INTRODUÇÃO
Este artigo propõe uma reflexão acerca da transliteracia (FRAU-MEIGS, 2011, 2014), discutindo-a como forma de resistência e de caminhos de aprendizagem, em meio a um cenário de deslocamentos e desmontes da educação contemporânea. Parte-se de um debate que é essencialmente transdisciplinar e que tem por base a interlocução entre linguagens, tecnologias, mídias e os múltiplos sistemas semióticos e hipermidiáticos que atuam na contemporaneidade, que afetam e são afetados pela educação (BUCKINGHAM, 2012; LEMKE, 2002; MARTÍN-BARBERO, 2014).
O que se propõe, primeiramente, é partir da premissa de que existe um contexto que traz novos desafios à educação (GADOTTI, 2000), que contempla pelo menos, mas não somente, a internacionalização e padronização dos sistemas de ensino ocidentais; a disseminação de Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) em grande escala, o questionamento sobre a importância do “ensino tradicional”; as possibilidades para um educação popular e autônoma em práticas sociais que podem se dar além da escola; e a perspectiva da complexidade - os “ paradigmas holonômicos” (GADOTTI, 2000), que repensam as possibilidades de educação do futuro como parte da complexidade, na qual se objetiva restaurar a ideia de totalidade do sujeito, de autonomia, de criatividade, valorizando micro realidades que se apresentam na lógica do vivente, apesar dos deslocamentos. Um aprendente que, apesar do desmonte ao qual está submentido, seja capaz de conduzir trajetos de aprendizagem não-formal, informal e em modelos outros que sejam complementares à educação formal e que acontecerá ao longo de sua vida.
Como não seria possível discutir todos esses aspectos em um só artigo, adota-se o contexto do deslocamento como ponto de partida, já que o mesmo respalda-se por sólida fundamentação em estudos da Educação, nas obras de Gadotti (2000, 2011), Libâneo (2012), Lima (2012) e Sennett (2013), que versam sobre cultura e educação no novo capitalismo com também sobre as políticas neoliberais da educação, que reorientam os processos para a valorização excessiva rumo à uma “sociedade da aprendizagem”.
A partir desse ponto, colocando-nos tanto na perspectiva do aprendente como na do professor e do processo educacional, como (re)pensar os múltiplos papéis e possibilidades dessas partes, tendo por base as transformações geradas pela disseminação em grande escala das TIC, que afetam de modo inequívoco as novas gerações, em específico, mas também a sociedade como um todo? Quais novos campos e perspectivas multidisciplinares estão dados nesse debate? Como fazer frente aos deslocamentos em um contexto midiático e de transformação tecnólogica que afeta em vasta escala os hábitos e comportamentos dos indivíduos?
Como contribuição à essa problematização, este artigo propõe, em um primeiro momento, uma contextualização sobre o tema, a partir dessa perspectiva que vem prioritariamente da Comunicação e da Linguística Aplicada, olhando a Educação e a interlocução entre linguagens, tecnologias, mídias e os múltiplos sistemas semióticos e hipermidiáticos que acontecem no mundo. Em sequência, propõe-se uma sistematização sobre diferentes abordagens sobre a transliteracia (FRAU-MEIGS, 2013, 2014) e seus quase sinônimos, como formas capazes de dar autonomia e trilhas alternativas ao aprendente, mesmo estando em um contexto de deslocamento e de “apesar de”. Em um terceiro momento, o artigo discute como a “educação permanente” se transformou em “aprendizagem ao longo da vida”, alterando por completo as responsabilidades nos processos da educação, diminuindo propositalmente o papel dos estados e sobrevalorizando a competitividade e o sucesso pessoal. Por fim, discute-se quais caminhos, além dos convencionais, são possíveis de serem abertos nessa nova ecologia de desafios e de interesses.
