Pedagogias dos/ nos/ em terreiros1: abrindo os trabalhos
A Pedagogia Social (PS), possibilita pensarmos os ensinos ocorridos em diferentes espaços. Enquanto uma categoria conceitual, disposta, para além, dos saberes escolarizados e/ ou universitários, seu desenvolvimento preconiza as relações com os contextos em que se desenvolve e nisso implicam-se suas reivindicações. Logo, de antemão, sinalizo sua recorrente ação em espaços não-formais ou não-escolarizados de ensino. Dito isso, posiciono-a nos processos educativos desenvolvidos nos terreiros, sendo orientada por pais e mães de santo, mas não somente, tendo em vista que, as funções mediadoras dos saberes, ao menos destes locais, são horizontalizadas, logo, ao mesmo tempo em que se ensina, aprende-se.
Nesse jogo relacional, a PS desenha-se nas narrativas de todos(as), isso porque, todo conhecimento (independente de quem o profere) compõem o arcabouço sócio-mítico-educativo-pedagógico dos terreiros. Assim, percebo e sinalizo uma ideia de aproximação entre a Pedagogia Social e a Educação popular, já exposta em Pérez Serrano (2007). Contudo, para o caso específico dessa escrita, dialogo com Machado (2009) ao escrever que tal conceito - a PS, deva ser entendida como um conjunto de ações políticas. Não que todo ato educativo não o seja, mas ao abordar as pedagogias dos terreiros, aciono em minha escrita inúmeros históricos de lutas e resistências propostas e impostas pelas comunidades-terreiros (SOARES, 2018). Desse modo, dialogo com Caliman (2011) ao propor que a PS seja compreendida, em sua ação, enquanto uma ciência social que busca, por meio dos processos educativos, atenuar as diferenças sociais, nesse caso, proporcionadas por um histórico repleto de borrões, apagamentos, invisibilidades das culturas ditas não hegemônicas, àqueles saberes sujeitados (FOUCAULT, 2005).
Ao recorrer a estes argumentos adenso as discussões que propõem a ideia de que todo e qualquer lugar é educativo (SOARES, 2018; SILVA, 2012), logo, que educar é sempre um jogo de relações, que para este artigo são da ordem do poder. Ao dizer desse lugar, aproximo-me das ideias de Foucault (1999, p. 47) ao escrever que “[...] enquanto o sujeito humano é colocado em relações de produção e de significação, é igualmente colocado em relações de poder muito complexas”. Assim, a PS está para os terreiros de Quimbanda, nesse estudo, enquanto ato de inúmeras relações de produção e posicionamento de sujeitos que resistem (por meio de suas ancestralidades) às tentativas de colocação de seus saberes na ordem do indizível, isso porque, “[...] lá onde há poder há resistência [...]” (FOUCAULT, 1997, p. 91).
Na esteira dessa afirmação explico que a Quimbanda é uma das manifestações religiosas afro-brasileiras. Em princípio, suas práticas não podem ser datadas, pois, dentre os registros acerca das afros brasilidades, talvez, os cultos à Quimbanda estejam entre os mais silenciados. Dito isso, menciono algumas de suas características, são elas: os cultos aos exus e pombagiras, os tratos com os rituais de imolação (sacralização animal), ritos que conduzem a saberes religiosos que direcionam-se as curas de males sociais e individuais, as alegrias de seus pontos cantados que produzem ares de festa, ao longo dos cultos, ela é equilíbrio por ser trabalhada com a Umbanda, entre outros (SOARES, 2018).
