1 Introdução
Com base em estudos de Soares (2017); Brandão e Leal (2005) e Morais (2012) entendemos que a criança pode se engajar no processo de construção do seu conhecimento, avançando na compreensão dos princípios e convenções do Sistema de Escrita Alfabética, como também, nesse mesmo espaço de tempo, avançar na sua autonomia quanto ao ato de escrever de forma contextualizada e significativa. No entanto, autores da área de produção de textos apontam que muitas crianças no final do 4º e 5º anos do ensino fundamental ainda possuem dificuldades no domínio de conhecimentos básicos relacionados à produção de textos escritos (GERALDI, 1997; LEAL; BRANDÃO, 2007; LEAL; MORAIS, 2006). Ou seja, segundo Bronckart (1999), várias habilidades para a produção de texto são acionadas no momento dessa ação e cabe à criança coordená-las considerando o contexto de produção. E são as representações que a criança faz dessa ação que determinam a estrutura e organização do seu texto (SCHNEUWLY; DOLZ, 2004).
Concordamos com Silva e Melo (2007) quando afirmam que a produção de texto é uma atividade cognitiva e social, uma vez que de um lado estão as condições de produção (Para quê? Para quem? O quê? Como?), e de outro, os processos cognitivos envolvidos nessa atividade de produção. A escrita está presente em nossa sociedade, assim, como forma de interação nas diversas atividades das pessoas - trabalho, família, escola, vida social - e, também, como registro do seu patrimônio científico, histórico e cultural. A escrita está inserida em diversas situações comunicativas do cotidiano e dessa forma se escreve tendo um determinado objetivo e um determinado destinatário. A escrita, portanto, responde a um propósito funcional qualquer, isto é, possibilita a realização de algumas atividades sociocomunicativas entre as pessoas e vai ao encontro das relações com os diversos contextos sociais em que essas pessoas atuam (ANTUNES, 2003).
A escrita nos alunos iniciais é algo complexo, uma vez que estão no processo de alfabetização. E apresentam duas preocupações básicas: O que escrever? E como escrever? Com isso, a questão da grafia e da textualidade passa a ter um peso muito grande para a criança nessa fase, já que nesse processo de consolidação da escrita alfabética a criança comete trocas e erros ortográficos por não ter, muitas vezes, conhecimento de algumas regras.
Barros (2019) aponta a importância do trato com a heterogeneidade para as crianças que estão nos anos iniciais da educação básica. É indispensável a mudança de pensamento, ainda muito forte, de que é necessária a homogeneização dos grupos - classes, o que leva a um ensino padronizado, com pouca consideração para as expectativas ou interesses dos alunos.
Concordamos com Mainardes (2006, p. 4), quando propõe que se considere na escola a heterogeneidade como ponto de partida para “uma reorientação para a prática pedagógica do professor, diante dos enfrentamentos postos por outras práticas escolares.” A heterogeneidade já está presente nas discussões atuais sobre educação, entretanto ainda se percebe a dificuldade de lidar com essa heterogeneidade dentro da sala de aula como um componente construtivo do processo de ensino e aprendizagem.
Tomando como base as discussões anteriores, este trabalho partiu do seguinte questionamento: Como uma professora conduz o trabalho de produção de texto em uma turma no 3º ano dos anos iniciais, levando em consideração a heterogeneidade da turma? A partir disto, nosso objetivo foi de investigar como a professora conduz o processo de ensino da produção de texto em uma turma do 3º ano do ciclo de alfabetização, levando em consideração a heterogeneidade da turma. Este trabalho apresenta parte dos resultados do trabalho de mestrado de Pereira (2019).
2 Fundamentos da produção de texto na alfabetização
Acreditamos que o desenvolvimento pleno do ser humano depende do aprendizado que ele realiza em um determinado grupo cultural, a partir da interação com outros indivíduos da sua espécie. Nessa perspectiva “[...] o aprendizado pressupõe uma natureza social específica e um processo através do qual as crianças penetram na vida intelectual daqueles que o cercam” (VYGOTSKY, 1989, p. 99).
Vygotsky (1989) tem, por isso, um olhar especial com relação ao desenvolvimento e à aprendizagem, identificando dois níveis de desenvolvimento: um chamado nível de desenvolvimento real ou efetivo, e outro, nível de desenvolvimento potencial. O nível de desenvolvimento real está relacionado às conquistas que já estão consolidadas na criança e não precisam de ajuda ou assistência de alguém para realizar. O nível de desenvolvimento potencial se relaciona, também, com o que a criança é capaz de fazer, porém, com a ajuda de outra pessoa. Neste último, a criança consegue realizar determinada tarefa a partir, por exemplo, da colaboração de um adulto ou alguém com mais experiência, por meio do diálogo ou de pistas dadas (REGO, 1995).
A distância entre aquilo que a criança é capaz de fazer de forma autônoma, ou seja, nível de desenvolvimento real, e aquilo que ela é capaz de fazer com a colaboração de outros elementos, nível de desenvolvimento potencial, Vygotsky (1989) chama de “zona de desenvolvimento potencial ou proximal.” Rego (1995, p. 74) aponta que “[...] o conhecimento adequado do desenvolvimento individual envolve a consideração tanto do nível de desenvolvimento real quanto do potencial.”
