Introdução
Este texto versa sobre duas das principais ‘reformas’1 educacionais em curso, quais sejam, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e o Novo Ensino Médio (NEM). O destaque conferido a essas ‘reformas’ específicas se baseia na nossa compreensão de que ambas indicam as similitudes existentes entre a proposta pedagógica hegemônica e as necessidades candentes do capital e de suas personificações.
Postas em marcha ainda no governo do Partido dos Trabalhadores, essas ‘reformas’ educacionais ganharam novo impulso após a deflagração da recessão econômica em 2015 e o golpe jurídico-parlamentar-midiático de 2016. Sob a égide da urgência em resolver a assim chamada crise da educação, o NEM foi instituído via medida provisória em 2016; já a BNCC, mesmo incompleta, tramitou no Conselho Nacional de Educação (CNE) e foi aprovada em 2017, contendo diretrizes apenas para a educação infantil e o ensino fundamental. A BNCC do ensino médio segue em elaboração e ambas têm sido veemente repudiadas por sindicatos e entidades de defesa da educação.
A ‘crise da educação’ brasileira não é um diagnóstico novo, mas sim constância de uma sociedade que perpetua condições estruturais residuais para grande parcela da classe trabalhadora. Assim, assumem historicamente diferentes roupagens e são alvo de sucessivas ‘reformas’ (geralmente inconclusas e sobrepostas), direcionadas a atender demandas que variam da pressão da classe trabalhadora por escolarização às necessidades do capital de ajustar a formação da força de trabalho às exigências de sua reprodução ampliada. Nos últimos trinta anos, ainda que se tenha ampliado o acesso da classe trabalhadora à escola, as políticas de universalização vêm se materializando como massificação do tipo “periférico dependente” (MAGALHÃES; MOTTA, 2015), cujas características mais notáveis são o estreitamento curricular, o cerceamento do trabalho docente e a consolidação do sistema avaliativo padronizado e em larga escala.
Tendo em vista um senso comum em que são atribuídas como causas a às mazelas econômico-sociais a baixa qualidade e a desigualdade de oportunidades na educação, a justificativa burguesa-estatal para as ‘reformas’ em curso não foge a esses termos: a implementação da BNCC garantirá a qualidade educacional e a igualdade de oportunidades, assim como o NEM é necessário para modernizá-lo e torná-lo atraente para os jovens.
Compreendemos, entretanto, que outras questões subjazem às‘reformas’. Do nosso ponto de vista, malgrado os problemas reais que perpassam a educação (como a evasão e a repetência), o movimento da classe dominante é uma operação ideológica, já que concebe problemas estruturais como anomalias efêmeras e que propõe soluções a partir de uma concepção de educação e de mundo particular aos grupos internos da própria classe dominante (GRAMSCI, 2000). Nessa direção, tentaremos demonstrar que (I) as ‘reformas’ educacionais representam ajuste na conformação psíquica, física, ideológica e social da classe trabalhadora, imperativas diante dos efeitos sociais da crise do capital, e (II) seu conteúdo guarda similitudes com as diretivas educacionais de organismos internacionais (OI) como Banco Mundial (BM) e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as quais por sua vez, em diversos aspectos, atendem às necessidades candentes da burguesia brasileira.
Uma educação para a produtividade da força de trabalho
De acordo com a Confederação Nacional da Indústria (CNI), apesar das ações destinadas à educação nos últimos trinta anos, os “dados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) mostram que a educação brasileira avança a passos mais lentos que o esperado.” (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2018, s./p.).
As dificuldades de aprendizagem são justificadas, pelas frações burguesas, pelo currículo ultrapassado, conteudista e desmotivador, o qual faz com que jovens percam o interesse pela escola tão logo percebam que nada do que ali aprendem lhes é útil, nem mesmo para conseguir uma ocupação. Assim, os jovens deixam o ensino médio sem se sentirem preparados para atuar no mercado (FONTOURA, 2017), que,apesar deoferecer oportunidades, não encontra mão-de-obra qualificada (JORNAL HOJE, 2015). As ‘reformas’, então, seriam essenciais à resolução do problema, pois ao flexibilizar o currículo dotariam o jovem de suposta liberdade e protagonismo na sua trajetória formativa (BRASIL, 2018).
