1 Introdução
O estado de Mato Grosso do Sul (MS) faz fronteira ‘seca’ com a Bolívia e o Paraguai; trata-se de um local com presença permanente de diversos núcleos urbanos de ambos os lados, o que se repete, em menor intensidade, nos municípios com linha divisória marcada pela presença de rios. Portanto, MS tem diferentes contextos fronteiriços, principalmente por suas diversas ambivalências, nuances e contradições que influenciam as relações socioculturais das pessoas que nele habitam.
A invisibilidade do esporte e da cultura como direitos fundamentais de crianças e adolescentes (LOPES; BERCLAZ, 2019) é um “vetor semântico” (LE BRETON, 2007) que nos preocupa, também, na região de fronteira. Nesse viés, o objeto de análise de que resultou este artigo, ocorreu na cidade de Corumbá-MS, município pantaneiro que faz fronteira particular com a Bolívia. Nessa região, existem diferentes etnias que convivem cotidianamente, gerando complementaridades, aproximações e distanciamentos entre as pessoas. Estas particularidades influenciam a dinâmica local, criando, por exemplo, nas escolas públicas municipais, um espaço riquíssimo para explorações e análises de temas como: diversidade cultural, identidade e esporte.
Nas últimas décadas, as mudanças no contexto educacional têm fomentado perspectivas para a formulação e implementação de novas políticas articuladoras para significação do processo de ensino e aprendizagem. Nesse aspecto, o fenômeno esportivo, enquanto ação educativa (BENDRATH; BASEI, 2019), torna-se objeto de análise no contexto escolar (COUTO, 2021).
Com isso, percebe-se a dimensão simbólica da cultura (HALL, 2009), considerando que as identidades culturais são, antes de tudo, construções simbólicas (HALL, 2005). Deste modo, a escola na fronteira se transforma num espaço de mediação simbólica, onde são produzidas leituras e interpretações. Nesse enredo, a “identidade legitimadora” (CASTELLS, 2006) inicia-se pelas instituições dominantes da sociedade e é determinada por uma moldura de poderes (HALL, 2009), um poder que está em toda e qualquer relação social (PALAZZO; JUNIOR, 2016).
Inclusive, o fenômeno esportivo agrega, invariavelmente, elementos culturais e de identidade, quando se consideram os diferentes contextos. Portanto, os esportes não são manifestações sociais independentes e imutáveis em relação à sociedade na qual se desenvolvem costumes e valores convergentes com a organização social em que estão inseridos. Diante desse enredo, vários estudos (SOUZA; MARCHI JÚNIOR, 2017; DAOLIO; VELOZO, 2008; FERREIRA et al., 2013; JACKSON; ANDREWS, 2005; RIZZO et al. 2020) oferecem contribuições para problemáticas atuais no campo esportivo que sinalizam possibilidades de se investigar o esporte com sustentação nas ciências humanas e sociais.
A compreensão da apropriação de temas e referenciais das ciências humanas e sociais pela Educação Física depende da observação de aspectos internos à própria área e suas disputas, como também de características específicas da sociedade mais ampla que rodeia e interfere em todo o processo (GUTIERREZ, et al., 2016). Assim sendo, o esporte é considerado um fruto da diferenciação de grupos sociais (BOURDIEU, 1987). Inclusive, estudos demonstraram esforço para analisar o papel desempenhado pelo esporte como meio para a construção, configuração e fortalecimento das identidades nacionais (SIMÓN, 2018; TÁBOAS-PAIS et al., 2015).
Portanto, falar sobre a manifestação futebolística passa a ser uma forma de pensar sobre o país e sobre a identidade nacional (DAMO, 2002), especialmente o futebol, na construção da identidade nacional brasileira (ABRAHÃO; SOARES, 2012), que sempre foi visto pelos governantes como instrumento de promoção dos seus governos devido ao caráter nacionalista (PALAZZO; JUNIOR, 2016). Desta forma, o esporte pode ser entendido como uma manifestação de ressignificação de práticas históricas e uma forma de diálogo intercultural na sociedade (AMARAL; BASTOS, 2017; BOARETTO; PIMENTEL, 2017). Também pode ensejar a construção midiática e hipervalorização de ídolos, de modo especial quando observadas as relações da tríade jogador-clube-torcedor, o que possibilita, por exemplo, exaltação e paixão por determinado time, criando, no imaginário social, o sonho de ser jogador de futebol (MORATO, et al., 2011).
