É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural. (BORDIEU, 2007, p. 41)
Introdução
A proposta de realização dessa pesquisa nasceu a partir de uma preocupação sobre qual seria o conceito de Ensino Médio Integrado (EMI) para o corpo docente do IFTM Campus Uberlândia, localizado na zona rural, a cerca de 25 km do centro da cidade de Uberlândia-MG, em uma região conhecida como Fazenda Sobradinho. A instituição foi fundada em 1957 e oferta, no corrente ano de 2019, quatro cursos de Ensino Médio integrados à Educação Profissional: Agropecuária, Manutenção e Suporte em Informática, Alimentos e Meio Ambiente.
O EMI surgiu a fim de articular dois polos, a educação para a vida e a educação para o mercado de trabalho, ou seja, o Ensino Médio regular, ofertado em escolas durante os comuns 3 anos de duração e constituído de disciplinas fragmentadas por áreas de conhecimento, e a Educação Profissional, ofertada por meio dos cursos técnicos profissionalizantes, destinados à capacitação de trabalhadores para o exercício de uma profissão.
Dessa forma, a fim de investigar o conceito de EMI para 16 docentes ativos e efetivos do IFTM Campus Uberlândia, acreditamos ser indispensável questioná-los inicialmente quando e como foi o seu primeiro contato com esse nível de ensino. Este artigo objetiva, portanto, apresentar os relatos e experiências desses 16 professores atuantes no EMI em relação ao seu primeiro contato com a integração de ensino. Neste artigo adotamos como sinônimos os termos integração de ensino, Ensino Médio Integrado e formação integrada.
Os 16 docentes entrevistados foram selecionados por meio de seus currículos cadastrados na Plataforma Lattes. A análise prévia do currículo Lattes nos auxiliou principalmente na escolha dos docentes atuantes na Educação Profissional, na tentativa de selecionarmos para as entrevistas primeiramente aqueles que tivessem formação acadêmica exclusiva em bacharelado, de modo que pudéssemos realizar as investigações acerca do confronto entre docentes bacharéis e docentes licenciados. Dessa forma, com propósito analítico-interpretativista, esta pesquisa valeu-se de dados de natureza qualitativa, coletados via entrevistas individuais com 16 docentes de cargo efetivo, dos quais 8 bacharéis e 8 licenciados.
As entrevistas foram gravadas por meio de gravador de voz portátil, para fins de registro das respostas, transcrição e análise, haja vista terem sido realizadas de forma presencial, em 2018. O gravador de voz foi utilizado pelo pesquisador de maneira discreta, no intuito de não motivar nenhum desconforto ao entrevistado ou interferir na construção de respostas espontâneas às indagações que realizamos, as quais perduraram em média 33 minutos, variando entre 16 a 57 minutos de duração. Todos os nomes pessoais foram substituídos por pseudônimos, e as informações que, de alguma forma, revelassem a identidade dos entrevistados foram reestruturadas no intuito de preservar o anonimato do sujeito.
Cientes de que doravante utilizaremos apenas pseudônimos, relacionamos na Tabela 1, a seguir, o ano de conclusão de sua graduação e o ano de primeiro contato com a instituição de cada docente entrevistado. Embora a criação dos Institutos Federais tenha ocorrido apenas em 2008, relembramos que anteriormente a instituição já existia, porém com outra nomenclatura. Sendo assim, consideramos nesta tabela o ano em que o docente ingressou na instituição (seja na Escola Agrotécnica, no CEFET ou no atual Instituto Federal), no próprio Campus Uberlândia ou em outros campi da Rede. Nesse primeiro contato consideramos qualquer tipo de vínculo empregatício, tendo em vista que muitos docentes conheceram a instituição enquanto atuavam como docentes temporários ou substitutos.
