1 Introdução
Ao final da segunda década do século XXI, têm surgido debates e discussões que colocam em dúvida se é ou não pertinente usar como referência as ideias pedagógicas de Paulo Freire no campo da educação. Dois exemplos desse questionamento, no contexto brasileiro atual, são o “Movimento Escola Sem Partido” e a organização de um livro, em 2017, chamado “Desconstruindo Paulo Freire”, trata-se de uma coletânea de textos que interrogam a pertinência do pensamento freireano.
Todavia, antes de adentrar propriamente na problemática da contemporaneidade e da pertinência do pensamento sócio-político e pedagógico de Freire, essa merece ser situada em um universo mais amplo, ou seja, que projeto de humanidade se está propondo para o século XXI? Parece-nos, mais do que em outros tempos, que os pressupostos do projeto humanista iluminista do liberalismo político estão sendo duramente questionados. Democracia, liberdade, justiça social, igualdade, ante o novo cenário político e econômico, caótico chamado de neoliberal, nascido da ruptura das relações entre capital e trabalho1, que nem é novo e nem é liberal, assume novas interpretações, feições e funções. Segundo Achille Mbembe (2017, p. 13), o neoliberalismo se caracteriza “pela produção da indiferença, a codificação paranóica da vida social em normas, categorias e números [...] que pretendem racionalizar o mundo a partir de lógicas empresariais”. Diante disso, pode-se perguntar que projeto de sociedade e escola sustentam e defendem os que, de fato, desejam deixar de fora Freire dos debates pela educação no século XXI?
Achille Mbembe (2017) no artigo “A era do humanismo está terminando” aponta para um cenário de crescimento de posições anti-humanistas, que põem em cheque os pressupostos da democracia, da liberdade, da justiça social, da igualdade, etc., construídos ao longo da modernidade. Nesse cenário, configuram-se distintos movimentos políticos e sociais em forma de “uma guerra contra os pobres, uma guerra racial contra as minorias, uma guerra de gênero contra as mulheres, uma guerra religiosa contra os muçulmanos, uma guerra contra os deficientes”. (MBEMBE, 2017, s.p.). Em tal contexto, todos os movimentos sociais, políticos, educativos que sugerem uma sociedade mais igualitária são desqualificados.
Assim, ante a ascensão do autoritarismo e do conservadorismo, os movimentos sociais, políticos, econômicos e mesmo pedagógicos, ditos progressistas, que sustentam a construção de um mundo comum mais democrático, mais solidário, com mais justiça social, são duramente atacados e criminalizados. É o que está no horizonte dos dois movimentos aqui referidos. Ambos culpabilizam o pensamento sócio-político e pedagógico de Freire, a pedagogia progressista ou mesmo a educação popular, pela perda da qualidade e progressivo fracasso da educação pública. A essa tese é relativamente fácil contrapor argumentos, que denunciam sua não veracidade. Nesse sentido, o objetivo da reflexão, de caráter ensaístico, é interrogar as teses desses dois movimentos e reiterar as contribuições do pensamento pedagógico de Freire na construção de um mundo mais justo e solidário por meio do ato educativo.
2 O Movimento da Escola Sem Partido
O mais inquietante nesta proposta é que esta termina sendo mais uma lei na história que propõe o policiamento do labor docente. O que isso significa? O texto do Projeto Lei 7180/2014, do Sr. Erivelton Santana2, refere como o seu principal objetivo libertar os estudantes de doutrinação política. Até esse ponto é um projeto sensato, mas, aqui, é importante lembrar, que esta limitação já está presente na Constituição Federal Brasileira de 19883, permitindo interpretar que se trata, antes, de uma iniciativa de ingerência político-ideológica no campo da educação.
Na CF de 1988 está previsto que seja respeitada a liberdade de pensamento, de consciência, de crenças, de cultos religiosos, de liturgias, de convicção filosófica e política e que ninguém deve ser atacado por isso. Portanto, todo ato educativo escolar que infringir esses princípios, ou que produzir alguma forma de doutrinação está, previamente, contrário aos princípios constitucionais. Por sua vez, a LDBEN4, lei nº 9.394/1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional não pode ser contrária a qualquer um dos princípios anteriormente afirmados, pois, se assim o fizesse, seria inconstitucional.