Situadas essas orientações iniciais, o objetivo deste exercício pedagógico foi investigar de que maneira as relações entre pedagogias e ensino do universo religioso afro-brasileiro são desenvolvidas em terreiros de Quimbanda da cidade do Rio Grande, no interior sul litorâneo do Rio Grande do Sul, na contemporaneidade. As PS descritas neste texto foram observadas e debatidas, a partir das narrativas (CONNELLY; CLANDININ, 1991) de quatro dirigentes de terreiros de Quimbanda. Para produção deste artefato pedagógico2 recorri ao campo dos Estudos Culturais (HALL, 1996), nas suas vertentes pós-estruturalistas (PETERS, 2000), enquanto base teórica. Por estratégia metodológica recorri a Investigação Narrativa (CONNELLY; CLANDININ, 1991), com uso de entrevistas individuais (SILVEIRA, 2002) como ferramenta para produção dos dados e os olhares analíticos foram desenvolvidos a partir da Análise Cultural (GEERTZ, 1993), possibilitada pela ação de tabulação e categorização dos dados.
Sobre educação e pedagogias: saberes dos terreiros na pedagogização da fé
Os atos educativos ou pedagógicos, são inerentes à existência dos sujeitos, independente dos contextos que frequentem. Somos educados(as) a todo instante, seja pelas ações dos(as) outros(as), dos reflexos das que promovemos, enfim, por um sem número de situações, geradas em nossos espaços de convivência, dos quais decorrem, nossas aprendizagens sociais. As instâncias educacionais que nos produzem e que, por ora, produzimos representam diferentes espaços imbricados por relações de poder que podem gerar inúmeros conflitos culturais, porém, é a partir deles que percebo possibilidades de produção de outros saberes, outras pedagogias que culminam na proliferação de múltiplas aprendizagens. Operacionalizar os conflitos produz tecnologias educativo-sociais que podem indicar pistas acerca dos modos de organização das instituições sociais que no educam, no caso os terreiros e suas pedagogias sociais.
Contudo, explico-me que sermos educados(as) dessa forma, pode ocorrer, por no mínimo, por duas vias, uma intencional e outra não. A primeira, por sua vez, está implicada nos modos de sermos educados(as) de forma planejada, institucionalizada, respondendo a objetivos que estão orientados por estruturas, regras, padronizações e princípios, instituídos, muitas vezes, mas nem sempre, por aqueles(as) que nos educam. Já, a segunda corresponde aos modos em que nos educamos por intermédio de nossas relações que escapam a primeira, mas que assim como o intencional, está permeada por pedagogias e é fruto de artefatos culturais. Tal entendimento foi observado no excerto a seguir, de Roberto do Pantera Negra, em entrevista realizada no dia 24 de maio e 2020, quando segundo ele “[...] aqui no terreiro o ensino ocorre de diferentes maneiras. Tem as histórias que contamos, os pontos, as fotos, os ritos, pelas relações entre eles, os filhos da casa e nas conversas comigo ou, também, com as entidades [...]”3.
Desse modo, grifo que não existe modo único de se pensar o que é pedagogia, especificamente porque "[...] a questão da pedagogia é definida, cada vez mais, em termos culturais" (GIROUX, 1995, p. 100). Portanto, não é possível desconsiderar que ela é fruto de desejos, das relações entre sujeitos que se ensinam algo mutuamente, no caso desta pesquisa, as pedagogias são pensadas nas interações, nas trocas, nas somas e subtrações de conhecimentos oriundos dos encontros entre dirigentes dos terreiros e filhos(as) de santo. Henri Giroux (1995) expõe que a pedagogia produz conhecimentos, especifica modos de ações éticas, ao mesmo tempo em que produz identidades, estabelece posições de sujeito. Nos terreiros, elas estão implicadas nos jogos de relações entre dirigentes, praticantes, fieis - assistência, ritos, pontos cantados e riscados e objetos. Portanto:
A pedagogia representa um modo de produção cultural implicado na forma como o poder e o significado são utilizados na construção e na organização de conhecimento, desejos, valores. A pedagogia, neste sentido, não está reduzida ao domínio de habilidades e técnicas. Em vez disso, ela é definida como uma prática cultural que deve ser responsabilizada ética e politicamente pelas estórias que produz, pelas asserções que faz sobre memórias sociais e pelas imagens do futuro que considera legítimas (GIROUX, 1995, p. 100).