SOCIEDADE EM REDE, MÚLTIPLAS LITERACIAS E NOVO ‘ETHOS’
O sociólogo catalão Manuel Castells cunhou, no final dos anos 90, a expressão “sociedade em rede” para descrever o impacto das TIC no mundo contemporâneo. Castells (1999, 2013), de base marxista, contribui com uma vasta discussão de caráter sistêmico e crítico sobre os impactos gerados pelas tecnologias digitais. Para ele, a "cultura da virtualidade real" ergueu um novo ambiente simbólico e transformou radicalmente as noções de espaço e tempo, dimensões basilares da vida humana até então. Lugares teriam redefinido seus sentidos geográfico e cultural originais para se reintegrar em redes e ‘tribos’ digitais; abrindo possibilidade aos “espaços de fluxo”, que, segundo Castells (1999), tomaram o lugar do tempo e do espaço tradicionais. Segundo ele, as TIC induzem a novos formatos de capitalismo (capitalismo informacional), transformando comportamentos e valores em profundidade. A quebra da noção de tempo e de espaço físico; a possibilidade de pensar globalmente, mas de agir em tribos; a disseminação da autocomunicação de massa (CASTELLS, 2013), com acesso à produção, distribuição, indexação e acesso a conteúdos em todos os formatos transformam a sociedade com um todo.
A concepção de tecnologia como algo que vai muito além de seu valor utilitário tem suas bases em diferentes perspectivas teóricas. Para Flusser, filosofo checo naturilizado brasileiro, um dos pioneiros nos estudos sobre a importância das imagens no mundo contemporâneo, a tecnologia deve ser compreendida como algo que amplifica nossa capacidade de interagir com o mundo (FLUSSER, 2007, 2010). As tecnologias podem ser então compreendidas como literacias, portanto, e passam a significar novos modelos de uma ‘alfabetização’ para viver no mundo; tanto para nós (que somos migrantes digitais) como também para as crianças que chegam agora aos primeiros anos da escola. Por essa perspectiva, as literacias informacionais, digitais e midiáticas (os diversos aprendizados para lidar com as mídias, com a informação em grande volume e com os artefatos digitais) também podem ser construtoras de ação e de transformação da realidade (FREIRE, 1996, 1999, 2005), na medida em permitem a produção de sentidos e de significados em diferentes contextos e práticas sociais. Nesse sentido, as literacias são ainda percebidas como softwares sociais (HATZIPANAGOS, WARBURTON, 2009), por serem capazes de criar conexões, significados e formas de comunicação na sociedade, para além de seu viés de uso instrumental.
Trata-se de um cenário complexo (MORIN, 2003), no qual os percursos de aprendizagem demandam saberes e práticas sociais que estão multifacetados em diferentes lugares e canais, e que são (re) modelados em cada percurso, pois hibridizam experiências em diferentes suportes (físicos, digitais, combinados...) e que, sobretudo, deveriam ser críticos (BUCKINGHAM, 2012), para que fosse possível ter acesso a tudo e filtrar, de modo criterioso, o que nos agrega. Nesse sentido, mais do que nunca, são prementes bons sistemas de ensino e processos educacionais estruturados para que estejamos preparados para essa nova realidade. Do mesmo modo, é também necessário considerar que aprendemos na escola, mas também além dela, ao longo de toda a vida, em todos esses espaços.
As reflexões sobre esse tema levaram esta autora, profissional e pesquisadora da área da Comunicação, à sua pesquisa de doutorado na Linguística Aplicada, na área de Linguagens e Tecnologias, ainda em curso, em busca de problematizar as trajetórias de aprendizagem no ambiente contemporâneo, para além da educação formal. A premissa que orienta a pesquisa e o debate neste artigo compreende apresentar e discutir as possibilidades de aprendizagem como dinâmicas ad hoc, nas quais a não linearidade e a ausência de formatos e regras estáveis são os aspectos que melhor as caracterizam, fortemente influenciadas pela disseminação das Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) e por práticas sociais impulsionadas por elas (TAPSCOTT, 2010).
Dentro dessa realidade, tanto aprendizado como ensino se veem diante de caminhos difusos em uma contemporaneidade cuja socialização e a transmissão de saberes são também agenciadas pela mídia e por meio de dispositivos e canais plurais - como smartphones, redes sociais e espaços (formais e informais) desenhados para a troca de conhecimento e entretenimento. A reconfiguração comunicativa em curso cria espaço para a “autocomunicação em escala de massa” (CASTELLS, 1999, 2013) e obriga o sistema de ensino e os educadores a reconhecer a importância e a se mesclar com a cultura audiovisual-digital que está em curso.
