vez que as crianças precisam aprender tanto a ouvir como a interpretar; uma variedade de jogos e esportes, a oportunidade de aprender a praticar atos acrobáticos e de ginástica, e as habilidades necessárias para consertar um carro, construir um muro, escrever um programa de computador (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 14-5).
MacIntyre afirma que uma configuração curricular desse porte pode parecer utópica, mas é exatamente o que se precisa, pois é uma medida instrutiva de realização, pois, “se definimos nossos padrões muito baixos, então não reconheceremos quão drásticas são nossas falhas” (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 15). Ora, para o autor,
O teste do currículo é que os nossos filhos se tornem capazes, não somente no local de trabalho, de poderem pensar sobre si mesmos e sua sociedade de forma imaginativa e construtiva, capazes de usar os recursos fornecidos pelo passado para prever e implementar novas possibilidades (MACINTYRE & DUNNE, 2002, p. 15).
Assim posto, pode-se dizer que MacIntyre não propõe uma reforma curricular. O que ele propõe, outrossim, é uma forma de educação de tal modo articulada a recuperar os valores associados à comunidade - e, evidentemente, engajada com as noções de narratividade, prática e tradição -, de tal sorte que, na atividade educativa, deve-se partir de textos e obras que permitam aos estudantes identificar os modos de vida numa comunidade, os costumes, os valores e os sistemas de crença e hierarquia social do mundo, inclusive de outros povos.
Dunne explica que, para que a educação cumpra o seu objetivo, é preciso que os estudantes se reconheçam numa narrativa e passem a compreendê-la, identificando a sua própria narrativa e reconhecendo que fazem parte de uma tradição, que têm valores e bens alcançados por meio de uma prática. Na configuração que os currículos escolares e acadêmicos têm hoje, as disciplinas estão bastante divididas e distintas, de tal forma que, para o estudante, fica difícil saber o que apreendeu e até mesmo resolver questões da disciplina e, consequentemente, da sua vida como um todo. Ora, a ausência de uma unidade entre as disciplinas afasta o aluno de uma narrativa histórica e dos padrões formulados anteriormente. Por isso, a integração das disciplinas, e até mesmo o estudo das disciplinas difíceis, é importante para que o aluno se reconheça na sua própria narrativa, vendo que não só a sua vida está relacionada a outros fatores, mas que tais disciplinas fazem parte de um todo, evitando tratar a escola como algo separado da vida do aluno. MacIntyre aborda o currículo dessas instituições, porque o currículo acabou sofrendo grandes consequências decorrentes do fracasso do projeto iluminista, e também porque é através desse currículo que o sujeito será orientado a desenvolver as suas capacidades para que possa alcançar a excelência de acordo com a atividade humana que pretende realizar (DUNNE, 2014, p. 503-4).
A educação, nesse sentido, abre-se não à compartimentalização disciplinar, mas à vida ética, àquela forma de vida que é marcada por diferentes formas de escolhas, tanto em nível individual como coletivo. De fato, a educação é colocada como forma de realização das capacidades humanas e vinculada não à disciplina, mas à vida e às questões práticas.
3.2. A universidade
Nas suas considerações sobre a educação, MacIntyre prevê um espaço importante para a universidade. O problema da universidade está relacionado à questão da construção de uma teoria da ação humana inteligível. Como sugerem Amaya & Sánchez-Migallón, MacIntyre questiona a formação desarticulada, carente de teleologia e incapaz de dar resposta às questões que assolam existencialmente os indivíduos e a sociedade. Tendo presente o fracasso do projeto moderno de moralidade, a universidade, como uma das instituições que poderiam ser capazes de estabelecer um debate racional numa comunidade ilustrada, conforme a visão de MacIntyre, fica a meio caminho entre o indivíduo autônomo e a sociedade (AMAYA & SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2011, p. 223-4).
Com efeito, a universidade contemporânea, para MacIntyre, é definida como uma universidade liberal, marcada pela neutralidade de pensamentos e ações, responsável pela educação de seus estudantes nos objetivos do mercado, aqueles do consumo e dos bens individuais. A universidade, nesse quadro, de um lado, desacredita todo o ethos, isto é, toda a tradição de investigação moral cujos valores sejam diferentes daqueles que a movem, e, de outro, defende aqueles do liberalismo, especialmente do mercado - uma vez que sejam idênticos -, impedindo o agente de pensar por si mesmo (ARRIOLA, 2000, p. 78). Além disso, também a compartimentalização assola esse tipo de universidade. E, se ela educar para essa divisão, a educação só servirá para produzir especialistas, sem nenhum tipo de compromisso com a vida e seu bem último. Nesse sentido, Arriola afirma que
Se ela é privada da possibilidade de transmitir esta visão de mundo racional unificadora e de organizar os debates da sociedade em torno dela, a missão da Universidade é reduzida à educação profissional - que, por outro lado, pode ser aprendida diretamente na vida profissional -, ou à posse de uma cultura geral, cuja aquisição pode ser autodidata através de livros ou multimídia. Em qualquer caso, a Universidade está privada de argumentos para legitimar sua existência (ARRIOLA, 2000, p.123).
