O Kollektiv Orangotango é um coletivo formado por um círculo de geógrafos críticos e amigos que inicia seus trabalhos conjuntos no ano 2000. Como educadores populares, nos empenhamos por uma produção coletiva e horizontal de conhecimento. Como acadêmicos militantes, vinculamos intervenções práticas e reflexão teórica (HALDER, 2018). Nosso compromisso com a ajuda mútua e a solidariedade nos vincula a uma rede de ativistas e pesquisadores amigos, que, em amplas colaborações e processos de aprendizagem conjunta, se tornam parte do Kollektiv Orangotango.
A coautoria desse artigo é fruto dessa rede. Colocamos nosso trabalho a serviço de processos emancipatórios em centros juvenis e hortas comunitárias; em escolas e centros sociais autônomos; em praças e em salas de aula; em periferias urbanas e comunidades rurais. Durante a última década, de forma horizontal e colaborativa, participamos diretamente de processos de mapeamento coletivo e de mapeamento crítico, na América Latina e na Europa. Em paralelo, publicamos uma variedade de materiais educacionais e cartográficos autodidatas, incluindo manuais multilíngues, tutoriais em vídeo e uma coleção internacional de contra cartografias (KOLLEKTIV ORANGOTANGO+, 2018).
Embora às vezes cocriemos mapas críticos como resultados, estamos principalmente interessados no mapeamento como processo, e isto é o que será discutido neste artigo. O mapeamento coletivo, para nós, é um processo comum de reflexão territorial, conscientização e auto-organização. Um processo no qual se reflete sobre a própria relação com o território, no qual diferentes perspectivas intersubjetivas e diferentes tipos de conhecimento (por exemplo, conhecimentos cotidianos, tradicionais, incorporados e acadêmicos) podem se reunir e abrir espaços para a ação.
Para conseguir isto, acreditamos ser crucial integrar a noção de "sentir pensar" (ESCOBAR, 2020) - sentimento/pensamento - no que, com referência a Bell Hooks, pode ser chamado de "cartografia engajada", ou seja, baseada no diálogo envolvendo tanto o coração quanto a mente (HOOKS, 2010, p. 22). Isto é feito lançando uma perspectiva espacial sobre a relação dialética entre nós humanos e nosso meio ambiente, que pode ser alterada pelos humanos, o que por sua vez os altera. Desta forma, entendemos o mapeamento coletivo como o processo de alfabetização geográfica na vida cotidiana e nos espaços de ação - por meio do diálogo, mediado pelo mundo (FREIRE, 2000). Aprendemos continuamente com os co-mapeadores, à medida que adaptamos os meios e pressupostos de nossas práticas de mapeamento aos contextos sociais concretos em que nos encontramos.
Mapeando 'outros' mundos
Após anos de mapeamento com diferentes grupos em vários contextos, estamos determinados a experimentar e desenvolver nossa prática em direção a novas formas e novos métodos de mapeamento. Observamos que a maioria dos mapas críticos, incluindo alguns de nossa própria coautoria, reproduzem em grande parte as formas e formalidades da cartografia ocidental tradicional. Isto diz respeito à adesão a um sistema de coordenadas cartesianas, convenções de escala e projeções, assim como o uso de fronteiras estatais em bases cartográficas e como um meio de estruturar a própria análise e representação cartográfica, para citar apenas as mais óbvias. Os poucos casos em que as lições da cartografia crítica chegaram a um público um pouco mais amplo são, na maioria das vezes, apoiados por fortes imagens ou ícones alternativos, como mostra o famoso desenho de Joaquín Torres García, América Invertida, de forma mais ilustrativa. No entanto, a gama de 'outros' conhecimentos cartográficos ou imagens é bastante limitada. Por exemplo, a predileção mapuche pelo oriente - onde o sol nasce - como principal ponto cardeal (MANSILLA QUIÑONES; PEHUÉN; LETELIER, 2019) também carece de destaque no discurso cartográfico crítico.