A compreensão da zona de desenvolvimento proximal é de fundamental importância, uma vez que permite a compreensão da dinâmica interna de desenvolvimento individual, sendo possível observar os ciclos que estão completos ou não, as competências conquistadas e as futuras, bem como a elaboração de estratégias pedagógicas que podem auxiliar o aluno a avançar. Dessa forma, faz-se necessário um ensino que esteja atento ao que o aluno já sabe, ao que ele tem possibilidade de aprender e ao que está totalmente fora da sua possibilidade de aprender de acordo com seu nível e idade, por exemplo. A esse respeito Rego (1995, p. 108) aponta que
A escola desempenhará bem seu papel, na medida em que, partindo daquilo que a criança já sabe (o conhecimento que ele traz de seu cotidiano, suas ideias a respeito dos objetivos, fatos e fenômenos, suas “teorias” acerca do que observa no mundo), ela for capaz de ampliar e desafiar a construção de novos conhecimentos, ou seja, incidir na zona de desenvolvimento potencial dos educandos. Desta forma poderá estimular processos internos que acabarão por se efetivar, passando a constituir a base que possibilitará novas aprendizagens.
Com isso, faz-se necessário que o ensino possibilite ao aluno pensar, de modo que tenha acesso às diversas formas de apropriação do conhecimento, de forma autônoma, ao longo da vida, e não um ensino que se restrinja à transmissão do conteúdo de forma pronta e acabada.
Nesse contexto, o papel do professor como mediador do conhecimento é de fundamental importância, sendo uma condição necessária para a produção de conhecimentos por parte dos alunos. O professor é, assim, o elemento mediador que pode possibilitar as interações dos alunos com os objetos de conhecimento. A esse respeito Rego (1995) identifica que no contexto escolar a responsabilidade de intervenção na zona de desenvolvimento proximal é do professor, ainda que não exclusivamente. O professor é, assim, um importante agente nesse processo, uma vez que tem maior experiência, e uma de suas incumbências é possibilitar ao aluno o acesso ao patrimônio cultural já formulado pelos homens. Dessa forma, cabe ao professor possibilitar, a partir do que o aluno já sabe, avanços com relação à construção do seu conhecimento.
3 A importância de reconhecer a heterogeneidade das turmas
Leal; Sá e Silva (2018) apontam para a necessidade de reconhecer os diferentes tipos de heterogeneidade no contexto escolar. Essa identificação irá influenciar no modo como cada um deve ser tratado. As autoras apontam três tipos de heterogeneidade:
Um primeiro tipo diz respeito às diferenças socioeconômicas culturais, religiosas, etnicorraciais, de gênero, de orientação sexual, físicas existentes entre as crianças. Um segundo tipo remete às reflexões sobre a inclusão dos estudantes com deficiências físicas e transtornos de aprendizagem. O terceiro diz respeito à heterogeneidade quanto ao nível de escolaridade, idade, conhecimentos (LEAL; SÁ; SILVA, 2018, p. 16-17).
Dessa forma, entende-se a complexidade da heterogeneidade, uma vez que esta é, também, múltipla, tendo o professor que dar conta de uma grande diversidade de aprendizagens, pois os alunos representam diversas trajetórias e ritmos de aprendizagem. A heterogeneidade dentro da sala de aula envolve, assim, desde habilidades cognitivas dos alunos, ritmos de aprendizagem, até fatores socioeconômicos, familiares, culturais e valorização do próprio aluno e família com relação à aquisição do conhecimento.
Há, dessa forma, uma diversidade de possibilidades de interações e mediações que podem ser realizadas pelo professor, tendo em mente o seu grupo de alunos com a heterogeneidade.
A tese desenvolvida por Barros (2019), intitulada “Heterogeneidade: a prática pedagógica do ensino da leitura nos contextos das escolas ciclada e multisseriada”, teve por objetivo investigar o cotidiano do trabalho docente a fim de compreender como os professores buscam favorecer a progressão da capacidade leitora dos estudantes, considerando as suas especificidades e os diferentes níveis de apropriação do sistema de escrita, em duas escolas públicas de Lagoa dos Gatos, sendo uma ciclada (na cidade), e uma multisseriada (no campo). Participaram do estudo duas professoras do município de Lagoa dos Gatos (uma do 3º ano do ensino fundamental I, e outra de uma turma multisseriada). Os dados foram coletados por meio de entrevistas e conversas informais realizadas com as docentes e de observações de aulas.
Os resultados indicaram que as duas professoras tinham o comprometimento com a aprendizagem de seus alunos e consideravam a heterogeneidade de suas turmas. Entretanto, a pesquisadora apontou que a professora da sala multisseriada se mostrou com mais habilidade para lidar com a heterogeneidade e mais tranquila em relação ao processo de apropriação da língua escrita de seus alunos. Essa tranquilidade vinha da certeza de que todos os seus alunos “chegariam no tempo certo”, ou seja, que todos iriam se apropriar da escrita mais cedo ou mais tarde, uma vez que vivenciavam diariamente atividades envolvendo materiais escritos.