Para o campo dos Estudos Culturais, as pedagogias são os processos sociais que nos educam, elas se estendem a todo e qualquer lugar de interação social e estão implicadas na produção e intercâmbio de significados, por meio de relações e artefatos culturais (STEINBERG, 1997). Em Silva (2012),
[...] os Artefatos Culturais contêm pedagogias culturais que ensinam modos de ser e estar no mundo, construindo e (re)produzindo significados. Nesse sentido, podemos entender que nós, enquanto sujeitos de uma cultura, somos constituídos nela e por ela, e que os processos que constituem nossas identidades são tanto educacionais quanto culturais (SILVA, 2012. p. 55).
Nesse contexto, esta pesquisa, também busca promover ranhuras para discussão de fazeres, problematizando os terreiros, enquanto espaços pedagógicos, entendendo que estes como “[...] aqueles onde o poder se organiza e se exercita tais como bibliotecas, TV, filmes, jornais, revistas, brinquedos, anúncios, videogames, livros, esportes, etc” (STEINBERG, 1997, p. 102). Isso porque, em uma perspectiva cultural, toda e qualquer relação, bem como espaço, produzem e veiculam pedagogias que atuam diretamente na produção de identidades (STEINBERG, 1997). Complemento este pensamento elucidando que nos tornamos sujeitos “[...] pelas práticas divisórias e pelos modos de transformação que os outros aplicam e que nós aplicamos sobre nós mesmos [...]” (VEIGA-NETO, 2003, p. 136). Para tanto, estabeleço comunicação com Junqueira (2009) ao afirmar que é preciso,
[...] tomar consciência de que o campo da educação se constituiu historicamente como um espaço disciplinador, normalizador e reprodutor de desigualdades é passo decisivo para promover a desestabilização das lógicas e dos compromissos tradicionais próprios de uma política educacional concebida para estar a serviço de poucos. Para tanto, faz-se necessária a problematização radical da produção e do acionamento de seus dispositivos, tais como diretrizes para os sistemas de ensino, medidas legislativas e administrativas, discussões e reformas curriculares, formação docente inicial ou continuada, elaboração e distribuição de materiais didáticos e paradidáticos, modalidades de financiamento da educação, fomento à pesquisa e à divulgação científica, articulações intra e interinstitucionais, cooperação internacional e mecanismos de mobilização social (JUNQUEIRA, 2009, p.162).
Parto então do escrito por Junqueira (2009) para posicionar-me em relação ao que penso sobre educação. Ademais a isso, para dizer que o exposto pelo autor está diretamente ligado com as pedagogias, com as ações pedagógicas orientadas por diferentes interesses. Mais que isso, para expor que os espaços educacionais podem ser entendidos como,
[...] um campo minado de metanarrativas. Impossível andar nele sem esbarrar em uma. Usa-se metanarrativas para construir teorias filosóficas da educação; utilizam-se metanarrativas para analisar sociológica e politicamente a educação; nossos currículos educacionais deixariam de existir sem as metanarrativas - metanarrativas históricas, sociais, filosóficas, religiosas, científicas (SILVA, 1996, p. 248).
Para Silva (1996, pp. 249 - 249) “[...] é preciso que se aplique um golpe [...] contra as metanarrativas [...] contra o edifício teórico educacional, seja aquele tradicionalmente construído, seja o da teorização crítica”. Neste caso, penso que o meu primeiro golpe é ir na contramão de saberes que demonizam as práticas religiosas de matriz africana. Minha batalha contra as metanarrativas dos terreiros está em discutir seus conhecimentos (notadamente conhecimentos de caráter histórico e narrativas que usam a história e o passado como referências), ritos e danças. Propondo que nos terreiros também são produzidos conhecimentos que estão em diálogos com todo meio cultural que circulamos. Além disso, afirmo que um saber edificado não é somente aquele oriundo das academias, difundidos pelas instituições que possuem o título de científicas, mas de todo o lugar onde as pedagogias ocorrem (MACHADO, 2014). Assumo esta postura por dialogar com Costa (2002) ao expor que,
[…] devemos desconfiar das bases sobre as quais se assentam as promessas e as esperanças nas quais nos ensinaram a acreditar. Tudo indica que deveremos sair dessas bases para, de fora, examiná-las e criticá-las. Afinal, enquanto pessoas envolvidas com a Educação, temos compromisso não apenas com nós mesmos, mas, também e por ofício, com ou ― sobre aqueles com os quais trabalhamos (COSTA, 2002, p. 23).
