Preâmbulo
A Lei n. 13.415/2017, que instituiu no Brasil a reforma educacional conhecida como “Novo Ensino Médio” (NEM), estabeleceu que as redes de ensino devem ofertar pelo menos 1.000 horas anuais de carga horária para o Ensino Médio a partir do ano de 2022. Este seria o primeiro passo de um movimento de ampliação progressiva da carga horária do Ensino Médio para 1.400 horas anuais (BRASIL, 2017, Art. 1º), o equivalente a uma escola com jornada de sete horas diárias. Disso decorre que a reforma do Ensino Médio, para além da reforma curricular, consiste ela própria numa política de expansão do Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI) no país.
A obrigatoriedade legal de ofertar uma carga horária anual maior no Ensino Médio impacta particularmente os/as estudantes do período noturno, cuja jornada escolar é historicamente mais curta a dos turnos matutino e vespertino. Considerando que a implementação do NEM no estado de São Paulo, segundo o próprio governo paulista, está muito mais avançada que nos demais estados do país, São Paulo também é o estado onde os primeiros impactos em larga escala da reforma começam a ser sentidos (CÁSSIO & GOULART, 2022a; REPU, 2022).
A partir de uma análise objetiva, abarcando a regulamentação estadual e dados relativos à expansão da carga horária no NEM da rede estadual paulista em 2022, este artigo discute em que medida a “expansão” do tempo dos/as estudantes na escola - uma das grandes promessas da reforma do Ensino Médio desde 2016 - aprofunda desigualdades escolares no estado de São Paulo em vez de melhorar as condições de escolarização para quem mais precisa.
Dados e fontes
As análises foram produzidas a partir da leitura dos documentos regulamentadores da expansão da carga horária no Ensino Médio paulista produzidos pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP) e de dados quantitativos relativos à expansão da carga horária no Ensino Médio por escola, por turno e por modalidade (a distância, presencial ou semipresencial) na rede estadual paulista.
Os dados foram obtidos da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (Seduc-SP) via solicitação com base na Lei de Acesso à Informação (LAI) (Lei n. 12.527/2011). O Índice de Nível Socioeconômico (INSE) por escola1, utilizado como variável auxiliar nas análises, foi obtido do portal de Dados Abertos da Seduc-SP, e se refere aos questionários socioeconômicos do Sistema de Avaliação do Rendimento Escolar do Estado de São Paulo (Saresp) de 2018.
O detalhamento sobre a expansão da carga horária incluiu 2.371 escolas, estando fora desta conta as escolas do Programa Ensino Integral (PEI), que já possuem jornadas escolares ampliadas de sete e nove horas diárias no ensino médio (carga horária total de 4.200 e 5.400 horas, respectivamente). Além da análise quantitativa, foram consultados/as profissionais da educação atuantes em 28 escolas com oferta presencial da jornada escolar expandida no Ensino Médio, com vistas à obtenção de detalhes operacionais dessa expansão.
A regulamentação da expansão em São Paulo
Na rede estadual de São Paulo, a carga horária total para o Ensino Médio diurno regular (turnos matutino e vespertino) até o ano de 2021 era de 3.150 horas (jornada de sete aulas diárias de 45 minutos), contra uma carga horária total de 2.250 horas para o período noturno (jornada de cinco aulas diárias). Essa diferença de 40% deveria diminuir a partir da implementação do NEM no estado.