Conforme a Justificação do Projeto de Lei 7.180/2014 e apensados, a pretensão era evitar, por meio da incorporação do inciso XIII5, ao artigo 3º da LDBEN, qualquer possibilidade de doutrinação por parte da escola e do professor. “Somos da opinião de que a escola, o currículo escolar e o trabalho pedagógico realizado pelos professores em sala de aula não deve entrar no campo das convicções pessoais e valores familiares dos alunos da educação básica”. Reitera-se que “Esses são temas para serem tratados na esfera privada, em que cada família cumpre o papel que a própria Constituição lhe outorga de participar na educação dos seus membros”. Se a Constituição Federal do Brasil de 1988 e a LDEBN 9.394/1996 já limitam qualquer forma de doutrinação ou de cerceamento da liberdade, parece-nos descabido a proposição do pretendido Projeto de Lei. Se ocorrem, no âmbito da escola e da sala de aula, a defesa de interesses, de ambos os lados, é porque os princípios constitucionais republicanos não estão sendo respeitados.
O Movimento da Escola Sem Partido6 (2004) reconhece esse fato, mas mesmo assim deseja promover sua lei, que produz mais confusão do que clareza na arena pública, já que está contaminado de bairrismos políticos e partidários, tanto dos contrários, como dos defensores. Nesse caso, corre-se o risco de instaurar com o projeto práticas de limitação da dimensão laica e republicana da educação escolar em âmbito nacional. No momento que se acusa os partidos de esquerda de estarem contra o projeto por serem marxistas e que o Movimento Escola Sem Partido é identificado com partidos conservadores, a própria lei, seu debate e sua possível aplicação é, propriamente, uma arma de doutrinação, perseguição e fratura na luta por uma educação mais justa, não pelo que está no papel do projeto de lei, mas pela pouca clareza que o debate apresenta.
A forma como foi produzida a proposta, a cobertura mediática e as réplicas do debate em cenários que não aportam argumentos acadêmicos, só panfletários, acusações, limitaram qualquer possibilidade de que o projeto consiga contribuir na reorientação das escolas, de modo a centrarem-se no reconhecimento da pluralidade de ideias e no pensamento crítico. Nesse sentido, o projeto abre a possibilidade de reflexão não somente para as questões doutrinárias político-partidárias, mas também para outras formas de preconceito, de discriminação, de exclusão, que circulam no ambiente escolar. Se o projeto tivesse contribuído na construção desse debate nacional acerca da escola e do trabalho do professor, seria um mérito.
No Projeto de Lei N.º 867/2015 (do Sr. Deputado Izalci PSDB/DF) apenso ao Projeto de Lei 7180/2014, em nosso entender, há pelo menos três razões para rejeitar a proposta, que também são oportunidades para refletir sobre a necessidade de repensar o pensamento freireano neste século. Essas razões são: a) A leitura e a aplicação do princípio da neutralidade política do Estado e sua extrapolação para uma neutralidade da forma de ensinar; b) Estabelecer o aluno como possível vítima do professor; c) Manter o direito dos pais em controlar a educação moral de seus filhos, ainda que a convivência escolar se torne queima de bruxas. Nessa ordem, serão apresentados os argumentos.
O projeto propõe, em múltiplas oportunidades, a neutralidade como centro da questão e está referido assim:
Art. 3º. São vedadas, em sala de aula, a prática de doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes. (BRASIL, 2015, p. 2).
Se estivéssemos falando de favorecer ou atacar as opções políticas, convicções religiosas, morais dos estudantes seria legítimo instituir um marco regulatório. Contudo, como já mencionado, já existem diferentes marcos jurídicos para isso. Na Constituição se faz referência ao respeito às individualidades como orientação do próprio Estado, desde que essas não infrinjam os princípios estabelecidos pela República. Nesse sentido, a escola pública, o professor, orientados pelos princípios democráticos, da liberdade, da justiça social, da igualdade, do respeito à diversidade e pluralidade, etc., não podem produzir qualquer forma de doutrinação ou constrangimento. Isso não significa neutralidade, mas a defesa de pressupostos que possibilitam a convivência em um mundo comum, sob princípios republicanos e definidos na Constituição. Portanto, à escola e ao professor cabem assegurar que esses sejam os princípios orientadores dos processos pedagógicos.
O segundo aspecto, da primeira razão, vincula-se à especificidade da tarefa da escola, qual seja, a de assegurar o acesso ao conhecimento, aos conteúdos escolares. Assim, quando falamos de conteúdos, entramos no campo do conhecimento (currículo) e temos que lembrar que ele está em disputa, que é feito no conflito (SANTOMÉ, 2013; LOPES, 2013; YOUNG, 2011; GOODSON, 2008, 1995; SILVA, 2004), como produto histórico da cultura e, portanto, não é neutro, remete a intencionalidades e interesses. Desse modo, apelar para a neutralidade do conhecimento é uma falácia, todos os debates epistemológicos contemporâneos apontam para isso (SANTOS; MENESES, 2010).
