INTRODUÇÃO
No âmbito das ciências da natureza, um conceito fundamental para a compreensão dos vários fenômenos é o conceito científico de densidade. A possibilidade de se valer desse constructo para realizar a categorização de substâncias permite que ele seja útil em diversos campos científicos. Na Física, por exemplo, a flutuação dos corpos juntamente com a pressão e o empuxo podem ser por ele explicados (Aguiar, 2018). Na Biologia, a densidade pode ser utilizada para apontar diferenças entre os tipos de colesterol (Merçon, 2010).
No campo da Química, o conceito é fundamental, haja vista que é utilizado como parâmetro para a compreensão de fenômenos físico-químicos, caracterização de substâncias e materiais, preparo de soluções etc. (Souza et al., 2015). A relação entre massa e volume estabelecida pela densidade torna possível operar com essas variáveis de forma mensurável, como a massa de uma substância no estado sólido, utilizando uma balança, ou se valer de definições teóricas, como no caso da massa atômica de um elemento químico, o mesmo acontece para o volume (De Melo & Amantes, 2021).
Mortimer et al. (2000) enfatizam que, devido à densidade ser uma propriedade das substâncias, alguns conceitos químicos são cruciais para seu entendimento, como os diversos modelos que se referem ao mundo atômico-molecular e as propostas que versam sobre a disposição e interações entre átomos, íons e moléculas.
No que se refere ao currículo brasileiro, o conceito de densidade é citado no documento das orientações curriculares (Brasil, 2006). Ele aparece no Quadro 1 (página 113, na seção de conhecimentos de Química), que versa sobre os conhecimentos químicos, habilidades e valores da base comum (De Melo et al., 2020). Cabe ressaltar que, atualmente, o documento que rege o currículo das escolas de nível médio é a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (2018), que não faz menção explícita ao termo para o nível médio, recomendando seu ensino no 5º ano do Fundamental II, na disciplina de Ciências - habilidade (EF05CI01) (Brasil, 2017). Todavia, o conceito é necessário para a compreensão de todas as unidades temáticas recomendadas pela base para esse nível.
Historicamente, o ensino de densidade tem se baseado fortemente em cálculos numéricos (Mortimer et al., 2000) e no estabelecimento de relações de flutuação entre líquidos diferentes. Esse fato faz com que muitos alunos acreditem que a densidade é simplesmente o resultado da razão entre massa e volume (Hawkes, 2004).
Essa perspectiva de ensino desconsidera os determinantes do valor numérico da densidade, fato que contribui para que estudantes, mesmo após terem estudado o conceito, não consigam, por exemplo, explicar o funcionamento de um densímetro (instrumento utilizado em postos de combustível para averiguar o percentual de álcool presente na gasolina), ou compreender por que a água e o álcool têm densidades distintas. Ademais, como salientam Rossi et al. (2008), o ensino de densidade é feito de forma fragmentada, o que dificulta o estabelecimento de relações entre os valores obtidos pela fórmula e os determinantes teóricos da densidade por parte dos estudantes.
Autores têm alertado que, nesse tipo de ensino, a parte qualitativa da Química fica negligenciada (Hawkes, 2004; Mortimer et al.; Rossi, et al., 2008). Isso contribui para que os alunos não consigam relacionar os conhecimentos aprendidos na escola com seu uso na sociedade, dificultando a atribuição de significado aos conhecimentos escolares.
Outra dificuldade documentada na literatura é o fato de que, para a maioria dos alunos, a densidade representa uma relação entre peso e volume e não entre massa e volume (Smith et al., 1986). Xu e Clarke (2012) afirmam que, dentre muitos conceitos científicos ensinados nas escolas secundárias, a densidade é um dos relatados como sendo mais difícil para os alunos. Em consonância com os autores supracitados, Seah et al. (2015) citam Hewson, (1986) e Smith et al. (1997), que atribuem a dificuldade de compreensão do conceito ao fato de a densidade envolver um complexo relacionamento proporcional, uma simultânea relação entre variáveis e não poder ser diretamente percebida através dos sentidos.
Com o intuito de organizar todas as perspectivas de entendimento possíveis para o referido conceito, tanto a parte do cálculo numérico quanto as teorias que explicam os valores encontrados por meio dos cálculos, empregamos a noção do perfil epistemológico (Bachelard, 1979). Por meio dela, elencamos todas as facetas do conceito científico de densidade abordadas na educação básica (De Melo et al., 2020). Ademais, construímos e validamos uma ferramenta que se configura como um sistema categórico que delimita níveis de complexidade em cada zona do perfil. Com esse sistema categórico, adaptamos e elaboramos questões sobre densidade, a fim de contemplar cada uma das zonas do perfil, assim como os níveis de entendimento de cada uma delas.
O entendimento dos estudantes acerca do conceito científico de densidade pode ser considerado uma variável latente. Variáveis latentes não podem ser diretamente acessadas, mas mudanças em variáveis observáveis evidenciam mudanças nas variáveis latentes (Golino & Gomes, 2015). Nessa perspectiva, ao considerarmos que em um teste de conhecimento o traço latente a ser acessado pode ser definido como o entendimento de determinado estudante sobre um conceito, as variáveis observáveis são as respostas aos itens do questionário. Todavia, essa conexão não é realizada de forma trivial, mas estabelecida teoricamente. Somente a partir desse passo, instrumentos podem ser construídos. A dificuldade de acessar traços latentes implica em uma demanda para a construção de instrumentos de medidas mais fidedignos e confiáveis (Amantes & Oliveira, 2012), e uma consequente necessidade de procedimentos metodológicos mais robustos para atender a esse propósito (Greca, 2002; Silva, 2015; Castro, 2017; Xavier, 2018).