Nesse contexto, pode ser útil estudar o futebol no universo da globalização do espetáculo esportivo, no qual, inclusive, o Brasil se apresenta, atualmente, como um dos principais figurantes (SOUZA et al., 2014). Outro ponto destacado no trabalho de Soares et al. (2021) é que o torcedor passou a ter uma maior preocupação em controlar o comportamento dos seus integrantes, a fim de resguardar o seu grupo contra medidas repressivas; sobretudo, devido aos comportamentos julgados como inadequados. Enquanto que no trabalho de Sobrinho et al. (2018) destaca-se que o futebol, no Brasil, como manifestação esportiva, estabelece forte identidade cultural, sendo que a agremiação de sujeitos, oriunda de uma estrutura como a torcida organizada, estabelece grande influência na construção identitária. Logo, no cenário esportivo, a investigação sobre as fronteiras identitárias estimam que as relações pessoais, sociais e culturais acontecem a partir de uma construção simbólica (SILVA, et al., 2014), sendo salutar compreender melhor as influências esportivas e as identidades nacionais em espaços fronteiriços.
Ressalte-se que adentrar ao tema fronteira engloba uma dupla vertente indissolúvel, ao mesmo tempo em que é um território estabelecido jurídica e politicamente, impondo certa demarcação-dominação da terra. É, também, dotado de uma dimensão simbólica, representando um dinamismo e uma identificação sociocultural particular Foucher (2009). As noções de fronteira e limite são históricas, sofrendo constantes modificações. De acordo com Machado (1998, p. 41-42), é comum o tratamento equivocado dos termos “limite” e “fronteira”, pois a fronteira está direcionada “para fora”; já os limites, “para dentro”. Nunes afirma que analisar a fronteira implica um olhar particular sobre o contexto, observando as relações de intercâmbio cultural, social, econômico, político, entre diferentes povos; por isso, as áreas de “[...] fronteiras podem representar locais de conflitos culturais entre povos diferenciados, assim como podem ser entendidas como áreas de trocas interculturais e dos consequentes hibridismos culturais” (2012, p. 75). Pensar regiões de fronteira e seus elementos constitutivos, especialmente quando se refere à educação intercultural, porque implica discussão e compreensão de temas como identidade. Com efeito, são inúmeras as identidades dos sujeitos que habitam as localidades de interação fronteiriça. Nesses contextos fronteiriços, elas são múltiplas, com características bastante fluidas, guardando certa analogia ao que foi proposto por Bauman (2005). As identidades adquirem novos contornos e novas configurações; tornam-se mais complexas devido à lógica multifacetada e interdependente dos universos sociais da fronteira.
Na busca de melhor interpretar as identidades, Nascimento (2012) resgata o conceito de “aculturação”. Para ele, aculturação refere-se a um processo pelo qual duas ou mais culturas entram em contato por meio da imigração, absorção cultural, das relações sociais estabelecidas nas fronteiras, dos processos educacionais etc. Tal processo leva, constantemente, a reconfigurações, rearranjos e ressignificações socioculturais. Segundo Oliveira, assimilação pode ser entendida como um “[...] processo pelo qual o grupo étnico se incorpora noutro perdendo: a) sua peculiaridade cultural; b) sua identificação étnica anterior” (1976, p. 103). Para Giddens, assimilação significa que “[...] os imigrantes abandonam os seus usos e costumes, passando a pautar o seu comportamento pelos valores e normas da maioria” (2008, p. 258). A ideia de “melting pot” sugerida por Giddens, favorece a discussão e compreensão de sociedades fronteiriças. Com efeito, ao contrário de “[...] se dissolverem as tradições dos imigrantes a favor das dominantes no seio da população pré-existente, misturam-se todas para formar novos padrões culturais” (id., ibid.).
Naturalmente, em regiões de fronteira, este processo tende a se intensificar e se tornar mais complexo e multifacetado e, nesse ambiente de elevada complexidade cultural, verifica-se que os elementos socioculturais de grupos em permanente contato não se perdem completamente; na realidade, tendem a se transformar. Como ressalta Cunha, a “... cultura original de um grupo étnico, na diáspora ou em situações de intenso contato, não se perde ou se funde simplesmente, mas adquire uma nova função essencial e que se acresce às outras” (1986, p. 99).