Entrevistado | Conclusão da graduação (ano) | Primeiro contato com a instituição (ano) |
---|---|---|
Diego | 1982 | 1991 |
João | 2003 | 2010 |
Bruno | 2005 | 2010 |
Mariana | 1995 | 2012 |
Gabriel | 2002 | 2010 |
Sarah | 2006 | 2007 |
Pedro | 1999 | 2001 |
Beatriz | 2007 | 2014 |
Eduardo | 2003 | 2010 |
Ana | 1987 | 1999 |
Davi | 1996 | 2006 |
Felipe | 2005 | 2014 |
Carolina | 1998 | 2010 |
Rodrigo | 2009 | 2012 |
Laura | 2009 | 2010 |
Lucas | 2006 | 2014 |
Fonte: O autor (2018).
Dado o exposto, trouxemos, neste artigo, os relatos dos docentes entrevistados sobre quando e como foi o seu primeiro contato com esse nível de ensino, partindo do pressuposto de que os docentes conheceram o EMI, mesmo que superficialmente, apenas durante as expectativas de aprovação em um concurso público que lhe traria estabilidade na carreira e remuneração satisfatória. Para isso, investigamos se a graduação cursada pelo docente (licenciatura ou bacharelado) trouxe conteúdos ou discussões específicas sobre o Ensino Médio Integrado, ou quiçá sobre Educação Profissional. Questionamos ainda, os licenciados e os bacharéis, se a docência já se constituía como projeto de sua carreira profissional durante a graduação, ou se foi uma escolha fortuita ao longo da vida, com o propósito de conhecermos as ansiedades tidas por eles no momento em que foram nomeados docentes do EMI.
Recortes teóricos
O autor Sérgio Bagu (1992), ao tratar das grandezas do tempo, assinala que o tempo computado como um período histórico não se expressa necessariamente por uma data simbólica, mas pelos acontecimentos que se tornaram significativos e passam a valer como marco histórico. Neste tópico abordamos alguns recortes teóricos mais relevantes acerca da origem do EMI, desde as antigas Escolas de Aprendizes Artífices no início do século XX até os atuais Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia presentes por todo o Brasil, a fim de contextualizar o EMI em uma perspectiva histórica e embasarmos as experiências dos docentes pesquisados sobre o primeiro contato com esse tipo de ensino.
A história do EMI se inicia em 1909, quando o então Presidente da República, Nilo Peçanha, cria dezenove Escolas de Aprendizes Artífices por meio do Decreto nº 7.566 em 23 de setembro, as quais mantiveram-se subordinadas ao Ministério dos Negócios da Agricultura, Indústria e Comércio. De acordo com o texto literal do respectivo Decreto, tais escolas objetivaram não somente habilitar os filhos dos desfavorecidos da fortuna com o indispensável preparo técnico e intelectual, como também fazê-los adquirir hábitos de trabalho profícuo, que os afastariam da ociosidade ignorante, da escola do vício e do crime.
Em tradução crítica das intenções perseguidas pelo Decreto, compreendemos o propósito de incentivar a nova classe social que surgia em vender a sua força de trabalho, habituando-os em atividades produtivas e fabris, historicamente desvalorizadas por relacionarem-se ao trabalho escravo. Enquanto o Governo solucionava a escassez de mão de obra operacional, disciplinava os miseráveis em seus próprios estratos sociais antes que estourasse a desordem popular, ainda assim protegia a cidade dos criminosos que eram alimentados pelo ócio.
Em 1941 vigoraram uma série de leis, conhecidas como “Reforma Capanema”. Gustavo Capanema foi o Ministro da Educação que mais tempo ficou no cargo em toda história do Brasil. Por iniciativa dele, foram promulgadas diversas leis orgânicas de ensino, reformando vários ramos do Ensino Médio. Em relação ao ensino técnico-profissional foram instituídas a Lei Orgânica do Ensino Industrial, em 30 de janeiro de 1942, e a Lei Orgânica do Ensino Comercial, em 28 de dezembro de 1943. Todavia, como o governo não possuía a infraestrutura necessária à implantação do ensino profissional em larga escala, procedeu-se à criação de um sistema de ensino paralelo, em convênio com as indústrias. O Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), contribuinte respeitável para a formação de profissionais técnicos e tecnológicos atualmente, surgiu nesse momento, através do Decreto nº 4.048 de 22 de janeiro de 1942, com a missão de formar profissionais para a incipiente indústria nacional.