Tendo em vista essa demanda, apresentamos neste trabalho o processo de construção e validação de um teste cujo traço latente “entendimento” foi dimensionado teoricamente em termos das zonas do perfil epistemológico de Bachelard. Uma vez validado, o teste se constitui como uma ferramenta que permite acessar e avaliar esse traço em diferentes momentos e em diferentes circunstâncias, o que fornece uma ampla margem de aplicações do ponto de vista educacional. Ele pode servir para mapear, por exemplo, a evolução de sujeitos em um tempo específico, através da avaliação da mudança do perfil. Pode ainda demarcar as zonas em que diferentes sujeitos se encontram em um mesmo instante, fornecendo parâmetros para estudos com enfoque no currículo. Pode ainda ser uma ferramenta em potencial para ser empregada em estudos de causalidade, como aqueles que objetivam avaliar efeito de intervenções educacionais. Além da potencialidade da ferramenta enquanto instrumento para acessar e avaliar o entendimento sobre densidade em tipos diferenciados de pesquisas, a explicitação da validação e a apresentação do próprio teste, assim como o seu emprego descrito neste trabalho fornecem direcionamentos para a proposição de ferramentas semelhantes para outros conteúdos.
REVISÃO DE LITERATURA
Um modelo que influenciou fortemente a pesquisa em Educação em Ciências, no que diz respeito à construção de conceitos científicos por parte dos estudantes da educação básica, foi o modelo de mudança conceitual (MMC) (Villani, 1992; Martins, 2004; diSessa, 2006), que refuta a ideia de que os alunos não possuem explicações próprias sobre os mais diversos fenômenos. A partir dessa consideração, o objetivo de instrução visando “aquisição” perdeu espaço para a ideia da mudança conceitual.
Martins (2004) explica que no MMC objetivava-se estabelecer uma associação entre os “padrões de mudança conceitual’ na Ciência e no processo de aprendizagem, a partir dos conceitos de “assimilação” e “acomodação” que seriam duas fases diferentes na mudança conceitual na aprendizagem. A mudança conceitual é apontada por Villani (1992) como sendo um processo extremamente longo e complexo, que envolveria níveis cada vez maiores de abstração, mas que durante a mudança ainda permaneceriam modelos não científicos que seriam utilizados no cotidiano.
Outra perspectiva que objetivou entender a construção de conceitos científicos por parte dos estudantes foi a do perfil conceitual, proposta por Mortimer (1996). Ao propor seu modelo, o autor explica que ele deriva da noção de perfil epistemológico, mas justifica a nova nomenclatura devido à inserção de alguns elementos que, em sua visão, não estariam presentes na noção bachelardiana. O autor afirma que, nessa perspectiva, cada indivíduo apresentaria um perfil distinto para cada conceito; entretanto, as categorias das diferentes zonas do perfil conceitual seriam independentes do contexto, sendo as mesmas consideradas dentro da mesma cultura (Mortimer, 1996).
As diferenciações defendidas por Mortimer entre perfil conceitual e epistemológico foram alvo de reflexões de autores como Martins (2004, 2012), Souza Filho (2009) e De Melo (2020). Apesar de sua proposição ter sido feita a partir da noção de perfil epistemológico, nos últimos anos, a noção de perfil conceitual se modificou consideravelmente. O que acarretou, de acordo com esses autores, uma desvinculação em relação ao perfil epistemológico no que diz respeito tanto a aspectos metodológicos quanto aos de paradigmas de pesquisa.
A perspectiva do perfil conceitual possibilita ao pesquisador algum grau de liberdade para estabelecer as categorias de análise que são utilizadas na caracterização das diferentes zonas do perfil (Martins, 2012). Desse modo, elabora-se um instrumento pautado também no uso que se faz do conceito no contexto social, inclusive atribuindo destaque ao papel da linguagem e à construção de significados pelos sujeitos. Essas características remetem a paradigmas de pesquisa nos quais considera-se a realidade enquanto socialmente construída, através de relações simbólicas (Crotty, 1998).
Já na noção de perfil epistemológico, as categorias são tomadas a priori, a partir da estrutura hierárquica das doutrinas filosóficas. Utilizar um instrumento com essas características para avaliar o entendimento que um indivíduo manifesta acerca de um conceito é característica do paradigma de pesquisa no qual a realidade é tomada como existindo para além do sujeito (Crotty, 1998).
Vale ressaltar que as diferenças teórico-metodológicas entre os dois perfis foram apontadas por Martins (2012), assim como o que seriam as vantagens e desvantagens da adoção de uma ou outra perspectiva. Segundo o autor, por meio da noção de perfil conceitual, é possível explorar as concepções dos estudantes na dependência dos contextos que mobilizam certos compromissos ontológicos e epistemológicos, o que prolongaria e aprofundaria o movimento de concepções alternativas. Já na noção de perfil epistemológico, há uma estrutura mais rígida, mais racionalista, que oferece como vantagem a possibilidade de atribuição de significados de um conjunto (contextual) de concepções, a partir de uma estrutura comum de um determinado conceito (Martins, 2012).
Essa estrutura tem sido utilizada para traçar os perfis epistemológicos de estudantes nos mais diversos contextos. Como exemplo podemos citar: i) o estudo de Blanquet e Picholle (2016) que adotou a noção de perfil epistemológico para investigar as concepções de ciências de professores primários franceses; ii) o trabalho de Muchenski e Miquelin (2015) realizado com alunos do sétimo ano do ensino fundamental, no qual os autores buscaram potencializar os perfis epistemológicos dos alunos; iii) a pesquisa de Roger (2015) que desenvolveu uma ferramenta metodológica baseada no perfil epistemológico com o objetivo de desenvolver a aprendizagem profissional além do aprendizado técnico de uma profissão; iv) o trabalho de Buscatti Junior (2014), que traçou o perfil epistemológico do conceito de espaço de licenciandos em Física e v) o estudo de Trevisan e De Andrade Neto (2016), que buscou compreender as visões de licenciandos em Física sobre a dualidade onda-partícula em Mecânica Quântica, a partir da construção de seus perfis epistemológicos.
Além disso, a noção de perfil epistemológico tem sido utilizada como instrumento para análise de livros didáticos como um modo de averiguar como os conceitos científicos são apresentados. Dentre esses trabalhos podemos citar: i) Dorigon et al. (2019) que investigaram o perfil epistemológico1 para o conceito de “transformação” presente nos livros didáticos de Química, com o recorte para os livros da primeira série do Ensino Médio aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) de 2018; ii) Da Silva Trintin e Gomes (2018), que analisaram os perfis epistemológicos de alguns livros didáticos de Física, aprovados no PNLD 2018, para o conceito de força; e iii) Da Costa Cedran e Santin Filho (2019), que propuseram as zonas do perfil epistemológico para o conceito de Estrutura dos Compostos Orgânicos e investigaram em qual delas podem ser enquadradas a abordagem dos livros didáticos.
