Introdução
Este ensaio é dedicado ao homem ordinário. Herói comum. Personagem disseminada. Caminhante inumerável. Invocando, no limiar de meus relatos, o ausente que lhes dá princípio e necessidade, interrogo-me sobre o desejo cujo objeto impossível ele representa (CERTEAU, 1996, p. 57).
Propomos, neste artigo, refletir como essas questões sociais complexas, que são os deslocamentos forçados - a migração e o refúgio - vêm atingindo as sociedades mundiais e têm ocupado as agendas políticas internacionais com discussões para a implantação de medidas de controle desses grupos de pessoas, que necessitam se deslocar.
Com o auxílio do “Relatório de Tendências Globais” (ACNUR, 2018; EDWARDS, 2015), traremos para a nossa reflexão os dados quantitativos desse fenômeno migratório na atualidade, além de outros documentos legais que orientam as políticas públicas internacionais e brasileiras para as pessoas em situação de refúgio, bem como a atuação de alguns países junto a esses grupos.
Nossa abordagem teórico-epistemológica se dará majoritariamente com Aníbal Quijano (2005), com quem conversaremos acerca da “colonialidade do poder”, e com Michel de Certeau (1996), que nos ajudará a pensar os cotidianos dessas pessoas, analisando a “colonialidade do poder” que organiza, ainda no presente, as “práticas cotidianas”. Nosso intuito é, com a ajuda desses autores e de outros que forem necessários, buscar indícios de um caminho possível de solidariedade e apoio às pessoas em situação de refúgio, como requisito indispensável de atendimento humanitário no contexto da interdependência necessária em um mundo globalizado.
Pensando além da representação do fenômeno ou do comportamento da sociedade e do aparelho estatal frente a essa crise migratória, gostaríamos, aqui, de refletir sobre o poder que os Estados hegemônicos exercem, criando no imaginário da sociedade pré-conceitos e/ou imagens deturpadas das pessoas em situação de deslocamento forçado, além, também, de fazer um esforço de pensar a possibilidade de um movimento de pensamento científico e educativo contrário ao que vem sendo construído historicamente e que autoconsagrou alguns Estados como hegemônicos e outros como subalternos, periféricos e/ou subdesenvolvidos.
Para este texto, faremos a opção de utilizar deslocamentos forçados e deslocados a fim de designar tanto os refugiados quanto os migrantes, sob o entendimento de que, para as pessoas de que tratamos aqui, o deslocamento não é uma solução para problemas individuais/pessoais, mas a única forma de sobrevivência para grupos que enfrentam problemas graves de violação de direitos humanos. Salientamos ainda que esse deslocamento pode ocorrer em maior ou menor proporção, podendo ser a saída do país de origem ou deslocamento interno, entre cidades, respectivamente.
A opção por deslocados, referindo-se às pessoas em situação de deslocamento forçado, aparecerá em alguns momentos, pois gostaríamos de marcar o “não lugar” a que essas pessoas se colocam - ou são colocadas - ao se deslocarem. Todavia, é necessário explicar, de antemão, os conceitos das palavras: migração; refugiado; apátrida, de que tratam os documentos oficiais sobre este fenômeno e que aparecerão no decorrer do texto.
Segundo o organismo da Organização das Nações Unidas (ONU) para refugiados, o ACNUR (Alto-Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), essa diferenciação interfere no modo como as políticas públicas e os planos de governos operaram frente às demandas dessas pessoas. De acordo com o documento:
Com aproximadamente 601 milhões de pessoas forçadas a se deslocar no mundo e as travessias em embarcações precárias pelo Mediterrâneo nas manchetes dos jornais, está cada vez mais comum ver os termos ‘refugiado’ e ‘migrante’ confundidos, tanto nos discursos da mídia, quanto do público em geral. Mas existe alguma diferença entre eles? E essa diferença é importante? Sim, existe uma diferença e sim, é importante. Os dois termos têm significados diferentes e confundir os mesmos acarreta problemas para ambas as populações. Os refugiados são pessoas que escaparam de conflitos armados ou perseguições. Com frequência, sua situação é tão perigosa e intolerável que devem cruzar fronteiras internacionais para buscar segurança nos países mais próximos, e então se tornarem um ‘refugiado’ reconhecido internacionalmente, com o acesso à assistência dos Estados, do ACNUR e de outras organizações. São reconhecidos como tal, precisamente porque é muito perigoso para eles voltar ao seu país e necessitam de um asilo em algum outro lugar. Para estas pessoas, a negação de um asilo pode ter consequências vitais (EDWARDS, 2015, p. 1)2.