A mudança da carga horária na rede estadual paulista foi regulamentada por meio da Deliberação n. 186/2020 do Conselho Estadual de Educação de São Paulo (CEE-SP), que determinou uma expansão da carga total no Ensino Médio para um mínimo de 3.000 horas e - ecoando o texto da Lei n. 13.415/2017 - uma ampliação progressiva para um mínimo de 1.400 horas anuais em “ritmo a ser definido no Plano Estadual de Educação” (SÃO PAULO, 2020, p. 8). Já para o Ensino Médio noturno,
deve ser adotada organização curricular e metodológica adequada às condições dos estudantes, respeitado o mínimo de 200 (duzentos) dias letivos e 800 (oitocentas) horas anuais, podendo a duração do curso ser ampliada para mais de 3 (três) anos, com menor carga horária diária e anual, garantido o total mínimo de 2.400 (duas mil e quatrocentas) horas até 2021 e de 3.000 (três mil) horas a partir do ano letivo de 2022. (SÃO PAULO, 2020, p. 8)
A norma estadual, portanto, admite a possibilidade de que a garantia das 3.000 horas totais venha a exigir um Ensino Médio noturno com duração maior que os usuais três anos. Além disso, menciona uma abstrata “organização curricular e metodológica adequada às condições dos estudantes” do período noturno, cujos desdobramentos são apenas sugeridos no texto da norma. Um dos parágrafos do Artigo 21 da Deliberação CEE-SP n. 186/2020, por exemplo, dispõe que
§ 6º Respeitada a opção dos estudantes, o Ensino Médio noturno e a educação de jovens e adultos devem ser preferencialmente integrados à formação técnica profissional. (SÃO PAULO, 2020, p. 9)
Já o Artigo 13, que trata da oferta dos itinerários formativos pelas escolas, menciona no seu parágrafo 2º que
As parcerias devem ser firmadas mediante a elaboração de planos e projetos em consonância com a proposta pedagógica da escola que deseja firmar a parceria, com as instituições a saber:
I - Estabelecimentos de ensino e cursos presenciais de ensino médio e de educação profissional de nível técnico, autorizados nos termos da Deliberação CEE 138/2016;
II - Instituições de ensino que mantêm cursos e programas de educação a distância na educação profissional técnica de nível médio, no sistema de ensino do Estado de São Paulo, nos termos da Deliberação CEE 191/2020; (SÃO PAULO, 2020, p. 7)
A leitura conjunta desses dispositivos permite concluir que aquela genérica “organização curricular e metodológica adequada às condições dos estudantes” do período noturno - isto é, os/as estudantes trabalhadores/as que sempre tiveram condições piores de escolarização na rede pública - incluirá a adoção massiva de programas de ensino a distância. No texto da norma, todavia, esse “detalhe” é explicitado apenas para o Ensino Médio na modalidade de Educação de Jovens e Adultos (EJA).2
Com relação às formas de oferta e organização do NEM na rede estadual, o Artigo 21 da Deliberação CEE-SP n. 186/2020 ainda estabelece que
§ 7º Atividades realizadas pelos estudantes como aulas, cursos, estágios, oficinas, trabalho supervisionado, atividades de extensão, pesquisa de campo, iniciação científica, aprendizagem profissional, participação em trabalhos voluntários e demais atividades com intencionalidade pedagógica e orientadas pelos docentes podem ser contabilizadas como certificações complementares e constar do histórico escolar do estudante. (SÃO PAULO, 2020, p. 10)
Aqui, mais uma vez, o texto normativo não esclarece se a contabilização de tais atividades “como certificações complementares” no histórico dos/as estudantes significa que elas poderão substituir as aulas regulares como parte da carga horária dos/as estudantes.
Embora a norma estadual que regula a contabilização da carga horária do NEM seja tão inespecífica com relação às formas da expansão da carga no período noturno, o longo relatório que acompanha o texto da Deliberação n. 186/2020 - a Indicação CEE-SP n. 198/2020 - é bastante explícito, antecipando as ações da Seduc-SP no ano de 2022.
Justificativas oficiais e as pesquisas sobre o ensino médio paulista
Ao contrário da Deliberação CEE-SP n. 186/2020, que estabeleceu a expansão da carga horária do Ensino Médio paulista mas não detalhou as formas como isso deveria se dar na rede estadual, a Indicação CEE-SP n. 198/2020 elencou uma série de possíveis medidas para o cumprimento da nova carga horária, especialmente no período noturno: 1) acréscimo de até 40 dias letivos; 2) aumento na duração do Ensino Médio para mais de três anos; 3) atividades a distância em até 30% da carga horária total; 4) utilização de metodologias diferenciadas, com aproveitamento de núcleos de estudos, criação artística, projetos, oficinas, dentre outros; 5) aulas aos sábados (SÃO PAULO, 2020, p. 44-45).