O exercício da desconfiança é o primeiro a que me propus, desde o momento em que decidi pesquisar esta temática, uma vez que, antes de qualquer coisa, estou desconfiando das bases que me educaram, que influenciaram minhas identidades e que me trouxeram até este lugar. Parto das minhas bases, colocando-as em xeque, suspendendo-as. Porém, reconheço que tal exercício produz processos de pedagogização (educação) dos sujeitos e, também, de subjetivação, além de me oferecer pistas para pensar sobre os modos de ser/estar/reconhecer-me, a partir das experiências escritas e inscritas no meu corpo e comportamentos, entendendo que diferentes mecanismos atuam na produção dos sujeitos. Essa constatação foi possível, a partir da narrativa de Daiane da Maria Quitéria, em entrevista realizada no dia 23 de maio de 2020, quando, segundo a participante, [...] o que ensinamos aqui, não é obrigatório que seja ensinado em outro terreiro, cada casa tem sua lei, seus fundamentos. Eu ensino o que sei, mas busco aprender sempre para poder passar mais fundamentos para os filhos [...] Tento o tempo todo considerar e mediar as coisas que eles sabem e trazem para o terreiro, as dúvidas, os medos, e tudo que eles falam aqui eu tento estabelecer alguma relação com as rotinas da casa (terreiro), para que eles compreendam que cada um sabe alguma coisa e que podemos conviver com muitos saberes.
Segundo a participante, os saberes ensinados em seu terreiro, seguem uma lógica daquele lugar, possui suas orientações, ou como exposto por ela, seus fundamentos. Salienta que busca aprender mais, para poder ampliar seus conhecimentos e repassá-los. Além disso, assume que possui uma função de mediadora, no sentido de que todos(as) possam se sentir contemplados, quando o assunto são os referentes das constituições dos conteúdos do terreiro. Desse modo, compreendo que ela desempenha, no mínimo, uma função de agente educadora social, ao colocar em diálogo questões que falam sobre as pedagogias dos sujeitos frequentadores do seu terreiro “[...] inicialmente como uma ação teórico-prática, socioeducativa [...]” (MORAES, 2011, p. 40), algo próprio da Pedagogia Social e, também, dos(as) líderes de terreiros. Nesse sentido, percebo uma produção pedagógica dos sujeitos, que segundo Larrosa (1994) pode ser entendida como:
[...] o sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito, já não é analisada apenas do ponto de vista da objetivação mas, também, da subjetivação[...] isto é, do ponto de vista de como as práticas pedagógicas medeiam certas relações determinadas da pessoa consigo mesma. Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmo que lhes é imposta de fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles mesmos devem contribuir ativamente para produzir (LARROSA, 1994, p.54).
Os sujeitos pedagogizados, pedagógicos e, mais especificamente suas produções, a partir das práticas que envolvem as pedagogias exusíacas (de exus e pombagiras), são o objeto desse estudo. Busquei nos fazeres dos terreiros, compreender como ocorrem os ensinos das pessoas, partindo do pressuposto de que nestes lugares os sujeitos são educados e educam, simultaneamente. A educação/ pedagogização oriunda dos terreiros aloca esta pesquisa em um ambiente entendido pelos estudos acadêmicos (como discutirei abaixo), no campo da educação não-formal, porém, os(as) dirigentes dos terreiros visitados expõem que não se trata de uma educação não-formal, mas sim, não escolarizada, embora estes espaços - os dos terreiros, possuam seus currículos, etapas e cronologias de avanço - desenvolvimento, dos(as) filhos(as) de santo4.