Ao avaliarmos a educação e a educomunicação, em especial, as noções de descentramento, deslocalização e destemporalização (MARTÍN-BARBERO, 2014) são essenciais. O descentramento responsável por fazer com que o conhecimento circule por meios que estão além dos livros, dos formatos e das linguagens tradicionais, ao mesmo tempo em que a destemporalização e a deslocalização permitem que nosso aprendizado se dê na escola e além dela. Podemos aprender em outros tempos e em práticas que podem estar também na comunidade, na web, no trabalho e nas “vidas que aprendem” - learning lives (ERSTAD; SEFTON-GREEN, 2013; CITELLI, 2000, 2006, 2010, 2011; CORNIER, 2008; ILLERIS, 2018).
Da Comunicação, trazemos para o debate a importância dos meios e da recepção nos processos comunicativos como forma de compreender não somente o que falamos ou apresentamos, mas as diferentes possibilidades de escuta e de etendimento de quem nos ouve; o papel do receptor em configurar seus dispositovos para customizar e aprender o que deseja - quase do mesmo modo pelo qual podemos assistir às séries de um streaming de vídeo quantas vezes quisermos, no dispositivo de preferência e na ordem que consideramos melhor. São contribuições fundamentais as de Buckingham (2012), Citelli (2000, 2011), García Canclini (1989) e Martín-Barbero (1997, 2000, 2014), pois todos têm em comum o combate à noção da passividade do receptor em processos de comunicação. Para os autores, todo receptor é também sujeito e ele atua de acordo com as práticas sociais e a história que carrega. Esse entendimento é importante para compreender o receptor (e também os aprendentes) como sujeitos imersos em múltiplos sistemas semióticos e hipermidiáticos, dotados de capacidade para realizar suas seleções e trajetos, muitas vezes recriando ou readequando o que recebe como sendo acabado (SACHS, 2012).
Lankshear e Knobel (2007, 2008, 2010, 2011) chamam a atenção para outra faceta da sociedade em rede: a emergência de modos de organização e de relacionamento que comungam de um novo ethos. O casal de pesquisadores, que atua nos ambientes acadêmicos da Austrália, EUA, México e Canadá, propõe debates e práticas que envolvem linguagens e tecnologias sociais (ROMANCINI, 2015). O termo ethos tem suas raízes contemporâneas nos estudos da antropologia cultural, com particular contribuição da escola norte-americana, em especial de Boas (2004) e Geertz (1989), que se contrapuseram às teorias evolucionistas do século XX, conferindo um olhar atento às especificidades de cada cultura e grupo. A abordagem dos antropólogos, forte influenciadora do pensamento pós-moderno e pós-colonial, compreende o ethos como a reunião de traços psicossociais que definem a identidade de uma determinada cultura, a sua personalidade base. Pela perspectiva do ethos, a sociedade em rede gerou não somente novos saberes, literacias e fluxos, mas também outra personalidade base. Participação, compartilhamento, experimentação contínua, economia criativa, personalização, teste de ideias e projetos ainda em construção, possibilidades transmidiáticas e desconstrução/construção de modelos são somente alguns dos aspectos desse novo ethos (LANKSHEAR; KNOBEL, 2007, 2008, 2010, 2011; GARCÍA CANCLINI, 1989; JENKINS, 2008, 2009 e TAPSCOTT, 2006, 2010).
TRANSLITERACIA: CONCEITO EMERGENTE E SISTÊMICO
As primeiras definições de transliteracia a caracterizavam como a habilidade de usar diferentes mídias e modalidades com versatilidade, e ainda de transformar consumidores de informação passivos em produtores de conteúdo (THOMAS et al., 2007). O conceito teve origem em um estudo realizado em 2005, na Universidade da Califórnia, pelo professor Alan Liu - Transliteracies Project - que pretendia compreender a leitura digital e as novas interfaces de leitura, por meio da investigação das práticas tecnológicas, sociais e culturais na leitura online (THOMAS et al., 2007).