Por duas vezes no texto da Indicação n. 198/2020, o CEE-SP reitera que não se pode mais “organizar o turno noturno como uma espécie de cópia do que ocorre no turno diurno” (SÃO PAULO, 2020, p. 19; 45). O desafio, segundo o texto, “é assegurar aos jovens que precisam estudar no período noturno uma escola que faça sentido para eles, a fim de engajá-los e prepará-los para definir e concretizar seu projeto de vida, incluindo o mercado de trabalho” (p. 19).
Esse princípio é traduzido na Deliberação CEE-SP n. 186/2020 da seguinte forma: “Respeitada a opção dos estudantes, o Ensino Médio noturno e a Educação de Jovens e Adultos devem ser preferencialmente integrados à formação técnica profissional”. Como vimos, porém, a norma não estabelece as formas pelas quais essa integração “preferencial” deveria ocorrer. A Indicação CEE-SP n. 198/2020, por seu turno, dá a resposta:
Essa formação técnica e profissional poderá ser realizada na própria instituição ou em parceria com outras instituições autorizadas nos termos da Deliberação CEE n. 138/2016. A instituição poderá estabelecer parceria com outras instituições autorizadas, nos termos da Deliberação CEE n. 191/2020, para a realização de atividades a distância, que podem contemplar, da carga horária total, até 20% (vinte por cento) para cursos diurnos e 30% (trinta por cento) para os cursos noturnos. Note-se que esse percentual pode incidir tanto na formação geral básica quanto, preferencialmente, nos itinerários formativos. (SÃO PAULO, 2020, p. 15)
Neste ponto, o relatório do CEE-SP se apoia largamente na Resolução CNE/CEB n. 3/2018, que estabeleceu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio da Lei n. 13.415.2017, mas pondera que as instituições que adotarem as atividades a distância.
deverão registrar, em sua Proposta Pedagógica, a adequação, ao atendimento aos estudantes, do suporte tecnológico a ser adotado e, além disso, as possibilidades concretas dos estudantes quanto à infraestrutura básica para acompanhá-las, com base em suas declarações. Para a ampliação da porcentagem de atividades a distância, a instituição deverá encaminhar solicitação à respectiva Diretoria de Ensino, comprovadas a adequação do suporte tecnológico e o acesso dos estudantes à infraestrutura necessária para o acompanhamento das atividades propostas. (...)
Nessa direção, é oportuno considerar as possibilidades de ensino híbrido, que lance mão dos recursos convencionais fortalecidos e dinamizados por tudo o que se puder extrair da tecnologia. (SÃO PAULO, 2020, p. 45)
Assim, dentre as diversas possibilidades de ampliação da carga horária do período noturno, a Indicação CEE-SP n. 198/2020 elegeu apenas duas como objeto de detalhamento: a oferta de ensino a distância e a validação de atividades externas à escola como parte da carga horária regular. Essa “diversificação e (...) ampliação das ferramentas de ensino”, discorrem os relatores do CEE-SP, para “além de potencializar a competente atuação dos docentes, poderá contribuir para conferir aos estudantes o papel de protagonista de sua aprendizagem, rompendo com os limites do espaço da sala de aula” (SÃO PAULO, 2020, p. 45).
À primeira vista, a expansão da carga horária, uma das três grandes promessas da reforma do Ensino Médio aos/às estudantes do país (CÁSSIO & GOULART, 2022b), seria uma medida equalizadora das condições de escolarização dos/as estudantes dos períodos diurno e noturno. No entanto, a leitura da Resolução CNE/CEB n. 3/2018 e de sua tradução no estado de São Paulo (2020) mostra que a “expansão” da carga horária é - pelo contrário - um pretexto para a naturalização de condições desiguais de escolarização para estudantes com condições historicamente desiguais. Isso dá razão a muitas das críticas aos pressupostos da reforma elaboradas por especialistas em educação desde a edição da Medida Provisória n. 746/2016 (da qual teve origem a Lei n. 13.415/2017) (FERRETI & SILVA, 2017; SILVA, 2018; VÁRIAS ENTIDADES, 2022).