Educação não-escolarizada em diálogo com a educação em terreiros...
Os terreiros são entendidos, nesta pesquisa, como instituições culturais. Neles ocorrem inúmeras práticas ritualísticas que influenciam nos modos como os sujeitos se colocam no mundo (CAPUTO, 2012). Eles são fruto de uma diversidade cultural (FAVERO, 2010) que me possibilita colocá-los como campo desta pesquisa. A educação nestes espaços ou campo desta pesquisa está assentada em uma premissa de que: “[...] as cosmologias das religiões de matriz africana são concebidas num princípio tridimensional simbiótico entre homem-natureza-fé” (SANTOS; GONÇALVES, 2011, p. 14). Nesse sentido, os saberes que são repassados nestes locais perpassam essa trilogia, uma vez que é ela que orienta os caminhos a serem seguidos nos terreiros (SANTOS; GONÇALVES, 2011).
Sociologicamente, as religiões são da ordem da cultura, portanto, conhecimento adquirido, aprendido, transmitido e, assim, são condicionadas pelas relações existentes entre os homens em seus grupos sociais, de acordo com interesses dominantes, políticos, econômicos e biológicos (FAVERO, 2010, p. 02).
O fato de compreendê-los, enquanto instituições culturais deve-se ao fato de que eles preconizam mediações entre culturas e conhecimentos e, assim, possibilitam a pedagogização dos sujeitos, a partir de diferentes formas de expressarmos as culturas que nos educam, especificamente, neste caso, ambientes não formais de educação ou não escolarizados. Para além disso, porque a “[...] educação experimentada nos terreiros é uma educação ecológica” (MARQUES, 2015, p. 5). Assim, os terreiros, estão sendo entendidos como espaços profícuos às investigações sobre a Pedagogia Social, sem com isso pensar que eles substituem as escolas, porém estão alocados de modo paralelo a estas, segundo os(as) participantes da pesquisa.
Trato-os, então, como campos possíveis para atuação de educadores(as), em diálogo com os saberes destes locais, por compreender que os espaços não-formais de educação possuem planejamentos, conduzidos por intencionalidades “[...] implicando certamente relações pedagógicas, mas não formalizadas” (LIBÂNEO, 1998, p. 81).
[...] na educação formal, os conhecimentos transmitidos são sistematizados e organizados em uma determinada sequência, muitas vezes distantes da realidade dos alunos; nas ONGs, os conteúdos são adaptados às demandas específicas de cada grupo. A transmissão do conhecimento acontece de maneira não obrigatória e não há mecanismo de reprovação no caso da não aprendizagem. O compromisso principal do ensino nas ONGs é com as questões consideradas importantes para determinados grupos (CARVALHO, 2008, p. 130 - 11).
Na educação não formal existe a intencionalidade de educar, a partir de planejamentos que seguem conteúdos específicos que buscam cumprir com alguma lógica organizacional, respondendo a alguma lógica de ensinamento, fator que implica em reconhecer objetivos diferentes para cada ensinamento (LIBÂNEO, 1998). A educação não formal tem por característica noções flexíveis tanto de espaços, quanto de tempo. Nela, o processo de ensinar é múltiplo e flexível, não tendo como característica a adoção de uma sequência, tampouco está preocupada em seguir um sistema com referências abrangentes, generalistas (LIBÂNEO, 1998). Seus conteúdos são abordados de acordo com as necessidades e desenvolvimento dos sujeitos partícipes dos processos educativos. Porém, é preciso destacar, que alguns modelos de educação não formal, podem se assemelhar a formalidade da escola, contudo, ocorrendo em ambientes que não sejam os escolares, como observado na narrativa a seguir, de Marcelo do Tranca Ruas das Almas, no dia 14 de jun. de 2020, ao afirmar que: “[...] aqui não é um colégio, mas tudo tem sua hora e momento certos. Tu nunca pulas um fundamento, cada aprendizagem tem sua fase e momento de ritual para acontecer, tuas entidades não ganharão fala se tu não estiveres pronto para isso e estar pronto implica em ter aprendido sobre as histórias deles, da religião, das coisas que fazemos no terreiro. Nada é de qualquer jeito, um aprendizado puxa e depende de outro”.