De lá para cá, pesquisadores com objetivos e background diversos refinaram o tema (e seus quase sinônimos) como um conceito e também como aplicação em seus campos específicos. De modo ainda preliminar, pode-se dizer que o conceito de transliteracia possui características comuns a quase todas as abordagens, mesmo que alguns pesquisadores não aprofundem certos aspectos. O tema interessa a este artigo na medida em que busca-se compreender as diversas formas de se ‘navegar’ pelo aprendizado, saltando de uma literacia para outra, à medida de nossos interesses e perfis, em um somatório de possibilidades e de escolhas quase ilimitado. O conceito de literacia (ou letramento, a depender da área de estudo) inicialmente se apresentava como um sinônimo de alfabetização escrita, mas particularizou-se e desdobrou-se em vários outros conceitos de ‘alfabetização’ necessários no mundo contemporâneo: as literacias informacionais, computacionais, midiáticas, digitais, entre outras.
Uma das abordagens mais comuns é a visão da transliteracia como um coletivo de literacias que a precedem, seja pela ideia da soma e fluidez entre as partes (FRAU-MEIGS, 2014; SUKOVIC, 2016; THOMAS, 2007), ou ainda, como sugerem alguns, a partir de seu entendimento como uma meta-literacia (MACKEY, JACOBSON, 2011). De todo modo, essas abordagens concordam que ela a transliteracia é um terreno aberto, capaz de acolher outras literacias, quaisquer que sejam elas e no tempo de sua chegada, já que novos saberes e práticas distintas tendem as ser introduzidas quando ocorrem mudanças de tecnologia e de comportamento.
Um segundo aspecto que merece destaque é a associação da transliteracia com os conceitos e características da transmídia (JENKINS, 2008, 2009), explicitada pelo sufixo “trans”. Se tomarmos por base o conceito difundido por Jenkins (2008), a transliteracia também pode ser percebida a partir de seu movimento não sequencial, descentralizado e sem a premissa de que uma rota de navegação seja melhor do que a outra, já que todos os percursos e conteúdos se complementam e contribuem para o todo. As múltiplas entradas no sistema comunicativo e a possibilidade de histórias concomitantes que podem ter pontos de cruzamento são abordagens que podem ser úteis ao entendimento da transliteracia como trajetos possíveis durante a aprendizagem ao longo da vida. Nesse sentido, os trabalhos de Frau-Meigs (2013,2014) e de Scolari (2018), que aborda as literacias transmidiáticas, são as que mais referenciam essa relação, até porque ambos têm background nos estudos da Comunicação.
Um terceiro aspecto compreende a transliteracia como algo que não é inédito nem somente digital, mas que ganha fôlego exponencial a partir das TIC e dos comportamentos e práticas sociais gerados por elas: além dos formatos transmídia, ela diz respeito a outros modos de consumir informação e conhecimento, que envolvem compartilhamento, participação, redes informais convivendo com redes formais, cultura do remix e das hibridações. O novo ethos de Lankshear e Knobel (2007, 2008, 2011). Nesse sentido, as abordagens de Thomas et al. (2007) e de Frau-Meigs (2013, 2014) são cuidadosas ao pontuar a importância do digital, ressaltando, no entanto, que ele integra um amplo ecossistema de literacias, que abrangem as tradicionais e também as mais recentes.
Um quarto aspecto que merece atenção é a visão da transliteracia como capacidade para receber, discernir, descartar e usar os conteúdos, mas também para produzi-los, recriá-los, modificá-los, cocriá-los, sob a perspectiva de conteúdo e de formatos. “Trasladar às aquisições anteriores” (FRAU-MEIGS, 2014, p. 3), características que são bastante reforçadas também por Sukovic (2006, 2016), para quem a prática criativa é um componente central no novo ethos.
Pela perspectiva do Grupo PART (Production and Research in Transliteracy), liderado pela professora Thomas (THOMAS et al., 2007) e constituído por investigadores das artes digitais, humanidades e tecnologia na Universidade De Montfort (Reino Unido), o fenômeno não era inédito, mas havia adquirido nova dimensão e fôlego depois do surgimento das TIC, que aumentara os meios e as condições de interação, promovendo a possibilidade de utilização de forma simultânea e onipresente em nosso cotidiano (THOMAS et al., 2007). A autora considera que a transliteracia engloba outras formas de literacia, por meio de sua atitude catalisadora diante dos diferentes meios e formas de comunicação, digitais e não digitais. Para ela, a transliteracia possui ainda um papel cultural significativo, na medida em que indivíduos não só devem saber usar os diferentes meios, como também os conceitos inerentes a meios anteriormente utilizados, adaptando-os e transpondo-os para outros meios mais recentes. Ou seja, a transliteracia propõe aos indivíduos uma perspectiva diacrônica e sincrônica das sociedades (THOMAS et al., 2007).