A fim de justificar a necessidade de uma “organização diferenciada” do Ensino Médio noturno, o CEE-SP apresenta uma série histórica das matrículas no Ensino Médio por turno na rede estadual paulista (Figura 1). “A despeito de mudanças mais significativas em alguns anos”, os relatores do CEE-SP consideram que, “no período de 1995 a 2019, o número total de matrículas no Ensino Médio praticamente não se alterou” (SÃO PAULO, 2020, p. 19).
Fonte: Elaboração própria, com base nas tabelas apresentadas na Indicação CEE-SP n. 198/2020 (SEDUC-SP, 2020, p. 18).
A Figura 1 revela, no entanto, uma tendência geral de diminuição no número total de matrículas no Ensino Médio paulista a números próximos de 1995, o que não coaduna com as projeções demográficas para a faixa etária de 15 a 17 anos no período coberto pela série histórica (CÁSSIO et al., 2016; GIROTTO et al., 2022). Isto é, a despeito das projeções demográficas, existe um fenômeno massivo de evasão no Ensino Médio da rede estadual paulista; e, em particular, no período noturno.
O CEE-SP toma como “um aspecto positivo” a migração significativa de matrículas no Ensino Médio noturno para o diurno registrada nos últimos anos, sublinhando que “os resultados de desempenho escolar são mais favoráveis no turno diurno” (SÃO PAULO, 2020, p. 19). O documento admite que são “muitas as variáveis que permitem explicar essa diferença no desempenho”, mas afirma que
é necessário ter um diagnóstico preciso a respeito de alunos que verdadeiramente precisam estudar no período noturno, sob risco de terem que abandonar seus estudos, caso não lhes seja assegurada a possibilidade de continuidade dos estudos ou no ensino regular ou em outra modalidade que lhes seja mais adequada. (SÃO PAULO, 2020, p. 19)
A diminuição do número de matrículas no Ensino Médio noturno não é um fenômeno fortuito, pois sistematicamente induzido por políticas de fechamento de classes noturnas na rede estadual paulista ao longo dos últimos 15 anos. Herman Voorwald, secretário da educação do estado de São Paulo entre 2011 e 2015, é um dos que insistiram na importância de encolher o Ensino Médio noturno como projeto de longo prazo:
Os resultados de avaliações demonstram que os estudantes do período noturno têm um melhor aproveitamento escolar quando migram para o diurno, algo possível de se incentivar, por meio de um processo de planejamento e indução, para os alunos que não trabalham. (VOORWALD, 2017, p. 97-98)
Desde 2016, pesquisadores/as ligados/as à Rede Escola Pública e Universidade (REPU) vêm acompanhando a dinâmica de matrículas no Ensino Médio na rede estadual de São Paulo, tanto do ponto de vista do fechamento deliberado de classes e da homogeneização do ensalamento na rede estadual (CÁSSIO et al., 2016; TRAVITZKI & CÁSSIO, 2017; GIROTTO et al., 2022), quanto da transferência compulsória de matrículas e da superlotação de escolas regulares por conta da ampliação do PEI (GIROTTO & CÁSSIO, 2018; REPU, 2021; GIROTTO, JORGE & OLIVEIRA, 2022).3
Entre 2007 e 2018, enquanto o total acumulado de classes fechadas na rede estadual paulista foi de 7%, ele chegou a 35% para as turmas iniciadas a partir das 18:00 (REPU, 2021, p. 5). Ao mesmo tempo, resultados recentes de Girotto et al. (2022) apontam para a migração de parte do público-alvo do Ensino Médio noturno para as classes de EJA na rede estadual, o que significa que a queda do número de matrículas não pode ser exclusivamente explicada por uma suposta diminuição da demanda por escola pública em São Paulo.