As razões acima são massivamente propaladas às massas. Entretanto, há uma razão que, embora não difundida nos meios de comunicação, tem sido propugnada em relatórios de OI e entidades do setor produtivo como problema educacional: a baixa produtividade da força de trabalho brasileira. Esta, do ponto de vista burguês, seria decorrente da formação inadequada da força de trabalho, incapaz de atender às demandas do mercado. Nessa perspectiva, Cláudio Moura e Castro, representante do empresariado2, afirmou à CNI que um
novo patamar de competitividade do Brasil depende de maior qualidade da educação [porque esta] impacta diretamente na inserção dos brasileiros no mercado de trabalho, na produtividade da indústria e em sua capacidade de inovação. Esses avanços podem ser alcançados a partir de iniciativas como […] a implantação da BNCC. (CONFEDERAÇÃO NACIONAL DA INDÚSTRIA, 2018, s./p.)
Expusemos apenas uma parte da amálgama de justificativas em prol das ‘reformas’. Ainda assim, é inegável que a sua legitimidade se ancora na necessidade de ajustar a educação escolar para garantir o aumento da produtividade do trabalho e melhores condições de competição no mercado internacional, para além de resolver os problemas mais imediatos da educação. Vejamos, então, o conteúdo das ‘reformas’.
Base Nacional Comum Curricular e Novo Ensino Médio: origens e propostas
A BNCC é documento de caráter normativo que define o conjunto de competências e habilidades que todos os alunos devem desenvolver e têm o direito de aprender em cada série da educação básica. Para seus construtores, a Base não se confunde com o currículo; é antes um elemento norteador para revisão de todos os currículos das escolas do Brasil (CASTRO, 2017). Desse modo, os currículos serão formados por uma parte majoritária e nacionalmente homogênea, e por uma parte diversificada, a ser definida por cada sistema de ensino.
Apesar dos debates em torno de uma base comum nos anos 1980, esta passou a ser discutida a partir da divulgação da sua primeira versão em setembro de 2015. Antes disso, porém, em 2013 foi fundada a organização empresarial que tomou a dianteira dos processos relativos à construção e implementação da BNCC, qual seja, o Movimento pela Base Nacional Comum (MPB), cuja rede de apoio institucional é composta instituições como CENPEC, Fundação Roberto Marinho, Instituto Ayrton Senna, Itaú BBA, Todos Pela Educação e Instituto Natura. Após a divulgação dessa versão, foi aberto um período de consulta pública, seguido da divulgação da segunda versão, em abril de 2016. Precisamente um ano adiante, já no governo Temer, foi divulgada uma terceira versão (BRASIL, 2017a), parcial (sem o ensino médio), que tramitou no CNE mesmo incompleta. Em dezembro de 2017, uma versão semelhante, mas não idêntica, fora aprovada pelo Conselho3. Desde então as escolas têm até dois anos para reformularem seus currículos de forma a atender as exigências da BNCC. Na reunião do dia 4 de dezembro de 2018, o CNE aprovou a BNCC para o ensino médio e seguiu para homologação do Ministro da Educação Rossieli Soares.
O documento estabelece um conjunto de competências gerais que, em suma, representam os fins a serem perseguidos pela abordagem dos componentes curriculares em todas as etapas. Dentre tais competências estão “Conhecer-se, apreciar-se e cuidar de sua saúde física e emocional […] reconhecendo suas emoções e as dos outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas”, além de “exercitar a empatia, o diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação” e “agir pessoal e coletivamente com autonomia, responsabilidade, flexibilidade, resiliência e determinação.” (BRASIL, 2017b, p. 10)
Outro fundamento definido é o ‘Compromisso com a Educação Integral’,o que significa, na BNCC, propor uma educação que estimule o jovem a aplicar seus conhecimentos na vida real, permitindo-o ser protagonista “na construção de seu projeto de vida”, já que, no “novo cenário mundial, reconhecer-se em seu contexto histórico e cultural, comunicar-se, ser criativo, analítico-crítico, participativo, aberto ao novo, colaborativo, resiliente, produtivo e responsável requer muito mais do que o acúmulo de informações.” (op.cit., p. 15).