Os trabalhos mais recentes de Suzana Sukovic (2006; 2016), responsável pelo Learning Resource Centre no St. Vicent´s College, na Austrália, caminham em direção semelhante às contribuições de Thomas et al. (2007), mas acrescentam objetivos e a perspectiva da criatividade na manipulação de informações em sistemas complexos. A autora, que atua na área de Ciências da Informação, lida com projetos de inovação no âmbito de bibliotecas e possui metodologias para aplicar a transliteracia, como competência para organizar, disponibilizar, consultar e recriar sistemas de informação de grandes dimensões e complexidade. Boa parte de sua experiência profissional deu-se na estruturação de projetos de busca, catalogação, inovação e gestão de bases de dados de bibliotecas inseridas na cultura digital.
Sukovic (2016) aborda a transliteracia como um movimento fluído que atravessa uma série de contextos diferentes, que relaciona habilidades e transferência de conhecimentos como pressupostos para aprendizagem e estímulo à criatividade. Em seu trabalho mais recente (SUKOVIC, 2016), a autora propõe um modelo conceitual que nomeou como “pallet de transliteracia ”, o qual se assemelha a um pallet de aquarela, constituído por cinco aspectos em cores diferentes, que traduziriam as capacidades da transliteracia: acesso à informação, capacidade de uso das TIC, comunicação colaborativa, criatividade aplicada e pensamento crítico.
“Esse modelo proposto para a transliteracia tem o objetivo de resolver a lacuna entre a visão genérica e fluída sobre seu conceito e as aplicações práticas. A transliteracia acontece como parte da aprendizagem ao longo da vida e uma variedade de contextos formais e informais. (...) Transliteracia se expressa na soma de capacidades, conhecimentos, pensamentos e ações, que permitem um movimento transversal dentre as possibilidades de literacias e que é afetado pelos contextos situacionais, sociais, culturais e tecnológicos.” (SUKOVIC, 2016, p. 3)
Frau-Meigs (2011, 2013, 2014), da área de Comunicação da Universidade de Sorbonne, França, atua em projetos que envolvem literacias e as competências necessárias para a aprendizagem ao longo da vida; seu laboratório de práticas são as políticas de aprendizagem ao longo da vida (lifelong learning) na União Europeia. A emergência das TIC promoveu essa possibilidade de interação e a ligação imediata a diferentes meios, de forma simultânea, levando a uma mudança de paradigma que altera toda a sociedade, em seus níveis econômico, político, social, cultural e também individual (FRAU-MEIGS, 2011, 2013).
Segundo ela, a transliteracia surge como um conceito que prevê os diferentes significados agora atribuídos às literacias, no uso de tecnologias e dos novos meios (FRAU-MEIGS, 2013). A autora defende uma perspectiva integrada na qual a transliteracia assumiria três áreas: a infoliteracy, baseada na capacidade de utilização e verificação de dados e documentos; a medialiteracy, baseada na utilização crítica da mídia; e a computerliteracy, baseada na utilização crítica das plataformas digitais, incluindo o conhecimento técnico em relação às funcionalidades, design e coding (programação).