Comemorada como um dado positivo pelos relatores da Indicação CEE-SP n. 198/2020, a diminuição do número de matrículas no Ensino Médio noturno foi fortemente induzida pela Seduc-SP ao longo dos anos, a prejuízo dos/as estudantes do Ensino Médio e da EJA - clientela preferencial do ensino noturno. Paradoxalmente, a evasão escolar no Ensino Médio na rede estadual vem servindo nos últimos anos como argumento político para defender a necessidade de reconectar os/as estudantes com a escola pública via reforma do Ensino Médio. O duplo paradoxo é que a reforma, como mostraremos a seguir, resulta em uma piora das condições de escolarização para esses/as mesmos/as estudantes.
A “expansão” da carga horária na prática
A fim de cumprir as novas regras definidas pelo CEE-SP, a Seduc-SP planejou uma expansão da carga horária iniciando pelos alunos do 1º ano (noturno) e do 2º ano que ingressaram nos itinerários formativos do NEM em 2022. Assim, a expansão operada pela Seduc-SP deve fazer a diferença entre as cargas horárias do Ensino Médio diurno e noturno cair de 40% para 17%. Para isso, a carga horária do noturno está sendo ampliada em 33,3%, versus uma ampliação de 11,4% nos turnos matutino e vespertino (Tabela 1).
MATUTINO / VESPERTINO | NOTURNO | ||||
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ANTERIOR | EXPANSÃO | ANTERIOR | EXPANSÃO | ||
1º ANO (2022) |
aulas por semana | 35 | 35 | 25 | 33 |
CH anual | 1.050 h | 1.050 h | 750 h | 990 h | |
2º ANO (2022) |
aulas por semana | 35 | 42 | 25 | 34 |
CH anual | 1.050 h | 1.260 h | 750 h | 1.020 h | |
3º ANO (2023) |
aulas por semana | 40 | 40 | 25 | 33 |
CH anual | 1.050 h | 1.200 h | 750 h | 990 h | |
CH TOTAL | 3.150 h | 3.510 h | 2.250 h | 3.000 h |
Fonte: Elaboração própria, a partir de apresentação da Seduc-SP (REPU, 2022).
A expansão da carga horária pressupõe uma ampliação proporcional da infraestrutura escolar. Aumentar o tempo dos estudantes nas escolas demanda mais salas de aula, mais materiais didáticos, mais equipamentos, mais merenda, mais profissionais da educação etc. Nada disso, porém, está previsto no bojo da implementação do NEM, de forma que a expansão da carga horária prevista na Lei n. 13.415/2017 e regulamentada no estado de São Paulo por meio da Deliberação CEE-SP n. 186/2020 está sendo realizada da forma menos dispendiosa possível; no caso, via ampliação da oferta de ensino a distância.
De fato, os dados da Tabela 2 mostram que a expansão da carga horária do Ensino Médio na rede estadual está se dando majoritariamente a distância (90,3% das turmas). Nas escolas com INSE mais elevados da rede (as mais vulneráveis), o número de classes a distância ou semipresenciais é significativamente maior que o de classes presenciais (Figura 2).
1º ANO só noturno |
2º ANO diurno e noturno |
TOTAL diurno e noturno |
||||
---|---|---|---|---|---|---|
A DISTÂNCIA | 5.123 | 87,86% | 8.191 | 91,90% | 13.314 | 90,30% |
PRESENCIAL | 25 | 0,43% | 383 | 4,30% | 408 | 6,93% |
SEMIPRESENCIAL | 683 | 11,71% | 339 | 3,80% | 1.022 | 2,77% |
Fonte: Elaboração própria, a partir de dados sobre a expansão da carga horária no Ensino Médio em 2022 obtidos da Seduc-SP via LAI e no INSE calculado pela Seduc-SP a partir dos questionários socioeconômicos do Saresp 2018, disponíveis em: https://dados.educacao.sp.gov.br/sites/default/files/INSE_Geral%202018_1_0.csv. Acesso em: 25 ago. 2022.