Com relação à professora do 3º ano da sala seriada, a pesquisadora notou sua angústia em relação à aprendizagem de seus alunos. Para a docente, o atendimento individualizado era considerado o mais eficiente para promover o aprendizado da escrita. Entretanto, a pesquisadora destacou que pela quantidade e idade das crianças, o atendimento que a professora fazia em sua mesa, na sala de aula, não promovia o ensino nem era adequado para atender os alunos em suas dificuldades. Destaca, ainda, que nos momentos em que essa professora propôs a realização da tarefa a partir de agrupamentos, estes também não foram eficazes, pois a turma não tinha familiaridade com essa estratégia e continuava a realizar as atividades de forma individual.
Barros (2019) destaca que as duas professoras se esforçavam em promover um ensino que atendesse as dificuldades individuais de seus alunos. Para isso mobilizavam diferentes estratégias que iam sendo testadas no dia a dia da sala de aula, sempre com a intenção de contemplar a heterogeneidade de conhecimento apresentada pelos alunos. Entretanto, ressalta as contribuições que os professores da multisseriação (em geral, professores do campo) têm para oferecer aos professores das escolas cicladas/seriadas (em geral, escolas urbanas), no que diz respeito ao trabalho: com a diversidade de idades, séries, planejamentos, atividades, estratégias e níveis de conhecimento; em um mesmo espaço da sala de aula; apesar de todas as carências que as escolas do campo apresentam.
Essa pesquisa mostra a importância de um ensino ajustado às necessidades do educando, ou seja, de um atendimento à diversidade, levando em consideração os níveis da turma e as possibilidades de avanço de cada aluno. A intervenção pedagógica do professor é, assim, de fundamental importância.
Com relação à produção de texto, foco da nossa pesquisa, não é diferente, pois os níveis de aprendizagem dos estudantes podem ser diversos em uma turma com relação à produção de texto. O papel do professor, nesse contexto como um agente mediador, é que irá possibilitar que, independentemente de o aluno estar num nível elementar ou avançado, possa evoluir a partir do nível em que está. Esse professor irá funcionar como um estimulador, problematizador e motivador. Nesse contexto, a intervenção do professor alfabetizador no texto do aluno é fundamental e pode auxiliar no processo de produção e revisão textual.
4 O processo de ensino e aprendizagem na produção de texto
A pesquisa teve cunho qualitativo por buscar apresentar a complexidade das situações investigadas e as interações entre os sujeitos participantes e os elementos observados (OLIVEIRA, 2008), envolvendo a descrição dos fenômenos através de contato direto com a situação estudada. Optamos pelo estudo de caso, uma vez que tivemos como foco examinar os acontecimentos contemporâneos, sem manipular os comportamentos. Assim, fizemos “[...] uma investigação empírica que investiga um fenômeno contemporâneo em seu contexto da vida real, especialmente quando os limites entre o fenômeno e o contexto não estão claramente definidos” (YIN, 2005, p. 32).
A pesquisa foi desenvolvida na rede municipal de educação da cidade de Garanhuns-PE. Fizemos a escolha de uma professora que ministrava aula no 3º ano do ciclo de alfabetização e de sua respectiva turma, a partir de um questionário realizado com os professores da rede em uma formação. Essa professora, no questionário, destacou-se pela narrativa de suas atividades com produção de textos, bem como pelo compromisso com o desenvolvimento de uma prática de produção textual semanal. Estes foram os principais motivos que nos levaram a escolher a docente.
A escola era localizada em um bairro periférico da cidade de Garanhuns-PE, atendendo alunos do 1º ao 5º ano do ensino Fundamental I nos turnos da manhã e da tarde, e no turno da noite, duas turmas da EJA. Possui 10 salas de aula, sala de leitura, diretoria, banheiros, cozinha, pátio coberto e uma quadra de esportes descoberta.
A professora pesquisada tinha 31 anos de idade, com formação no Normal médio e em Letras, 7 anos de experiência do 1º ao 5º ano do ensino fundamental. A sala da professora possuía 29 alunos e uma estagiária que auxiliava a professora e os alunos na realização das atividades. Com relação ao comportamento dos alunos, a maioria participava e realizava as atividades propostas, havendo poucos casos em que as crianças não fizeram as atividades solicitadas pela professora.
Quanto à estrutura da sala de aula da professora, era pequena, sem janelas e pouco iluminada. Nas paredes havia mofo devido a infiltrações durante o inverno. A sala possuía um quadro, armário, estante, birô e carteiras dos alunos. Nas paredes havia calendário, alfabeto, alguns trabalhos feitos pelos alunos e um conjunto de pequenos cartazes sobre gêneros textuais diversos. Também havia um cartaz indicando que um texto deveria ter começo, meio e fim.
4.1 Procedimentos adotados na pesquisa
Como procedimentos, realizamos a análise documental, observação, entrevista e diagnose com a turma de escrita de palavras e texto.
Escolhemos a análise documental como uma técnica valiosa de abordagem de dados qualitativos, seja como complemento para as observações obtidas por outros métodos, seja desvelando novos aspectos da situação estudada (LÜDKE; ANDRÉ, 1986) e, através dela, analisamos se as atividades de produção textual eram diferenciadas de acordo com a heterogeneidade da turma. A observação foi escolhida como procedimento metodológico porque possibilita que o pesquisador observe, pessoalmente e de maneira prolongada, situações e comportamentos que nos interessam (JACCOUD; MAYER, 2010). A observação foi realizada em dez dias de aula da professora, de forma ininterrupta ao longo de duas semanas.