Assim, para concluir os argumentos em torno neutralidade do Projeto de Lei, podemos afirmar que ela é falaciosa. Os professores como defensores dos direitos e dos deveres, da cultura para todos, do conhecimento para todos e de um mundo melhor, pela esperança, a autonomia, libertação dos oprimidos (FREIRE, 1970, 2008, 2012, 2015), apontam para a não neutralidade de sua ação pedagógica. De modo correlato, o reconhecimento de que os conhecimentos e conteúdos vinculam-se a relações de poder, aponta para a não neutralidade da escola e das ações pedagógicas do professor. Tais compreensões, de modo algum, significa trazer para o âmbito da escola e das práticas educativas, em sala de aula, as idiossincrasias políticas, convicções religiosas e morais, uma vez que essas já estão reguladas pela Constituição e normas infraconstitucionais, mas sim, podem ser discutidas como ação do pensamento crítico, republicano e científico, inerente às práticas de sala de aula.
A segunda razão para refutar o projeto implica em argumentar acerca do contrassenso do aluno como possível vítima do professor. Assim, em distintos momentos do Projeto de Lei existe uma chamada para fazer notar a vulnerabilidade dos alunos. No inciso V, art. 2º, diz que é um princípio da proposta o “reconhecimento da vulnerabilidade do educando como parte mais fraca na relação de aprendizado” (BRASIL, 2015, p. 2). Podemos até reconhecer esse entendimento, contudo, teríamos que referir que essa perspectiva ou modelo pedagógico estabelece uma relação hierárquica autoritária sobre o aluno. No caso, de respeito aos princípios constitucionais e as diretrizes da nossa educação, seriam um contrassenso práticas pedagógicas autoritárias que subjugam o aluno.
O entendimento freireano aponta para essa questão, há mais de 40 anos. A essa relação pedagógica autoritária, Paulo Freire denominou de educação bancária7. Ele compreende que a única forma de atacar, no caso do doutrinamento, é por meio do pensamento crítico, isto é, da capacidade de pensar autonomamente e de julgar a realidade apresentada, justamente por essa não ser apolítica. Não é só o professor bancário o responsável pela existência de estudantes em condição de oprimido, sem direito à palavra, pois, também é necessário levar em conta toda uma estrutura político, social, econômica e cultural, que é a causa dos problemas que são visíveis na escola. Portanto, uma educação domesticadora, que estabelece uma relação de dominação sobre o aluno, adestra, mas não liberta. Como sugere Freire (2005, p. 77) uma educação libertadora “implica a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo”. Trata-se de uma prática educativa de fala e de escuta e que não se orienta por relações de dominação e de silenciamento.
A terceira razão para rejeitar o Projeto de Lei N.º 867/2015 vincula-se ao equívoco que produz o inciso V, art. 4º, que está assim redigido: “No exercício de suas funções, o professor: respeitará o direito dos pais a que seus filhos recebam a educação moral que esteja de acordo com suas próprias convicções”. Compreendemos que há um esforço do projeto em defender a moralidade dos pais sobre a tarefa educativa dos professores e disso depreendem dois efeitos: a) o saber pedagógico que constitui um professor a deixar de ser o principal reitor de sua prática e b) nessa relação destrói-se a Episteme (Conhecimento) e dá-se valor à doxa (Opinião), por usar uma definição resumida das ideias sobre o conhecimento, de Platão, que parecem pertinentes, como exemplo, para ilustrar a situação.
Acerca do primeiro efeito, cabe lembrar que, como anteriormente foi defendido, o professor não toma suas convicções como orientadoras das práticas educativas, mas as orientações definidas pelos instrumentos normativos da educação. A sala de aula é um espaço plural que acolhe sujeitos diversos em termos de convicções políticas, religiosas, morais, respeitá-las é uma coisa, tomá-las como orientadoras da prática educativa é outra. A sala de aula viraria um campo de batalha em que cada um defende suas convicções. Não são os desejos morais dos pais que orientam a prática educativa do professor. Se assim fossem, esse seria um profissional "cardápio" que agiria segundo os desejos morais dos pais. Mais do que isso, o projeto de lei não inclui uma receita para que o professor "cardápio" possa saber o que fazer no caso em que dois grupos de pais disputem a validade moral de um mesmo conteúdo. Aqui, se reedita a questão kantiana8 em nome de quem fala o professor, em seu nome, dos pais ou da república?