Em 20 de novembro de 1996, a Lei nº 9.394 (LDB) dispõe sobre a Educação Profissional em um capítulo próprio. No ano seguinte, surge o Decreto nº 2.208, de 17 de abril, cuja característica fundamental foi a desvinculação dos ensinos médio e técnico. Nesse ano também foi criado o Programa de Expansão da Educação Profissional (Proep), uma iniciativa do MEC e do Ministério do Trabalho e Emprego que buscou desenvolver ações integradoras da educação e do trabalho, da ciência e da tecnologia, objetivando um novo modelo que proporcionasse a ampliação de vagas, a diversidade de oferta e a definição de cursos adequados às demandas do mercado do trabalho.
Em interpretação crítica, o Decreto nº 2.208/1997 colaborou para manter o dualismo educacional entre formação geral e formação profissional, tão característico da Educação Profissional brasileira, distanciando ainda mais a preparação para o ingresso no ensino superior e a formação técnica para o ingresso no mercado de trabalho. O argumento utilizado pelo Governo Fernando Henrique Cardoso construiu-se em um discurso que afirmava a adequação às mudanças de ordem econômica, indispensáveis à empregabilidade e à competitividade no mercado de trabalho.
Anos depois, durante o Governo de Luiz Inácio Lula da Silva, o Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004 permitiu a integração da Educação Profissional de nível médio ao próprio Ensino Médio, revogando o anterior Decreto nº 2.208/1997. Historicamente, houve variados questionamentos acerca da forma utilizada para a implementação de uma nova concepção de Ensino Médio e Educação Profissional e Tecnológica, quando três posições se evidenciaram nesse debate, conforme as ideias de Frigotto, Ciavatta e Ramos (2012). A primeira delas acreditava apenas na revogação do Decreto nº 2.208/1997 e em pautar a nova política de Ensino Médio e Educação Profissional na própria LDB em vigor (Lei nº 9.394/1996) por entender ser a efetivação de mudanças através de outro Decreto continuidade ao método impositivo do governo anterior. A segunda posição defende a manutenção do Decreto nº 2.208/1997 e na criação de outros documentos que indiretamente regulamentariam alterações mínimas. Por fim, a terceira posição acreditava na revogação do Decreto nº 2.208/1997 e na promulgação de um novo decreto.
Já pela Lei nº 11.195, de 18 de novembro de 2005, ocorreu a expansão da oferta da Educação Profissional preferencialmente pela parceria com Estados, Municípios e Distrito Federal, ou também com o setor produtivo ou organizações não governamentais, que seriam responsáveis pela manutenção e gestão dos novos estabelecimentos de ensino. No mesmo ano, foi lançada pelo Governo Federal a primeira fase do Plano de Expansão da Rede Federal, com a construção de 60 novas unidades.
A segunda fase do Plano de Expansão da Rede Federal foi lançada em 2007, quando também foi iniciado o Programa Brasil Profissionalizado, por meio do Decreto nº 6.302, de 12 de dezembro, com vistas a estimular o Ensino Médio integrado aos Cursos Técnicos, enfatizando a educação científica e humanística, por meio da articulação entre Educação Propedêutica e Educação Profissional no contexto dos arranjos produtivos e das vocações locais e regionais.