A versão aprovada define cinco áreas de conhecimento para o ensino fundamental, para as quais foram definidas competências gerais da área e específicas do componente curricular, bem como as habilidades para cada ano desta etapa. Ainda que seja a segunda parte do mesmo documento, a versão da BNCC do ensino médio não segue esse padrão, pois se entende que nessa etapa o currículo deve ser flexível a fim de garantir autonomia de escolha de percurso formativo aos estudantes (BRASIL, 2017b). Dessa forma, a proposta de BNCC para o ensino médio vincula as competências gerais da educação básica a quatro áreas, cada qual definida as suas respectivas habilidades.
O arcabouço teórico-pedagógico da BNCC está firmemente presente na Lei nº 13.415/2017, que instituiu a ‘reforma’ do ensino médio. Do ponto de vista organizacional, a lei se assenta em uma anunciada ampliação da carga horária, propondo o aumento das atuais 800 horas para 1.400 anuais, atingindo pelo menos 1000 horas anuais em, no máximo, cinco anos. A lei define a BNCC como norteadora a partir da flexibilização curricular das trajetórias formativas e garante que ela ocupará, no máximo, 1.800 horas dessa etapa escolar. Além disso, a lei discrimina como componente obrigatório nos três anos apenas o ensino de português e matemática (BRASIL, 2017c).
O sentido formativo indicado pela Lei nº 13.415/2017 se ampara no estímulo ao projeto de vida e competências cognitivas e socioemocionais, já que “os currículos do ensino médio deverão considerar a formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais.” (id.ib.). Nesse sentido, tanto a BNCC quanto o NEM nos parecem apontar para a capacitação4 de um trabalhador que suporta incertezas e mudanças abruptas recorrentes, sobretudo em um contexto de aplicação de ‘reformas’ que implicam diminuição de direitos (GAWRYSZEWSKI, 2017).
O destaque conferido à noção de competência remete aos anos 1990, quando esta repercutiu no debate curricular e na prática pedagógica, sobretudo pelo entendimento de que a escola, mais do que transferir conhecimentos, deveria construí-los junto com o estudante. O Relatório Jacques Delors (UNESCO, 1996) foi o principal norteador dos princípios formativos para o século XXI, assentando-se no desenvolvimento de competências cognitivas: interpretar, refletir, pensar abstratamente, generalizar aprendizados. A educação fora alçada à condição de proporcionar a (con)formação dos indivíduos suscetíveis às mudanças bruscas na sociabilidade humana, na utilização das tecnologias e na formação para o mundo do trabalho. Nesse cenário, o Relatório já demonstrava a relevância da educação para incremento da produtividade a partir da ideologia do capital humano (MOTTA, 2008), dada a preocupação candente com a instabilidade e precariedade marcante do século. Diante das sucessivas inovações, a educação deveria favorecer a flexibilidade, pois o modelo curricular baseado em diplomas de qualificações rígidas estaria fadado à obsolescência. Em resumo, as competências eram concebidas como “uma espécie de coquetel individual, combinando a qualificação, em sentido estrito, adquirida pela formação técnica e profissional, o comportamento social, a aptidão para o trabalho em equipe, o gosto pelo risco […]” (op.cit., p. 94)
Compreendemos que o exposto acima sintetiza as características centrais do projeto de capacitação da força de trabalho em curso que, respaldado pelos OI, forja as condições estruturais e superestruturais de sustentação das relações sociais capitalistas diante das novas formas de trabalho precarizadas, instáveis e flexíveis (CASTELO, 2011). Caberia, então, à educação “fazer com que cada indivíduo saiba conduzir o seu destino, num mundo onde a rapidez das mudanças se conjuga com o fenômeno da globalização.” (UNESCO, 1996, p.105).
Ao que parece, o que ganha força nos últimos anos atende por competências socioemocionais, e significa um plus especial às competências cognitivas. Elas envolvem a capacidade do sujeito de se relacionar com outras pessoas, com autoconhecimento, estabilidade emocional, resiliência, sociabilidade e abertura ao novo (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2015), o que parece assumir função essencial na conjuntura atual.