ENQUADRAMENTO TEÓRICO
PERFIL EPISTEMOLÓGICO
A noção do perfil epistemológico foi proposta por Bachelard (1979) a fim de conceituar as maneiras diferentes por meio das quais as pessoas entendem e lidam com o mundo. Nessa perspectiva, o autor chama cada uma dessas maneiras de ‘doutrinas filosóficas’, ‘níveis’ ou ‘zonas’, (neste trabalho adotaremos a designação ‘zona’). O perfil epistemológico pode ser composto por até 5 zonas distintas, a saber: realismo ingênuo, empirismo, racionalismo tradicional, racionalismo completo e racionalismo discursivo.
O perfil epistemológico de uma pessoa para um determinado conceito é delineado pela frequência com a qual ela se vale de cada uma das zonas para lidar com o mundo físico. Um fato relevante dessa noção é que cada uma das zonas é específica; assim, só é possível atingir uma nova zona por meio de ruptura com o conhecimento da zona anterior, não por acúmulo de conhecimento. Em nosso trabalho, temos o propósito de validar um instrumento que nos permita identificar a presença de elementos das zonas do perfil epistemológico dos estudantes, tendo-se como parâmetro o conhecimento formal sobre densidade, o que indicaria o uso predominante de uma das zonas em determinado instante da sua trajetória escolar.
Em estudo prévio, apresentamos a segmentação do conteúdo de densidade abordado na educação básica (De Melo et al., 2020) e identificamos que o referido conteúdo se apresenta nas zonas do empirismo e do racionalismo tradicional para esse nível de escolarização. Todavia, visando mapear elementos do perfil epistemológico de densidade dos estudantes, julgamos pertinente incorporar ao nosso instrumento itens referentes à zona do realismo ingênuo. Apesar de essa zona não pertencer ao domínio do conhecimento científico, e por isso não ser ensinada na escola, é por meio dela ela que a maioria das pessoas lida com o conceito de forma rotineira. Assim, os itens dessa zona servem como um indicativo de que o estudante já começou a construir seu perfil epistemológico para densidade, pois o acerto nesses itens indica que ele possui mais de uma forma de lidar com o conceito. A pluralidade de modos de operar com os conceitos a partir de demandas contextuais distintas é justamente o que constitui o perfil epistemológico dos sujeitos (Bachelard, 1979).
Nessa perspectiva, a zona do realismo ingênuo apoia-se principalmente na subjetividade, sendo o indivíduo basicamente o próprio “instrumento” de medida; o que é evidenciado por um imediatismo na construção de afirmações, apreciação visual, ocasionando a utilização de “teorias” fragmentadas locais e não passíveis de sistematização ou generalização.
O empirismo se caracteriza pela objetivação, por meio da qual superam-se as associações equivocadas e imediatas da zona anterior. Essa objetivação é realizada por meio de experiências que evidenciam uma mudança de postura em relação aos fatos e fenômenos que se submetem à busca por padrões por meio dos quais seja possível elaborar leis e princípios.
No racionalismo tradicional, os conceitos são definidos a partir dos fenômenos nos quais eles se envolvem. Nessa doutrina filosófica se estabelecem relações entre noções antes utilizadas de forma absoluta e simples no empirismo. Bachelard (1979) usa como exemplo o conceito de massa, que nessa zona é definida pelo quociente da força pela aceleração. O autor esclarece que, de um ponto de vista realista, as noções de massa, aceleração e força são diversas, mas que, nessa zona, entre elas se estabelece uma relação racional analisada pelas leis racionais da aritmética.
Neste trabalho, a associação equivocada de densidade à forma, tamanho ou peso do material ou substância refere-se à zona do realismo ingênuo, por evidenciar um apelo à apreciação visual e ao imediatismo na construção de afirmações, características dessa zona. Os cálculos efetuados por meio da razão entre massa e volume assim como relações de flutuações entre líquidos referem-se à zona empirista, que se caracteriza pela objetividade instrumental. Já as explicações teóricas para os valores de densidade dizem respeito à zona do racionalismo tradicional, que se baseia na sistematização de teorias que tentam unificar e sistematizar um conjunto de dados e leis empíricas.2
MÉTODO
INSTRUMENTOS E SUJEITOS
Os testes foram construídos em camadas. Isso significa que todos os itens (primeira camada) são seguidos de um segundo (segunda camada) em que é solicitado ao estudante que marque a alternativa que explica a razão de sua resposta ao item da primeira camada (Treagust, 1988, 2012). Assim, esperava-se acessar não só a presença ou não do traço (entendimento) mas também o raciocínio utilizado pelo estudante quando elabora sua resposta ao item (Tamir, 1989).
Com a intenção de acompanhar a construção de elementos das zonas do perfil epistemológico de densidade dos estudantes, incorporamos ao nosso teste questões híbridas, nas quais a primeira camada versa sobre o empirismo, mas a explicação é apresentada pela zona do racionalismo. Por meio desses itens, objetivamos saber se os estudantes conseguem articular explicações teóricas para os fenômenos empíricos.
Finalmente, para abarcar toda a atenção dada pelos professores e livros didáticos para a parte empírica da densidade, optamos por incrementar a zona do empirismo, colocando dois tipos de itens para cada nível do entendimento: item básico e item complexo. A diferença entre esses dois tipos é a demanda pela articulação lógica entre diferentes conceitos e conhecimentos para responder o item. Desse modo, itens que demandam uma aplicação direta de fórmulas (sem necessidade de transformação de unidades) ou relação de flutuação simples, correspondem aos itens denominados como básicos. Já aqueles que demandam transformações de unidades, cálculos com números decimais, aplicação não direta de fórmulas e/ou estabelecimento de relações entre variáveis, correspondem aos itens complexos.