Igualmente, Bauman fala sobre o pertencimento e a identidade, afirmando que ambos não teriam a solidez da rocha; portanto, não são garantidos para a eternidade, sendo “[...] bastante negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio indivíduo toma, aos caminhos que percorre, a maneira como age [...] são fatores cruciais tanto para o ‘pertencimento’ quanto para a ‘identidade’” (2005, p. 17). Considerando estes argumentos, Carrano aponta que a identidade poderia se configurar “[...] como um sistema dinâmico, definido entre possibilidades e limites, que gera um campo simbólico no qual o sujeito pode conquistar a capacidade de intervir sobre si e reestruturar-se” (2008, p. 198-199). A identidade étnica é adquirida e construída socialmente, incorporando diferentes transmissões da família e da comunidade, no tocante às tradições e aos costumes, não sendo nunca rígida e imutável, mas sempre com características fluidas e (re)adaptáveis (GIDDENS, ibid.). Em regiões de fronteira, esse processo em muito se intensifica.
O debate sobre a identidade é extremamente relevante no universo educacional, especialmente em regiões fronteiriças, pois justamente ele mostrará os perigos presentes em posturas comuns nas quais um determinado grupo nega e/ou discrimina a existência do(s) outro(s) ser(es) humano(s). Portanto, neste trabalho, identificam-se complexos elementos quanto à autodeclaração da identidade nacional e sua preferência, enquanto torcedor, sobre o(s) seu(s) time(s) de futebol, apontando as diferentes nuances que ocorrem entre alunos da região fronteiriça estudada.
O interesse científico em analisar as representações de sujeitos num território de fronteira tem movido os projetos de diversos intelectuais que, por vezes, criam novas representações sobre o espaço territorial no contexto fronteiriço (DÁVILA et al., 2018; GÁNDARA, 2016). Desta maneira, à luz do processo histórico, são modeladas as identidades, que, além de plurais, são dominadas pela obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções (SANTOS, 1994).
Ao levar em consideração essas informações apresentadas e os diferentes processos socioculturais presentes na região brasileira estudada, o objetivo deste estudo foi investigar como alunos que têm algum tipo de interação com o país vizinho (Bolívia), articulando diferentes culturas, retratam sua identidade nacional e declaram sua preferência pelo time de futebol. Logo, o estudo busca analisar como alunos, que convivem na fronteira Brasil-Bolívia, descrevem a própria percepção sobre a identidade nacional e a preferência esportiva; neste caso, verificando para qual time de futebol os sujeitos (alunos) investigados dizem torcer. Com esse fim, deve-se considerar que esses sujeitos entrevistados frequentam, cotidianamente, os mesmos espaços (sala de aula, quadra poliesportiva, pátio...) educativos de uma escola pública municipal, no território brasileiro (Corumbá-MS). Resumindo, optou-se por fazer uma investigação e analisar se existe algum paralelo entre o local de moradia, a identidade considerada e a predileção do time de futebol.
2 Materiais e métodos
A pesquisa foi desenvolvida seguindo os pareceres aprovados pela Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação (PROPP), órgão responsável pela coordenação, pelo planejamento e pela avaliação das atividades de pesquisa e pós-graduação da instituição proponente.
Os protocolos de pesquisa, envolvendo seres humanos, foram submetidos e aprovados via Sistema do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), por meio da Plataforma Brasil, bem como seguiu o processo de obtenção do consentimento livre e esclarecido dos participantes. Desta forma, seguem-se os “princípios éticos” para a pesquisa em ciências humanas, ciências sociais e educação defendidos por Campos (2020).
Os sujeitos envolvidos na pesquisa empírica, em termos de amostragem, derivam de uma escola pública da Rede Municipal de Ensino (REME) de Corumbá (MS). A escolha dessa unidade como local de pesquisa, que atende em especial o Ensino Fundamental, ocorreu por se tratar de uma escola urbana com maior fluxo na região de alunos matriculados, os quais residem nas cidades fronteiriças da Bolívia (Puerto Quijarro/Puerto Suarez), bem como por sua característica física de proximidade com a fronteira (Brasil-Bolívia), o que ajuda no movimento pendular dos educandos da região.
Esta unidade escolar se encontra numa “franja fronteiriça”1, como explicou Costa (2013). A escola brasileira pesquisada tem uma distância aproximada de 4,5 km da linha de fronteira, localizada próxima da cidade de Puerto Quijarro e Puerto Suárez, ambas na província de Germán Busch, do departamento de Santa Cruz, na Bolívia.
Esta escola se caracteriza pela diversidade cultural, não somente pela sua proximidade com a Bolívia, mas também pela expressiva quantidade de alunos estrangeiros e/ou ligação familiar (parentesco) com pessoas provenientes da Bolívia. Destaque-se, também, que os discentes da unidade em estudo são oriundos de diversos bairros do Brasil e da Bolívia, sendo que as famílias são, na maioria, de baixa renda.