Por fim, a entrevista foi escolhida como procedimento metodológico por possibilitar ao pesquisador entrar em contato direto com o pesquisado e se aprofundar para uma melhor compreensão do fenômeno. Optamos pela entrevista semiestruturada porque na sua execução poderiam surgir novas perguntas, a partir das respostas dadas pela professora entrevistada (MANZINI, 1990).
Para a análise dos dados apoiamo-nos nas técnicas metodológicas da análise de conteúdo (BARDIN, 2016), com posterior triangulação dos dados. Durante todo o processo realizamos inferências e tivemos o cuidado na dimensão ética das análises e escrita dos resultados. Para isso, pautamo-nos nas questões éticas da pesquisa nas ciências humanas de acordo com os preceitos éticos da Resolução nº 510/16 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2016). Assim, buscamos a confidencialidade dos dados produzidos com as pessoas envolvidas na pesquisa, solicitamos a autorização para os participantes por meio de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) - coleta de dados presencial e garantimos o sigilo da identidade dos participantes da pesquisa, bem como de seus dados.
Em relação a este aspecto, a Associação Nacional dos Pesquisadores em Educação (Anped) formulou princípios éticos que devem orientar as pesquisas em educação, nos quais se pauta a nossa pesquisa:
a) todas as pesquisas que envolvam seres humanos devem ter como princípio fundante a dignidade da pessoa humana. Isso implica no respeito aos participantes, consentimento, avaliação cuidadosa de potenciais riscos aos participantes, compromisso com o benefício individual, social e coletivo das pesquisas; b) respeito aos direitos humanos e à autonomia da vontade; c) emprego de padrões elevados de pesquisa, integridade, honestidade, transparência e verdade; d) defesa dos valores democráticos, da justiça e da equidade; e e) responsabilidade social (MAINARDES; CARVALHO, 2019, p. 26).
Esses princípios têm como base a teoria principialista, como também em documentos de associações que têm longa tradição no debate e na formulação de documentos que orientam os padrões éticos na pesquisa em educação (MAINARDES; CARVALHO, 2019).
A seguir apresentaremos os resultados.
4.2 Perfil da turma quanto à escrita de palavras e a produção de textos
Inicialmente, identificamos, a partir de uma diagnose de escrita de palavras e de texto, os níveis de escrita de palavras das crianças e se esses níveis eram levados em consideração nas atividades de produção de textos em sala de aula. Para isso realizamos a atividade de diagnose de palavras e de texto com os 29 alunos da turma, utilizando como inspiração as atividades propostas por CRUZ (2012) em relação à escrita de palavras e textos.
Para identificar o perfil da turma pesquisada utilizamos a atividade de escrita de palavras a partir de doze figuras nas quais as crianças eram solicitadas a escrever seus respectivos nomes. Essa atividade diagnóstica foi importante para identificarmos o universo dos alunos que compõem a turma participante da pesquisa.
O modo de aplicação se deu da seguinte forma: (i) primeiramente a criança identificava oralmente cada figura; (ii) em seguida escrevia a palavra de forma espontânea; ao final da escrita de todas as palavras, a criança era solicitada a ler o que escreveu, marcando a pauta sonora das palavras. Essa diagnose foi realizada de forma individual, com cada criança, deixando-as livres para fazerem no tempo que achassem necessário.
Fizemos a aplicação de uma atividade de produção de texto com todos os alunos da turma, para verificarmos o nível de grafia e textualização (CRUZ, 2012). Nessa atividade solicitamos às crianças uma produção de relato de experiência sobre um passeio que fizeram com familiares, amigos ou com os professores. Levamos em consideração as condições de produção dos textos, explicitando os elementos que o constituem (destinatário, finalidade, características do gênero, dentre outros) (GERALDI, 1997). Foi realizada em cada turma, com todos os alunos ao mesmo tempo, em um tempo máximo de uma hora e trinta minutos.
A escolha do gênero, relato de experiência, deu-se pelo fato de esse gênero ser um dos mais próximos do gênero relato oral de experiências, que é muito usado nas situações escolares, o que deixaria as crianças participantes desta pesquisa em situação de semelhança quanto à familiaridade com o gênero solicitado. Todas as crianças da turma, independentemente do nível de compreensão da escrita alfabética ou produção de textos em que estavam, participaram das diagnoses. Mas, para fins de análise, selecionamos apenas os textos que eram legíveis. Os textos legíveis foram analisados quanto aos aspectos gráficos, linguísticos e discursivos apresentados nos relatos de experiência.
A seguir, apresentaremos as categorias e subcategorias que produziram os resultados da análise realizada nas diagnoses de palavras e de texto.
-
a) Escrita de palavras1:
Escrita Pré-Silábica - a criança não faz relação entre escrita e pauta sonora.
Escrita Silábico-Alfabética - a criança ora faz relação, ora não, entre escrita e pauta sonora, e muitas vezes não utiliza os grafemas adequados.