Entretanto, um indivíduo não pode se autodeclarar refugiado; ele abre essa solicitação ao ser acolhido por um país e solicita o reconhecimento como tal junto aos órgãos de controle de migração deste. Essa solicitação é possibilitada pela Convenção de Genebra (1951) e pelo Protocolo 1967 (Estados Unidos da América). No Brasil, existe a Lei 9.474/97, que é o aporte legal que permite a solicitação de identificação de refugiado. A responsabilidade pelo reconhecimento e expedição da identificação de refugiado no Brasil é feita em articulação de quatro organismos, a saber: o Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR), o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), o Departamento de Polícia Federal e a Cáritas Internacional (Organização Humanitária da Igreja Católica).
Essas distinções para os refugiados são importantes, pois abrem possibilidades de atendimento específico, como, por exemplo, o direito legal de se deslocar por sua vida encontrar-se ameaçado em seu país de origem. No Brasil, o reconhecimento quanto refugiado garante à pessoa a permanência após quatro anos do reconhecimento. De acordo com a Cartilha para Refugiados no Brasil:
Os refugiados não podem ser devolvidos ou expulsos para um país onde a sua vida ou integridade física estejam em risco e em hipótese alguma serão devolvidos para o seu país de origem. O reconhecimento da condição de refugiado também interrompe qualquer processo de extradição e impede a expulsão do refugiado, salvo por motivos de segurança nacional ou ordem pública (BRASIL, 2018, p. 5).
Os motivos de segurança dois quais o texto trata para o não reconhecimento legal da situação foram alterados recentemente pelo Ministério da Justiça e da Segurança Pública, através da Portaria nº 666, de 25 de julho de 2019, publicada no Diário Oficial da União. Esta alteração foi mal recebida pelas organizações de apoio e proteção aos refugiados, como a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM), e interpretada como ato gravíssimo contra os direitos dos refugiados, do qual o Brasil é signatário, ou seja, aceitou as condições e acordos propostos pela Convenção de Genebra ao participar do evento. No artigo nº 2 da Portaria nº 666, consta que “suspeitos em” possíveis crimes poderão ser expulsos do país.
No entendimento das organizações internacionais e nacionais para refugiados, o impedimento de ingresso, de repatriação, assim como a deportação sumária, a redução ou cancelamento do prazo de estada e permanência por suspeita, coloca em xeque o direito ao julgamento e interfere no direito à assistência jurídica de um defensor público, a que o refugiado/repatriado tem direito (BRASIL, 2018). Se por um lado as leis de migração avançaram no Brasil, portarias como a nº 666 fazem retroceder as medidas de assistência e proteção aos deslocados no Brasil.
Nos documentos oficiais, podemos encontrar ainda as definições para os outros termos que ouvimos comumente. São eles: migrantes, que são as pessoas que se deslocam por necessidade e que não estão diretamente ligadas à vida ou a ameaça dela. A diferença entre migrantes e refugiados é que os migrantes continuam a ter proteção de seu país de origem, enquanto que os refugiados perdem essa proteção, por isso a necessidade de acolhimento e reassentamento em outros países. Ou ainda, de acordo com as últimas atualizações dos termos feitas no texto original3, que são de extrema importância para compreensão da problemática entorno da questão:
Dizemos ‘refugiados’ quando nos referimos a pessoas que fugiram da guerra ou perseguição e cruzaram uma fronteira internacional. E dizemos ‘migrantes’ quando nos referimos a pessoas que se deslocaram por razões que não se encaixam na definição legal de refugiado (EDWARDS, 2015, p. 1)
Há, ainda, os apátridas, que são todas as pessoas que não possuem nacionalidade vinculada a um Estado. Isso acontece pela dificuldade de localizar uma determinada região/lugar a um Estado ou a negação do Estado em reconhecer um indivíduo como nacional (JUBILUT, 2007). Essa dificuldade se dá, principalmente, por questões étnicas e religiosas.
Cotidianos em movimento
Esclarecemos aqui algumas opções teórico-epistemológicas e teórico-metodológicas que, na corrente com a qual trabalhamos, dos estudos com os cotidianos, tal como os pensa ALVES (2019) com ajuda de CERTEAU (1996), surgem a partir de questões sociais que emergem.