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da expansão da carga horária em 2022 obtidos via LAI e no INSE calculado pela Seduc-SP a partir dos questionários socioeconômicos do Saresp 2018, disponíveis em: https://dados.educacao.sp.gov.br/sites/default/files/INSE_Geral%202018_1_0.csv. Acesso em: 25 ago. 2022.
Os dados fornecidos pela Seduc-SP não permitem distinguir as modalidades de expansão da carga horária predominantes para os/as estudantes do 2º ano do Ensino Médio (a distância, presencial ou semipresencial). Já para o 1º ano, em que a expansão da carga horária em 2022 ocorre somente para os/as estudantes do período noturno (Tabela 1), o gráfico da Figura 3 não deixa dúvida de que a expansão em modalidade presencial é extremamente rara na rede estadual, atingindo apenas 0,43% das turmas. A expansão semipresencial, que a Seduc-SP denomina “atendimento personalizado”, consiste - segundo relatos de profissionais da educação da rede estadual - no “modelo CEEJA”; isto é, ensino a distância com possibilidade de atendimento presencial nas escolas para quem necessitar.
Das 184 unidades escolares com expansão presencial no 2º ano do Ensino Médio, 62 (33,7%) são classes instaladas na Fundação CASA, onde a presencialidade nas aulas é garantida pelo regime de privação de liberdade dos/as adolescentes internos/as. Para entender o que ocorre nas 122 restantes, consultamos profissionais da educação atuantes em 28 escolas estaduais (16 Diretorias de Ensino), constatando que em apenas uma delas os/as estudantes do Ensino Médio noturno realmente chegam na escola mais cedo para frequentar as aulas presenciais. Em todas as demais, seguindo a mesma tendência observada para o 1º ano noturno (Figura 3), a expansão presencial só beneficia estudantes dos turnos matutino e vespertino - e ainda assim, como mostram a Tabela 2 e a Figura 2, de forma extremamente limitada.
Fonte: Elaboração própria, com base em dados da expansão da carga horária em 2022 obtidos via LAI e no INSE calculado pela Seduc-SP a partir dos questionários socioeconômicos do Saresp 2018, disponíveis em: https://dados.educacao.sp.gov.br/sites/default/files/INSE_Geral%202018_1_0.csv. Acesso em: 25 ago. 2022.
Os/as informantes também forneceram uma série de detalhes operacionais do processo de expansão da carga horária nas escolas. Embora os dados da Seduc-SP indiquem a existência de escolas com expansão mista - com algumas aulas presenciais (geralmente Educação Física) e outras a distância -, em todos os casos apurados predomina o ensino a distância com a utilização do Centro de Mídias da Educação de São Paulo (CMSP) - plataforma da Seduc-SP criada durante a pandemia de Covid-19 para a oferta de ensino remoto emergencial.
Já nas escolas em que ocorre a modalidade semipresencial (atendimento personalizado), os/as informantes reportam frequências baixíssimas dos estudantes. Em todas as 28 escolas pesquisadas, os/as professores/as consultados/as também reportam que a grande maioria dos/as estudantes não acessa os conteúdos dos cursos a distância no CMSP, e comparam a atual oferta regular do NEM com a precária oferta emergencial de ensino remoto durante a pandemia.
Em relatório de fiscalização operacional que cobriu o período de abril de 2020 a fevereiro de 2021, o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP) averiguou as ações emergenciais implementadas pelo governo de São Paulo no contexto da Covid-19, especificamente as executadas pela Seduc-SP na área da educação pública estadual. Entre os itens auditados pelo TCE-SP estavam a implementação e o funcionamento do CMSP, “principal iniciativa da Seduc-SP para apoiar a aprendizagem dos estudantes e a formação dos professores durante a pandemia” (TCE-SP, 2021, p. 40, grifo no original).