-
Escrita Alfabética: a criança já compreende que as sílabas são formadas por fonemas. Classificamos os alfabéticos de acordo com o domínio ortográfico:
-
b) Produção de textos:
Legibilidade - dividimos em dois momentos. O primeiro trata do tipo de letra (PT1) tendo como itens de correção: (B) Bastão, (C) Cursiva e (B/C) Mistura a letra bastão e cursiva. O segundo tratou do nível de compreensão do Sistema de Escrita Alfabética explícito na escrita das palavras do texto (PT2), tendo como subcategorias: (I) Textos que apresentam palavras que não podem ser identificadas na leitura pela relação grafia-fonema, (BL) Textos que apresentam cerca de 70% das palavras que não podem ser identificadas na leitura pela relação grafia-fonema, e (PL) Textos em que todas as palavras podem ser identificadas na leitura pela relação grafia-fonema.
Aspectos gráficos - tratam da quantidade mínima de palavras 10 (PT3), tendo como itens de correção (subcategorias): (01) Textos com menos de 10 palavras, (02) Textos entre 10 e 20 palavras, e (03) Textos com mais de 20 palavras.
Com relação aos aspectos linguísticos, as categorias tratam da marcação adequada da segmentação do texto (PT4), observação à norma ortográfica (PT5), Pontuação (PT6).
Com relação aos aspectos discursivos, observamos: adequação do texto aos propósitos de situação de escrita: finalidade, destinatário e temática solicitada (PT7), utilização de conhecimentos sobre as características do gênero solicitado (PT8), apresenta sequência narrativa (PT9), presença de elementos narrativos (PT10) e coesão (PT11).
Nas categorias de produção de texto, tanto dos aspectos linguísticos como dos aspectos discursivos, foram organizados em: Não Atende (NA), Atende Parcialmente (PA) e Plenamente (PL).
Observamos que a professora nas aulas de produção de texto separava a turma em dois grupos. Por isso fizemos os agrupamentos dos alunos de acordo com o agrupamento que a professora fazia nas aulas de produção textual, para melhor visualização do perfil dos dois grupos.
Crianças | Escrita de palavra | Produção de Texto | |||||||||||||||||||
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Compreensão da escrita | Legibilidade | Gráfico | Linguísticos | Discursivos | |||||||||||||||||
PT1 | PT2 | PT3 | PT4 | PT5 | PT6 | PT7 | PT8 | PT9 | PT10 | PT11 | |||||||||||
Grupo de alunos com menos autonomia segundo a professora | |||||||||||||||||||||
C12 | Silábico- Alfabético | Não fez | I | ||||||||||||||||||
C2 | Alfabético (A3) | C | BL | ||||||||||||||||||
C3 | Pré-silábico | B/C | I | ||||||||||||||||||
C4 | Silábica- Alfabética | Não fez | |||||||||||||||||||
C5 | Silábico-Alfabético | B | I | ||||||||||||||||||
C6 | Alfabética (A1) | B | PL | 03 | PA | NA | NA | PA | PA | PA | PA | PA | |||||||||
C7 | Alfabética (A1) | B | PL | 01 | NA | NA | NA | NA | NA | NA | NA | NA | |||||||||
C8 | Alfabética (A1) | C | I | ||||||||||||||||||
C9 | Alfabética (A3) | C | PL | 02 | PL | NA | NA | PA | NA | NA | NA | NA | |||||||||
C10 | Alfabético (A1) | C | I | ||||||||||||||||||
C11 | Alfabético (A1) | C | PL | 03 | PL | PL | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C12 | Alfabético (A3) | C | I | ||||||||||||||||||
Crianças | Grupo de alunos com mais autonomia segundo a professora | ||||||||||||||||||||
C13 | Alfabético (A5) | C | PL | 03 | PL | PL | PA | PL | PL | PL | PL | PL | |||||||||
C14 | Alfabético (A3) | C | PL | 03 | PA | PA | NA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C15 | Alfabética (A5) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C16 | Alfabético (A3) | C | PL | 03 | PA | PA | NA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C17 | Alfabética (A3) | C | PL | 03 | PL | PA | NA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C18 | Alfabético (A1) | B | PL | 03 | PA | NA | NA | PA | NA | NA | NA | NA | |||||||||
C19 | Alfabético (A3) | C | PL | 03 | PL | PL | PL | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C20 | Alfabética (A3) | C | PL | 03 | PL | PL | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C21 | Alfabética (A5) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C22 | Alfabética (A3) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C23 | Alfabética (A5) | C | PL | 03 | PL | PL | PL | PL | PL | PL | PL | PL | |||||||||
C24 | Alfabética (A5) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C25 | Alfabética (A2) | C | I | ||||||||||||||||||
C26 | Alfabético (A5) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C27 | Alfabética (A3) | C | PL | 03 | PL | PA | PA | PL | PL | PL | PL | PA | |||||||||
C28 | Alfabético (A1) | B | PL | 02 | PA | NA | NA | PA | PA | PA | PA | PA | |||||||||
C29 | Alfabética (A3) | C | PL | 03 | PL | PA | NA | PL | PL | PL | PL | PA |
Fonte: Elaboração das autoras
A análise do Quadro 1 indica que o grupo de alunos com menos autonomia era composto por 12 alunos e o grupo com mais autonomia era composto por 17 alunos. Como é possível observar, na análise do nível de escrita 1 aluno se encontra no nível pré-silábico; 3 alunos no nível silábico alfabético; e 25 alunos no nível alfabético. Com relação à análise dos níveis, dentro do nível alfabético os alunos estão distribuídos da seguinte forma: 7 alunos no nível alfabético com pouco domínio das correspondências grafofônicas diretas; 1 aluno no nível alfabético com pouco domínio das regularidades contextuais; 11 alunos no nível alfabético com razoável domínio das regularidades contextuais; e 6 alunos no nível alfabético com escrita convencional.