Em segundo lugar (efeito), está o fato de que na escuta e acolhimento das idiossincrasias dos pais se destrói a Episteme e se dá valor à Doxa. Assim, como deve proceder o professor quando as “verdades”, entendidas como conhecimentos reconhecidos, legítimos, atacam ou entram em conflito com as convicções religiosas dos pais? Elimina-se o conhecimento reconhecido e acolhem-se os desejos dos pais? Imagine-se um professor de geografia que tenha que explicar as cruzadas como acontecimento vital da construção histórico espacial do mundo ocidental e, em sua sala de aula, há diferentes identificações ou convicções religiosas de judeus, muçulmanos, cristãos e católicos ao mesmo momento. Nesse caso, como procederia o professor?
Segundo o projeto, quando os pais sentirem que as suas convicções pessoais não foram as defendidas, nesses casos se pode usar o art.7º: “As secretarias de educação contarão com um canal de comunicação destinado ao recebimento de reclamações relacionadas ao descumprimento desta Lei, assegurado o anonimato” (BRASIL, 2015, p. 3). No entanto, em nome da não doutrinação defendida pelo projeto, no fundo, alarga-se a produção da doutrinação, de preconceitos, de discriminação, etc. Por isso, alerta-se que, no conjunto, estamos frente ao perigo de esquecer anos de luta, não da esquerda, mas da própria democracia republicana. No caso de um professor, fazer doutrinamento em sala de aula procurando criar militância, caso que se aplica tanto à esquerda, como à direita, já existem mecanismos de lei que limitam isso. Nesse sentido, o projeto não ataca somente doutrinadores, uma pequena minoria, mas sim todos os professores que levam a efeito republicanamente seu trabalho.
Aos professores, que sempre têm estado no centro da bem conhecida diversidade política, econômica, social, cultural e religiosa do mundo, que mora dentro da escola, encontraram resposta razoável no trabalho fundado em valores cidadãos de tolerância, do debate, do respeito. Desde os anos 70, enfrenta-se a diversidade, honestamente, dando lugar à fala de todos e não produzindo ferramentas que silenciam a diversidade e a pluralidade, que convive na escola e que apagam os valores republicanos, base das relações Estado-Escola. Este projeto de lei, em síntese, não traz novos caminhos para a defesa dos direitos, do reconhecimento da diversidade e pluralidade social da escola, como argumentado, pelo contrário, traz novas formas de policiar as práticas educativas da escola e do labor docente. Nasce de um pensamento autoritário, contrário aos princípios de uma educação republicana.
3 Desconstruindo Paulo Freire
O outro caso paradigmático é o livro “Desconstruindo Paulo Freire”, organizado por Thomas Giulliano Ferreira dos Santos (2017). O título já é problematizado de saída. É muito expressiva sua missão em detalhes no que se refere ao momento de sugerir o trocadilho do título. Usa-se a palavra “des(cons)truindo”, como se fosse um termo mais adequado para descrever a obra intelectual de Paulo Freire. O objetivo do livro, organizado por Santos, (2017) é demostrar, o que é feito por meio de recortes aleatórios e descontextualizados, razões pelas quais Paulo Freire não poderia ser mais o patrono de educação brasileira. Nele está, segundo os autores, a ignorância, a opressão, o fracasso da educação, a perda dos valore docentes, etc. Em sua abordagem, dizem que a obra de Freire é uma apologia ao genocídio, que suas teorias pseudocientíficas ou sócio construtivistas são as responsáveis pelo baixo desempenho do Brasil nas avaliações internacionais, como sugere Nogueira9 (2017). A nossa intenção não é abordar integralmente os temas do livro, mas há muita coisa para ser debatido. Não endossamos as posturas propostas, contudo, apesar do desserviço que prestam à educação brasileira, agradecemos a eles por servirem de pretexto para (re)pensar a produção intelectual de Paulo Freire no contexto dos desafios atuais da educação.