A educação não formal compreende dentro de suas características uma noção de educação global, que inclua todas as possibilidades de experiência dos sujeitos, reconhecendo que “[...] tais elementos impregnam a própria natureza dos conteúdos e métodos de ensino” (LIBÂNEO, 1998, p. 85). Libâneo (1998) destaca que existem três modalidades de educação (formal, não formal e informal) e educar de modo global seria uma forma de colocar estas concepções em diálogo. Segundo ele:
A Educação formal e a Educação não formal são sempre perpassadas pela educação informal; dado o caráter intencional daquelas, cabe-lhe contemplar nas ações educativas, objetivos, conteúdos e métodos que considerem, criticamente, as múltiplas influências configuradoras provindas no meio ambiente natural e sociocultural. Por sua vez, educação formal e não formal interpenetram-se constantemente, uma vez que as modalidades de educação não formal não podem prescindir da educação formal (escolar ou não, oficiais ou não), e as de educação formal não podem separar-se da não formal, uma vez que os educandos não são apenas “alunos”, mas participantes das várias esferas da vida social, no trabalho, no sindicato, na política, na cultura etc. Trata-se, pois, sempre, de uma interpenetração entre o escolar e o extraescolar (LIBÂNEO, 1998, p. 88).
Ao considerar essa interpenetração mais as experiências dos sujeitos é que se torna possível pensar nos terreiros enquanto espaços educacionais. Compreendendo neles, possibilidades de articulação de saberes, sem sobreposição de um, em relação ao outro. Desse modo, percebo que o ensino ultrapassa os muros da escola, ele escapa às lógicas e metanarrativas (SILVA, 1996) que colocam a escola como centro da aprendizagem. Os terreiros então assumem a função de educar grupos específicos, a partir de saberes que orientam não só práticas religiosas, mas modos de ser e estar no mundo e que são marcados por referências a variadas temporalidades, são saberes construídos a partir de referências ao passado, ao histórico, ao mitológico, às explicações cosmológicas.
Os terreiros, instituições culturais, são conduzidos por pessoas, nessa lógica, denominadas de mediadores(as) culturais. O que não implica dizer que os(as) dirigentes dos mesmos não possuam formação acadêmica, mas implica em grifar que de primeiro momento não são chamados(as) de professores(as). Enquanto ambientes educativos são também entendidos como locais para experimentação cultural, por um viés de educação não formal, destinados a ensinar conhecimentos que muitas vezes não são repassados nas escolas, isto é, na educação formal (LIBÂNEO, 1998). Tal compreensão pode ser depreendida do excerto de Daniel da Padilhinha no dia 27 de mai. de 2020, vejamos: “[...] no terreiro tu aprende muita coisa. Ele é uma extensão da tua casa e, por isso, tens que saber conviver com o que todos sabem, todo mundo aqui aprende e ensina alguma coisa. Aqui em casa, por exemplo, começa pela cozinha, porque tu precisa saber servir as entidades, depois tem os pontos, as rezas, as dinâmicas da casa, além dos rituais de chegada e saída, as danças, as vidas das entidades, isso fala muito da casa, tem mais é claro, mas isso é básico”.