O Quadro 01 apresenta os entendimentos acerca do conceito científico de densidade em cada uma das zonas.
O referido Quadro apresenta uma dupla hierarquia: teórica e empírica. A hierarquia empírica refere-se aos níveis de entendimento dentro de cada zona (De Melo et al, 2020). Por exemplo, o cálculo de densidade de soluções pressupõe o cálculo para substâncias simples, assim como entender a relação entre o conceito com forças intermoleculares/polaridade para misturas compreende essa mesma relação para substâncias puras.
A hierarquia entre as zonas é pressuposta pela noção de perfil epistemológico, visto que o pluralismo filosófico, que permite a coexistência de diferentes fases da evolução filosófica, caminha no sentido de um aumento de coerência racional. As zonas subsequentes ampliam e englobam o conhecimento das anteriores.
Os entendimentos referentes à junção de zonas (para questões híbridas) estão listados na terceira coluna do Quadro 01, os quais, com exceção do nível 2, são uma replicação da zona do racionalismo tradicional. As questões construídas para os níveis 1, 3 e 4 referem-se ao mesmo fenômeno, mas com explicações distintas. Optamos por distinguir apenas o nível 2, pelo fato de a ênfase no cálculo, apresentada na zona do racionalismo tradicional, não ser replicada na zona híbrida.
Para efeito de validação, as questões foram divididas em dois questionários (modelo A e modelo B). Esse procedimento é importante para evitar que a quantidade de questões interfira no desempenho dos estudantes. Participaram da pesquisa estudantes tanto do Ensino Médio quanto do Ensino Superior, totalizando 324 sujeitos. Os questionários foram aplicados a 75 estudantes de graduação: 25 do curso de licenciatura em Física e 50 de licenciatura em Química, de duas Universidades públicas do estado da Bahia, no Brasil. Também foi respondido por 249 alunos do terceiro ano do Ensino Médio de uma escola pública da capital desse estado. Este estudo faz parte de um projeto que foi aprovado pelo comitê de ética da escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia.3
A escolha dessa amostra se baseou na necessidade de os estudantes já terem estudado o conteúdo de densidade. Ademais, julgamos pertinente aplicar também para estudantes de nível superior, visto que os alunos do Ensino Médio poderiam não apresentar conhecimentos referentes à zona do racionalismo tradicional, conforme os apontamentos de pesquisas que se debruçaram sobre o ensino do conceito (Mortimer et al., 2000; Rossi et. al., 2008).
A validação do instrumento foi realizada por meio da aplicação das duas versões, modelo A (teste 1) e modelo B (teste 2). Para fins de análise, as questões em camadas foram desmembradas em seus itens, de modo que cada questão originou dois itens, um referente à primeira camada e outro à segunda. Devido a um erro de digitação, os dois itens da questão 9 do questionário modelo A tiveram que ser descartados da amostra, assim com o item da segunda camada da questão 10 do modelo B.
O Quadro 02 relaciona os itens com suas questões de origem e as zonas do perfil epistemológico.
PROCEDIMENTOS DE ANÁLISE
As respostas fornecidas aos Testes 1 e 2 pelos 324 estudantes foram analisadas em dois estudos com objetivos distintos:
Para constatar a validade dos testes: i) o quanto eles são fidedignos e confiáveis para acessar o traço latente “entendimento sobre densidade”; e ii) o quanto eles estão adequados ao modelo Rasch dicotômico para interpretação da medida de proficiência.
Para analisar elementos do perfil epistemológico de densidade dos estudantes, a partir da análise dos mapas de itens.
As análises de validade dos testes e adequação ao Modelo Rasch (1960/1980) foram realizadas por meio do software Winsteps 3.70 (Linacre, 2010), por meio do qual avaliamos:
A dimensionalidade. A hipótese inicial era a de que poderíamos diferenciar pelo menos duas zonas do conceito (empirismo e racionalismo tradicional) a partir de uma dimensão que diz respeito ao entendimento geral sobre densidade.
O ajuste dos itens. A expectativa era a de que os testes apresentassem bons ajustes para discriminar duas zonas do perfil epistemológico.
A confiabilidade. O objetivo era averiguar a possibilidade de reprodutibilidade do padrão de respostas e a consistência interna dos testes.
A adequação do Modelo Rasch. Faz-se necessário que haja um bom ajuste do modelo aos dados empíricos para que se possa considerar a escala das medidas geradas por ele como sendo uma escala intervalar adequada para a avaliação do traço latente.
Para abarcar cada um dos propósitos listados foram avaliados: i) a variância residual padronizada; ii) os valores MnSq (mean square infit/outfit); e iii) a confiabilidade das pessoas e dos itens. A variância residual padronizada diz respeito à variância explicada pelas medidas, tanto a modulada quanto a empírica, e a variância explicada pelo primeiro contraste, sendo esses alguns dos parâmetros que comumente se utiliza para avaliar a dimensionalidade do instrumento (Linacre, 2014).
Os valores MnSq (Mean Square INFIT/OUTFIT) dizem respeito à relação entre o escore esperado pelo modelo e o escore obtido empiricamente, indicando também a dimensionalidade do teste. Além disso, esses índices são potenciais para apontar a existência de itens que apresentem um padrão de respostas inesperado, os quais são denominados como itens erráticos. Um exemplo desse padrão acontece quando indivíduos acertam itens com dificuldade superior à sua proficiência e erram itens com dificuldade inferior (Wright & Stone, 2004).
A confiabilidade foi avaliada por meio dos índices de separação, utilizados para estimar a quantidade de proficiência que os itens são capazes de separar na amostra e pelo valor de alfa de Cronbach, que é um índice clássico de confiabilidade que se baseia nos escores brutos da amostra, indicando a reprodutibilidade pessoa-escore-ordem.
Os procedimentos descritos nos indicaram a validade dos testes e do modelo estatístico empregado para acessar o traço latente “entendimento sobre densidade”. Após a validação, apresentamos as análises referentes ao perfil epistemológico dos estudantes. Uma vez que os itens de nossos questionários foram construídos de acordo com as zonas do perfil epistemológico, podemos avaliar o perfil dos estudantes para o conceito de densidade das seguintes maneiras: i) pela frequência de respostas ao teste; ii) por meio da proficiência apresentada em cada zona e posterior comparação das proficiências; e iii) por meio do mapa de itens. Neste estudo utilizamos a terceira opção, o mapa de itens.