Entendemos os cotidianos como ‘espaçostempos’4 de saber e de criação, mas, diferentemente de Certeau, optamos por grafar a palavra no plural e não no singular, pois entendemos que são muitos e complexos. Segundo o autor, “narrar as práticas comuns é introduzi-las como experiências particulares, frequentações, solidariedades, e as lutas que organizam o espaço” (CERTEAU, 1996, p. 35). Certeau nos diz ainda que as pesquisas neste campo requisitam a análise das “combinatórias de operações” das relações sociais e culturais que os cotidianos criam.
Para nós, estudar com os cotidianos é mais que uma análise do sujeito e de sua individualidade, uma vez que exige um esforço de compreensão dos esquemas, modelos e operações em que a interação das pessoas e mundo se realiza.
Nas pesquisas com os cotidianos, partimos da ideia de que pensar as práticas cotidianas de viver dentro e para além das macronegociações políticas e econômicas permite nos aproximar da complexidade da vida sem abrir mão de todas as redes que formamos e nas quais nos formamos. Neste sentido, nunca buscamos estudar sobre os cotidianos, mas, estudar nos/dos/com os cotidianos, assumindo a nossa total implicação neste processo, entendendo-nos, sempre, como neles mergulhadas. Estudar e pesquisar com os cotidianos de pessoas comuns, com as histórias comuns que nos são contadas - porque nessas pesquisas as narrativas (todos os sons) e imagens contam - encontrando nestas, sentimentos e ‘conhecimentossignificações’ que seus ‘praticantespensantes’ (OLIVEIRA, 2012) criam, exigiu admitir a riqueza e complexidade desses ‘espaçostempos’ (ALVES et al., 2019, p. 102).
Assumimos aqui os riscos e os desafios de articular nossos interesses acadêmicos - nos quais estão inseridos os desafios teórico-metodológicos e teórico-epistemológicos - com as demandas oriundas da nossa linha de pesquisa, conscientes que pesquisamospensamosconversamos sempre com os cotidianos e nunca sobre eles. Desse modo, fez-se necessário criarmos conceitos que nos possibilitassem narrar as práticas cotidianas. Estamos sempre enredados pelas demandas que os cotidianos nos trazem, o que, por sua vez, implica a temporalidade de tudo que pensamos, dizemos e escrevemos, o que constantemente é revisitado, sofrendo movimentos e atualizações de modo contínuo.
Outra escolha que fazemos é a ‘conversa’ como método de pesquisa. Essa aposta metodológica é comum a muitos pesquisadores que trabalham nas pesquisas com os cotidianos e indispensável ao modo como pensamos e produzimos ‘conhecimentossignificações’5. As conversas, nos estudos com os cotidianos, representam um lócus central de trabalho e de criação de conhecimento.
(...) pensar as conversas não como sistemas de representação e\ou de interpretação dos fatos ocorridos-vividos, mas como intensidades, multiplicidades, acasos e experimentações, que nos movimentam e nos arrancam de nossas supostas estabilidades-verdades (FERRAÇO; ALVES, 2018, p. 58).
Desta forma, conversaremos com os autores, com os textos, com as imagens acerca dos deslocamentos forçados no mundo, na tentativa de poder partilhar com os leitores as primeiras compreensões a respeito deste fenômeno que movimenta 80 milhões de pessoas, mas que, se consideradas as inúmeras conversas realizadas por diferentes países e órgãos internacionais em torno do tema, pouco se tem feito, no âmbito da criação e execução de políticas públicas efetivas, para o acolhimento dessas pessoas, especialmente na Europa, principal rota daqueles que se deslocam.
Nosso intuito, também, é pensar os muitos mundos culturais que atravessam o nosso mundo “particular” e que, a partir da chegada do “Outro”6 (MATURANA, 1997) em nossas experiências de vida, esse mundo é transformado e ampliado, através dos encontros e das conversas, criando novas tessituras nas redes educativas que formamos e pelas quais também somos formados.
Nesse intercâmbio de práticas culturais e experiências de vida com as pessoas em situação de deslocamento forçado, formamos um terceiro mundo cultural, criado pelas relações de poder existentes e as tensões políticas, sociais e econômicas que esse fenômeno do deslocamento causa à supremacia dos Estados-nações, mas também pela relação que estabelecemos com esse “Outro”, podendo ser uma relação de potência, afeto, legitimação e alargamento desses mundos culturais ou de preconceito, o que é mais frequente.