A proposta de Paulo Freire, expressa em seus textos, é de uma educação crítica, que participa da transformação do mundo por meio da formação de sujeitos que fazem o mundo. Trata-se, portanto, de uma proposta de educação como postura política forte. Há oprimidos no mundo e são eles que têm que se libertar. Posto assim, não se trata de uma educação alinhada a um partido político, mas de uma educação pensada em termos de responder à máxima ontológica da humanidade como sujeito de sua própria libertação, isto é, os seres humanos devem ser capazes de pensar por eles mesmos. É certo o fato de que qualquer livro, por mais crítico que seja, se usado de forma doutrinária, cedo ou tarde, se converterá em um obstáculo para o desenvolvimento do conhecimento e da formação de seres humanos livres. A descontextualização de uma obra ou de um autor se apresenta com um risco de seu desvirtuamento.
Como Freire não pode mais se defender, a não ser por meio de uma leitura consequente de seu legado, esta questão fica para seus leitores e interlocutores. Há leitores doutrinários e críticos criativos. Os doutrinários estão divididos em dois grupos socialmente opostos, mas igualmente confusos ou perdidos. De um lado, estão os partidários ortodoxos e, de outro, estão seus inimigos irreflexivos. Os dois não conseguem sair dos limites dos textos, pensam, agem e criticam só o que ficou no livro, não os usam para pensar sua própria realidade, para construir algo novo, para entender um determinado momento da história do pensamento pedagógico brasileiro. Além disso, certamente, também acreditam que todos os outros leitores são doutrinários e confundem os que não são como eles como sendo traidores ou ignorantes. Parece-nos que eles ainda não sabem que o mundo popular levou as ideias freireanas a trabalhar perto dos marxismos heterodoxos, dos feminismos, dos movimentos camponeses e urbanos, da teoria da complexidade, do enfoque hermenêutico interpretativo, com as novas tecnologias, com as áreas de Direitos Humanos, da Saúde e da Psicologia, entre outras muitas colaborações em que o pensamento freireano encontrou acolhimento à reflexão crítica.
O livro “Desconstruindo Paulo Freire”, acima citado, é um exemplo desse movimento irreflexivo. Nele não há referenciado nenhum dos novos alcances das ideias de Freire no mundo, como se constroem e se reconstroem, nem como podem ser aproveitados para superar muitos dos problemas atuais da educação. Pondera Santos (2017, p. 10): “Não escrevo à direita”. Afinal, então, de que lugar escreve? Desde a emergência da hermenêutica filosófica, concordamos que a linguagem é a forma como dizemos ou expressamos o mundo. Nem direita, nem esquerda, de que lugar falas, de fora da linguagem? O que dizes, a forma como dizes, a intenção com que dizes não traduzem perspectivas de mundo? Não é ideológico? Só os que falam à esquerda são ideológicos?
Entre os muitos ataques, dirigidos a Freire, Santos (2017, p. 12) o acusa “ignorar os valores universais, escolheu defender causas que vilipendiam a dignidade humana” (SANTOS, 2017, p. 12). Que valores seriam esses, a democracia, a liberdade, a justiça social, a igualdade, o respeito, a tolerância? Seriam esses os valores que vilipendiam a dignidade humana? Para além disso, Santos (2017) acusa Freire de negligenciar o conhecimento produzido pela humanidade enquanto objeto da escola. “Certo é que o tipo vigente de professor-pedagogo, embebido por todos os argumentos descritos até aqui, consequentemente, perde o objetivo de trabalhar qualquer conteúdo de forma metodicamente composta”. (SANTOS, 2017, p. 45). Ressalta, por extensão, ser Freire, como símbolo e método da educação brasileira, o responsável pelo “monstrengo que a escola virou” (Ibidem, p. 47). Também Fernandes (2017), coautor da obra, acusa igualmente os educadores freireanos de serem negligentes com a tarefa da leitura, da escrita, da matemática, que cabe a escola. Afirma que “não me parece ter havido, antes de Freire, alguém que propusesse a quase abolição dessas matérias”. (FERNANDES, 2017, p. 57).
Ignorar os círculos de cultura, o método de alfabetização e pós-alfabetização, o uso das realidades próximas, de centrar-se na palavra, de reconhecer o professor como um intermediário, sem autoridade vertical que media alunos e processos, investigar o quanto o sujeito conhece, problematizar as perspectivas de ciências, todos esses elementos técnicos, metodológicos, pedagógicos, epistemológicos podem até, em algum momento se esgotar ou se transformar, mas desconhecê-los ou desqualificá-los, é no mínimo, superficial e leviano. Se nas obras de Freire, por exemplo, não está largamente explorado o uso das novas tecnologias da informação e da comunicação é por se tratar de contextos e cenários radicalmente diferentes dos desafios atuais. Nesse sentido, a pedagogia de Freire é aberta ao diálogo com os desafios de cada tempo e espaço.