Em 2008, foi instituída a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica e a criação dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), por meio da Lei nº 11.892, de 29 de dezembro. A Rede Federal cobre todo o território nacional e já alcança cerca de 568 municípios, prestando serviços à nação ao dar continuidade a sua missão de qualificar profissionais para os diversos setores da economia brasileira; realiza pesquisas e desenvolve novos processos, produtos e serviços em colaboração com o setor produtivo. É composta pelas seguintes instituições: a) Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia - Institutos Federais, b) Universidade Tecnológica Federal do Paraná - UTFPR, c) Centros Federais de Educação Tecnológica (Celso Suckow da Fonseca - CEFET-RJ e CEFET-MG), d) Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais e d) Colégio Pedro II.
Os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia absorveram os CEFETs e Escolas Técnicas remanescentes, tornando-se instituições de educação superior, básica e profissional, pluricurriculares emulticampi, especializados na oferta de Educação Profissional e Tecnológica nas diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de conhecimentos técnicos e tecnológicos com as suas práticas pedagógicas.
A Figura 1 mostra dois mapas que mostra o aumento quantitativo de instituições pertencentes à RFEPCT, o primeiro deles em 1909 com as já mencionadas dezenove Escolas de Aprendizes Artífices e o segundo em 2010, com a criação de mais 214 novas unidades, totalizando 356 instituições ativas nesse ano.
Fonte: Portal da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Centenário da Rede Federal de Educação Profissional e Tecnológica. Acesso em: 15 mai. 2018. (Houve alteração na imagem, para fins demonstrativos).
Em 2016, a RFEPCT totalizou 644 campi em funcionamento.
Fonte: Portal da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. Expansão da Rede Federal. Acesso em: 15 maio 2018.
Como visto na Figura 2, a RFEPCT apresentou crescente expansão em sua estrutura física, desde a sua origem em 1909. Por consequência, o quantitativo de matrículas também se mostrou progressivo segundo dados coletados por meio de relatórios do Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica (CONIF).
O Gráfico 1 demontra que a RFEPCT adquiriu, desde 2010, crescente aumento no número de matrículas, o que pode ser resultado das políticas de divulgação e expansão da Rede pela Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica do Ministério da Educação (Setec4/MEC). Entretanto, o cenário financeiro não acompanhou de forma equivalente o aumento de alunos inscritos na Rede. Desde o final de 2015, o repasse de recursos financeiros pela Setec/MEC à RFEPCT tem caído consideravelmente; ocasionando uma queda de 700 milhões de reais (Gráfico 2).
Em 2018, com 109 anos de criação, a Rede Federal contava com 38 institutos federais, 11 deles na região nordeste e 10 na região sudeste, alcançando a marca de 655 unidades em atividade no país, de acordo com a Portaria nº 118, de 14 de fevereiro de 2018, do Ministério da Educação. Conforme preceitos da lei de sua criação (inciso I, artigo 7º da Lei nº 11.892/2008), os IFs devem ministrar Educação Profissional técnica de nível médio, prioritariamente na forma de cursos integrados, para os concluintes do ensino fundamental e para o público da educação de jovens e adultos, em no mínimo 50% de suas vagas. Sendo assim, o Ensino Médio integrado aos Cursos Técnicos torna-se prioritário dentre as demais ofertas educacionais dos Institutos Federais. Ainda que mencionado literalmente na legislação retrocitada, o conceito do termo integrado permaneceu obscuro por não ter sido devidamente elucidado nessa normativa.
Recortes analíticos
Com fulcro nos postulados históricos expostos anteriormente, percebemos que o termo Ensino Médio Integrado passou a vigorar com frequência em razão do Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004. Para isso, perguntamos inicialmente aos 16 entrevistados quando havia sido o seu primeiro contato com o EMI. Dentre os 16 docentes, 15 disseram ter conhecido o EMI apenas quando ingressaram na Rede Federal, isto é, durante a preparação para o concurso público e posterior nomeação no cargo. E 1 deles, Davi, relatou o seu primeiro contato, em 1998, por meio da Escola Técnica de Formação Gerencial.