Vale destacar que, nas inúmeras escolas da região, também existem, de forma rara, casos de alunos com o registro de identidade oficial da Bolívia, particularmente quando fazem a carteira nacional de estrangeiro, de modo especial para terem o direito da matrícula nos espaços educativos no lado brasileiro. Por outro lado, existe um número expressivo de alunos nascidos no Brasil, portanto brasileiros, que são filhos ou parentes próximos de bolivianos (como avó ou avô) e, naturalmente, criam algum vínculo com a cultura da Bolívia. Assim, observa-se que, comumente, esses alunos, mesmo sendo oficialmente brasileiros, ainda são considerados 'estrangeiros' e/ou 'bolivianos' no contexto escolar (pela direção, pela coordenação, por professores e alunos).
Outro detalhe importante é que esses alunos chamados/considerados 'estrangeiros' e/ou 'bolivianos', além de serem oficialmente brasileiros e terem influência familiar, econômica e/ou cultural da Bolívia, podem morar em diferentes locais, como no Brasil ou na Bolívia. Entretanto, quando moram na Bolívia, atravessam cotidianamente a fronteira em diferentes meios de transporte e vivem diariamente no que os estudiosos de fronteira chamam de "movimento pendular" (DELGADO, et al., 2013; PACOLA, 2021), porque moram na fronteira boliviana e estudam no Brasil (Corumbá/MS).
Portanto, considerando essa realidade local da fronteira Brasil-Bolívia e no tocante ao tratamento dos dados, enquanto categorização dos sujeitos, falar-se-á somente em discentes brasileiros e bolivianos, independentemente se o aluno é oficialmente estrangeiro ou se tem parentesco boliviano, bem como onde reside. Dessa forma, utiliza-se a categoria ‘boliviano’, entre aspas simples, para designar a expressão corriqueira que foi encontrada e que demonstra níveis de complexidades apuradas neste trabalho.
Na pesquisa, também surge a questão da 'dupla identidade' que, aqui, denominar-se-á de 'duplo cidadão'. Esta característica aparece quando os entrevistados utilizam diferentes argumentos para justificar certo hibridismo na identidade nacional, sendo mais comum quando dizem admitir que são as ‘duas coisas’, isto é, referem-se a si mesmos como brasileiros e bolivianos. Pensando de forma ampla e complexa, toda essa diversidade identitária demonstra um mosaico que permeia as relações humanas e sociais na fronteira, as quais tendem a ser tensionadas e/ou compartilhadas pelas pessoas daquele local.
Deste modo, verifica-se que existem três realidades quanto ao "tipo" de estudantes desta unidade escolar, que podem ser relacionadas aos discentes fronteiriços, particularmente quando é considerada a relação e etnia boliviana, resumindo-se em: a) alunos bolivianos oficialmente matriculados com documentos de estrangeiro, conforme pede a legislação brasileira; b) alunos com parentesco boliviano que moram na Bolívia, mas têm documentos brasileiros e fazem o movimento pendular para estudar no Brasil e c) alunos com parentesco boliviano que moram no Brasil, mas têm documentos brasileiros. Diante da realidade apresentada, entende-se que há quatro grupos de alunos: os brasileiros sem vínculo com parentes bolivianos; os bolivianos oficialmente estrangeiros (a) e os alunos com parentesco boliviano (b; c). A pesquisa utilizou como amostra e análise os diferentes grupos 'bolivianos', conforme descritos (a, b e c). Vale ressaltar que a escola estudada tinha uma população geral de 438 alunos nas turmas do 1.º ao 9.º ano do Ensino Fundamental, sendo que, quando agrupados por nacionalidade, aproximadamente 63% eram brasileiros e 37% seriam ‘bolivianos’.
Estabeleceu-se, diante deste quadro geral, o processo de seleção dos discentes para participarem da presente pesquisa, o qual levou em consideração os seguintes critérios de inclusão-exclusão: (i) alunos matriculados na escola selecionada e cujos responsáveis preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE); (ii) alunos que aceitarem participar da pesquisa, assinaram um Termo de Assentimento Livre Esclarecido (TALE), por meio da amostragem por conveniência e que estavam interessados em participar da pesquisa; (iii) alunos que não apresentavam problemas graves de comunicação, sobretudo, aqueles que pudessem impedir a comunicação com o pesquisador; alunos do 4.º ao 9.º ano do Ensino Fundamental que aceitaram participar da pesquisa por conveniência.