Eliminar as contribuições de Freire à educação por afirmar que as técnicas parecem não dar certo, na sala de aula atual, é tarefa mais propagandística que qualquer outra coisa. Freire antecipou essa situação e sempre foi consciente de que seu método em mãos de pessoas e espaços concretos se transformaria. O movimento é a base da dialética com a qual ele compreendeu o mundo de seu tempo. Afirmar que em algum momento as dimensões práticas, puramente técnicas não serviriam mais, não é uma grande descoberta intelectual, embora seus críticos doutrinários estejam orgulhosos disso. Corre-se o risco de reduzir o pensamento de Freire a operações técnicas, descontextualizando-o de seu tempo histórico.
Há também leitores críticos e autônomos, milhares por toda América Latina. O trabalho de Freire tem impactado em lugares que ele sequer imaginou, criando coisas novas, mesmo com leitores que não estejam a favor de suas posturas políticas. No esforço de entender as ideias do Freire, que movimentam processos educativos, neste século, os críticos criativos tentarão encontrar os princípios mais fortes e ricos de sua proposta pedagógica, abertas ao diálogo com propostas atuais que fazem com que, com tranquilidade, siga sendo um dos principais educadores brasileiros. Nesse sentido, há muito a ser aprendido com Freire em termos epistemológicos, concepções pedagógicas, metodologias e práticas educativas. De certo modo, Freire ampliou o debate sobre práticas educativas em espaços não escolares, trazendo as questões sociais ao campo do debate pedagógico, e isso pode ser considerado como uma importante contribuição à formação humanística.
Freire (1970) demostra ser um pensador humanista, colocando a educação na dimensão de fazer do mundo um lugar de iguais. A educação é, em sua compreensão, uma tarefa desse humanismo. É o processo de se fazer humano com os outros. É um pensador dialético, muito perto das ideias de Sartre, daí suas referências às totalizações e à missão de conhecer a totalidade, conceito sartreano sobre o movimento dialético (p. 9). Trazer presente as reflexões de Marx e de Hegel, e como este último contribuiu na sua dialética do senhor e do escravo (p. 52), com a qual explicou a dialética entre professor e aluno. Também é um leitor de Husserl (p. 64); dele acolhe a importância da palavra e complementa suas ideias sobre a consciência. Ao fazer referência a tais pensadores, mostra a profundidade de seu pensamento.
Por que as teses que responsabilizam ou acusam a pedagogia de Freire ou a educação popular pelo fracasso da escola pública não se sustentam? Simplesmente porque seus pressupostos epistemológicos, políticos, pedagógicos e metodológicos não foram realizados na escola pública. Assim, responsabilizar Freire ou a educação popular pelo baixo desempenho ou fracasso da escola pública é, no mínimo, desconhecer seus pressupostos elementares. A educação popular10 é ao mesmo tempo uma crítica à educação institucionalizada, mas também como uma alternativa aos modelos bancários, valendo-nos de uma expressão de Freire (2005). Para refutar as teses da responsabilização de Freire ou da educação popular pelo fracasso da educação pública, apresentaremos três argumentos. O primeiro remete às questões epistemológicas; o segundo remete à concepção e enfoque pedagógico e o terceiro ao enfoque metodológico.
Epistemologicamente a educação popular estabelece uma crítica aos pressupostos universalizantes dos saberes e práticas sociais institucionalizadas, produzidos desde a modernidade, abrindo espaço para outros saberes e práticas sociais. Assim, o diálogo epistemológico é seu fundamento. Permite, conforme Mejía (2011) o reconhecimento da diferença e da diversidade cultural e constitui a possibilidade de questionar o poder da cultura hegemônica, vendo nele possibilidades e potencialidades emancipadoras. Parece-nos, que essa perspectiva epistêmica de modo algum adentrou nos espaços escolares.
Enquanto concepção e enfoque pedagógico, a perspectiva freireana funda sua ação crítico-transformadora voltada à emancipação humana. Neste sentido, afirma que a educação necessita ser compreendida no âmbito da sociedade e no contexto das relações de poder. Sob essa compreensão, “la educación se convierte en uma opción por transformar las formas de poder que dominan y producen exclusión y segregación en la sociedade, conforme Mejía (2011, p. 56)”. Assim, o enfoque pedagógico volta-se à produção de propostas de transformação dos entornos, dos sujeitos, das práticas cotidianas a partir de metodologias dialógicas participativas e de análise da sociedade. A transformação da sociedade, na perspectiva de assegurar a democracia, a liberdade, a justiça social, do reconhecimento da diversidade e da pluralidade presente em muitos de nossos documentos normativos, nesse sentido, manifesta sua postura política.