Assim, nosso compromisso como educadores populares promovendo a cartografia crítica, nossa experiência em cartografia coletiva, bem como discussões com colegas cartógrafos críticos de diferentes origens, nos impulsionam a ir além dos atributos padrão da cartografia crítica. Isto implica o desenvolvimento de meios cartográficos que não apenas critiquem certos elementos da cartografia tradicional, mas abram a visão para novas cartografias baseadas em diferentes concepções de espaço, território e as relações que elas contêm.
Para que a cartografia desempenhe seu humilde papel na construção do "pluriverso " (REITER, 2018), ela deve abraçar múltiplas formas de conhecimento, incluindo afetivo, incorporado, oral, cognitivo e cultural (MOTTA, 2015, p. 178), e encontrar os meios apropriados para ressoar a voz desta pluralidade de conhecimentos. É uma questão de usar mapas e processos de mapeamento como uma das muitas ferramentas para desenvolver uma outra imaginação do mundo e nossas relações com ele e dentro dele. Como defende Ângela Massumi Katuta, em uma palestra sobre cartografia como ferramenta de emancipação (AGB PORTO ALEGRE, 2020), para atender à demanda de representar outras formas de estar no mundo, precisamos fazer uma ruptura com a linguagem visual da cartografia. De fato, argumenta Katuta, precisamos ampliar o conceito do que é um mapa, para incluir outras epistemologias ou cosmovisões e, assim, tornar a cartografia uma ferramenta para a criação de novos mundos.
Aproveitamos a oportunidade aqui neste artigo para refletir sobre alguns dos meios de elaboração de mapas e elaborar sobre como esperamos desenvolvê-los ainda mais em direção às práticas cartográficas decoloniais. Isto não é um modelo. Compartilhamos nossa experiência para abrir o diálogo, para aprender uns com os outros, para desaprender os resíduos tóxicos da cartografia colonial e corporativa e, em vez disso, para criar mapas que - para usar o famoso slogan zapatista - contenham muitos mundos.
Comecemos examinando dois dos elementos gráficos mais básicos que a maioria dos mapas contém: superfícies e linhas. Seguimos, para isso, a imagem moderna dominante dos mapas como mapas planos de papel. Antes de começarmos a mapear, há o vazio não mapeado, representado pela folha de papel branco. Em vez disso, começamos a usar várias folhas coloridas como bases de mapas, como já percebemos, isto implica outras imagens e imaginários do vazio do mapa. Em vez de representar dados simplificados e exclusivamente relevantes sobre um fundo " vazio " - branco - meditamos e discutimos com os co-cartógrafos, como eles (se) sentem a respeito dos aspectos que não serão exibidos neste mapa específico e decidimos qual a cor que melhor representa esta plenitude pluriversal, beleza e vitalidade (ESCOBAR, 2020).
A cartografia coletiva implica um entrelaçamento de experiências heterogêneas e muitas vezes divergentes em territórios compartilhados. Isto nos leva a questionar nossa reflexão como cartógrafos em busca de uma representação inequivocamente válida. Para visualizar a apreciação pela diferença e a convivência solidária, propomos aplicar a opacidade (GLISSANT,1997) como uma opção decolonial para visualizar a complexidade. Isto também implica o direito dos cartógrafos e usuários de se perderem no mapa, de confundirem e tirarem outros significados do mapa. Neste sentido, o mapa não é mais a ferramenta do estado ou do proprietário para "legibilidade e simplificação " (SCOTT, 1998), mas oferece traços que se tornam relevantes para os leitores, não indicando um caminho inequívoco a ser seguido, mas deixando pistas para realidades complexas e possíveis caminhos, espaços possíveis, ações possíveis. Nas oficinas propomos colorir áreas com cores pastel que permitem a sobreposição e mistura de diferentes tonalidades, para demonstrar a coexistência de muitos mundos sobrepostos.