Tinha uma unidade aqui em Uberlândia, tinha uma unidade em Patos de Minas. Foi o primeiro contato que eu tive com esse universo do Ensino Médio integrado a um aspecto técnico. Era era escola de formação gerencial, então, minha missão era dar aulas de Administração (Davi - licenciado e bacharel).
Prosseguindo à entrevista e já iniciados na temática investigada, questionamos os docentes quanto à sua preparação para o EMI durante o período da graduação, a fim de observarmos se houve alguma discussão acadêmica sobre o próprio EMI ou até mesmo sobre Educação Profissional, tendo em vista que o fato de muitos deles terem terminado a sua graduação há muitos anos e, inclusive, antes mesmo das noções de formação integrada serem pensadas pelos estudiosos. Para essa pergunta, novamente não identificamos distinções entre docentes licenciados e bacharéis, pois todos os entrevistados afirmaram não terem participado de nenhuma disciplina que discorresse sobre formação integrada ou sobre Educação Profissional. Vejamos algumas afirmações:
Não me lembro em momento nenhum terem tocado nesse assunto (Eduardo - licenciado em 2003).
Eu tive bastante disciplina pedagógica, na área pedagógica. Mas, voltado para o ensino integrado, eu não me recordo de ter nenhum texto ou discussão, com nenhum dos professores (Diego - licenciado em 1982).
Não. Nunca. Na época da graduação nem sabia, nem conhecia a Educação Profissional (Ana - bacharel em 1987).
Não. Em termos de ambiente formativo dentro da Instituição, do curso de licenciatura, não existia essa formação de pensar: - Olha, você vai atuar no Ensino Fundamental, no Ensino Médio, em escola de formação integrada. Não existia isso. Eu não tive isso (Davi - licenciado e bacharel em 1996).
Ainda que o docente entrevistado graduado mais recentemente tenha finalizado o curso no ano de 2009, percebemos que, até entre os licenciados, não há discussões sobre práticas pedagógicas relacionadas ao EMI no momento da graduação. Mesmo que possamos considerar o Decreto nº 5.154, de 23 de julho de 2004, como marco inicial para os pensamentos sobre formação integrada, parece-nos que o EMI permaneceu desconhecido e invisível aos olhos dos profissionais da educação nesses 15 anos de vigência. Tal fato apresenta-se um ao considerarmos a crescente expansão territorial dos Institutos Federais ao longo dos anos e o progresso na sua difusão entre a população, como vimos nas Figuras 1 e 2.
Outra questão que saltou aos nossos olhos se refere às motivações que cercearam a escolha dos docentes bacharéis pela atuação enquanto professor, para isso questionamo-los se pensavam em atuar como docentes durante a graduação, em bacharelado. Dentre os 8 docentes bacharéis, 1 deles apresentava dupla formação (licenciatura e bacharelado); portanto, dentre os 7 docentes restantes, puramente bacharéis, 4 afirmaram sempre terem pensado em atuar enquanto docentes, mesmo durante o bacharelado.
Sim. Desde pequeno eu já sabia. Fiz a minha formação todinha pensando nisso. Eu já fui assim, por exemplo, eu fui mais bolsista de projeto de ensino, coisa que só eu, da minha turma toda, foi. Todo mundo preferiu projeto de pesquisa ou projeto de extensão [...] Mas, aí tinha um de ensino que sempre sobrava bolsa, aí eu sempre peguei esse (Rodrigo - bacharel).
No enunciado de Rodrigo, percebemos que os projetos voltados para a área de ensino eram menos desejados pelos seus colegas bacharéis de curso, em virtude de sempre sobrarem vagas em aberto, o que sugere a ideia de que as práticas de ensino entre os acadêmicos em bacharelado não se mostravam tão prestigiadas quanto àquelas voltadas para atividades de aplicação, desempenho ou até mesmo para a pesquisa científica em si. Pelo enunciado de Ana também observamos a presença de certa desconsideração pela prática docente.