ANÁLISES E RESULTADOS
Dimensionalidade
Quanto à dimensionalidade, nossa hipótese inicial era de que o instrumento acessava uma única dimensão (o entendimento sobre densidade) delimitada por duas facetas: uma referente à zona do empirismo e outra à zona do racionalismo tradicional. Para testar essa hipótese, investigamos a dimensionalidade por meio da análise dos resíduos. Essa análise objetiva encontrar o menor número de contrastes que expliquem o máximo de variância possível. A partir desses valores podem ser construídas evidências a favor ou contra a unidimensionalidade do instrumento. Assim, deve-se avaliar qualitativamente os itens, a fim de identificar se as diferenças dos traços que eles pretendem mensurar são suficientemente distintas para que mais de uma dimensão seja considerada. Como nossos itens foram construídos a partir de uma base teórica que segmenta o conhecimento, isto é, a noção do perfil epistemológico, nossa análise qualitativa se baseou nas zonas do perfil.
De acordo com Linacre (2009), um dos parâmetros para avaliar se os dados são unidimensionais é a porcentagem explicada pelo componente principal da dimensão, que deve ser superior a 20%. Outro índice que também pode indicar a existência de mais de uma dimensão é a variância explicada pelo primeiro contraste (unidade de variância residual) que não deve exceder o valor de 2,0. A Tabela 01 apresenta os valores dessa análise.
Teste | Variâncias | Empírico | Modelado | |
---|---|---|---|---|
1 | Variância explicada pelas medidas | 6.5 | 26.6% | 26.0% |
Variância explicada pelas pessoas | 2.9 | 11.8% | 11.6% | |
Variância explicada pelos itens | 3.6 | 14.8% | 14.4% | |
Variância não explicada | 18.0 | 73.4% | 74.0% | |
Variância não explicada no primeiro contraste | 2.4 | 9.9% | 13.4% | |
2 | Variância explicada pelas medidas | 6.6 | 25.9% | 25.4% |
Variância explicada pelas pessoas | 2.7 | 10.7% | 10.5% | |
Variância explicada pelos itens | 3.9 | 15.2% | 14.9% | |
Variância não explicada | 19.0 | 74.1% | 74.6% | |
Variância não explicada no primeiro contraste | 2.6 | 10.2% | 13.7% |
Fonte: Dados da pesquisa.
Conforme Tabela 01, obtivemos para as variâncias explicadas pelas medidas os valores 26,6% e 25,9%, respectivamente, para os testes 1 e 2. A variância não explicada pelo primeiro contraste para os testes 1 e 2 foi de 2,4 e 2,6, respectivamente. Esses índices não preenchem por completo os critérios da unidimensionalidade acima mencionados. Os valores acima de 2,0 indicam que nossos testes podem estar acessando mais de uma dimensão. Nesse caso, utilizamos a porcentagem de variância não explicada pelo primeiro contraste, que, de acordo com Fisher (2007), deve ser menor do que 10% para que um teste seja considerado unidimensional. Para o teste 1, esse índice ficou em 9,9% e para o teste 2,em 10,2%. Esse resultado não é assertivo em relação à dimensionalidade, ou seja, nos dá margem para considerar o teste tanto unidimensional quanto multidimensional, uma vez que os índices se apresentaram muito próximos dos critérios de demarcação na literatura. Diante desse resultado e tendo em vista que os testes compreendem duas facetas do entendimento, é recomendável a realização de uma análise fatorial a fim de verificar a indicação de multidimensionalidade dos nossos resultados. Ainda de acordo com a Tabela 01, podemos verificar o quão bem os dados se ajustam ao Modelo Rasch, uma vez que os valores das variâncias empíricas e modeladas apresentaram valores próximos (Linacre, 2009).
Ajuste dos Itens
Utilizamos os índices infit e outfit da estatística MnSq para verificar os ajustes dos itens que constituem os testes. De acordo com os critérios de Linacre (2009/2010), o ajuste é ótimo quando os índices de infit e outfit oscilam entre 0,50 e 1,50. Valores maiores que 1,50 indicam que existe um padrão de respostas inesperado para a matriz, pois um indivíduo pode acertar itens muito mais difíceis do que sua proficiência estimada ou errar aqueles cuja probabilidade de acerto seja alta (Wright & Stone, 2004). Ademais, um valor elevado de Infit pode indicar que o item está sendo acertado por indivíduos não esperados, o que desafia sua validade (Wright & Linacre, 1991).
A Tabela 02 mostra os valores de infit e outfit para cada um dos itens dos dois testes. Tivemos apenas dois itens para os quais os valores não se mostraram ideais: o item 7 do teste 1 e o item 10 do teste 2. Entretanto, em ambos os casos o valor não ajustado se refere ao outfit, que é mais sensível à variabilidade amostral do que o infit.
TESTE 1 | TESTE 2 | ||||
---|---|---|---|---|---|
Infit | Outfit | Item | Infit | Outfit | Item |
1.04 | 1.18 | Item_3 | 1.25 | 1.77 | Item_10 |
1.16 | 1.29 | Item_6 | 1.09 | 1.20 | Item_8 |
1.42 | 1.80 | Item_7 | 1.09 | 1.14 | Item_15 |
0.98 | 1.08 | Item_2 | 1.07 | 1.10 | Item_18 |
1.13 | 1.18 | Item_12 | 1.18 | 1.22 | Item_12 |
1.02 | 1.06 | Item_11 | 0.96 | 0.88 | Item_9 |
0.87 | 0.89 | Item_10 | 1.03 | 1.00 | Item_2 |
1.09 | 1.04 | Item_15 | 1.16 | 1.14 | Item_5 |
1.26 | 1.31 | Item_16 | 0.91 | 0.86 | Item_19 |
0.83 | 0.77 | Item_13 | 1.18 | 1.26 | Item_16 |
0.83 | 0.85 | Item_4 | 1.12 | 1.15 | Item_6 |
0.93 | 0.93 | Item_8 | 0.87 | 0.84 | Item_14 |
0.98 | 0.88 | Item_18 | 0.84 | 0.98 | Item_11 |
0.87 | 0.81 | Item_17 | 0.90 | 0.86 | Item_3 |
0.85 | 0.77 | Item_5 | 0.81 | 0.72 | Item_7 |
1.04 | 1.06 | Item_9 | 0.81 | 0.71 | Item_17 |
0.83 | 0.75 | Item_14 | 0.88 | 0.85 | Item_1 |
0.93 | 0.84 | Item_1 | 0.84 | 0.74 | Item_4 |
1.16 | 1.15 | Item_13 |
Fonte: Dados da pesquisa.