As cores dos pastéis também são particularmente adequadas para embaçar as bordas de uma superfície colorida. De fato, "cartógrafos críticos" frequentemente batem no fenômeno da "armadilha territorial", como John Agnew a enquadrou em 1994 (AGNEW, 1994), reproduzindo irrefletidamente as fronteiras nacionais concebidas como espaços contêineres. Apesar das lutas de grupos populares ou comunidades indígenas por seu direito de definir seus próprios territórios, independentemente dos limites do estado ou da propriedade, argumentamos que levar a sério o perigo da armadilha territorial significa questionar a clara "linha de demarcação" como um elemento visual cartográfico como um todo. Ela tem uma lógica colonial de simplificação da divisão e da segregação. É, em suma, a lógica do mapeamento do estado, tão precisamente descrita por Scott em seu trabalho seminal Seeing like a State (SCOTT, 1998).
Por mais valiosa que a demarcação de certos territórios possa ser para as lutas emancipatórias (ZIBECHI, 2011; BARTHOLL, 2018), ao representar visualmente estes territórios, sugerimos evitar a linha brusca sempre que possível, a fim de fazer justiça à interconexão rizômica - múltipla, dinâmica, heterogênea - dos territórios. Assim, os limites embaçados e sobrepostos entre os territórios de cor pastel de nossos mapas podem representar o que (ESCOBAR ,2018) chamou de "zonas de contato e pontos comuns parciais". Isto converge com o que podemos aprender da ontologia territorial Mapuche para a qual a ideia de fronteira não existe.
O conceito Mapuche de Xawümen, utilizado para identificar pontos e linhas de demarcação territorial, baseia-se na ideia de reunir, unificar e unir partes (MANSILLA QUIÑONES; PEHUÉN; LETELIER, 2019). Compreender Xawümen como um conceito territorial de união e unificação abre uma nova perspectiva sobre o existente e, em última instância, oferece a possibilidade de construir uma alteridade positiva, permitindo que as pessoas se coloquem no lugar umas das outras, promovam um diálogo respeitoso e criem um encontro de mundos.
A contracartografia, comprometida com a criação de relações entre diferentes experiências (territoriais), identidades e imaginários, deve se esforçar para desenvolver novas expressões gráficas para representar zonas de fronteira como zonas de encontro; neste sentido, ao contrário da linha que divide e encerra, encorajamos o uso extensivo de linhas - múltiplas, coloridas, onduladas, tortas, interconectadas e entrelaçadas - como representações de conexões, relações, dinâmicas, inspiradas pela arqueologia antropológica da linha de INGOLD (2008).
No entanto, transcendendo o papel como matéria prima óbvia para a cartografia, a exigência de encontrar expressões apropriadas para abraçar múltiplas formas de conhecimento nos processos de mapeamento também nos levou a refletir sobre a materialidade dos mapas que produzimos coletivamente e, consequentemente, as percepções e estímulos sensuais que eles implicam.
Como superar o papel dominante do visual e envolver outras sensações no mapeamento? Algumas possíveis respostas a esta pergunta derivam da utilização de novos materiais, que surgiram, quando mapeamos em lugares lotados, em espaços públicos ou com grandes grupos de jovens: em vez de usar papel tão frágil como matéria-prima, começamos a trabalhar com materiais mais duráveis, como papelão ou têxteis. Isto nos levou a refletir sobre como o caráter material de um mapa, ao abordar outros sentidos e conotações além dos visuais, pode ser mais adequado para transmitir certas camadas de significado que os mapas convencionais de papel dificilmente abordam (OLMEDO, 2018).
Assim, uma das primeiras perguntas a fazer, ao discutir coletivamente como mapear um tópico de interesse comum, poderia ser: "Como este tópico nos faz sentir? Se este sentimento tivesse um corpo material, de que seria feito - madeira, cimento, papel, tecido...? "John Krygier e muitos outros enfatizaram o potencial de integração do áudio na cartografia digital (KRYGIER, 1994; EDLER et al., 2019). Mas por que não integrar o som na cartografia analógica coletiva também? E, ao invés do audiovisual, não somos capazes de produzir mapas somente de áudio?