Eu sempre gostei. Desde criança eu queria ser professora. Eu não queria assim... inicialmente eu não queria fazer meu curso. Queria ser professora. [...] Meu pai falou que não... que não. Ele tinha muito preconceito, ele falava: - Não, mas você tem que fazer uma coisa que você vá ser independente. E ele achava que, como professora, não seria bem sucedida profissionalmente (Ana - bacharel).
Nos casos de Rodrigo e Ana, ainda que tenham cursado bacharelado e convivido direta ou indiretamente com condutas e posicionamentos que sinalizavam a desvalorização da prática docente, a afinidade pela docência encontrou caminhos em meio às oportunidades profissionais para que se desenvolvessem e, enfim, atuassem enquanto professores. Da mesma forma, os 3 docentes restantes que mencionaram não terem pensado em docência durante a graduação em bacharelado, afirmaram terem sido imersos no universo do ensino em razão de inesperadas oportunidades profissionais ou por terem apostado na profissão ainda que essa não fosse a sua preferência.
Minha ideia era fazer um curso que me possibilitasse qualquer coisa (risos). E eu acertei em cima. Que te possibilita muita coisa. [...] Como eu já tinha sido professor substituto aqui né [...] Aí depois eu entrei como professor. [...] Trabalhava aqui já, né. Já tinha sido professor substituto, temporário. Já conhecia aqui (Pedro - bacharel).
Mas, já na minha área, eu não pensava em trabalhar como professor, né. [...] Eu nem pensava em fazer mestrado, meu desejo era formar e trabalhar. E aí, na época, o meu orientador falou assim: - Por que você não tenta o mestrado? [...] Por que você não presta, e depois, se você passar no processo seletivo, aqui e na empresa, aí você escolhe. E o que aconteceu foi que eu não passei na seleção da empresa e passei no mestrado. E aí acabei ficando (Gabriel - bacharel).
Como vemos nos enunciados de Pedro e Gabriel, ambos não pensavam em atuar enquanto professores. Pedro viu a possibilidade de permanecer na instituição em que já havia trabalhado anteriormente, e por já estar ambientado acreditou ser uma alternativa para a sua carreira profissional. Gabriel, em consequência de sua não aprovação no processo seletivo de funcionários para uma empresa, acabou por prosseguir nos estudos acadêmicos por meio do mestrado, entretanto ressaltamos alguns atravessamentos discursivos na fala de Gabriel.
Mas, durante a graduação e mesmo no mestrado, o meu pensamento era trabalho. [...] Eu pensava muito em ganhar dinheiro. Então, falava assim: - Eu quero ir trabalhar, eu quero trabalhar. Então, eu não pensava em... apesar de trabalhar como professor de Inglês, não era na área minha de formação né, mas eu não pensava em ser professor dessa minha área (Gabriel - bacharel).
Nos trechos acima, podemos dizer que a palavra trabalho, empregada por Gabriel, adquire efeito de sentido bem restrito ao que dispõe o seu comum significado nos dicionários, ainda mais específico ao que elucida Ramos (2008) ao apontar os sentidos ontológico e econômico do trabalho. Ao ser questionado se pensava em atuar como docente durante a sua graduação em bacharelado, Gabriel diz “Eu não pensava em trabalhar como professor. Eu nem pensava em fazer mestrado, meu desejo era formar e trabalhar”. Em termos empíricos, Gabriel não pensava em trabalhar como professor, mas pensava em se formar e trabalhar (esclarecemos: trabalhar em qualquer atividade condizente à sua formação bacharel). Com esses enunciados, depreendemos um efeito de sentido: a ideia de que atuar como professor pode ser considerada uma profissão distante do conceito de trabalho, ou seja, atuar como professor não seria uma forma de trabalho, visto que a ideia de trabalho, para Gabriel apresenta um conceito associado exclusivamente às atividades características do bacharel.