A conjuntura de construção das ‘reformas’ educacionais
O segundo mandato do governo Lula (2007-2010)iniciou sob a égide do neodesenvolvimentismo,um período de crescimento econômico. A esplêndida aceleração da economia chinesa favoreceu o mercado internacional, possibilitou superávits sucessivos na balança comercial brasileira e alguns alívios imediatos à classe trabalhadora no que tange à ‘questão social’5. Embora não tenham sido abandonadas as bases neoliberais, o Estado interveio para garantir a competitividade das empresas nacionais, sobretudo no auge da crise deflagrada nos Estados Unidos em 2008-2009. Os impactos da terceira grande depressão6 do capitalismo mundial puseram freio ao ciclo de crescimento econômico brasileiro durante o primeiro mandato presidencial de Dilma Rousseff (2011-2014). Potencializados pela estratégia macroeconômica recessiva adotada no seu segundo mandato (2015-2016), impuseram-se como barreira à continuidade do projeto neodesenvolvimentista, demonstrando a impossibilidade de evitar crises econômicas meramente pela manipulação de ferramentas da política macroeconômica.
No primeiro mandato da presidenta, a redução das taxas de rentabilidade dos setores economicamente hegemônicos (exceto o bancário e o de alimentos e bebidas) ocorreu pari passu à redução das taxas de desemprego e ao crescimento do salário mínimo real (PINTO et al, 2015). Isso mudou em 2014, quando a desaceleração do crescimento econômico se transformou em estagnação. Malgrado a intensificação das greves trabalhistas e as jornadas de junho de 2013, a presidenta foi reeleita. Então, as frações burguesas, percebendo o Estado falhar na garantia das condições prévias de acumulação de capital, intensificaram a pauta em prol da redução do custo da força de trabalho.
Para recuperar a confiança das frações burguesas, Dilma escolheu o economista Joaquim Levy7 como Ministro da Fazenda e aplicou enérgicas medidas de ajuste fiscal, com a restrição de benefícios previdenciários e trabalhistas. Tal medida fora tomada em um cenário de redução dos investimentos da Petrobrás, alta inflacionária, exacerbação da queda na arrecadação de impostos e trajetória ascendente do desemprego. Todavia, o ortodoxo ajuste acarretou a perda do pouco apoio da classe trabalhadora ao seu governo, doravante insatisfeita com a contração do consumo e a diminuição da renda familiar. Já a burguesia brasileira não hesitava em demonstrar que a urgência do ajuste fiscal e das ‘reformas’ não era mais possível sob a égide petista (MARQUES, 2016). Assim, o descompasso das frações internas do bloco no poder com as contradições internas ao sistema partidário e o adensamento político tomado pela OperaçãoLava-Jato, que teve crescente apoio dos mais diversos estratos da sociedade, criaram as condições favoráveis para o golpe de 2016 e para a retomada de uma guerra de posição aberta pela classe dominante.
A proposição das‘reformas’ pelo governo de Michel Temera partir do segundo semestre de 2016 se deu sob o pretexto de superar a crise e “assegurar a saúde das contas públicas e a estabilidade política, de modo a atrair os investimentos internacionais.” (SAFATLE, 2017, s./p.) A despeito da aprovação de algumas delas, como o teto limite para o gasto público com as despesas primárias (Emenda Constitucional 95/2016) e a fragilização das leis trabalhistas (Lei 13.467/2017), a melhora dos indicadores é tímida e inexpressiva. Não obstante a crise política que mantém o mandato presidencial de Michel Temer em constante corda bamba, as frações burguesas não hesitam em desfraldar as bandeiras de que a agenda de ‘reformas’ deve ser preservada por se tratar de iniciativa baseada no bem comum da nação8.
O discurso pastiche de ‘fim da crise’ não encontra materialidade na conjuntura atual, que para a classe trabalhadora segue truculenta, com vultosos índices de desemprego, estagnação da renda e exacerbação da criminalidade. Por isso, entendemos que as ‘reformas’ educacionais não são eventos que destoam em relação a outros da atual conjuntura. Dialeticamente, a situação de crise no país não deixa de lançar luz sobre o caráter contraditório da acumulação capitalista, tão mais violenta conforme o capital se expande. Vejamos, por ora, como as frações burguesas, representadas pelos OI, entendem essa crise e suas soluções.