Do ponto de vista do processo, o enfoque metodológico da educação popular de Freire centra-se mais na aprendizagem que no ensino, ou seja, valoriza estratégias ativas, dialógicas, interativas. A educação popular se constitui como espaço e tempo de crítica e de alternativa de transformação pedagógicas à prática educativa transmissiva institucionalizada, uma crítica ao formalismo da escola tradicional e comportamental. Dessa forma, a razão instrumental, que perpassa a escola moderna, reduz a educação à instrução, transmissão de saberes isolados do mundo social e da vida dos sujeitos. Freire introduz à prática pedagógica a razão comunicativa, dialógica.
A prática educativa libertadora, neste sentido, tem por fim constituir os sujeitos em protagonistas, emancipados, capazes de agir no sentido de transformar a sociedade que os submete e os oprime. Para Freire, o ser humano se relaciona com o mundo como sujeito de conhecimento e isso o leva ao conceito de conscientização como tomada de consciência crítica e de ação transformadora da realidade que o oprime. A conscientização se dá na relação dialógica com o outro, em processos sociais de interação que levam à constituição de sujeitos de sua própria história. A educação popular trata de um processo educativo que liberta o ser humano da condição de oprimido e de opressor, fazendo-se e refazendo-se, construindo conhecimento, na dinâmica das relações sociais.
Torres (2008) apresenta um conjunto de características que lhe imprimem o caráter de educação popular. Na visão do autor, as práticas de educação popular apresentam características ou pressupostos, que podem formar o seu núcleo comum, tais como: leitura, crítica da ordem social vigente, intencionalidade política emancipadora, contribuição ao fortalecimento dos setores dominados como sujeitos históricos capazes de promover a transformação social, a construção e o emprego de metodologias educativas dialógicas, participativas e ativas. Ou dito de outra forma, na visão do autor, a educação popular tem suas raízes na luta pela promoção das necessidades e interesses das camadas populares, isto é, das camadas sociais menos favorecidas.
As características expressas permitem que se afirme, com certa tranquilidade, que a educação popular não está efetivamente no contexto da escola pública, embora existam experiências educativas profícuas Brasil afora apoiadas no pensamento de Freire. Tal constatação, contudo, não permite que se generalize a realidade, uma vez que temos experiências pedagógicas, que se inscrevem no âmbito da educação popular.
4 Uma pedagogia freiriana para além do Freire.
A proposta pedagógica de Freire não nasce de uma reflexão metafísica, do mundo das ideias, mas de uma compreensão sensível e crítica de sua realidade e do papel que tem a educação na sociedade. E, nesse sentido, como pondera Freire (1980, p.25) “a educação, como prática da liberdade, é um ato de conhecimento, uma aproximação crítica da realidade”. Reconhecer que não só existe uma estrutura social de opressão, mas também de que essa opressão produziu uma pedagogia. Essa por sua vez, tem a tarefa de manter dentro dessa opressão os sujeitos, o que não permite que a verdadeira tarefa da educação seja efetivada, pois ela não trabalha na perspectiva da formação de humanos livres. Livres são os humanos que podem autoconfigurar-se, descobrir-se, refletir e transformar responsavelmente o mundo, ao fazerem-se sujeitos do mundo. Conforme Freire (2014, p. 42), requer que os sujeitos se assumam “como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque é capaz de amar”.
Como condição a priori requer consciência e como resultado do processo esta vira consciência histórica. A consciência é correlata ao desvelar crítico da realidade e inerente ao processo de alfabetização. Assim, “a alfabetização e a conscientização jamais se separam” (FREIRE, 2008, p. 14). Alfabetização e conscientização permitem aos sujeitos tomar posse da realidade. Trata-se da inserção crítica de homens e mulheres na história. Nesse sentido, o processo de alfabetização pode assumir tonalidades de domesticação (alfabetização tradicional) ou de libertação (alfabetização como ato de conscientização11). Na alfabetização, como ato de libertação, educador e educandos refletem juntos, de modo crítico sobre o mundo, ou sobre o objeto que os mediatiza. Compreendida desse modo, a pedagogia proposta por Freire é uma oposição à pedagogia que mantém os interesses do setor opressor, é feita pelos oprimidos para si mesmos e para os outros. O educador que trabalha neste processo e entende esta realidade, compreende que sua práxis faz da educação uma prática da liberdade. É tão simples, oprimidos e opressores? Sim, a pedagogia como prática de liberdade, libertaria os dois. Freire extrapola a dialética do senhor e do escravo em Hegel e leva esse racionar dialético à própria educação, aqui a contradição seria educador-educando.