Com relação à diagnose de texto, observamos que os alunos do grupo com mais autonomia apresentam em sua maioria bom desempenho com relação aos aspectos gráfico, linguístico, discursivo e de legibilidade. Já os alunos que estão no grupo com menos autonomia, de forma geral, apresentam dificuldades com relação aos aspectos linguísticos e discursivos do texto.
Alguns dados desse quadro nos chamam a atenção, tais como: os alunos do grupo com menos autonomia, que em sua maioria estavam no nível silábico alfabético e alfabético, apresentavam dificuldades quanto à legibilidade do texto; 4 alunos que estavam no nível alfabético e sem problemas com a legibilidade de texto (segundo nossa diagnose), ainda estavam nesse grupo pela análise da professora. Um dado importante a ser observado no Quadro 1 (baseado em nossa diagnose) é o fato de que a criança pode estar no nível alfabético mas não produzir textos, como foi observado nos dois grupos que a professora dividiu em sua sala de aula.
A nossa diagnose confirma que a professora demonstrou, com a divisão dos grupos, ter compreensão dos níveis de escrita em que seus alunos estavam ou da maioria deles. Sobre essa divisão dos grupos a professora destaca, em entrevista inicial, que
Eu divido a turma que já lê fluente da turma que está com a leitura mais ou menos, ou tem uma leitura média. Às vezes, eu faço grupos pelas dificuldades de escrita, pelo que eu noto, pelo que eu observo, no dia a dia... aí, eu faço os grupos assim. Porque fica mais fácil pra mim... de dar assistência (Profª A, extrato de Entrevista inicial, grifo nosso).
Dessa forma, a professora demonstra ter uma preocupação em atender a todos os seus alunos, independentemente de seus níveis.
4.3 Caracterização das aulas de produção de texto
Ao entrarmos em contato com a professora percebemos que a sua rotina era bem estabelecida. As crianças já tinham noção de como era a prática da professora e como se configurava a rotina; dessa forma, as crianças podiam se organizar melhor com relação ao tempo e à sequência de atividades que iam acontecendo ao longo do dia.
Entendemos esse momento de rotina como um dispositivo já incorporado em sua prática, uma vez que se tornou abstrato e normatizante e se instalou de forma durável nas práticas escolares dessa professora (CHARTIER, 2000). Essa organização da rotina é importante, pois orienta a criança a perceber a relação espaço-tempo, podendo assim ter uma previsão do que vai acontecer em determinado horário da aula (OLIVEIRA, 1992).
Com relação à organização das crianças na sala de aula, estas se sentavam enfileiradas uma atrás da outra, havendo uma modificação dessa organização nas aulas de língua portuguesa, quando a professora formava dois grupos na sala de aula. Essa divisão dos grupos era de acordo com os níveis estabelecidos pela professora para os seus alunos. A partir dessa divisão, a professora fazia propostas de atividades diferentes para cada grupo, demonstrando, assim, sua preocupação em atender às especificidades de aprendizagem de seus alunos. A professora realizava atividades para os alunos no quadro, no livro e em fichas, demonstrando que utilizava suportes diversos para propiciar a construção do conhecimento de seus alunos. Ainda foi possível verificar que a professora sempre fazia a correção das atividades propostas, seja de forma coletiva no quadro, ou individualmente, aluno e professora. Os alunos, em sua maioria, se mostravam participativos na realização das atividades propostas.
Dos 10 dias de observação, em apenas dois a professora trabalhou com produção textual. Ela realizou uma produção de texto por semana, e já tinha um dia da semana preestabelecido para a realização das atividades desse eixo de ensino, que poderia ser ou na sexta-feira ou na quarta-feira.
A professora tinha uma rotina estabelecida, mas fazia alterações quando percebia a necessidade da turma. As atividades de produção de textos desenvolvidas envolveram dois gêneros: história (realizada no 5º dia observado), e diário (realizada no 8º dia observado) e tinham como destinatário a professora.