Diagnóstico e soluções sob a ótica dos organismos internacionais (OI)
Dado esse cenário pouco animador, os OI não se abstiveram de diagnosticar e propor soluções à turbulência posta. Incrementar a produtividade é indispensável para o crescimento econômico. Da forma como é tratada recorrentemente pelos agentes da economia contemporânea, a produtividade é um indicador de eficiência das empresas, das indústrias e do próprio país na utilização de seus ativos existentes. Divide-se em duas medidas: a produtividade do trabalho e a produtividade total dos fatores. A metodologia mais difundida para mensurar a Produtividade do Trabalho (PT) divide o PIB pelo volume de horas trabalhadas por ano, de forma a medir a quantidade de riqueza gerada por cada trabalhador; por sua vez, a Produtividade Total dos Fatores (PTF) mensura o impacto combinado dos insumos do processo produtivo, considerando o emprego de capital humano (força de trabalho devidamente capacitada) e de capital físico (instalações e matérias-primas). Nesses termos, “a evolução da PTF pode ser encarada como uma medida econômica do progresso técnico.” (BANCO MUNDIAL, 2018, p.8)
Em estudo específico sobre o Brasil, é defendido que o parco crescimento econômico nos últimos vinte anos só foi possível devido ao aumento quantitativo da força de trabalho e pelo progressivo acréscimo da escolaridade da população. Tais fatores teriam atenuado os efeitos deletérios da baixa produtividade do trabalho, pois a PTF caiu 1% entre 1996 e 2015 e a produtividade do trabalho contribuiu apenas 0,6% ao ano (BANCO MUNDIAL, 2018)9, justamente pela não adequação da educação às demandas empresariais.
Faz-se necessário destacar que as fontes consultadas estabelecem uma relação distorcida entre educação - tratada como capital humano - e mercado de trabalho. Nessa perspectiva, a capacitação profissional é inadequada às empresas, porque torna “os retornos irrisórios. Isto ocorre, em parte, porque o trabalho é mal alocado e - ainda mais importante - porque o capital é mal alocado; isso impede que o capital humano seja utilizado da melhor forma possível.” (BANCO MUNDIAL, 2018, p.64). Assim, advoga-se uma ‘reforma’ educacional que proporcione aumento da produtividade do trabalho por conta de um capital humano mais capacitado. Para a OCDE, o plus no capital humano perpassa o desenvolvimento das competências socioemocionais que, além de terem um efeito positivo sobre as competências cognitivas, promovem também a equidade educacional, já que as crianças mais pobres precisam de suporte “para alcançar as mesmas oportunidades na vida que seus pares mais favorecidos.” (ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO, 2015, p. 21)
A OCDE vem promovendo estudos e parcerias com instituições de diversos países, de modo que a agenda das competências socioemocionais possa ser ampliada e disputada como política pública educacional local. No Brasil, seu principal aliado é o Instituto Ayrton Senna, que há vinte anos logra êxito na venda de materiais didáticos, tecnologias educacionais e assessoramento para órgãos estatais na área de educação. Defende a OCDE (2015, p. 18) que:
As crianças precisam de um conjunto equilibrado de competências cognitivas e socioemocionais para se adaptar ao mundo atual, cada vez mais exigente, imprevisível e mutante. Aquelas capazes de responder com flexibilidade aos desafios do século 21 têm mais chance de serem prósperas, saudáveis e felizes. As competências socioemocionais são úteis para enfrentar o inesperado, atender múltiplas demandas, controlar os impulsos e trabalhar em grupo.