Na tentativa de ampliar ainda a variedade de percepções sensoriais em nosso repertório cartográfico, trabalhamos com mapas sonoros que permitem aos grupos explorar e desfrutar de paisagens sonoras, possivelmente sem o visual. Como os smartphones funcionam como dispositivos de gravação e reprodução, um mapa de som pode ser construído sem a necessidade de equipamentos adicionais. Dependendo do tópico e da finalidade dos mapas, os mapeadores podem gravar sons, produzidos com seus corpos ou encontrados durante as visitas ao local, ou encontrar áudio adequado em arquivos de som na Internet. Tendo os sons relevantes nos dispositivos, estes podem ser distribuídos ao redor do mapa - por exemplo, o piso da sala em que o mapeamento é feito. As coordenadas podem ser referenciadas geograficamente, mas também podem se referir a campos temáticos ou emocionais. Agora os co-mapeadores podem descobrir o mapa vagando sobre ele. Se o grupo estiver em um lugar seguro, isto pode ser feito de olhos fechados. Em vez de organizar o áudio nos mapas, os mapas também podem ser o ponto de partida para as narrativas da história oral. O campo dos métodos possíveis se abre ainda mais quando, além dos mapas sonoros, se inclui a combinação de cartografia coletiva e a criação de vídeos animados (D’ONOFRIO; COGNI; SCHWEIZER, 2019).
Em particular, o mapeamento com crianças e jovens nos animou, nos encorajou a experimentar outras técnicas e criar expressões cartográficas. Ao rompermos com a noção de escala métrica e mapas como objetos estáticos, trabalhamos com mapas ilustrados, onde os participantes podem mover elementos para criar diferentes encontros e constelações. Como resultado, o mapa se torna um território de confronto lúdico coletivo, inspirados no Teatro do Oprimido (BOAL,2014) combinamos a cartografia com elementos performativos. Desta combinação de mapeamento lúdico com métodos teatrais, construímos coletivamente mapas à escala, de modo que mapeadores e transeuntes - transformando-se em mapeadores espontâneos - possam se mover no mapa e mover o mapa: Encontro, discussão, abraços no mapa [Fig. 1].
Outras iniciativas mais valiosas para integrar nossos corpos em nossos mapas e, além disso, integrar o "corpo-território" nas lutas territoriais foram formuladas por cartógrafas feministas latino-americanas nos últimos anos. As práticas cartográficas descritas neste artigo podem ser acessadas no manual Mapeando el Cuerpo-Territorio (COLECTIVO MIRADAS CRÍTICAS DEL TERRITORIO DESDE EL FEMINISMO, 2017) ou no caderno Los Feminismos como Práctica Espacial (COLECTIVO GEOGRAFÍA CRÍTICA, 2018). Estas práticas baseiam-se na suposição de que os próprios territórios do corpo são, de fato, o primeiro território a ser reapropriado através do mapeamento do corpo.