Frau-Meigs também confere à transliteracia o status de transversalidade na comunicação e nos meios, relacionando não só os tipos de comunicação, mas também os fatores e processos cognitivos, comportamentais, educativos e sociais inerentes às mídias:
“Neste universo digital complexo, a noção do transliteracia tenta avançar para além dos modelos atuais focados em competências, criatividade e cidadania (apesar de não descartá-los). Tal noção abarca um sistema mais integrado para a criação, a edição e a interpretação de conteúdos em relação às práticas e às finalidades dos usuários.” (...) “O prefixo “trans-” sugere ao mesmo tempo a procura da transversalidade na apropriação e de reescrita da informação, mas também a capacidade que cada qual tem de trasladar às aquisições anteriores em meio ambientes diversos e contextos informacionais variados (...) O prefixo aponta ainda para posturas de ensino que não apenas ocorrem no meio escolar.” (FRAU-MEIGS, 2014, p.4)
Os trabalhos de Lemke (2002, 2010, 2011) serão centrais no desafio de desenhar as travessias possíveis entre linguagens, tecnologias e literacias. Lemke traz o conceito dos transmedia traversals (LEMKE, 2002), levando-nos a refletir que os sujeitos, em suas experiências sociais, constituem-se como parte de sistemas mais amplos de práticas, em redes heterogêneas, dispostas e atuantes em travessias transmidiáticas (BUZATO, 2009, 2010, 2016).
DA EDUCAÇÃO PARA A APRENDIZAGEM AO LONGO DA VIDA
A educação para adultos, durante a vida, é um direito humano e social (GADOTTI, 2011). Esse pensamento relaciona educação como prática efetiva para a redução das desigualdades e para a inserção social. Desde a segunda metade do século XX, essa concepção ajudou grupos de pessoas em estado de diáspora, que se viram desafiados a aprender novos idiomas e vivências sociais, pois deixaram para trás seus países em guerra ou assolados por catástrofes e miséria (BRUNAUTH; COSTA; PALMA, 2017). Nesse contexto de apoio na reconstrução e de redução de desigualdade, surgiram também práticas informais e comunitárias, além das possibilidades criadas pela disseminação das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC), desde fins do século XX, que facilitaram o acesso, a produção, a edição e a distribuição de conteúdos em todo o mundo (TAPSCOTT, 2010) e que se configuram como novos aportes ao aprendizado durante a vida.
A “educação permanente” é tema importante neste neste artigo pois, a um dado momento, aconteceu uma “metamorfose discursiva”, termo utilizada pela pesquisadora Barros (2012), da Universidade de Algarve, Portugal, que se dedica a pesquisar o binômio conceitual da ‘educação permanente’ e da ‘aprendizagem ao longo da vida’ para explicar sua transformação.
A autora constata que a abordagem relacionada à educação permanente (responsabilidade dos Estados) foi sendo transformada, ao longo dos anos e de interesses específicos, em aprendizagem ao longo da vida (responsabilidade dos indivíduos). Para Barros (2012), a simples mudança de termos não é inofensiva nem casual, mas sim representante de um discurso que define novos papéis e responsabilidades para a educação de adultos.
Segundo Barros (2012), foram as agências organizadas da ONU, que, depois da 2a Guerra, sistematizaram o conceito sobre a educação adulta e criaram as condições para que este se tornasse um campo específico e fértil em pesquisas e práticas. No Brasil, a grande contribuição ao tema foi a obra de Paulo Freire (1995,1996). Freire centrou sua abordagem na relação entre a educação e a vida real, tendo por foco o papel do educador na transformação da sociedade. O termo ‘educação permanente’, nas obras de Freire, é especialmente direcionado ao professor, já que ele escreveu visando a formação de docentes e a reafirmação do papel essencial que teriam na escola e na vida como agentes de transformação.
A formação permanente idealizada por Freire parte da ideia de inconclusão e do inacabamento dos seres humanos, considerando os sujeitos como seres que estão em construção. Ao destacar a educação como um processo permanente, ele qualifica os seres humanos como seres de busca, seres históricos capazes de construir sua trajetória ao participar ativamente com os outros no mundo, que vivem, criam, produzem e aprendem. (PORTO; LIMA, 2016, pg.10).
Nos anos 80, na contramão dessa concepção, propostas neoliberais conhecidas como “ Consenso de Washington” - anunciadas como a salvação do mundo (BANDEIRA, 2002) desembarcaram na América Latina, alterando projetos na área econômica, social e educacional. Desenvolvida sob a anuência dos países mais ricos, em especial dos Estados Unidos e Inglaterra, o documento ditava dez regras básicas do Consenso como a única alternativa aos países em desenvolvimento para que esses pudessem sair da retração econômica. De acordo com Bandeira (2002), os governos dos países latino-americanos foram submetidos a um sem número de exigências que os deixariam ainda mais vulneráveis. Segundo Silva (2005), a educação brasileira recebeu grande parte desses efeitos durante as últimas décadas, com o sucateamento do ensino público e a descontrolada criação de institutos de ensino superior privados e sem qualidade.