Já Sarah pensava em atuar dentro da indústria, e despertou seus pensamentos sobre docência durante o estágio, ao final do curso.
Não. Jamais pensei (risos). [...] Não passava pela minha cabeça. Não pensava mesmo. [...] Comecei a pensar depois que eu fiz o estágio, mais pro final do curso, aí eu fiz o estágio na indústria (Sarah - bacharel).
Ainda que essa pergunta não tenha sido pensada em razão dos docentes licenciados, haja vista que a escolha por um curso de licenciatura já manifesta a predisposição do sujeito para a atuação enquanto professor, 2, dentre os 8 docentes licenciados, afirmaram não terem pensado na docência de imediato, no início do curso. Um deles é João, com dupla formação em licenciatura e bacharelado.
Quando surgiu o curso, que era a primeira turma, eu fiz o vestibular, mas com a intenção mesmo, assim, de estudar, de conhecer um pouco mais sobre o tema que eu já estudava. Mas, aí mais no final do curso surgiram umas oportunidades de aula (João - licenciado e bacharel).
Assim como João, Carolina não pensava em atuar como professora, mesmo em um curso voltado exclusivamente à licenciatura.
E a minha irmã me encantou com essa possibilidade de trabalhar na educação. Mas, eu não me via como professora, em hora nenhuma. Não sentia, assim, que eu tinha perfil, né. Sempre tímida, ao mesmo tempo não me via preparada, né. [...] Então, foi por isso... que, no início, eu não tinha, assim, essa certeza, sabe? Aliás, eu nem pensava muito, eu só queria ter a graduação porque eu sempre tive em mente que todos nós temos que ter um ensino superior, porque ele abre possibilidades, mas eu não me via como professora (Carolina - licenciada).
O sentimento de insegurança para atuação enquanto professora, demonstrado pelo relato de Carolina, vai ao encontro dos postulados freirianos. “A insegurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, a que se funda na sua competência profissional. Nenhuma autoridade docente se exerce ausente desta competência.” (FREIRE, 2009, 91-92) Em segunda instância, a frase inicial do excerto acima legitima as considerações do já citado Tardif (2005) acerca da ideia de “mentalidade de serviço”, quando Carolina revela ter sofrido influências de sua irmã na escolha de seu curso.
A esse respeito, Atkinson & Delamont (1985) apontam uma idéia interessante com relação ao “auto-recrutamento” para o magistério: eles notam que, embora a experiência pessoal na escola seja significativa na escolha do magistério, ela seria menos importante do que o fato de ter parentes próximos na área da educação, o que refletiria um recrutamento ligado à tradição oral dessa ocupação, aos efeitos da socialização por antecipação (Lortie, 1975) no ofício de professor, efeitos esses induzidos pela observação, em casa, do habitus familiar e de um dos pais concentrado em tarefas ligadas ao ensino (TARDIF, 2005, p. 76, grifos do autor).
Em sequência, perguntamos a eles o que sentiram quando foram nomeados professores do EMI, no intuito de apreendermos ansiedades, inquietações ou expectativas quanto à formação integrada de ensino. Partimos do pressuposto de que a ausência de licenciatura para os docentes bacharéis pudesse dificultar a sua atuação pedagógica em sala de aula, o que se acentuaria perante o EMI por ser um novo nível de ensino que demanda ainda novas metodologias e postura docente.
E quando eu tive que lidar com o EMI, que foi logo no meu primeiro ano, eu tive medo, eu tive medo. Eu lembro da minha primeira frase, “Mas, eu não fui preparado para isso”. A minha primeira frase para a minha, então, coordenadora de ensino foi essa: - Eu não fui preparado e eu não me sinto apto. Trabalhar com o Ensino Médio me trouxe medo, me trouxe um pouco de receio de apreensão (Bruno - bacharel).