É possível haver uma colonialidade do poder operando nas sociedades pós-coloniais?
Para respondermos a essa pergunta, são necessárias algumas compreensões iniciais acerca do conceito de pós-colonial. A primeira delas é aquela que marca como tempo histórico o período após os processos de descolonização do chamado “Terceiro Mundo” ou fim do colonialismo, ou seja, o fim de uma estrutura de governo territorial autoproclamada pelo poder militar que esse grupo/indivíduo exerce.
A segunda compreensão de pós-colonialismo que fazemos é o rompimento com uma história única do mundo a partir da Europa, como centro hegemônico de poder e que permitiu a dominação, a exploração e a escravização de pessoas durante séculos, através da teoria de hierarquização e subalternização de raça e gênero, o que não significa a ausência ou fim desses efeitos com a pós-colonialidade (COSTA; GROSFOGUEL, 2016). Compreendemos o conceito de pós-colonial a partir desta segunda interpretação, a qual orientará toda nossa reflexão a partir daqui.
Segundo Quijano (2005), apesar da descolonização das sociedades, o poder colonial continuou a operar nas sociedades que foram subalternizadas durante a era colonial. Essa operação de poder se dá pela hegemonia que a Europa detém sobre o resto do mundo, por meio do sistema capitalista, que controla o capital mundial. Apesar da descolonização, a Europa continua a ser o centro do poder e detentora do capital. Logo, se constituiu um capitalismo colonial/moderno e eurocentrado como um novo padrão de poder mundial (p. 117).
Essa operação de poder mundial exercido pela Europa se constitui e se consolida pelos critérios de hierarquização e subalternização de raça, onde os brancos estão em vantagem em relação aos não brancos, sendo que aos negros restou a categoria sem humanidade, lhes conferindo a condição de escravos, durante os processos coloniais e subposições na atual estrutura econômica.
As novas identidades históricas produzidas sobre a ideia de raça foram associadas à natureza dos papéis e lugares na nova estrutura global de controle do trabalho. Assim, ambos os elementos, raça e divisão do trabalho, foram estruturalmente associados e reforçando-se mutuamente, apesar de que nenhum dos dois era necessariamente dependente do outro para existir ou para transformar-se (QUIJANO, 2005, p. 118).
A raça e o racismo constituem-se como princípios organizadores da acumulação de capital em escala mundial. A ideia de raça legitimou e autorizou, na América, as relações de dominação, exploração e escravidão. Segundo Quijano (2005),
desse modo, raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade. Em outras palavras, no modo básico de classificação social universal da população mundial (p. 118).
A partir do pensamento de Quijano (2005), podemos compreender que a colonialidade do poder continua a operar nas sociedades pós-coloniais através do racismo e do padrão global de controle do trabalho, o sistema capitalista. A ideia de raça foi associada estrategicamente aos lugares sociais na nova estrutura global de trabalho, ainda que a hierarquização das raças a partir de critérios biológicos já tenha sido refutada cientificamente há mais de um século.
A Europa - como centro mundial do capitalismo - não só estabeleceu o sistema de exploração do trabalho em escala mundial, mas também o de monopolização dos meios de produção7. O capitalismo, através do estabelecimento da hegemonia econômica, elaborou uma relação “sistema-mundo capitalista/patriarcal/cristão/moderno/colonial europeu”, como nos dizem Costa e Grosfoguel (2016):
A partir dessa formulação tornou-se evidente a centralidade do conceito de colonialidade do poder, entendido como a ideia de que a raça e o racismo se constituem como princípios organizadores da acumulação de capital em escala mundial e das relações de poder do sistema-mundo (Wallerstein, 1990: 289). Dentro desse novo sistema-mundo, a diferença entre conquistadores e conquistados foi codificada a partir da ideia de raça (Wallerstein 1983; 1992: 206-208; Quijano, 2005: 106). Esse padrão de poder não se restringiu ao controle do trabalho, mas envolveu também o controle do Estado e de suas instituições, bem como a produção do conhecimento (p. 17).