A partir dos critérios de inclusão-exclusão dos discentes, chegou-se a uma amostra da pesquisa de campo, conforme detalhes apresentados na tabela a seguir. Ressalta-se que ao se considerar a multiplicidade da amostra obtida, optou-se, enquanto tratamentos dos dados (categoria) dos sujeitos, em utilizar a seguinte nomenclatura: alunos/discentes ‘bolivianos’ (foco deste trabalho), sendo que, para este último grupo, agregaram-se os sujeitos bolivianos oficialmente estrangeiros (a), alunos brasileiros residentes na Bolívia que fazem o movimento pendular para estudar no Brasil (b) e alunos com parentesco boliviano, mas moram no Brasil (c). Por isso, a utilização das aspas quando se expressa no texto alunos/discentes ‘bolivianos’, termo gerado pela complexidade identitária da região de fronteiriça Brasil-Bolívia.
Item | Descrição | |
---|---|---|
Quantidade | Percentual | |
Aluno estrangeiro2 boliviano que mora no Brasil | 1 | 7.14% |
Alunos moradores no Brasil | 2 | 14,28% |
Alunos moradores na Bolívia | 11 | 78.57% |
Total | 14 | 100% |
Fonte: Dos autores.
Portanto, a referida pesquisa teve uma amostra total de 14 alunos entrevistados (10 meninos e 4 meninas), sendo 3 (21.42%) alunos moradores no Brasil e 11 (78,57%) alunos moradores na Bolívia. Posteriormente, o Quadro 1 demonstra que, dos 11 alunos que moram na Bolívia, 7 (63.63%) se consideram como "duplo cidadãos"3; 3 (27.27%) se consideram bolivianos, e, somente 1 (9.09%) se considera brasileiro. Já dos 3 alunos que moram no Brasil, 2 (66.66%) se consideram "duplo cidadão" e 1 (33.33%) se considera boliviana, sendo a única que seria oficialmente estrangeira (residente no Brasil).
Nesse viés, foram analisadas as falas dos sujeitos do estudo, a partir de entrevistas semiestruturadas. No intuito de preservá-los, as entrevistas foram realizadas numa sala de aula reservada, em horário diferente da aula de Educação Física escolar. As entrevistas foram gravadas em áudio e outros elementos, como gestos, expressão facial, entonação de voz, que foram anotados em um diário de campo - elementos que foram providenciais para uma interpretação minuciosa da análise das falas dos alunos envolvidos. A faixa etária dos estudantes entrevistados variou entre 9 a 15 anos de idade.
As entrevistas foram individuais, a partir do momento em que o aluno entrava na sala de aula, já era iniciada a entrevista, começava uma conversa informal e apresentação geral da proposta da pesquisa; na sequência, foram coletados os dados preliminares sobre o perfil (idade, local de moradia, onde nasceu...) do sujeito entrevistado. As perguntas foram abertas, de forma que o entrevistador perguntava e o aluno respondia oralmente. As entrevistas duraram, em média, 15 minutos cada uma. Considera-se que a entrevista semiestruturada auxiliou no entendimento da identidade desses sujeitos e da predileção pelos times de futebol, especialmente quando foram propostas questões geradoras, notadamente dentro de um grande e único eixo norteador, provocadoras e articuladas em: Você se considera brasileiro, boliviano e/ou as duas coisas, em termos da sua identidade nacional? Para qual time de futebol você torce? Qual sua preferência, time brasileiro ou boliviano? Por que torce para esse time (brasileiro ou boliviano)?
Entende-se que este eixo norteador e suas perguntas abertas requereram uma resposta construída e oralizada pelo respondente, com suas próprias palavras, numa forma mais ampla e contextualizada. Hill diz que “[...] a vantagem de usar perguntas abertas são as de que as mesmas podem fornecer mais informação, podem dar informações mais detalhadas e até mesmo inesperadas” (2005, p. 94).
Vale destacar que, apesar de alguns estudos (CARRANO, 2008; FERREIRA, 2013; NUNES, 2012) já demonstrarem lacunas em diferentes matérias curriculares, relacionadas aos aspectos da educação em regiões de fronteira, lança-se com esta pesquisa, a partir dos dados obtidos empiricamente, um novo olhar amplo e complexo, ao analisar os diferentes dados, tais como: o local de nascimento, a moradia, autodeclaração de identidade e a preferência pelo time de futebol como elementos socioculturais que envolvem a prática da disciplina Educação Física na região, principalmente diante de suas potencialidades e limitações.