No entanto, alguns docentes bacharéis relataram já deterem noções prévias sobre o que seria o EMI ou noções características de um Curso Técnico. Ana, como podemos conferir na Tabela 1 retrocitada, entrou na instituição no ano de 1999, momento em que ainda não estava implementado o EMI na Rede Federal, contudo ela relata sua experiência anterior com Educação Profissional, o que interferiu em suas impressões ao ser nomeada docente da instituição.
Eu entrei pro SENAI em 1992 e lá tava se montando o Curso Técnico em Alimentos, ia ser implementado. [...] Então, aí foi o meu primeiro contato com a Educação Profissional, de nível médio [...] em termo de contato com a Educação Profissional, eu já tinha uma certa experiência [...] só que assim, aí o SENAI, pra mim foi o conflito maior, era nada integrado. Eu conheci a Educação Profissional e os objetivos da Educação Profissional, não integrada. [...] Não tinha integrado. As primeiras falas foram já nos anos 2000, 2004 mesmo, que a gente tem aí as primeiras diretrizes do EMI. Foi no Governo Lula mesmo (Ana - bacharel).
Percebemos pelo trecho discursivo acima que Ana faz distinção clara entre Educação Profissional e Ensino Médio Integrado, como vimos também nos relatos anteriores de Diego e Gabriel. Sendo assim, Ana trouxe suas impressões acerca da Educação Profissional para a instituição, quando ingressou em 1999, e construiu suas concepções sobre EMI simultaneamente à sua formulação e aplicação na própria instituição.
Conclusões
Quanto ao primeiro contato com o Ensino Médio Integrado, não identificamos distinções entre docentes licenciados e bacharéis, tendo em vista que a maioria teve seu primeiro contato com o EMI dentro da própria RFEPCT. Da mesma forma, todos os 16 entrevistados informaram não terem participado de discussões durante a graduação sobre formação integrada ou Educação Profissional. Isto posto, entendemos que, apesar da crescente expansão territorial da Rede Federal, do crescente aumento no número de matrículas (Gráfico 1) e, por consequência, da crescente difusão da Rede entre a população ao longo dos últimos 15 anos, a referência ao EMI nos cursos de graduação, sejam eles de licenciatura ou de bacharelado, é insuficiente. E, ao pensarmos nas implicações dessa omissão em específico nos cursos de licenciatura, verificamos, a partir de seus discursos, que os futuros professores terminam sua formação acadêmica sem ao menos conhecer o que é formação integrada, e sua prática por meio do Ensino Médio Integrado. E ao se defrontarem com as possibilidades de ingresso em um Instituto Federal, que lhes garantiria estabilidade na carreira e remuneração mais atrativa que aquela oferecida nas redes municipais, estaduais ou até mesmo privadas, acabam por formularem suas concepções de integração de ensino já inseridos nesse contexto, compartilhando suas inquietações com os colegas, os quais, muito provavelmente, também não desfrutaram de tempo suficiente para compreenderem previamente o universo de ensino em que se estabeleceriam. Esse processo de conhecimento e consciência do que seja a integração de ensino, pelo docente recém-nomeado, no próprio contexto da instituição pode atrasar a consolidação do EMI na educação brasileira, visto que os componentes curriculares presentes nos cursos de graduação, principalmente nos de licenciatura, não abrangem os cursos integrados, ocasionando lacunas na formação docente. Tais lacunas são preenchidas por meio de capacitações formais (cursos de extensão, eventos, reuniões pedagógicas, dentre outras atividades), que acabam por se tornarem responsabilidade da própria instituição ofertante do EMI, ou informais (conversas entre professores intra e intercampi, leituras de livros e artigos etc.) E assim, para os docentes os espaços de aprendizagem, debates e reflexões sobre o conceito de formação integrada ainda são bastante limitados para que se solidifique a identidade do Ensino Médio Integrado.