Indubitavelmente, os jovens constituem o público-alvo prioritário das ações educacionais, mormente considerando a crise capitalista brasileira. Tendo em vista a dificuldade de recuperação dos níveis de emprego e renda, o desenvolvimento de competências é tido como vacina para que as frustrações dos jovens não constituam empecilhos a si mesmos, pois
[…] pessoas com um nível mais alto de competências tem maiores chances de receber mais investimentos em educação.Os pais podem investir mais nas competências dos seus filhos se eles mostrarem um progresso promissor em seu desenvolvimento. (op.cit., p.77)
O investimento nos segmentos mais vulneráveis (jovens, inclusive) foi promovido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em seu relatório anual de 2014. Neste, foram apontados horizontes em resposta aos efeitos acarretados pela profunda crise econômica que atingiu seu estopim nos países centrais do capitalismo em 2008/2009 e que lançou parcelas expressivas da sociedade à própria sorte, com reduzida capacidade de reação diante de adversidades tão incisivas (PNUD/ONU, 2014). Conforme o PNUD, a emergência de novas ameaças implicaria a necessidade de respostas baseadas em ações coletivas que congreguem Estados nacionais, organizações internacionais, sociedade civil e empresas privadas em prol de construir um sistema global mais resiliente. (op. Cit., 2014) A resiliência humana está designada pelo PNUD/ONU (2014, p.14) como uma forma de “assegurar que as pessoas façam escolhas sólidas, agora e no futuro, que as habilitem a enfrentar e a adaptar-se a adversidades.” Logo, é posto na ordem do dia um “desenvolvimento humano resiliente”, pois possibilita aos “indivíduos a viverem de acordo com o seu potencial e faz aumentar a produtividade porque aumenta a capacidade dos indivíduos para lidarem com os choques. Os indivíduos mais instruídos têm mais facilidade, por exemplo, em mudar de emprego.” (op.cit., p.97). Nesse sentido, a inserção dos jovens neste “mundo complexo” do trabalho torna-se elemento crucial para os OI em prol da manutenção da governabilidade e da coesão social.
No entanto, aumentar a produtividade da força de trabalho não requer apenas competências socioemocionais. É preciso que os estudantes disponham das competências cognitivas requeridas por seus empregadores. O Banco Mundial cita as iniciativas mais recentes do governo Temer como apontamentos que produziram resultados satisfatórios (como a introdução de um currículo baseado em competências e a ampliação da escola em tempo integral) e prescreve que:
[…] uma estratégia bastante eficaz para desenvolver ainda mais as competências é aumentar o protagonismo das empresas, para que elas ajudem a garantir que os trabalhadores tenham as habilidades que as empresas exigem. Isso foi confirmado pelos resultados positivos do Sistema S, administrado pela indústria, e do subprograma PRONATEC-MDIC - que consideraram explicitamente as informações fornecidas pelas empresas ao decidirem sobre o conteúdo e as competências oferecidas nos cursos - muito embora o custo-efetividade desses programas ainda precise ser melhor avaliado. Outros prestadores de treinamento, bem como outros ramos da iniciativa PRONATEC que não contam com serviços informados pela demanda, apresentaram resultados decepcionantes10. (BANCO MUNDIAL, 2018, p. 65 - grifo nosso)
A nosso ver, os caminhos atualmente apontados para aumentar a produtividade agudizam a relação entre mercado e educação. Embora seja um documento recente, trata-se certamente de uma diferença sutil, mas significativa: o relatório não sugere que a educação desenvolva competências a serem convertidas em qualidades gerais para um mercado de trabalho abstrato, como concebe a clássica concepção econômica de educação. O que o Banco Mundial aponta é a necessidade de a educação se vincular às empresas, pois ao desenvolver as habilidades requeridas por elasse geraria, consequentemente, um aumento de sua capacidade produtiva. Afinal, o sucesso atribuído ao subprograma PRONATEC-MDIC deriva do fato de que ele considerava “as informações fornecidas pelas empresas ao decidirem sobre o conteúdo e as competências oferecidas nos cursos.”. São hipóteses dedutivas pensar que: (I) o conteúdo formação da classe trabalhadora, tendencialmente, será pré-definido pelas grandes empresas, e (II) as ‘reformas’ educacionais, sobretudo curriculares, seguirão nessa direção. Além disso, decerto que o Banco não está sugerindo que as empresas aumentem seus gastos com essa capacitação, mas que, tal como o PRONATEC, seja financiada pelo fundo público11.Cabe ratificar que uma capacitação em sintonia com as necessidades empresariais não se restringe apenas à força de trabalho ocupada, mas também ao Exército Industrial de Reserva12.