Acreditou-se que a amostra selecionada trouxe, substancialmente, informações relevantes sobre o tema, sobretudo, diante da característica da pesquisa e o formato do estudo. Portanto, a partir da seleção realizada, o foco principal foi buscar ressonância e qualidade nas entrevistas realizadas, o que ajudou, posteriormente, nas interpretações e discussões, principalmente considerando o contexto escolar de fronteira em estudo (Brasil-Bolívia).
3 Resultados e discussão
Nesta parte do trabalho, descreveram-se os principais resultados encontrados, que norteiam os tópicos da autodeclaração sobre a identidade e preferência sobre o time de futebol, apresentados no Quadro 1, que busca condensar os dados encontrados na pesquisa de campo, possibilitando, na sequência, uma discussão sobre as informações encontradas para demonstrar as potencialidades e limitações do estudo, bem como dialogando com a literatura exposta.
Descrição / sexo |
País onde nasceu | Moradia Atual |
Como se considera em termos de identidade | Respostas às Perguntas Geradoras: |
---|---|---|---|---|
Aluno 1 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para o Brasil. Não torço para nenhum time da Bolívia. [...] Ahhh... espera. Sim, torço para o Bolívar." |
Aluno 2 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para Corinthians. [...] ah... o outro de lá é Blooming. Prefiro o Blooming porque vejo mais tática de bola assim." |
Aluno 3 | Brasil | Bolívia | Boliviano | Não sabe ou não respondeu. |
Aluna 4 | Brasil | Bolívia | Boliviana | "Não torço pra nenhum time, só para o Brasil." |
Aluno 5 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para o Flamengo e Corinthians. [...] Ahhh... lá tem dois times, gosto do Blooming." |
Aluna 6 | Brasil | Brasil | Dupla nacionalidade | "Torço para o Flamengo. Nem sei se tem time lá." |
Aluno 7 | Brasil | Bolívia | Boliviano | "Torço para o Barcelona. [...] Não torço para times da Bolívia; no Brasil, para o Flamengo." |
Aluno 8 | Brasil | Bolívia | Brasileiro | "Meu time é o Corinthians. Só tenho esse. Na Bolívia, não tenho time. E se tiver a seleção do Brasil e Bolívia jogando, torço para o Brasil. Até porque, os bolivianos não estão dando certo, pra torcer para eles, não dá." |
Aluna 9 | Bolívia | Brasil | Boliviana* | "Torço para o Atlético Mineiro. [...] Não sei porque [risos]. [...] Para seleção, só torço pra brasileira, não torço para a boliviana [risos]." |
Aluno 10 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para o São Paulo. E, para a seleção, torço para a boliviana. Apesar que lá, na Bolívia, torço também para o Oriente. Mas se jogar São Paulo e Oriente, não dá pra torcer." |
Aluna 11 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | Não sabe ou não respondeu. |
Aluna 12 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para o flamengo. Não torço para nenhum outro. [...] Ah... de lá [Bolívia] torço para Oriente Petrolero. [Club Deportivo Oriente Petrolero]. [...] Mas se jogar os dois. torço pro Flamengo [risos]. [...] Se jogar as duas seleções, brasileira e boliviana, eu acho que torço pra duas. Mas não sei, né? Tem que torcer pra um, né? Porque um vai ganhar [risos]." |
Aluno 13 | Brasil | Brasil | Dupla nacionalidade | "Torço para o São Paulo. [...] Não torço por nenhum time da Bolívia." |
Aluna 14 | Brasil | Bolívia | Dupla nacionalidade | "Torço para o Corinthians. [...] Na Bolívia, torço para o Blooming. Se jogar os dois, tanto faz, vou torcer para os dois. Mesma coisa com a seleção." |
Fonte: Dos autores.
Ressalte-se que, dos 14 alunos selecionados/entrevistados na pesquisa, 13 nasceram no Brasil. No entanto, apenas 3 moram em território brasileiro. Portanto, os demais (11) moram na Bolívia, como já explicado. Contudo, do ponto de vista cultural, nove se declararam como tendo uma “dupla nacionalidade”, sendo que 4 declararam-se “bolivianos”, e apenas 1, morador da Bolívia, declarou-se “brasileiro”.