Os achados da auditoria do TCE-SP são aterradores. Entre maio e dezembro de 2020, 1.672.413 estudantes da rede estadual (50,29% do total) nunca se conectaram ao CMSP. A situação foi ainda pior no ensino médio; nesta etapa, 693.468 estudantes nunca acessaram o aplicativo oficial (52,90% do total) (TCE-SP, 2021, p. 77-79). Tomando apenas os acessos mensais de estudantes distintos/as da rede estadual - isto é, sem repetir na contagem os/as usuários/as com mais de um acesso por mês -, veremos que, no mês com maior número de acessos por usuário/a individual (junho de 2020), apenas 274.933 estudantes do Ensino Médio (20,97% do total) acessaram o CMSP. A frequência de acessos decaiu continuamente até o mês de dezembro de 2020, quando 35.219 estudantes acessaram a plataforma (2,68% do total) (Figura 4).
O relatório do TCE-SP ainda mostrou que 81,2% dos/as estudantes da rede estadual não chegaram a permanecer mais de duas horas conectados ao CMSP entre os meses de maio e dezembro de 2020 (TCE-SP, 2021, p. 83-84). E, uma vez que as aulas na rede estadual foram suspensas no dia 13 de março de 2020, pode-se concluir que, tecnicamente, a principal iniciativa para o acesso à escola pública durante a pandemia na rede estadual de São Paulo (a maior e mais rica rede de ensino do país) resultou numa evasão escolar sem precedentes na história do país.
Por fim, a participação nas aulas do CMSP através das redes sociais também foi analisada pelo TCE-SP, que calculou a média de visualizações mensais dos vídeos publicados no YouTube para cada etapa de ensino. Para o Ensino Médio, a média calculada foi de 1.856 visualizações por vídeo, número irrisório diante das 1.310.920 matrículas nesta etapa no ano letivo de 2020.
A experiência recente do CMSP na rede estadual de São Paulo e a centralidade desta ferramenta na “expansão” da carga horária do Ensino Médio regular para os/as estudantes mais pobres da rede não dão grande margem ao otimismo, pois a maioria dos/as estudantes do NEM no período noturno provavelmente terá uma carga horária efetiva de estudos no ensino médio inferior às 3.000 horas totais estabelecidas na Lei n. 13.415/2017. Não obstante a Indicação CEE-SP n. 198/2020 tenha sublinhado a necessidade de comprovar “a adequação do suporte tecnológico e o acesso dos estudantes à infraestrutura necessária para o acompanhamento das atividades propostas” (SÃO PAULO, 2020, p. 45), não há informações de que a Seduc-SP tenha levado isso em conta na implantação massiva do ensino a distância para os/as estudantes mais vulneráveis da rede de ensino em 2022.
À precariedade da oferta de ensino à distância na rede estadual soma-se a falta de professores/as nas aulas dos itinerários formativos registrada ao longo do primeiro semestre de 2022. Em Nota Técnica de junho de 2022, a REPU mostrou que “cada estudante da rede estadual teve [em média] um dia a menos de aula por semana”, enquanto “os/as estudantes dos turnos vespertino e noturno tiveram 1,5 dias de aula a menos por semana” por falta de professores nos itinerários formativos do Ensino Médio (REPU, 2022, p. 19). Isto é, ainda que os problemas de acesso às atividades a distância não sejam levados em consideração, os/as estudantes do Ensino Médio noturno acessaram apenas 70% da formação prevista no currículo oficial do NEM.
As perdas dos/as estudantes em virtude da oferta a distância estão listadas na Tabela 3, que detalha os componentes curriculares incluídos na expansão da carga horária para todos os turnos. Para o 1º ano do Ensino Médio noturno, por exemplo, a única aula semanal da disciplina de Sociologia agora é feita a distância, enquanto estudantes dos turnos matutino e vespertino seguem com aulas de Sociologia presenciais. Ainda segundo as informações da Tabela 3, as aulas de “Projeto de Vida” do programa Inova Educação4 foram convertidas em aulas a distância justamente para os/as estudantes do período noturno. O mesmo ocorreu com 50% das aulas dos itinerários formativos que, segundo a Deliberação CEE-SP n. 186/2020, deveriam estar “preferencialmente integrados à formação técnica profissional” (SÃO PAULO, 2020, p. 9). Isso contrasta com a ideia, reiteradamente defendida pelo CEE-SP, de que a qualificação profissional e a construção de projetos de vida individuais estariam no fulcro da criação de um Ensino Médio noturno com identidade própria e focalizado nas necessidades dos/as estudantes.