A Tabela 03 apresenta as médias dos índices infit e outfit que são iguais ou muito próximas do valor ideal, implicando que as medidas são produtivas/discriminatórias. Linacre (2009/2010) e Dawson (2006) afirmam que o valor 1,00 (ideal) é indicativo de ajuste perfeito, sendo os valores de 1,0 e 1,01 encontrados para a média dos valores infit para o teste 1 e 2, respectivamente.
Confiabilidade das pessoas e dos itens
Um dos procedimentos utilizados para avaliar a confiabilidade das medidas foi o teste de consistência interna alfa de Cronbach. Na modelagem Rasch, o alfa de Cronbach é gerado quando se avaliam índices relacionados à confiabilidade das pessoas e, de modo geral, ele superestima a confiabilidade, enquanto a confiabilidade Rasch a subestima. O teste 1 apresentou alfa de Cronbach igual a 0,79 e o teste 2, 0,78, indicando consistência interna substancial do teste de acordo com a teoria clássica de testes.
Visando analisar o quanto o padrão de acerto dos itens ou das respostas dos estudantes eram adequados à estrutura da medida, verificamos os valores da confiabilidade de separação das pessoas e dos itens (Hibbard, et al., 2010). O coeficiente de separação entre as pessoas corresponde à medida de fidedignidade da escala (referindo-se à precisão com que a variabilidade dos sujeitos é capturada pelos itens). São considerados bons ajustes para as pessoas índices de separação maiores que 2,0, associados à confiabilidade maiores que 0,8, e para os itens índice de separação maiores que 3,0, associados à confiabilidade maior que 0,9 (Linacre, 2010). A confiabilidade dos itens não possui equivalente na teoria clássica de testes (Linacre, 2014). Está documentado na literatura (Nunnally, 1978; Kline, 1993; Martins, 2006) que há confiabilidade das medidas quando esse coeficiente está acima de 0,7. A tabela 04 apresenta os valores dos referidos índices para nossos testes.
ÍNDICES | TESTE 1 | TESTE 2 | ||
---|---|---|---|---|
PESSOAS | Separação | Real | 1.55 | 1.69 |
Modelado | 1.63 | 1.76 | ||
Confiabilidade | ||||
Real | 0.71 | 0.74 | ||
Modelado | 0.73 | 0.76 | ||
ITENS | Separação | |||
Real | 2.83 | 3.85 | ||
Modelado | 2.94 | 4.01 | ||
Confiabilidade | ||||
Real | 0.89 | 0.94 | ||
Modelado | 0.90 | 0.94 |
Fonte: Dados da pesquisa.
Com base nos valores apresentados na referida Tabela, verificamos que nenhum dos dois testes atingiram os valores de referência para a separação e confiabilidade das pessoas. Esse fato indica que os testes podem não estar adequados o suficiente para diferenciar pessoas de baixa e alta habilidade, sendo necessário revisá-los; ou pode ser que a amostra à qual os testes foram submetidos não apresente uma variabilidade “suficiente”, ou seja, que não exista grande diferença entre indivíduos de mais alta e baixa habilidade. Todavia, os índices de separação e confiabilidade dos itens no teste 2 se apresentaram como superiores aos considerados como bons ajustes, e os do teste 1 apresentaram valores no limiar do critério, significando que a amostra foi suficiente para confirmar a hierarquia de dificuldade dos itens.
Pela modelagem Rasch, não há uma indicação clara se o teste apresenta uma ou mais dimensões. Em termos de confiabilidade, os resultados indicam que o teste foi adequado, pois ainda que as medidas das pessoas não tenham apresentado índices ideais, as dos itens (tanto MnSq quanto confiabilidade e separação) mostraram bom ajuste. Esse resultado, em especial, nos diz que o teste é valido para acessar o traço e apresenta uma boa hierarquia para avaliá-lo, embora não saibamos ao certo se ele discrimina adequadamente pessoas de diferentes tipos de habilidade.
Estudo 2 - Análise do Perfil Epistemológico
Como já descrito na Quadro 01, os itens de nossos testes foram criteriosamente construídos de forma a contemplar conhecimentos referentes às três primeiras zonas do perfil para o conceito de densidade. Cada teste contém, aproximadamente, o mesmo número de itens de cada zona do perfil e a mesma quantidade de itens básicos e complexos para a zona do empirismo.
Com o objetivo de mapear elementos das zonas do perfil epistemológico da amostra estudada, neste trabalho utilizamos os mapas de itens, gerados pela modelagem Rasch, conduzida no software Winsteps 3.70 (Linacre, 2010). Commons e Miller (2015) afirmam que na construção de um instrumento, como por exemplo um teste de conhecimento, não será claro o quão difícil um item pode ser em relação aos demais sem que se utilize um escalonamento proporcionado pelos Modelos Rasch. O mapa de itens ordena pessoas e itens em uma mesma régua medida em logits.4 As pessoas são organizadas a partir da medida da sua habilidade/proficiência em relação ao traço latente medido, e os itens, de acordo com a medida da sua dificuldade. Uma das principais vantagens da utilização dos Modelos Rasch é justamente a sua capacidade de transformar itens em uma única métrica do desenvolvimento (Demetriou & Kyriakides, 2006), reunindo em um mesmo traço latente a dificuldade dos itens e habilidades das pessoas5 (Bond & Fox, 2001).