Ao se analisar os dados gerais da Quadro 1, considerando-se os sujeitos que teriam algum vínculo com a Bolívia, percebe-se que, de imediato, nenhum deles diz torcer por um clube de futebol boliviano, especialmente quando foi feita a pergunta inicial sobre suas preferências “clubísticas” referentes aos times de futebol. Este aspecto já fica mais relativizado quando o sujeito (aluno) se declarou “duplo cidadão” (brasileiro e boliviano), apesar de apontar, inicialmente, o time brasileiro, também, o time boliviano não é totalmente ignorado, sendo que, em alguns casos, o entrevistado não consegue decidir para qual time irá torcer, caso ambos estejam em disputa. Algo perfeitamente compreendido, quando se observa os dizeres de Bauman (2005), retratando a fluidez das identidades e seus diversos contornos.
Já Rizzo et al., ao abordarem a identidade do sujeito numa perspectiva sociológica, apontam para a necessidade de “[...] futuras produções científicas que possam contribuir para difundir a temática sobre identidade no contexto formativo escolar, tais como investigações in loco em escolas, universidades e outras entidades” (2020, p. ?). [Falta indicar onde terminam as aspas e qual a página da citação.
Estudos relevantes já foram feitos para compreender os grupos sociais que se denominam “torcedores” (NASCIMENTO, 2007; TEIXEIRA, 2006). As análises dos significados sociológicos da adesão dessas crianças e jovens escolares às torcidas possibilitam dizer que a congruência geográfica não é um fator determinante para caracterizar a predileção desses atores sociais por equipes da sua nacionalidade. Já Damo (2002) destaca que torcer significa “pertencer” a algo, nesse caso, a um time de futebol. Outro ponto é o distanciamento de torcedores devido à violência, sendo objeto de significativas investigações, como destacam Soares et al. (2021). Também, a associação voluntária em torno de um time, via agremiação de pessoas, é algo a se refletir e estudar, notadamente enquanto produtora de identidade cultural (SOBRINHO et al., 2018).
Pode-se inferir que, diante destes dados, em regiões fronteiriças com contato internacional, existe um processo denominado “apropriação cultural”, como influências geopolíticas de um país sobre outro, modificando valores, hábitos de consumo e gerando mudanças no aspecto sociocultural, o que pode criar uma espécie de “padrão” a ser seguido pelo lado (país) considerado menos influente (CARRANO, 2008; NUNES, 2012).
O esporte é um fenômeno social e complexo (BOURDIEU, 1987). Assim, pode-se dizer que o futebol, enquanto manifestação esportiva, desempenha inúmeras funções sociais, culturais e simbólicas, evidenciando uma teia de significados para os alunos. Dentre elas, uma de grande importância se refere à sua capacidade de despertar sentimento de identificação cultural e simbólica entre os torcedores.
Destaque-se que um número pequeno (ALUNOS 3 e 11) não quis comentar sobre o tema, mesmo considerando a dinâmica da pesquisa, o que inclui a existência de um grupo de perguntas geradoras. Portanto, nem todos se sentem confortáveis para comentar e, talvez, o time de futebol não seja representativo, por exemplo, para caracterizar uma identidade. Outro aspecto interessante são as falas das meninas em comparação às dos meninos, sendo que, no momento de concluir sobre o tema, elas procuram “mediar” as opiniões, relativizando - ficam em “cima do muro”, como se diz popularmente , e até gargalhando sobre a situação. Isso pode demonstrar a ambivalência de se viver num espaço fronteiriço e/ou com desinteresse no tema futebolístico. Ambos assuntos poderiam ser mais bem explorados em outras investigações, neste caso, mais específicas e com controle do grupo.
Verificou-se que, nos resultados, todos os alunos torcem, acompanham e/ou demonstraram uma muito maior simpatia pelas equipes de futebol do Brasil. Contudo, também, ressalte-se que apenas alguns descrevem times bolivianos, quando são indagados pelo pesquisador, sobretudo, quando é feita a segunda pergunta: “E, na Bolívia, qual time?”. Lembrando que, inicialmente, o eixo norteador da pergunta é apenas: “Para qual time de futebol você torce?”, sem direcionamento à questão nacional (Brasil, Bolívia...). A questão da Bolívia só é introduzida quando o pesquisador percebe a lacuna de quem mora lá e não comenta sobre o tema. Isto é, o pesquisador introduz a provocação, considerando as perguntas preparadas dentro do eixo norteador. O resultado, de certa forma, evidencia um distanciamento com os times bolivianos e forte atração pelo futebol brasileiro entre os alunos da fronteira Brasil- Bolívia em estudo, retratando que a construção e o fortalecimento das identidades podem, também, ser analisadas, observando-se o fenômeno da preferência esportiva (BOURDIEU, 1987; SIMÓN, 2018; TÁBOAS-PAIS et al., 2015).