Noutros termos, essas diretrizes aprofundam a ‘mercantilização da educação’ na medida em que concebem a educação, ideologicamente, como puro meio de capacitar a força de trabalho, sob a ilusão de que essa capacitação é necessária à valorização da capacidade de trabalho humana. Na realidade, a capacitação encomendada pela empresa exacerba a alienação do valor de uso da mercadoria força de trabalho pelo seu detentor, ao passo que potencializa o valor de uso dessa capacitação àquele que a efetiva. Portanto, na ótica do Banco Mundial, trata-se não de comprar uma força de trabalho qualquer no mercado, mas de encomendara força de trabalho com competências produzidas sob medida para atender às suas necessidades reais.
As ‘reformas’ também abrem espaço para a ‘mercadorização da educação’, uma vez que as grandes empresas podem comprar pacotes formativos variados do Sistema S para capacitação de seus empregados. Capacitação que pode e deve, sob tal ótica burguesa, ser conferida, minimamente, também a uma parte da população reserva que deve tanto ser passível de ser contratada em períodos de expansão do mercado quanto de exercer pressão negativa sobre o valor da força de trabalho.
É inegável que há intenção de manter a coesão social indispensável à acumulação em geral, e, portanto, de conformar aqueles que, a despeito de sua capacidade produtiva, constituem a parcela dos desempregados e desalentados. É válido lembrar ainda que o peremptório aumento da produtividade do trabalho no âmbito das grandes empresas e o seu consequente e progressivo acúmulo de riquezas tende a apresentar consequências severas para a classe trabalhadora, já que, como sinalizou Marx (2017, p. 877), “a acumulação de miséria [é] correspondente à acumulação de capital. Portanto, a acumulação de riqueza num polo é, ao mesmo tempo, a acumulação de miséria, o suplício do trabalho […] no polo oposto.”
À guisa de conclusão
Compreendemos que o NEM e a BNCC não são eventos fortuitos em meio à avalanche de ‘reformas’ postas no tempo presente. Não ao acaso, elas são trazidas à tona em uma conjuntura de crise, na qual se acirram as disputas pelo controle do acesso ao fundo público, com fins de recuperação das taxas de lucro. Por certo, tais mecanismos atingem diretamente a classe trabalhadora, condenando grande parte desta classe à miserabilidade, à degradação moral e à ignorância.
As preocupações com o acesso ao conhecimento historicamente acumulado e as ferramentas de compreensão do mundo não subjazem às propostas formativas das ‘reformas’, já que os currículos escolares são, por meio delas, estreitados. No entanto, há um movimento ininterrupto de amortização dos altos índices de desemprego, pobreza e violência, sobretudo entre os jovens. Conforme sinalizado nas diretivas dos OI, a barbárie social e a possibilidade de tensionamento da coesão social continuam a preocupar as frações burguesas, de forma que toda e qualquer medida ‘contracorrente’ faz-se imperativa, independentemente do seu caráter antidemocrático, truculento e repressivo.
Compreendemos que as ‘reformas’ educacionais são sustentadas por um tripé de necessidades, todas vinculadas ao desejo de destravar a acumulação de capital. É certo que as frações do capital ensejam o aumento da produtividade do trabalho que, proporcionando a redução da relação gasto/produto, permite melhorar as condições de competitividade no mercado. A massiva, restrita e aligeirada capacitação da força de trabalho em prol do aumento da produtividade do trabalho, na perspectiva dos OI, permite que os trabalhadores produzam mais valores em menos tempo. Isto tem como desdobramentos: (I) a ociosidade forçada de uma parcela da classe trabalhadora, de forma que um menor contingente de empregados produza a mesma quantidade de riquezas, enquanto a população reserva pressiona constantemente o valor da força de trabalho para baixo e/ou (II) o aumento substancial da quantidade de riquezas produzidas com maior eficiência, permitindo, no caso da produção de serviços e mercadorias, a redução dos seus valores e melhores resultados na concorrência, e(III), como demonstrou Marx (2017), combinar o aumento da produtividade do trabalho às formas absolutas e relativas de extração de mais-valor a fim de incrementar tenazmente o grau de exploração da força de trabalho e o tempo de trabalho excedente, proporcionando acréscimos na riqueza produzida socialmente e apropriada privadamente.