Além disso, os terreiros são espaços que podem ser compreendidos como patrimônios culturais que possuem, dentre seus propósitos, manter memórias, sinalizar a existência de culturas específicas, acolhendo todos(as) aqueles(as) que deles queiram fazer parte ou por eles aprender. Isso porque, dialogo com Gohn (2005), ao expor que a educação não-formal preconiza processos em três extensões, primeiro porque envolve uma aprendizagem de cunho político dos sujeitos visando a uma educação para cidadania; segundo pois, auxilia na formação para organização em comunidade, uma vez que a aprendizagem parte das práticas de um coletivo específico e, terceiro por não desprezar os conteúdos da educação formal dialogando, a partir de espaços e tempos que compreendam as necessidades dos sujeitos em saber tal conhecimento. Busco em Caputo e Passos (2007, p. 96) a ideia de que “[...] as crianças de terreiros crescem entre orixás, entre ‘as coisas do santo’ e se preparam para receber cargos na hierarquia do culto [...] incorporar os orixás [...]” para compreender as três extensões mencionadas por Gohn (2005).
Ainda, Gohn (2005) separa a educação não formal em dois grupos, o primeiro é o da “educação popular”, com destaque para educação de jovens e adultos, aquela ocorrida fora do contexto escolar. O segundo grupo é o da educação propiciada pela “participação social”, baseado na coletividade, em prol da aprendizagem de conteúdos oriundos de uma cultura específica, como é o caso dos terreiros, embora não despreze os saberes ensinados nas escolas. Para a autora, estes grupos demarcam que a educação não formal, não é algo do nosso tempo, específico da contemporaneidade. Ela, a educação não formal, possui discursos pedagógicos que contemplam desde as culturas iniciais, até as produzidas atualmente, sem que uma anule a outra. Para Garcia (2005) a educação não formal.
Pode ser a busca de uma outra dimensão educacional, que se diferencia sem a preocupação de negar a educação formal. A educação não formal não tem, necessariamente, uma relação direta e de dependência com a educação formal. É um acontecimento que tem origem em diferentes preocupações e busca considerar contribuições vindas de experiências que não são priorizadas na educação formal (GARCIA, 2005, p. 27).
Essa dimensão educacional, por sua vez, pode ser pensada por uma característica, que é a de ser difusa, um tanto quanto, menos burocrática, em relação a educação formal e o principal, não ser tão verticalizada (GARCIA, 2005). Isso porque, ela preconiza interações de diferentes ordens, nas quais os ensinamentos ocorrem em múltiplos vetores e, mais que isso, em um sistema onde todos(as) ensinam todos(as). Para Coombs (1990), outra característica está no campo da possibilidade de liberdade em escolher os conteúdos a serem ensinados, além das metodologias de ensino ocorrerem de acordo com as dinâmicas e práticas específicas dos grupos (COOMBS, 1990). Nesse caso, existe outro motivo para alocar os terreiros tanto como espaços educativos, quanto como instituições culturais que pedagogizam sujeitos, não somente por meio das mediações de pais ou mães5 de santo, mas pelas interações entre todos(as) os(as) que frequentam cada lugar estudado.
A religião é ponto básico, é fonte de afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleo de resistência às variadas formas de aspirações neocolonialistas [...] em relação ao processo cultural, a religião é fonte dinamizadora de um ethos, indicadora de comportamentos e hábitos, enfim de uma maneira negra de ser. Ela estabelece e proporciona uma ética própria. Imprime formas de relações sociais, estipulando formas próprias de organizações e hierarquias, estimula a vida comunal. Estabelece Padrões estéticos próprios e forma especifica de comunicação e de acesso ao riquíssimo sistema simbólico, pleno de conhecimentos e sabedorias, caracterizando uma pedagogia negra iniciática. [...] A religião negra constitui-se num ponto de resistência de luta do homem negro em busca de sua libertação e de real e universal integração (LUZ, 2000, p.58).