Desde nossos territórios corporais até nossos ambientes cotidianos, o mapeamento é uma ferramenta valiosa para repensarmos a nós mesmos e nossas diferentes formas de estar no mundo. No entanto, é o mundo - o global - que, como objeto de mapeamento, ganha atenção especial, se o mapeamento for uma das muitas ferramentas para expressar uma ética global decolonial emergente (DUNFORD, 2017). A cartografia crítica, se empenhada em fornecer ferramentas para uma pedagogia e política decolonial, não deve abandonar a escala do planetário (DE LISSOVOY, 2010). Quais elementos gráficos e estratégias estéticas a cartografia pode oferecer quando se trata de visualizar um mundo no qual muitos mundos, e muitas formas de estar no mundo, se encaixam? Como podemos criar representações cartográficas de mundos que enfatizam a convivência em vez da distância, o encontro em vez da separação, e a complexidade em vez da inequivocidade? A primeira parte da resposta é simples: nunca mais nenhuma cartografia - independentemente de sua base epistemológica ou ideológica - será capaz de ditar uma única noção do mundo. Mas podemos ao menos oferecer uma base cartográfica sobre a qual os pluriversais sujeitos existentes e surgentes podem se experimentar? No decorrer do projeto Not-an-Atlas (ver abaixo), concordamos que tal base cartográfica deveria expressar uma solidariedade global baseada em princípios de coexistência não-hierárquica. A aspiração à não-dominância, concluímos, deve se manifestar através da eliminação de noções de cima para baixo. Enquanto as noções de solidariedade e parentesco podem ser representadas por 'fechar fileiras', movendo os elementos do mapa - no caso dos mapas mundiais, os continentes - juntos, de uma forma que sugere proximidade igual entre todos os elementos, sem nenhuma ordem significativa. Finalmente, questionamos a perspectiva inerente de cima para baixo dos mapas do mundo tradicional, o que implica uma abordagem abstrata, mental e totalizante (MORRIS; VOYCE, 2015) - "uma visão do mundo como visto por aqueles que o governam - um mundo de cima", como (ESCOBAR, 2018) o coloca. Para melhor expressar nosso compromisso com a perspectiva de baixo para cima e, além disso, para fornecer uma base cartográfica sobre a qual visualizar formas pluriversais de "estar no mundo", por que não representar as silhuetas do continente no mapa do mundo como vistas de dentro do mundo, ou seja, "de cabeça para baixo", quando nos referimos às representações convencionais dos mapas do mundo? [Fig. 2].
Do mapeamento coletivo aos encontros globais
De fato, além de nosso engajamento no mapeamento crítico coletivo em vários contextos locais, nos engajamos na contracartografia em escala global, ao iniciarmos o projeto Not-an-Atlas em 2015. Aproveitando nossas experiências, nossas redes de ativistas e amizades com cartógrafos críticos na América Latina e Europa, convidamos este círculo a participar do projeto, que foi inicialmente direcionado para a publicação do livro This Is Not an Atlas - A Global Collection of Counter-Cartographies (KOLLEKTIV ORANGOTANGO+, 2018), e foi muito além do livro. O Not-an-Atlas é em si uma tentativa de representar os muitos mundos de cartógrafos críticos em todo o mundo. Por fim, consideramos este livro de duas formas que estão interligadas; como um guia, que aponta para muitos mundos possíveis, e como um convite para criar outros: no papel, on-line e nos diferentes territórios nos quais estes mapeamentos ocorrem.
Quando refletimos sobre os percursos que Not-an-Atlas vem construindo desde sua publicação, as imagens e emoções que nos vêm à mente estão em sua maioria relacionadas aos encontros: os diferentes coorganizadores e participantes dos eventos e processos de mapeamento na Europa e América Latina; os debates intensos, mas sempre apreciativos e enriquecedores; os novos contatos, muitos dos quais nos fizeram sentir conectados a uma rede de almas gêmeas com as quais compartilhamos uma paixão e uma prática comum (HALDER; MICHEL; SCHWEIZER, 2020). Isto nos faz pensar e sentir que o Not-an-Atlas é, de fato, uma forma de relacionar e criar um projeto comum dentro e através da diferença: uma cartografia pluriversal.
Hoje o Not-an-Atlas não é mais uma "coleção global", mas uma rede global de contracartografia; o "global" aqui se entende não como uma única razão cartográfica globalizada e universalmente aplicada, mas como uma condição que diferentes atores com diferentes razões e práticas cartográficas compartilham, o que os relaciona através da diferença, como teorizado no entendimento de Edouard Glissant sobre a globalidade (GLISSANT, 1997). Ao compartilhar experiências, métodos e materiais, nos engajamos em um processo de aprendizado coletivo baseado no diálogo contínuo de diferentes cartografias, para a criação do conhecimento cartográfico como relacionalidade (VAZQUEZ, 2017).