As Figuras 1 e 2 referem-se aos mapas de itens dos testes 1 e 2, respectivamente. O teste 1 foi respondido por 141 estudantes e o teste 2 por 183. Nos mapas de itens, o lado esquerdo refere-se à distribuição da medida da habilidade/proficiência dos respondentes. O lado direito apresenta os itens do teste e sua localização de acordo com sua dificuldade. A hierarquia de maior habilidade das pessoas e maior dificuldade dos itens é crescente da parte inferior para a parte superior do mapa (Linacre, 2006), de modo que itens difíceis e pessoas de alta habilidade estão mais próximos ao topo.
A distribuição das pessoas nos mapas não está muito adequada segundo os critérios da literatura, que recomenda uma distribuição que se assemelhe à curva normal. Entretanto, esse fato pode decorrer do ajuste das pessoas descrito anteriormente no processo de validação. Verificamos, pelos mapas referentes ao teste 1 e ao teste 2, que em ambos a média da dificuldade dos itens é superior à média de proficiência dos respondentes. Esse fato nos permite afirmar que os testes foram difíceis para os respondentes, sendo que o teste 1 foi o mais difícil.
Utilizamos o mapa de itens para verificar o posicionamento dos itens de acordo com as zonas e assim identificar elementos do perfil da amostra. Nos mapas, as cores azul e verde referem-se, respectivamente, aos itens da zona do racionalismo tradicional e do empirismo; itens em verde seguidos de asterisco (*) correspondem aos itens complexos dessa zona; itens grafados de vermelho correspondem à zona do realismo ingênuo.
Utilizamos o acerto em itens referentes à zona do realismo ingênuo como indicador de que os estudantes são capazes de operar com o conceito para além de seu uso cotidiano. Os distratores desses itens correspondem a concepções do realismo ingênuo; assim, o erro é um indicador de que o estudante ainda opera nessa zona. No teste 1, os dois itens referentes a essa zona apresentam um nível de dificuldade acima da média de proficiência da amostra, o que indica que, na média, os estudantes ainda não superaram o uso do realismo ingênuo no contexto escolar.
Já no teste 2, constatamos outra situação: o item 4 (item da primeira camada da questão do realismo ingênuo) apresentou um nível de dificuldade bem abaixo da média de proficiência dos estudantes e o item 14 (item da segunda camada da questão do realismo ingênuo) teve nível de dificuldade pouco acima da média de proficiência da amostra. A diferença de posição desses itens no mapa é um indicativo de que muitos dos estudantes que iniciaram a construção de seus perfis - evidenciado pelo acerto no item 4, não conseguem fornecer uma explicação correta do ponto de vista científico para o fenômeno em questão - fato evidenciado pelo erro na segunda camada, item 14. Ou seja, o conhecimento ainda não se encontra articulado a ponto de o estudante conseguir se justificar a partir da perspectiva científica.6
Ambas as questões têm por objetivo avaliar se o estudante consegue operar com o conceito de densidade para além da zona do realismo ingênuo. Entretanto, existe uma distinção entre os itens dessa zona em cada uma das questões que pode ser responsável pela diferença de dificuldade apresentada entre elas. Na zona do realismo ingênuo, situam-se associações errôneas, feitas no senso comum, que relacionam densidade a forma/tamanho ou peso do objeto. Os itens do teste 1 (Figura 3) abarcam a questão da associação da densidade com o volume, mais especificamente com o tamanho de chapas de metal, e os itens do teste 2 (Figura 4) abordam a associação com a massa (ou peso). Na questão 4 do teste 2, essa associação é apresentada por meio de uma questão que envolve flutuação de sólidos em líquidos. Como essa abordagem é recorrente em livros didáticos de Química utilizados no contexto do Ensino Médio brasileiro, acreditamos que a familiaridade com o tipo de item pode tê-lo tornado mais fácil para os estudantes. Mas a diferença de dificuldade entre os dois itens da questão (item 4 e item 14) evidencia uma falta de clareza dos estudantes quanto às razões que justificam o fenômeno, ou seja, eles sabem o que (ou como) ocorre, mas não sabem explicar o porquê.
Interpretamos o acerto de item na primeira camada e o erro na segunda como evidência de conhecimento em construção. Isso significa que o estudante ainda não apresenta o conhecimento de forma articulada. Como essa questão corresponde à zona do realismo ingênuo, esse padrão evidencia que os estudantes ainda fazem uso de explicações do senso comum em contextos escolares.
De modo geral, as análises dos itens referentes à zona do realismo ingênuo (nos dois testes) nos permitem afirmar que, para a maioria dos estudantes de nossa amostra, ainda não estão claras as distinções e as razões de uso do conceito, em termos científicos e cotidianos. Ou seja, não há uma articulação em termos formais do conteúdo. A maior parte desses estudantes passou pelo processo de escolarização, visto que cursavam o final do terceiro ano do Ensino Médio, ou curso superior, mas não aprenderam a transitar entre as zonas do perfil, a depender do contexto.
No teste 2, o item mais difícil foi o item 10, pertencente à zona do empirismo nível 4. Esse item faz parte de uma questão híbrida, na qual o item da primeira camada refere-se a um fenômeno que pode ser observado empiricamente, e o item da segunda camada contém a explicação do fenômeno, em termos das leis teóricas utilizadas para tal; ou seja, na zona do racionalismo tradicional. Entretanto, o item da segunda camada correspondente a ele foi impresso com um erro de digitação, o que possivelmente deixou os estudantes confusos quanto ao primeiro item quando não encontraram uma razão plausível para sua opção. Por isso, para analisar o perfil dos estudantes dessa amostra, iremos desconsiderar esse item e, para fins de validação, o item da segunda camada será corrigido. Esse fato evidencia a importância do processo de validação de instrumentos de medida.
No geral, pode-se observar que os itens mais fáceis se referem aos itens do empirismo e os mais difíceis ao racionalismo tradicional. Embora a maioria dos itens do empirismo apresentem menor grau de dificuldade, percebe-se tanto no teste 1 quanto no 2, mas de forma mais evidente no último, um grupo de itens dessa zona no mesmo patamar de dificuldade de alguns itens do racionalismo. Esse grupo se refere a itens complexos do empirismo, que demandam conhecimentos de transformação de unidades, operações com números decimais, estabelecimento de relação entre variáveis etc. Percebemos que, nesse caso, a dificuldade não está no conteúdo em si, mas nas ferramentas necessárias para a resolução da questão.