A partir do excerto de Luz (2000) exponho sob quais condições a Pedagogia Social se estabelece nos terreiros. Ela configura-se pela afirmação dos valores civilizatórios, por seu ethos quimbandeiro, pelas éticas impostas em cada local, pelos modos como relacionam saberes e os sujeitos interagem. Contudo, reitero que nos terreiros, as pedagogias, são da ordem da não formalidade, ou como exposto pelos(as) dirigentes dos mesmos, da não escolaridade. A educação nestes espaços é intrínseca ao papel de sujeito que se assume ao tornar-se parte do terreiro, assim como, será inerente a responsabilidade deste(a) na educação de todos(as) envolvidos(as) na prática religiosa. De qualquer modo, esta modalidade de educação ocorre diretamente nos corpos, ela atua sobre eles preconizando certa docilidade (FOUCAULT, 2000), isso porque, eles/ nós - os sujeitos, somos, por assim dizer, pedagogizados o tempo todo.
Fechando a gira: pedagogias que se socializam e produzem sujeitos religiosos
Fechar essa gira não é tarefa das mais fáceis, porém, deixo com ela alguns rastros e outras pistas para pensarmos as Pedagogias dos terreiros. Isso porque, para os(as) quatro participantes do estudo existem muitas coisas ainda por dizer, de modos que devem ser estudados mais de dentro, ou seja, com metodologias que preconizem estar lá, diariamente. Mais que isso, compreendendo que nesses lugares, as narrativas são infindáveis, por terem como característica a fluidez dos tempos, sempre arraigada em ancestralidades, que não cessam de ser chamadas ao diálogo.
Os sentidos da Pedagogia Social, nestes ambientes, assumem caracteres múltiplos, com vistas a educar socialmente, todos(as) aqueles(as) que frequentam um terreiro, seja por uma prática de peregrinação ou de turismo religioso6. Mais que isso, é de dentro destes lugares que, segundo os(as) depoentes, temos mais chances de amenizar as desigualdades e preconceitos culturais impostos por um processo colonizador que, ainda hoje, aliena inúmeros sujeitos, inclusive alguns são aqueles(as) que estão educando em espaços formais de ensino. Não se quer com isso, propor algum tipo de embate entre os campos formais e “informais”, mas sim, afirmar a existência do desejo pelo fim da invisibilidade dos saberes e sujeitos oriundos das comunidades-terreiros. É preciso, pois, de fato, difundir a Pedagogia Social, apontando seus inúmeros campos de atuação, expondo-os, propiciando aqueles(as) estudantes das licenciaturas universitárias, especificamente os(as) futuros(as) pedagogos(as) a realizarem seus estágios nos mais diversos ambientes de ensino, para assim, facilitarmos uma compreensão de escape das lógicas colonizadoras que hierarquizam saberes.
Por fim, os atos educativos ou pedagógicos, são inerentes à existência dos sujeitos, logo, precisam ser/ estar interligados, entre tudo e todos(as). Somos educados(as) tanto pelas ações dos(as) outros(as), quanto pelos reflexos das que promovemos, geradas em nossos espaços de convivência, decorrendo delas as nossas aprendizagens sociais e, no caso, dessa pesquisa, observando os locais de fala, de pertencimento e culturas, nas quais o sujeito falando se propõe a narrar e, por assim dizer, ensinar algo. As relações de poder podem gerar inúmeros conflitos culturais, porém, é a partir deles que percebo possibilidades de produção de outros saberes, outras pedagogias que culminam na proliferação de aprendizagens que são específicas dos terreiros.
Assim, mediar os conhecimentos, os conflitos culturais, tende a produzir tecnologias educativo-sociais que indiquem pistas acerca dos modos de organização das instituições sociais que no educam, no caso os terreiros e suas pedagogias sociais, seus modos de Educação Popular. Por fim, afirmo que a existência de processos educativos em espaços religiosos é prática regular contudo, os sabres dispostos nesses lugares são oriundos de fundamentos/ assentamentos que requerem autorização quando o assunto são os estágios dos cursos formação de professores, uma vez que, o projeto pedagógico, da instituição necessita obrigatoriamente dialogar com a produção de conhecimentos e formas de inserção e mediação de saberes dentro dos terreiros.