Libertar-se da opressão sendo um educando e libertar o educador do ato de oprimir. O pensamento de Freire (1980, p. 41) e seu método é produzido pelas condições de seu trabalho. A alfabetização constitui um ato de criação. “Uma alfabetização na qual o humano, que não é passivo nem objeto, desenvolvesse a atividade e a vivacidade da invenção e da reinvenção”. Assim, o que ele ensina é alcançar as proposições do humanismo mediante práticas educativas. Essa tarefa antropológica e a posterior necessidade de se assumirem históricos e de agirem segundo uma política que lhes permita fazerem parte do mundo comum, e libertarem-se da contradição educador e educando. A expressão ninguém educa a ninguém não é a desaparição do professor. O que desaparece é a autoridade opressora que obriga o outro a estudar e se reestabelece uma relação dialógica e simpática, entre professor e aluno, mediados pelo mundo. Mundo que contém todos os pressupostos científicos, artísticos, éticos, que não desaparecem e que não são razão de opressão, mas codificações do mundo a serem analisadas, decodificadas e recodificadas com todo o rigor possível. Estuda-se por compromisso, procura-se a transformação nas proximidades da práxis, e [o] que todo aprendizado esteja “intimamente associado à tomada de consciência de uma situação real e vivida pelo aluno” (FREIRE, 1980, p. 51). Segundo a sua pedagogia, a “aprendizagem é já uma maneira de tomar consciência do real e, portanto, não pode efetuar-se a não ser no seio desta tomada de consciência” (FREIRE, 2008, p. 16).
A centralidade da proposta de Freire está na palavra. Ela é o símbolo que permite decodificar a realidade e permite aos humanos se tornarem críticos. Na compreensão pedagógica de Freire, “o diálogo é o encontro entre os homens, mediatizados pelo mundo, para designá-los” (1980, p. 82). Assim, o uso da própria palavra engaja o falante e a força pragmática da palavra estabelece as condições para transformar o entendimento do mundo e isso se faz pelo diálogo. Por isso, a pedagogia de Freire é conhecida como dialógica. Há um argumento dialético a ser resgatado. Ensinar a ler o mundo não se trata de alfabetizar, no sentido tradicional. O sentido assumido pelo termo alfabetização tem um sentido mais profundo, similar à palavra, na qual estão as bases da consciência. Desse modo, como pondera Freire (1980, p. 85) “a convicção dos oprimidos de que devem lutar por sua liberação não é um presente dos líderes revolucionários, mas o resultado de sua própria conscientização”. Implica a formação de homens e mulheres capazes de optar e decidir e, “só assim nos parece válido o trabalho da alfabetização, em que a palavra seja compreendida pelo homem na sua justa significação: como uma força de transformação do mundo” (Idem, 2008, p. 150).
A palavra remete à possibilidade de aprender e aprender como se aprende. Trata-se de um processo inacabado em que educador e educando mergulham no mundo e refletem sobre ele. Trata-se de uma estrutura de pesquisa permanente sobre o mundo e sobre os sujeitos que aprendem. Aqui há uma vontade permanente pelo conhecimento, que faz do professor um intelectual e do aluno um sujeito com conhecimento e consciência capaz de mudar seu mundo. Nessa perspectiva, pondera Mejía (2011, p. 56), que “la educación se convierte en uma opción por transformar las formas de poder que dominan y producen exclusión y segregación en la sociedad”. Isso é revolucionário e não tem nada a ver com os dualismos esquerda e direita. Na proposta de Freire, mora a verdadeira natureza da democracia soberana, no sentido de refazer o mundo e humanizá-lo, ao mesmo tempo que nos humanizamos. Um mundo comum com mais liberdade, com mais justiça social, etc.
Nessa perspectiva, aos olhos da pedagogia de Freire, seu espírito emancipador entra nas possibilidades ferramentais de qualquer método didático ou de avanços da neurociência. Trata-se de um pensamento pedagógico, que não exclui novas e diferentes propostas de ensino e aprendizagem como possibilidades de construção de uma sociedade mais humanista, que ainda faz falta no mundo do século XXI.