A metáfora do tecido de Glissant é particularmente apropriada para visualizar a convergência destas relações, pois a materialidade do tecido implica uma qualidade acolhedora e carinhosa. De fato, o contínuo compartilhamento e a co-criação entre cartógrafos ativistas amigáveis envolve mais do que um simples intercâmbio intelectual: é uma oportunidade para praticar o cuidado e a solidariedade. Isto ficou particularmente claro para nós no contexto da crise global que nos afetou todos em 2020 e ainda permanece de forma distinta nos mais diversos países e cidades.
Mapeamento online e solidariedade pandêmica
Pouco mais de um ano após a publicação do livro, o que mais nos agradou na rede Not-an-Atlas foi encontrar pessoalmente os companheiros cartógrafos, conhecendo no local as realidades e territórios a partir dos quais suas respectivas práticas evoluíram. No início da pandemia de Covid-19 em 2020, esta rede assumiu um significado renovado como uma plataforma para colaboração remota e ajuda mútua. Em quarentena, nos perguntamos como utilizar o mapeamento como ferramenta para mobilizar as comunidades e organizar a solidariedade diante da crise sanitária, econômica e política. E de fato, colegas cartógrafos da rede Not-an-Atlas, também em quarentena em suas respectivas localidades, logo vieram até nós com solicitações muito concretas. Como resultado, ao longo do ano 2020, nos engajamos com ativistas e cartógrafos militantes de vários contextos locais em uma série de processos colaborativos, todos engajados no mapeamento coletivo online para organizar ajuda mútua e resistência comunitária no contexto da pandemia.
Os mapas resultantes representam injustiças e possibilitam visualizar formas de resistência - como no caso do Mapa Global de Moradia durante a Pandemia, produzido pelo Anti-Eviction Mapping Project (AEMP) em colaboração com ativistas de moradia, cartógrafos e ativistas de tecnologia [Fig. 3].
Ou, organizam ações de solidariedade e facilitam o acesso a redes de ajuda mútua - como no caso do mapa Solidariedade e Assistência Social (Covid-19) - RS, feito por geógrafos ativistas da UFRGS no Litoral Norte do rio Grande do Sul. Neste sentido, a rede Not-an-Atlas tem atuado como uma plataforma para o intercâmbio de conhecimento, experiência e recursos de mapeamento de ação direta, apoiando as lutas militantes nos territórios. Por outro lado, este esforço nos mostrou quanto ainda há de trabalho a ser feito no campo do mapeamento digital, a fim de criar infraestruturas digitais não comerciais, seguras, livres e de código aberto, que atendam às necessidades dos ativistas.
Para nós, surpreendentemente, estas colaborações remotas não pareciam ser tão diferentes dos processos de mapeamento coletivo analógico. Assim como nas colaborações presenciais, a base comum sobre a qual estes processos foram construídos foi uma atmosfera de grande apreço. Reuniões regulares e muitas vezes prolongadas tornaram-se espaços não apenas para produzir uma ferramenta tática para lutas compartilhadas, mas também para compartilhar experiências individuais - assim como medos, raivas e esperanças. Eles se mostraram particularmente estimulantes, pois proporcionaram espaço para a criação de uma narrativa comum do momento de crise e resistência que temos vivido, e que ainda estamos vivendo. Em resumo, estes esforços coletivos são momentos de luta colaborativa, mas - embora remotos - também de cuidado e alegria.
Cartografia engajada on-line?
Mas será que os mapas on-line que surgem desses momentos conseguem ilustrar a afinidade e a esperança implícita nesses encontros inesperados? Embora úteis em função e conteúdo, sua forma e estética são bastante convencionais - resquícios de uma cartografia do mundo antigo. Deste ponto de vista, o sopro de novos mundos (ROY, 2016, p. 211) é dificilmente perceptível nestes mapas, embora pudesse ser claramente sentido no processo de mapeamento coletivo a partir do qual eles foram criados. Como é que a brisa revigorante da transformação não passou do processo para a visualização?