Com base nos mapas de itens, avaliamos que nossa amostra apresenta domínios referentes à zona do empirismo para o conceito de densidade, visto que o nível de dificuldade desses itens está abaixo da média de proficiência das pessoas. A Figura 05 apresenta o mapa de itens do teste 2 com marcações dos itens em cada uma das zonas. Podemos perceber que são formados dois agrupamentos de itens, um abaixo e um acima da média de proficiência dos respondentes. O fato de itens do realismo ingênuo terem apresentado índices de dificuldade semelhantes aos itens do empirismo básico indica que, apesar de terem iniciado a construção da zona do empirismo, a maioria dos estudantes ainda não possui o conhecimento completamente articulado.
A razão dos itens do empirismo básico terem sido os mais acertados nos testes pode ser devido à ênfase dada pelos professores à parte empírica do conceito: ao estabelecimento de relações de flutuação e à fórmula d=m/v em detrimento de discussões de cunho fenomenológico, quando no ensino do conteúdo. Esse resultado concorda com a perspectiva de Rossi et al. (2008) quando apontam a relação direta que os estudantes estabelecem entre o conceito de densidade e sua expressão matemática.
Um de nossos resultados é que os itens da zona do racionalismo tradicional se apresentaram mais difíceis do que itens referentes à zona do empirismo. Esse resultado endossa a perspectiva teórica de que, além de qualitativamente diferente, essa zona demanda um raciocínio lógico mais abstrato, mais complexo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste trabalho, nos propusemos a validar um instrumento para acessar o conhecimento científico de densidade dos estudantes e identificar a presença de elementos do perfil epistemológico dos sujeitos que participaram da pesquisa. A partir das análises realizadas, constatamos a validade da escala de medida do entendimento sobre densidade gerada para os testes, cujo objetivo foi acessar o traço latente nas zonas três primeiras zonas do perfil.
Pela validação constatamos que as facetas teóricas a serem acessadas pelos testes (empirismo e racionalismo tradicional) podem estar funcionando como duas dimensões específicas, levando a questionamentos sobre a dimensionalidade dos testes. Contudo, os índices e indicações referentes a esse aspecto não foram conclusivos, indicando que outras análises são necessárias para investigar a dimensionalidade, tais como Fatorial Exploratória e/ou Confirmatória.
Quanto ao perfil da amostra, os mapas de itens concordaram com os apontamentos de pesquisas prévias sobre o ensino do conceito (Hawkes, 2004; Rossi et al., 2008), cujas discussões apontam que o conhecimento referente à zona do racionalismo tradicional estaria sendo negligenciado no processo de ensino. Essa omissão impede que os estudantes construam todas as zonas do perfil epistemológico para o conceito de densidade referentes a esse nível de escolaridade, no caso o empirismo e o racionalismo tradicional. É papel da escola, enquanto lugar de acesso ao conhecimento historicamente acumulado, promover essa construção. Assim sendo, faz-se necessário repensar as abordagens por meio das quais o conceito vem sendo trabalhado e a própria estrutura curricular, que propõe objetivos de aprendizagem incompatíveis com a organização do ensino no nível de escola básica. Há mais de uma década, Rossi et al. (2008) já apontavam os prejuízos causados pelo ensino fragmentado desse conceito e, desde então, essa situação não mudou.
O design do perfil dos estudantes da amostra evidenciou que a maioria possui o conhecimento científico referente à zona do empirismo. Entretanto, quando submetidos a itens do empirismo complexo, a maioria dos estudantes não demonstrou conhecimentos necessários para operar com o conceito, fato que se assemelha à dificuldade apresentada diante de itens da zona do racionalismo tradicional. Ou seja, os conhecimentos matemáticos e o estabelecimento de relações necessários elevam o grau de dificuldade dos itens ao patamar de outra zona de conhecimento, com a diferença de que essa zona é mais complexa, visto que engloba e amplia os conhecimentos das zonas anteriores e historicamente negligenciada no processo de escolarização, apresentando, por isso, maior nível de dificuldade.
Outro resultado interessante é o fato de itens complexos do empirismo apresentarem o mesmo nível de dificuldade de itens do racionalismo. Essa constatação sugere uma discussão acerca dos instrumentos que são utilizados para avaliar o conhecimento dos estudantes e quanto de conhecimento químico eles são capazes de acessar. Itens dessa natureza, no nosso teste, demandam mais de uma área de conhecimento (químico e matemático, principalmente). O professor, ao ensinar um conhecimento dessa natureza, precisa atentar para o fato de que, para ocorrer a aprendizagem efetiva do conteúdo, há necessidade de mobilização de habilidades e entendimentos diversificados, além da capacidade de estabelecer relações e generalizações para além do domínio químico. A Química é uma Ciência que se vale da matemática enquanto uma ferramenta; logo, o conhecimento matemático é necessário para aprender muitos conteúdos nesse domínio. Todavia, esse fato nem sempre é levado em consideração nos planejamentos de ensino e nas avaliações, seja pela falta de clareza, desconhecimento ou pouca reflexão por parte dos docentes, uma vez que apontamentos dessa natureza são escassos na literatura e pouco discutidos na formação de professores. Assim, mesmo que muitas vezes, de forma não intencional, professores utilizam abordagens e materiais que pouco contribuem para que os estudantes consigam estabelecer relações entre domínios de conteúdos distintos, incluindo os da matemática, essenciais para lidar com algumas situações-problema em Química.
Por fim, salientamos as contribuições de nossa pesquisa: i) da perspectiva metodológica, ao propor e explicitar as etapas do processo de validação de testes de conhecimento, ii) da perspectiva de avaliação, com a produção de instrumentos capazes de acessar tanto a zona do empirismo quanto a do racionalismo tradicional do conceito científico de densidade e, iii) da perspectiva do ensino, fomentando reflexões acerca da abordagem curricular e docente do conteúdo, por meio do perfil da amostra analisada.