Nota-se que essa aproximação dos jovens pode ser muitas vezes motivada pela busca desenfreada por profissionalização do futebol brasileiro, somada aos sonhos de conquistar fama, dinheiro e “status de ídolo” (MORATO, et al., 2011) no meio futebolístico. Outro detalhe a se destacar é que, embora residam na Bolívia, existe um vínculo social forte entre os alunos com o futebol brasileiro, no sentido sociológico. Inclusive, não manifestam a predileção inicial e nem demonstram acompanhar os jogos dos clubes bolivianos. Portanto, aparentemente, demonstram acompanhar mais os clubes brasileiros de futebol, não tendo vínculos afeito-culturais-simbólicos com os clubes de onde moram, mostrando evidente predileção pelos clubes do Brasil. Desta forma, a questão da nacionalidade brasileira é muito mais intensa para eles, pelo menos no que se refere aos aspectos culturais e simbólicos presentes no futebol.
Apreciadores de esportes coletivos representam uma população que reúnem torcidas, fã-clubes de times e seleções nacionais de modalidades semelhantes e constituem uma das formas mais comuns e explícitas da sociedade moderna. Para um indivíduo, dizer que torce para este ou aquele time é algo comum, bem como assumir preferência ou repúdio por outros times (WACHELKE et al., 2008).
Ressalte-se que os alunos nascidos no Brasil e residentes na Bolívia se declararam “sentirem-se bolivianos” ou terem “dupla nacionalidade”. Logo, mesmo com todo esse contexto, os entrevistados mostraram um forte vínculo com o Brasil, apesar da influência boliviana, o que fica evidente ao declararem que torcem para um time brasileiro, confirmando certa “atração” pelo futebol brasileiro sobre essa região fronteiriça.
Percebe-se que, ao tentar compreender, na ótica do presente estudo, as relações das identidades nacionais de diversas origens (brasileiras e bolivianas) e a predileção dos alunos por alguma equipe de futebol, não se conseguiu esgotar os significados e as possibilidades da subjetividade representada por esses sujeitos. Os dados, embora sejam apenas amostrais e limitados devido ao número de sujeitos, já permitem refletir, mesmo que primariamente, sobre importantes questões sociológicas que podem ser objeto de investigações futuras mais detalhadas e profundadas - questões referentes a processos identitários em regiões de fronteiras internacionais, de culturas nacionais em contato, de processo de dominação de uma sobre outra.
4 Considerações finais
Espera-se que este trabalho aponte caminhos para compreender melhor a identidade de alunos e a preferência futebolística entre esses sujeitos que vivem numa região de fronteira com fluxos e interações internacionais. Assim, os achados podem colaborar para uma discussão sobre a formação do profissional de Educação Física, que atuará com temas socioculturais ligados à preferência esportiva em regiões de fronteira.
O objetivo primário deste trabalho foi investigar como “alunos fronteiriços” que estudam em uma mesma escola brasileira (Corumbá-MS), imersos em culturas diferentes, retratam sua identidade nacional e assumem uma predileção por times de futebol. No tocante ao time, acabou-se identificando que, além de os alunos assumirem, em sua maioria, uma preferência pelas equipes de futebol brasileiras, ainda manifestam certo repúdio por algumas equipes bolivianas. Já sobre a autodeclaração identitária e o time prioritário, percebe-se que a identidade cultural dos sujeitos que compõem a amostra do estudo é influenciada pela afiliação de grupos favoráveis ao que o futebol brasileiro proporciona, se comparado com o futebol boliviano. O processo de transformação dos costumes e das tradições é complexo no âmbito da modernidade; por isso, considerou-se que a manifestação futebolística se expressa como um conjunto de significados que influenciam a constituição das identidades dos alunos.
Por fim, não se pretende esgotar o assunto, nem procurar oferecer uma explicação singular para a predileção pelas equipes de futebol brasileiras entre os alunos denominados de “bolivianos” e/ou “estrangeiros” na região. De algum modo, apresentou-se testemunhos de um fenômeno sociocultural que manifesta a mutação de identidades ainda em curso, tão incerto quanto qualquer outro. Futuros estudos poderão investigar a influência dos professores de Educação Física Escolar no processo de discussão sobre diversidade intercultural, bem como a disseminação e/ou predileção por equipes de futebol entre os alunos de escolas fronteiriças.