Esse sistema-mundo complexo e altamente coeso interligou as economias mundiais a um sistema-mundo-economicamente dependente, que resulta na dívida do resto do mundo com a Europa. Dessa forma, permanece a relação de dependência das colônias (diretas e indiretas) com o colonizador. Mesmo após a descolonização (leia-se independência) da maioria dos países, temos a colonialidade do poder imperando em todo o mundo capitalista moderno ou pós-moderno.
Deslocados: uma nova identidade da pós-modernidade - causas e efeitos da colonialidade do poder
Os deslocados, na atualidade, configuram uma nova identidade na pós-modernidade, em nossa compreensão. Pensamos o conceito de identidade e modernidade, a partir do pensamento de Hall (2006), no que ele conceitua como celebração móvel. Para o autor,
formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (Hall, 1987). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um ''eu" coerente (HALL, 2006, p. 13).
Na disputa de poder, a identidade é fluida, transitória e convergente para os interesses pessoais de um indivíduo ou grupo social. No caso dos deslocados, a identidade acompanha esse movimento, construindo, na nova organização social da pós-modernidade, uma identidade singular, ainda que coletiva para as pessoas em situação de deslocamento forçado. Segundo Hall, a característica principal da modernidade é a inconstância dos processos e, consecutivamente, dos sujeitos: “As sociedades modernas são, portanto, por definição, sociedades de mudança constante, rápida e permanente. Esta é a principal distinção entre as sociedades ‘tradicionais’ e as ‘modernas’” (p. 14).
Esses movimentos de pessoas pelo mundo, que hoje chamamos de “deslocamentos forçados”, foram gerados no interior desses processos de colonização e descolonização e pela manutenção da colonialidade do poder após a descolonização. As consequências deixadas pela exploração, hierarquização e escravização de pessoas e das formas de trabalho, por séculos, culminaram nesses mais de 80 milhões de pessoas deslocadas, que foram forçadas a migrar por diversas questões. Em comum a todas elas, temos, de um lado: a negligência de seus Estados de origem em gerenciarem os graves problemas sociais enfrentados por seus cidadãos, e, de outro, os processos de globalização aniquiladores que criaram a dependência dos mercados e fragilizaram a economia dos países não europeus, em especial a dos países colonizados do continente africano e da América Latina. Segundo Quijano (2005):
Já em sua condição de centro do capitalismo mundial, a Europa não somente tinha o controle do mercado mundial, mas pôde impor seu domínio colonial sobre todas as regiões e populações do planeta, incorporando-as ao “sistema-mundo” que assim se constituía, e a seu padrão específico de poder. Para tais regiões e populações, isso implicou um processo de re-identificação histórica, pois da Europa foram-lhes atribuídas novas identidades geoculturais (p. 119).
Para que fosse exercido esse padrão de poder global, foi necessária à re-identificação histórica, que acarretou o surgimento de novas identidades geoculturais, como a dos deslocados. Essa nova identidade está ligada, também, à inércia dos centros hegemônicos de poder e de capital mundial, para atuação e amortização de dificuldades políticas e sociais, que países como a Síria, por exemplo, enfrentam. A Síria é o país de maior saída de pessoas, no contexto global de deslocamento forçado. Segundo o relatório de deslocamento global (ACNUR, 2018), dos quase 70 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado em 2018, havia 12,6 milhões que eram sírios. O principal motivo de saída de pessoas é a guerra civil, sendo que esse número representa quase um terço da população mundial de refugiados no mundo (p. 3).
Dificuldades essas provenientes das causas e efeitos da colonialidade do poder, nos sistemas políticos governamentais originários, que não conseguem estabelecer certa governabilidade em seu território e tão pouco chegam à configuração de um Estado democrático, tamanha a agressão que processos identitários, culturais e subjetivos de seus cidadãos sofreram ao longo do tempo. Ressaltamos, ainda, as condições-limite em que essas novas identidades foram sendo reconfiguradas, não respeitando fronteiras territoriais, o que, para algumas correntes religiosas, impôs uma invasão a territórios considerados sagrados.