No final da década de 80, nascia o embrião da visão atualmente hegemônica a respeito da aprendizagem ao longo da vida. Esse foi o ritual de passagem, a “metamorfose discursiva” a que se refere Barros (2012), a partir do qual ‘educação permanente’ cede espaço definitivamente para a ‘ aprendizagem ao longo da vida’. Auto afirmando-se como verdade única, a agenda da aprendizagem ao longo da vida tem a competitividade como um elemento de expressão máxima da educação para adultos. Nessa perspectiva, a aprendizagem alimenta a engrenagem da lógica econômica (SILVA, 2015), amarrada ao conceito de competência - conhecimentos, habilidades e atitudes, encapsuladas no acrônimo CHA (DUTRA, 2004) e que deve ser condizente com as necessidades do mercado de trabalho.
A discussão sobre 'educação ao longo da vida' (com grande papel aos Estados) cedeu espaço para a crescente importância da 'aprendizagem ao longo da vida', que se tornou, inclusive, uma nova métrica de sucesso para cada indivíduo, que deveria estar apto a tomar as rédeas do seu aprendizado e a se reinventar quantas vezes fosse necessário.
Castells (2009) é contumaz ao afirmar que as noções de produtividade e competitividade constituem os principais alicerces da nossa economia informacional global, desde fins do século XX.
“Uma diferença importante refere-se ao que eu chamo de ‘mão-de-obra genérica’ de ‘mãode-obra auto-programável’. A qualidade crucial para a diferenciação desses dois tipos de trabalhadores é a educação. (...) Educação é o processo pelo qual as pessoas, isto é, os trabalhadores, adquirem capacidade para uma redefinição constante das especialidades necessárias à determinada tarefa (...). Qualquer pessoa instruída e em ambiente organizacional adequado poderá reprogramar-se para as tarefas em contínua mudança no processo produtivo.” (CASTELLS, 2009, pg. 417)
CONCLUSÃO
São inegáveis os deslocamentos da educação contemporânea, tendo por base, entre vários outros aspectos, as políticas de internacionalização dos sistemas educacionais, os interesses mercadológicos na educação dentro do capitalismo informacional e a ausência de compreensão mais aprofundadada sobre os impactos das TIC nos processos de educação, tanto no ensino como na aprendizagem.
O que este artigo se propôs a refletir é também a necessidade de uma abordagem transdisciplinar para este debate, já que ele não se dá de forma isolada em uma única área. Esta autora pesquisa e é entusiasta do que poderia ser qualificado como uma terceira via, na qual se preserva a discussão e a importância sobre a educação formal e permanente, mas a ela se agregam as possibilidades trazidas pelas tecnologias digitais e por espaços nos quais sejam possíveis construir conhecimento e habilidades, percepção de mundo, práticas sociais relevantes para o entorno, com autonomia. Dado o contexto dos deslocamentos e desmontes, não é possível concordar com eles. Mas também se argumenta que seria utópico negá-los ou ainda considerar que seria manobra simples a criação de modelos educacionais totalmente apartados da lógica do capitalismo informacional, especialmente se pensarmos na grande maioria dos cidadãos, que sequer têm acesso à formação educacional de qualidade.
Os impactos gerados pelo novo 'ethos' de um mundo em rede, que se organiza em tribos e lugares de fala específicos, somam-se às possibilidades geradas pela disseminação em larga escala das TIC e da vasta quantidade de informação e de acessos disponíveis no mundo contemporâneo. O estudo sobre literacias midáticas, informacionais, digitais, computacionais... é fundamental, bem como a condução ética e crítica da tessitura narrativa que se dará entre elas.
É importante debater alternativas para a aprendizagem ao longo da vida que possam significar contraponto ao hegemônico e continuidade em busca do processo de autonomia. O indivíduo deve estar preparado para essa realidade que ele também construirá por conta própria, por meio da educação para os meios, de literacias midiáticas e críticas, de práticas sociais que agreguem ao seu entorno, dentro de um cenário que é cada vez menos positivista e mais complexo.