Uma necessidade latente das frações burguesas é movimentar cada vez maiores massas de capital, já que “quanto mais desenvolvido o capital […] tanto mais extraordinariamente tem de desenvolver a força produtiva do trabalho para valorizar-se em proporção ínfima.” (MARX, 2011, p. 426) Considerando-se que é característica das crises capitalistas o estorvo da reprodução ampliada e a dificuldade de gerar e movimentar capital, a busca pela transformação do fundo público em lucro privado, inclusive pela capitalização desse fundo, não é de surpreender. A nosso ver, as ‘reformas’ educacionais não deixam de contribuir para tal, uma vez que o Estado contrata empresas para gerir e alavancar as medidas e obriga, direta ou indiretamente, à produção de novos materiais didáticos e pacotes de formação docente. Ilustra a afirmação acima a contratação da Fundação Carlos Alberto Vanzolini pelo MEC, em 23 de março de 2017, ao custo de R$ 18.923.297,00, para “Prestação de serviços especializados para a gestão integrada dos processos necessários à consolidação, disponibilização, divulgação e discussão da 3ª versão da BNCC.” (BRASIL, 2017d).
Não menos importante é o fato de que tornar o trabalhador mais produtivo significa também capacitá-lo para lidar individual e passivamente com a barbárie social, de forma a preservar a coesão social. Inegavelmente, essa tarefa vem sendo cumprida pelo empresariado que, no exercício da sua capacidade técnica e dirigente, organiza o consenso, opera o conformismo das massas e se vale da coerção - estatal ou não - sempre que necessário (GRAMSCI, 2000). Não obstante, esse mesmo empresariado dirige e organiza seus aliados para a consolidação do projeto pedagógico hegemônico, qual seja, moldar a força de trabalho em fina sintonia com os interesses das mais variadas frações burguesas ou, noutras palavras, das necessidades candentes da expansão capitalista. Tal necessidade vem sendo atendida, por exemplo, pela obrigatoriedade das competências socioemocionais no currículo da educação básica.
Para além desse tripé, a implementação do NEM atende a interesses há muito demandados pelo empresariado, como a vinculação dessa etapa de ensino a uma BNCC, a dita flexibilização dos itinerários formativos e a possibilidade de aproximação da oferta formativa com o mercado de trabalho. Nesse âmbito, o sentido de modernização e flexibilização se torna uma metáfora léxica para significar maior espaço para o empresariado incidir sobre os processos formativos da força de trabalho brasileira.
No escopo da BNCC, o projeto pedagógico se ampara em slogans questionáveis como igualdade de oportunidades, direito de aprender, liberdade de escolha13, cujo sucesso depende da capacidade de operar conhecimentos e de empreender, bem como de resistir e superar as adversidades. Tendo o Estado cumprido o papel de oferecer a oportunidade de acessar a educação, a corrida em direção ao sucesso profissional e à ascensão social dependerá do equilíbrio emocional subjetivo, da persistência e da capacidade de saber aproveitar as chances oferecidas. Esse discurso não é novo, por óbvio; o que nos parece relativamente novo são as sucessivas finalidades postas em evidência pela burguesia internacional e brasileira, variando conforme as especificidades conjunturais.
Ratificamos que as ‘reformas’ educacionais fazem parte do projeto econômico e ético-político operado pela burguesia com vistas à manutenção da sua supremacia. No âmbito da luta política, destacamos que resistir às reformas não deve significar resistir às suas aparências ou consequências. Não estamos negando a importância de resistir aos seus impactos, já que ambas aprofundam as características perversas da educação brasileira. Sinalizamos apenas que as ‘reformas’ fazem parte de um conjunto mais abrangente de medidas que reafirmam o caráter antidemocrático e truculento de nossa burguesia. Outrossim, que as ‘reformas’ são apenas uma face da agudização das contradições inerentes à sociedade capitalista. Por isso, afirmamos: barrar as “reformas” é barrar o desenvolvimento do capital.