A partir dessa nova configuração geocultural imposta pela colonialidade do poder nas intersubjetividades dos indivíduos, são criados novos padrões de integração. Encontramos em Quijano (2005) as compreensões para tal pensamento:
Há, claro, uma relação umbilical entre os processos históricos que se geram a partir da América e as mudanças da subjetividade ou, melhor dito, da intersubjetividade de todos os povos que se vão integrando no novo padrão de poder mundial. E essas transformações levam à constituição de uma nova subjetividade, não só individual, mas coletiva, de uma nova intersubjetividade. Esse é, portanto, um fenômeno novo que ingressa na história com a América e nesse sentido faz parte da modernidade. Mas quaisquer que fossem essas mudanças não se constituem da subjetividade individual, nem coletiva, do mundo pré-existente, voltada para si mesma, ou, para repetir a velha imagem, essas mudanças não nascem como Minerva, da cabeça de Zeus, mas são a expressão subjetiva ou intersubjetiva do que os povos do mundo estão fazendo nesse momento (p. 124).
Nesse contexto de construção de novas identidades geoculturais, a adequação de novas práticas sociais que alteraram a existência social dos povos produz o que chamamos, neste texto, de deslocamentos. Ou seja, em se tratando das pessoas, aquelas que, diante do novo modelo de poder capitalista e individualizante, vão ficando às margens dos novos processos e projetos de sociedade e têm seu direito fundamental e inviolável, como o direito à vida (DUDH, 1948), subjugado aos interesses econômicos do sistema capitalista e sua hegemonia.
O sentimento do mundo: mover-se com os cotidianos dos deslocados
O sentimento do mundo é um dos movimentos necessários às pesquisas com os cotidianos, segundo Andrade et al. (2019, p. 121) . As autoras elencam seis movimentos centrais que são indispensáveis às pesquisas com os cotidianos: O sentimento do mundo, Ir além do já sabido, Criar nossos “personagens conceituais” (DELEUZE; GUATARRI, 1992), Narrar à vida e literaturizar a Ciência, Ecce femina e A circulação dos ‘conhecimentossignificações’. Segundo as autoras, esses são movimentos teórico-metodológicos e teórico-epistemológicos para as pesquisas com os cotidianos. Para nos movermos com os cotidianos dos deslocados, elegemos o primeiro movimento.
O sentimento do mundo é o cerne das pesquisas com os cotidianos. Ao nos colocarmos sensíveis às imagens, às histórias, às vozes que se insurgem em nosso campo de estudos, ampliamos as possibilidades de pensar com esse “Outro” e criar modos de resistir e transformar as realidades, tencionar e produzir modos também outros de existência e de acolhimento para essas pessoas deslocadas. Dessa forma:
Querer saber mais, buscando respeitar aquilo que Lefebvre (1991) chama de a humilde razão do cotidiano que se dá nos lugares ditos difíceis, como anuncia Bourdieu (1997), incorporando-a como (...) [‘espaçostempos’] de criação de (...) [‘conhecimentossignificações’ válidos e vitais] para os seres humanos, que em nenhum outros poderias ser produzidos, exige do pesquisador que se ponha a sentir o mundo e não só a olhá-lo, soberbamente, do alto ou de longe. Não há, pois, para mim, que a isso me dedico à postura de isolamento da situação e, ao contrário, é exigida outra postura epistemológica. Para começar, é preciso ‘notar’ que também vivo e produzo (...) [‘conhecimentosssignificações’ nos cotidianos], todos os dias, vivendo minhas tantas formas de pequenas misérias (BOURDIEU, 1997). Portanto, não tenho nenhuma garantia de que não vou me iludir e de que não vou “ver” coisas e fatos inexistentes. De certa maneira, nem mesmo meu compromisso principal está aí. A distância científica, pelo menos nesse caso é, pois, uma solução inexistente. E, não me servirá, assim, de álibi. Apesar disso, é preciso ter claro de que não há outra maneira de se compreender as tantas lógicas (...) [dos cotidianos] senão sabendo que estou inteiramente mergulhada nelas, correndo todos os perigos que isto significa. É preciso, assim, buscar saber sempre os meus tantos limites (Andrade et al. (2019, p. 121, grifos das autoras).
Acreditamos, ademais, que o sentimento do mundo também é produzir movimentos com o mundo, a partir de diálogos constantes. A colonialidade do poder operar para a manutenção de posições, status, crenças, valores e todas as formas de hegemonia para a dominação de um grupo e exclusão de outrem (QUIJANO, 2005). Mas o movimento que os estudos com os cotidianos impulsionam a fazer é, necessariamente, de nos tirar desse local de produção do comum, de repetição e consecutiva manutenção e exploração de um grupo sobre outro, onde os saberes ficam segregados a um grupo para a exclusão do “Outro”.