Para que este não seja o caso, isto é, para que a universidade não perca seu espaço de legitimação, ela precisa se desfazer daqueles elementos que a conduzem para uma direção inadequada. Sobre isso, Amaya & Sánchez-Migallón apontam os problemas que assolam essa universidade liberal. Na opinião desses autores, esses problemas podem ser resumidos em cinco pontos: (i) a fragmentação do saber; (ii) o desaparecimento da Universitas; (iii) a profissionalização da filosofia; (iv) o esquecimento da educação para a sabedoria e para a formação do caráter; e (v) a justificação da sua existência (AMAYA & SÁNCHEZ-MIGALLÓN, 2011, p. 228-45). Para recuperar o seu sentido e significado, a universidade precisa desfazer-se da falsa neutralidade inerente à concepção liberal que lhe dá mote.
No artigo dedicado à universidade americana, em especial à universidade católica, MacIntyre (2006) fala do histórico e da composição curricular das diferentes áreas, acenando para o fato de que os cursos foram elaborados em torno de diferentes disciplinas, depois subdisciplinas e, posteriormente, subsubdisciplinas. Para o autor, a multiplicação de disciplinas e, também, a história da especialização crescente por parte de estudiosos e a transformação de professores universitários em pesquisadores profissionalizados, focados em pontos específicos, que têm também o encargo de ensinar, e cujo sucesso está diretamente associado à identificação do seu trabalho a uma subdisciplina particular. Em vista disso, e afirmando que a formação universitária deve romper com essa fragmentação e contínua especialização, MacIntyre faz a proposição de um currículo tripartite, distribuído ao longo de três ou quatro anos.
Um elemento é matemático e científico, estendendo-se da física à química e à neurofisiologia necessárias para entender descobertas recentes sobre o cérebro. Outro é histórico, situando a história das ideias em seus contextos sociais, políticos e econômicos. E um terceiro consiste nos estudos linguísticos e literários. Todos os três têm um componente filosófico: filosofia da mente e do corpo, questões filosóficas levantadas por diferentes aspectos da nossa história passada, questões interpretativas e avaliativas colocadas pelo nosso relacionamento com outras culturas. Assim, a faculdade necessária para ensinar este currículo consistiria de matemáticos, físicos, alguns tipos de biólogos, historiadores intelectuais, sociais e econômicos, professores de inglês e de uma ou duas outras línguas e literaturas, antropólogos e filósofos (MACINTYRE, 2006).
Numa tal universidade, seria importante dedicar-se não apenas ao ensino de cada uma das disciplinas, mas a uma visão do currículo como um todo, isto é, como uma articulação dos saberes, de tal monta que os estudantes fossem capazes de formular e buscar respostas alternativas e rivais às questões que dão sentido e propósito a tal currículo. Nesse sentido, algo assim seria possível, na opinião de MacIntyre, porque, através desse currículo, os alunos seriam ensinados a fazer perguntas de forma inerente às disciplinas, o que é valioso para a instrução de técnicas de pesquisa genuínas; além disso, aprenderiam algo como uma educação voltada às artes liberais, e não apenas um treinamento profissional que, no final das contas, caracteriza muito da universidade contemporânea. Por isso, durante os três primeiros anos, ter-se-ia essa educação nas artes liberais e, num quarto ano, ficar-se-ia disponível para a pesquisa e o treinamento profissional, pois, conforme o autor, “não temos que sacrificar o treinamento na pesquisa, a fim de proporcionar aos nossos alunos uma educação liberal, assim como não temos que fragmentar e deformar sua educação, como fazemos agora” (MACINTYRE, 2006, s/p.).
Num currículo universitário assim entendido, a universidade seria colocada não como um espaço neutro e de possíveis acordos; seria, antes, o lugar do confronto das ideias, do desacordo, do conflito. Iria, também, garantir o debate entre as diferentes tradições mediante discussões, não permitindo que o membro de uma comunidade se isole cada vez mais em torno de si mesmo. Efetivamente, a universidade, tal como MacIntyre a propõe, “[...] não tem o objetivo de limitar os intercâmbios de ideias nem impor uma forma de vida. Ao contrário, seu interesse pode se caracterizar como o fomento da liberdade de educadores e educandos, liberdade, não obstante, que nasce do compromisso e não da ruptura” (ARRIOLA, 2000, p. 224). Assim, é através da educação que MacIntyre procura dar respostas aos problemas da moralidade contemporânea, reconhecendo inicialmente a ausência de uma moralidade universal, passando pela constatação de que a cultura presente é o resultado de diversos pensamentos de diferentes épocas e, finalmente, afirmando a importância de uma educação voltada para as virtudes, de tal modo a se ter critérios de justificação moral - e, então, constituir-se um público educado.