A seguir apresentaremos de forma sintética como a docente desenvolveu cada atividade de produção de texto de acordo com os agrupamentos que fazia em sua sala de aula:
1ª Atividade de PT: Construção de história a partir de uma sequência de imagens (5º dia observado) | |
---|---|
Grupo de alunos com mais autonomia (10 alunos) | Grupo de alunos com menos autonomia (12 alunos) |
Antes da PT: ü Realizou o planejamento do texto com base em roteiro apresentado à turma; ü Apresentou os critérios avaliativos da PT. Durante a PT: ü Circula pela sala tirando dúvidas individualmente quanto à escrita do texto no que se refere à grafia e à textualidade. Os alunos fizeram o texto de forma individual. A apoio da turma fica nesse grupo tirando dúvidas, enquanto a professora vai fazer a produção coletiva com o outro grupo. Após a PT: ü A professora lê silenciosamente os textos dos alunos e os corrige: ora ela corrige o texto dos alunos marcando onde está errado, ora ela observa o erro e propõe que o aluno corrija naquele momento junto com ela; ou ela faz a correção do texto do aluno e pede que o mesmo modifique o texto em sua cadeira. |
Antes da PT: ü Explicou que os alunos iam fazer a produção da história, de forma coletiva, tendo ela como escriba; ü Montou um cartaz que guiou a construção da história de forma coletiva, com seu planejamento. Durante a PT: ü A professora atua como escriba na realização do texto coletivo a partir de um cartaz e estimula a participação das crianças; ü Faz questionamentos quanto aos aspectos da textualidade e da grafia (escrita correta das palavras). Após a PT: ü A professora faz a leitura do texto coletivo; ü Depois, as crianças escrevem o texto coletivo do quadro no caderno. ü A professora lê o texto copiado pelos alunos, faz a marcação do erro encontrado e dá o visto no caderno. |
2ª Atividade de PT: Diário (8º dia observado) | |
Grupo com mais autonomia (15 alunos) | Grupo com menos autonomia (12 alunos) |
Antes da PT: ü A professora inicia mostrando o livro: Diário de um banana lendo um modelo de diário tirado do livro; ü Ela fala das características desse gênero (data, tom pessoal, desenhos junto ao texto, não precisa ter começo, meio e fim), a partir do livro mencionado e de outro modelo de diário que ela levou; ü Informa a finalidade: que eles escrevam sobre algo que aconteceu ou que marcou e que não foi bom. Durante a PT: ü Circula pela sala tirando dúvidas individualmente quanto à escrita do texto no que se refere à grafia e à textualidade. Os alunos fizeram o texto de forma individual. Após a PT: ü A professora lê silenciosamente os textos dos alunos e os corrige: ora ela corrige o texto dos alunos marcando onde está errado, ora ela observa o erro e propõe que o aluno corrija naquele momento junto com ela. ü Ela propõe que alguns alunos façam a reescrita de seus textos observando aspectos da textualidade e da grafia. |
A professora não realizou atividade de produção de textos com esse grupo de alunos. Nesse momento ela fez uma atividade de produção de frases, conforme apresentamos a seguir: Antes da atividade: ü Explicou que os alunos iam participar de um jogo de palavras e, a partir das palavras do jogo, fariam posteriormente frases. As frases a serem produzidas tinham relação com o jogo. ü Realização do jogo: a professora chama cada aluno para tirar uma palavra da caixa, fazer a leitura e colar a palavra onde está o desenho correspondente no cartaz colado na parede. ü Nesse momento, a professora ajuda os alunos na leitura da palavra e os que tinham dúvidas quanto à construção das frases, a partir das palavras que apareceram no jogo. A apoio da turma também a auxilia nessa atividade; Durante da atividade: ü Faz questionamentos quanto aos aspectos da grafia (escrita correta das palavras); ü Confronta e, algumas vezes, faz a marcação e corrige o que está errado nas frases dos alunos. Após a atividade: ü A professora faz a leitura das frases dos alunos e dá o visto no caderno. |
Fonte: Elaboração das autoras.
Observamos que as propostas de produção textual que a professora fazia em sua turma eram dissociadas das outras atividades escolares. Assim, as atividades de produção textual eram estanques e notamos certa rigidez quanto ao tempo proposto para cada aula/disciplina, uma vez que na aula de produção de texto tudo tinha que acontecer, impreterivelmente, no momento dessa aula de produção (planejamento da produção, produção em si e correção da produção), não podendo extrapolar, dessa forma, o horário já estabelecido no cronograma semanal. Com isso, notamos que o tempo disponível para a produção em si ficava comprometido.
Na primeira produção proposta, construção de uma história a partir de uma sequência de imagens, para o grupo de alunos com mais autonomia que fez suas histórias de forma individual, as crianças tiveram em média 40 minutos para produzir suas histórias. Para o grupo com menos autonomia, que fez a produção de forma coletiva tendo a professora como escriba, a produção aconteceu em média em 25 minutos. Com relação à segunda produção proposta, diário, para o grupo com mais autonomia que fez suas produções de forma individual, em um tempo médio de 46 minutos, e para os alunos com menos autonomia que não fizeram produção de texto, mas sim, frases, a produção ficou no tempo, em média, de 54 minutos.
Observamos que de maneira geral a professora promove a produção de texto como uma atividade muito presa à esfera escolar. Com relação às condições de produção, não havia uma promoção de situações que fizessem os alunos refletir sobre os diferentes aspectos que envolvem essa produção, como: Para que estou escrevendo? Para quem estou escrevendo? O que eu quero escrever?. As produções ficaram mais presas, dessa forma, ao “como escrever”.
Nos comandos dados pela professora não há, portanto, indicações quanto aos destinatários e às finalidades para a escrita dos textos; os gêneros textuais indicados nas atividades de produção de textos não são objeto de reflexão em atividades anteriores, apenas são usados como pretextos; não há orientações adequadas quanto ao planejamento dos textos, apenas são destacados elementos vinculados à paragrafação para o grupo com mais autonomia; não há orientações para a revisão e reescrita dos textos e, por fim, não há orientações ou atividades de reflexão sobre aspectos específicos da textualidade e/ou da discursividade de acordo com as especificidades de cada grupo.