Movimentar-se com os cotidianos, na corrente com a qual pesquisamos, diz respeito à produção e criação de novos ‘espaçostempos’ de solidariedade, de acolhimento e, principalmente, de produção do novo para criação de formas de resistência e liberdade para si e para o “Outro”.
Esse movimento que fazemos poderia ser entendido, também, como: “táticas de praticantes”, tal como o pensa Certeau (1996), pois é um novo modo de se relacionar com os cotidianos e com a própria produção de ‘conhecimentossignificações’ que insurgem a partir das relações tecidas com eles, cujas categorias hegemônicas de produção de conhecimento científico operam a partir de outras lógicas, sendo necessário aos pesquisadores do e com os cotidianos criarem categorias outras de produzir com eles e para todos. As categorias de produção de conhecimentos que criamos são próprias das práticas cotidianas, uma vez que as táticas não têm local próprio e nem fronteira, elas acontecem no local do outro (CERTEAU, 1996, p. 46). Os lugares de disputa de poderes hegemônicos nos cotidianos são onde as táticas jogam com as regulações da ordem, engendrando-os.
Considerações finais
Em suma, os consumidores ou ‘praticantespensantes’8 (OLIVEIRA, 2012), como reconhecemos os sujeitos dos cotidianos - aqui os refugiados -, necessitam criar seus ‘conhecimentossignificações’ para ser utilizado em seus campos de pesquisa. Isso vai desde a criação/junção de palavras (como aparecem neste texto) antes dicotomizadas e que, a partir das opções da linha que escolhemos trabalhar, demonstram para nós limites que precisamos transpor, a fim que consigamos fazer compreender o que pensamos/pesquisamos, mas, também, é necessário às pessoas em situação de deslocamento forçado, para criarem as suas táticas de (re)existência, quanto migrantes. Nesse sentido, concordamos com Andrade et al. (2019, p. 126): “É preciso compreender que nossos muitos sentidos são convocados sempre nas relações das pesquisadoras e pesquisadores com os cotidianos, com os ‘praticantespensantes’ desses tão diferentes e múltiplos ‘espaçostempos’.
Pensando ainda com a ajuda de Certeau (1996), nosso esforço é de construir táticas, a partir de nosso lócus de enunciação, vozes “Outras” que se solidarizam “com os mais fracos”, ou, ainda, que criem táticas que estejam infiltradas nos ‘espaçostempos’ do poder e na tentativa de subvertê-los:
As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo - as circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, a rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, as relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos etc. Sob este aspecto, a diferença entre umas e outras remete a duas opções históricas em matéria de ação e segurança (opções que respondem, aliás, mais a coerções que a possibilidades): as estratégias apontam para a resistência que o estabelecimento de um lugar oferece ao gasto do tempo; as táticas apontam para uma hábil utilização do tempo, das ocasiões que representa e também dos jogos que introduz nas fundações de um poder. Ainda que os métodos praticados pela arte da guerra cotidiana jamais se apresentem sob uma tão nítida, nem por isso é menos certo que apostas feitas no lugar ou no tempo distinguem as maneiras de agir (CERTEAU, 1996, p. 102).
Em suma, o movimento dos deslocados forçados, associados aos movimentos das pesquisas com os cotidianos, são, por necessidade e por finalidade, ‘espaçostempos’ de criação de saberes outros, que permitem fazer ouvir vozes “Outras”, liberdades “Outras”, modos de ser-existir-fazer-pensar que mobilizem pesquisas “Outras” e movimentem os sistemas de poder, no sentido favorável aos deslocados mundiais, produzindo políticas de acolhimento e integração desses seres humanos, mesmo diante da imobilidade do poder e dos aparelhos sociais do Estado, frente a esse fenômeno global que é o deslocamento de milhares de pessoas no mundo.
O movimento “Sentimento mundo” com os cotidianos dos deslocados nos ajuda a não permitir que eles sejam reduzidos a um fenômeno migratório comum e individual, mas, sim, que sejam compreendidos em sua dimensão e complexidade política, econômica e social dessa avalanche de pessoas em deslocamento pelo mundo, uma massa ordinária, com legítimo direito à sobrevivência e da busca por ele fora de suas nações, diante da operacionalidade que a colonialidade do poder ainda exerce na pós-modernidade e no sistema geopolítico capitalista global.