Considerações finais
Neste trabalho, buscou-se cotejar a compreensão do que é a educação na teoria moral de MacIntyre, uma extensa e multifacetada obra dirigida particularmente à crítica ao liberalismo, à privatização do bem e aos elementos do projeto iluminista de justificação da moralidade, cujo fracasso está associado ao emotivismo. As ideias de MacIntyre endossam um retorno à ética aristotélico-tomista, a qual se caracteriza especialmente nos conceitos de prática, unidade narrativa de uma vida, tradição e virtude. De fato, o pensador escocês busca reabilitar a ética aristotélico-tomista como uma alternativa para os problemas morais do mundo contemporâneo.
Com efeito, ainda que MacIntyre não seja um filósofo da educação, especialmente nas últimas décadas ele tem pensado na educação como desdobramento da reflexão moral - é verdade, há um número bastante grande de teóricos que tem buscado estabelecer uma correlação entre a teoria do filósofo e a educação, como já se indicou (AMAYA & SÁNCHEZ MIGALLÓN, 2011; ARRIOLA, 2000; DUNNE, 2014; KEENEY, 2007; MARADIAGA CÉZAR, 2008 e MURPHY, 2013). Dessa perspectiva moral, a configuração que o autor dá a ela a circunscreve como uma iniciação nas práticas, isto é, como um meio para a realização das práticas, as quais, por sua vez, dão-se apenas tendo as tradições como referência. Nesse horizonte, a educação, em si mesma, não é uma prática, mas um conjunto de habilidades que orbitam as diferentes formas de práticas sociais, dentro das quais se realiza o florescimento humano.
Todavia, é possível dizer que o propósito da existência de instituições educacionais é claramente determinável para esse filósofo: a criação de um público educado. É justamente esse público educado que promoverá, como resultado da educação, o direcionamento do estudante à caracterização de uma função social no interior da sua sociedade - a escolha por um ofício ou atividade laboral -, bem como ao pensamento e à reflexão autônomos. Além disso, conforme se mostrou, a constituição de um público bem educado é possível apenas quando reunidas as seguintes condições: (i) a existência de um conjunto razoavelmente amplo de indivíduos educados no hábito e na possibilidade de organizar um debate racional, a cujo veredito apelam os intelectuais protagonistas; (ii) o consenso a respeito de parâmetros invocados para julgar o erro e o acerto das argumentações; (iii) o compartilhamento de amplo espectro de crenças e ações, formadas pela leitura originada de uma compilação comum de textos, os quais são vistos como tendo um status canônico e autêntico dentro dessa comunidade concreta (MACINTYRE, 1991, p. 120-3). Ora, a existência de um público educado propicia a existência de um modelo compartilhado de justificação racional ao qual a educação deve conduzir.
Não obstante, para que exista, é necessário, também, que a educação se comprometa em termos de um rol de conteúdos e que o currículo da educação esteja direcionado às formas de atividade e de conhecimento como fins em si mesmas (atividades que não possuem caráter instrumental ou externo), pois que assim se permite ao aluno buscar o que é realmente importante através do desenvolvimento das capacidades humanas, que é a vida boa, o que se dá numa relação com a comunidade. Um tal modelo se estabelece como uma forma de educação liberal por valorizar o conhecimento como tendo valor por si próprio. Também, finalizando, a universidade está especialmente vinculada à construção de uma teoria da ação humana inteligível. Para o pensador, a principal tarefa da universidade é oferecer os horizontes e a construção das bases daquele modelo compartilhado de justificação racional, pois, assim, pode agir na resolução dos problemas da moralidade contemporânea, bem como traduzir-se na educação para as virtudes.
Como se nota, finalmente, as ideias de MacIntyre a respeito da educação não pretendem construir uma visão separada do campo educacional, mas se colocam, como ele mesmo indicou a respeito da educação no pensamento de Tomás de Aquino, como caudatárias de uma variedade de outras áreas e disciplinas (práticas, nos termos de MacIntyre): sem esse contexto argumentativo ao qual pertence as discussões educacionais, não há forma de as conclusões educacionais serem inteligíveis (MACINTYRE, 2005, p. 94). Portanto, segundo o pensamento do filósofo escocês, a educação não é um campo separado de ideias, mas está vinculada à sua reflexão sobre a moralidade.