Embora, como mencionado acima, para o mapeamento analógico temos 'outros' formatos cartográficos e estéticos disponíveis que permitem isto, infelizmente, este ainda não é o caso para o mapeamento online. Como Morris e Voyce argumentam, as imagens de satélite parecem ter intensificado a lacuna entre a cartografia top-down e bottom-up, entre representações supostamente racionais, objetivas e científicas por um lado, e representações experienciais, fenomenológicas e humanistas pelo outro (MORRIS; VOYCE, 2015). Como ativistas e educadores populares, somos impulsionados a desenvolver formatos on-line de mapeamento coletivo orientado ao processo.
Como nós mesmos não estamos familiarizados com ferramentas avançadas de mapeamento digital, nos últimos dois anos, de forma bastante inconsciente, desenvolvemos formatos para mapeamento coletivo que timidamente tentam complementar nossas ambições de enriquecer a caixa de ferramentas para o projeto de mapas coletivos em formatos on-line.
Particularmente valiosos a este respeito têm sido os processos cartográficos que temos organizado em colaboração com ativistas, artistas e amigos cartógrafos - as geógrafas feministas mexicanas Geobrujas e a artista militante e pesquisadora Cristina Ribas (RIBAS, 2020). Este intercâmbio resultou, entre outras coisas, em colaborações no projeto de mapeamento SOS Colômbia e reflexões compartilhadas sobre a cartografia na pandemia, bem como no trabalho sobre o conceito e métodos de uma “hidrocartografia” (RIBAS; SCHWEIZER, 2021; SCHWEIZER; RIBAS, 2021ª, 2021b).
Como no mapeamento analógico, percebemos que a estrita adesão ao espaço cartesiano não era útil para muitas das configurações cartográficas com as quais trabalhamos. Consequentemente, em vez de trabalhar com ferramentas de mapeamento georreferenciadas, como a Open Street Map (OSM), começamos a trabalhar com ferramentas de quadro branco on-line. Aqui, os tiles de mapas exportados podem servir de base para o mapa, assim como fundos monocromáticos ou arquivos de imagem. Quando se trata de projetar o mapa, assim como ocorre com o mapeamento coletivo em papel, uma combinação de elementos de desenho à mão livre e colagem oferece uma ampla gama de possibilidades criativas, para discutir, por exemplo, percepções subjetivas e emoções localizadas em relação a territórios compartilhados [Fig. 4] ou formas com que os co-mapeadores desejem promover mudanças sociais, políticas e ambientais [Fig. 5].
O fácil acesso a imagens on-line e o simples manuseio de gráficos vetoriais permitem novas experiências, sem mencionar as possibilidades de incorporar conteúdo de áudio e vídeo em mapas. Entretanto, apesar dessas vantagens, as possibilidades de projetar ferramentas que possam ser utilizadas em grupos sem habilidades de codificação são limitadas. Isto é especialmente verdade para as poucas soluções gratuitas e de código aberto que ficam muito aquém de seus equivalentes corporativos neste campo.
A combinação de momentos coletivos on-line e individuais off-line encoraja os co-cartógrafos a compartilhar experiências subjetivas e pessoais no mapa. Por exemplo, estimulamos exercícios de mapeamento corporal que os co-mapeadores fariam por si mesmos no mapa enquanto ouviam nossa voz-guia. Posteriormente, eles compartilharam seus mapas individuais no quadro branco on-line [Fig. 6], onde eles mapearam coletivamente conexões, experiências comuns e possíveis estratégias de apoio.
Estas experiências nos fazem sentir que mesmo os processos de mapeamento on-line podem ser ferramentas para cartografia engajada, integrando mente, coração e múltiplos sentidos, para construir grupos de afinidade e representar a solidariedade no mapa. Será, portanto, nosso objetivo permanente combinar insights dos processos de mapeamento analógico e digital, para inventar novas linguagens cartográficas, adequadas para o mapeamento coletivo de mundos possíveis.