Desta forma entendemos que a professora tenta contemplar a heterogeneidade de sua turma, entretanto não o faz de forma satisfatória sempre. Como pode ser visto no Quadro 2, a docente fazia uma divisão dos alunos para a realização das atividades, mesmo que os alunos com menos autonomia, em alguns momentos, realizassem outras atividades em detrimento da produção textual. Segundo ela, seria difícil realizar a atividade de produção, individualmente, com o grupo dos alunos com menos autonomia. Assim, parece-nos que a perspectiva da professora está pautada pelos aspectos gráficos, linguísticos e de legibilidade, e não tanto pelos discursivos quanto à sua prioridade para com esse grupo. Para ela o importante era que os alunos estivessem realizando atividades de escrita, apropriando-se do Sistema de Escrita Alfabética (SEA), produzindo frases legíveis, já que não conseguiam (em sua avaliação), individualmente, produzir os textos (diário) esperados por ela. Como o diário é um gênero que demanda uma escrita individual, a professora optou pela escrita de frases para viabilizar que o estudante participasse de alguma maneira desse momento da aula. Dessa forma observamos que a professora apresentou dificuldade em desenvolver atividades de produção de textos de forma constante com o grupo com menos autonomia.
5 Considerações finais
Este artigo teve como objetivo apresentar como uma professora conduz o processo de ensino de produção de texto em uma turma do 3º ano do ciclo de alfabetização, levando em consideração a heterogeneidade da turma.
Os resultados indicam que a professora tenta, a seu modo, propiciar que seus alunos avancem com relação ao SEA, como também em relação à produção de texto. Desta forma, busca atender à heterogeneidade da sua turma tendo metodologias específicas para cada grupo de acordo com a divisão que faz em sua turma, pautada nos níveis de escrita e de produção textual que os alunos apresentam, apesar de suas dificuldades na elaboração de propostas discursivas. Para isso ela utiliza o dispositivo de agrupamento, nas aulas de língua portuguesa, de modo que a atividade esteja de acordo com o nível das crianças de cada grupo.
Assim, essa era uma prática frequente da professora, já que, como ela afirmou em entrevista, era a forma que tinha encontrado para todos os alunos participarem do momento de produção de texto. Como destaca Chartier (2000), o dispositivo pode ser compreendido como um quadro de organização da prática docente, que é definido e estável, e faz parte dos procedimentos de ação utilizados em situações cuja finalidade é resolver um problema.
Destacamos, ainda, que apesar de a professora utilizar a divisão de grupo da sala em dois agrupamentos distintos para realizar as atividades de produção de texto, de acordo com seus critérios, observamos, a partir das nossas diagnoses (de palavras e de texto), que alguns alunos que se encontravam no grupo com menos autonomia já estavam no nível alfabético, portanto poderiam participar do outro grupo que tinha uma exigência maior com relação à autonomia de escrita.
Com relação à perspectiva adotada para trabalhar a produção de texto, a professora apresenta uma prática que se configura como “mista”, tendo episódios de produção de textos “tradicionais”, não inferindo, para tanto, sobre as condições necessárias para a produção de texto e não trabalhando na perspectiva de texto dentro de um gênero, mas, sim, em uma perspectiva de texto com relação apenas ao tipo textual. Além disso, essa atividade não estava articulada com as atividades anteriores, o que não contribuía para que os alunos refletissem sobre o que escrever e por que escrever.
Foram observados, ainda, momentos em que a produção de texto acontecia numa perspectiva de gênero. O gênero que a professora trabalhou foi o diário, com o grupo de alunos com mais autonomia, onde ressaltou aspectos como as condições de produção e as finalidades de tal gênero discursivo. Utilizou, para isso, um modelo que a auxiliava na explicação sobre as condições de produção. Observamos, ainda, que em alguns momentos as condições de produção foram tratadas de forma indireta, como por exemplo, o destinatário dessa produção textual. O próprio suporte para essa produção, o caderno de produção textual, criou um distanciamento das finalidades do gênero em questão.
Para o grupo de alunos com menos autonomia a professora não realizou atividade de produção de textos, mas, sim, atividade de produção de frases, para que os estudantes, a seu ver, tivessem autonomia na atividade. No entanto, como apontado pela diagnose que realizamos (de palavras e de texto), havia, nesse grupo, crianças já alfabéticas que poderiam ter realizado a atividade de produção do diário com autonomia por já serem alfabéticas e terem escrito seus textos de forma legível em nossa diagnose.
Destacamos, ainda, que o grupo com menos autonomia não teve muita oportunidade para o desenvolvimento de escrita de textos, uma vez que a única produção realizada por esse grupo foi a construção de uma história a partir de uma sequência de imagens de forma coletiva, tendo a professora como escriba, sendo proposta na semana seguinte a construção de frases, e não de texto para esse grupo. Destacamos que há vários gêneros e formas de produção de texto, como a própria produção coletiva que ela fez com esse grupo na primeira semana, que podem subsidiar a aprendizagem com relação a esse eixo de ensino.
Reiteramos a importância da produção de texto, independentemente do nível de uso da escrita pela criança, uma vez que o contato com o texto favorece a observação das relações grafofônicas e a percepção sobre as formas como os textos são escritos, além de possibilitar compreender os diversos contextos de uso, bem como as características dos gêneros.