2º ANO matutino / vespertino 7 AULAS |
FORMAÇÃO GERAL BÁSICA Orientação de Estudos (3 aulas) Educação Física (2 aulas) INOVA EDUCAÇÃO Disciplina Eletiva (2 aulas) |
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1º ANO noturno 6 AULAS |
FORMAÇÃO GERAL BÁSICA Língua Portuguesa Matemática Sociologia INOVA EDUCAÇÃO Projeto de Vida (2 aulas) Tecnologia e Inovação |
2º ANO noturno 9 AULAS |
FORMAÇÃO GERAL BÁSICA Educação Física INOVA EDUCAÇÃO Projeto de Vida (2 aulas) Tecnologia e Inovação ITINERÁRIOS FORMATIVOS Aprofundamento (5 aulas) |
Fonte: Elaboração própria, a partir de apresentação da Seduc-SP (07 out. 2021) disponível em: https://docs.google.com/presentation/d/1_tsUHY9N9tJRWR_l_JzvrRBiZ4ONcSDQ. Acesso em: 25 ago. 2022.
Em vista dos dados analisados até aqui, a afirmação do CEE-SP de que é necessário saber quais estudantes “verdadeiramente precisam estudar no período noturno”, a fim de assegurar a sua “continuidade dos estudos ou no ensino regular ou em outra modalidade que lhes seja mais adequada” (SÃO PAULO, 2020, p. 19), pode ser lida de outra forma. Na falta de políticas que garantam a permanência dos/as estudantes trabalhadores/as em uma escola de jornada ampliada, o governo de São Paulo simplifica a formação do Ensino Médio noturno a fim de torná-la “mais adequada”. Barateia o custo da educação dos/as estudantes mais pobres e mina as funções sociais da escola pública (HERNANDES, 2020).5
Conclusões
A análise conjunta das normas estaduais e dos dados oficiais relativos à expansão da carga horária no NEM na rede estadual de São Paulo permitem concluir que a “expansão” operada pela Seduc-SP aprofunda as desigualdades escolares na rede de ensino. Problemas básicos como a falta de salas de aula e de professores/as nas escolas estaduais inviabilizam por si sós a expansão da jornada escolar presencial; e, de forma mais geral, a implementação de uma reforma educacional realizadora de “liberdade de escolha” e garantidora de qualificação profissional universal no ensino médio.6 Além disso, a expansão da carga horária no Ensino Médio é particularmente difícil de ser implementada no período noturno, pois poucos/as estudantes têm condições de chegar na escola mais cedo para usufruírem da ampliação da jornada.
Até o momento, a solução encontrada pelo governo de São Paulo para dar cumprimento formal à Lei n. 13.415/2017 é a oferta massiva de ensino a distância, atingindo mais de 90% das turmas da expansão e utilizando as mesmas estratégias empregadas para o ensino remoto emergencial durante a pandemia. No horizonte da implementação do NEM - em São Paulo e nos demais estados do país - não foram planejadas políticas públicas de permanência estudantil capazes de garantir a expansão da jornada no Ensino Médio com presença na escola - a exemplo do que é feito há décadas no Ensino Superior.7
No contexto de implementação do NEM na rede estadual paulista, a “expansão” da carga horária a distância e sem a garantia das condições mínimas da oferta educacional só pode resultar no aprofundamento das desigualdades escolares no estado, notadamente entre estudantes dos períodos diurno e noturno. Assim, sob os auspícios do chamado “Novo” Ensino Médio, uma nova onda de precarização vem dar continuidade ao sucateamento programado do Ensino Médio noturno que, através de pesquisas com dados públicos, temos observado na rede estadual de São Paulo nos últimos 15 anos.