Controvérsias contemporâneas sobre as ciências da educação
Diante da tendência mundial de adequar o ensino superior cada vez mais às demandas ocupacionais geradas pelo sistema econômico globalizado, desacordos em torno das ciências da educação e a o seu ensino nas universidades tem feito parte das preocupações das discussões educacionais. De modo esquemático, podemos conduzir as controvérsias a duas tendências principais: alinha-se, de um lado, uma tendência de enxugamento do estudo de tais ciências em favor do treinamento de habilidades necessárias para a prática educacional e, de outro, a defesa de uma formação teórico-metodológica ampla e aprofundada, que torne os educadores capazes de uma compreensão mais fundamentada da complexidade do fenômeno educacional, seja como processo individual, seja do ponto de vista social. De forma geral, estas duas tendências contrapostas podem ser inserida no mais amplo debate contemporâneo sobre princípios, formatos e finalidades da educação. Trata-se de questionamentos presentes ao longo de toda a história da educação, mas que hoje devem ser reexaminados, levando em conta as transformações sócio-política-econômicas mais recentes e o seu significado para a organização do sistema educacional, também nos seus aspectos pedagógicos.
Neste sentido, como já em parte se sugere nas linhas acima, podemos destacar o fato do debate girar em torno da diferente função atribuída à educação em vista da inserção dos indivíduos no mundo do trabalho: por um lado, posicionamentos que enfatizam o papel profissionalizante da educação (ou que reduzem o seu papel à profissionalização); por outro, argumentações em prol de uma educação que promova uma crescimento da pessoa, também no que diz a respeito da dimensão afetiva, cultural, social, ética e política. A referência teórica ideal deste segundo modelo é, primariamente, a Bildung alemã do séc. XVIII, e, de forma geral, os valores humanistas da tradição ocidental, exemplarmente o modelo da paideia grega e da Renascença. A polaridade exposta acima deixa-se então evidenciar também num sentido histórico e está relacionada a transformações socio-politicamente determinadas da compreensão de si e das possibilidades de atuação do sujeito. Segundo Goergen (2017, p. 449), por exemplo, “o ideal da formação, nos termos da Bildung, partia do pressuposto de uma forte autonomia do sujeito com relação à realidade. Hoje, certamente, pendemos para o extremo oposto, na medida em que o homem abre mão de sua liberdade e se submete ao real, ao sistema”1.
O que está em jogo, no entanto, é o modo em que, no debate, se entende o critério da liberdade. Embora haja um certo consenso do que a liberdade seja um princípio constitutivo da educação (diferentemente do treinamento passivo de habilidades e da aprendizagem mecânica de conteúdos), os defensores da formação integral e humana se posicionam hoje contra a visão da educação como produto de consumo, isto é, idealizada de acordo com modelos determinado unicamente por lógicas de mercado, e argumentam em prol de uma formação libertadora para todas e todos, mais inclusiva e igualitária, voltada não apenas ao crescimento de vantagens individuais, mas também ao bem estar coletivo e à justiça social. Contra isso, visões neoliberais ressaltam o fato que uma educação realmente libertadora não pode, por definição, se tornar integralmente objeto de planejamentos e consultas coletivas. Para ser livre, a educação deve ser uma opção de escolha pessoal, o que no caso das crianças significa uma escolha de quem é juridicamente responsável por elas. A liberdade então é entendida basicamente como liberdade de educar os filhos de acordo com os princípios considerados justos na dimensão privada (muitas vezes apenas familiar, mas frequentemente também de acordo com as orientações da comunidade religiosa a que se pertence), reduzindo ao mínimo possível as intervenções públicas em tema educacional e se opondo ao compartilhamento coletivo de valores que não sejam os reconhecidos neste plano privado. A educação sexual, religiosa, mas também normas de boa educação, crenças e posicionamento nos mais diferentes campos do opinável se tornam questões que não podem ser objeto de discussão na escola2.
Não pretendemos, em seguida, esgotar a questão do estatuto epistemológico, da função prática e da importância sociopolítica das ciências da educação, um assunto tão complexo e tão intensamente debatido hoje em dia, seja na academia, seja no nível midiático. Pretendemos contudo dar alguns passos na direção de esclarecer alguns núcleos conceituais problemáticos, examinando e questionando o estatuto epistemológico das ciências da educação, assim como elas são compreendidas hoje no debate educacional e apontando sucintamente para suas origens históricas. O que é esperado pelas autoras é que tal análise, que quer ser apenas uma primeira aproximação teórico-conceitual ao problema, permita avançar em vista de uma reconstrução mais precisa do debate científico e dos seus aspectos midiáticos, tornando então possível, num momento sucessivo, discutir o papel formativo (na formação de educadores) das ciências da educação de modo mais fundamentado e consistente.
Da pedagogia como ciência filosófica às ciências da educação: o estudo científico da educação
Podemos começar a abordar a questão destacando o fato que hoje em dia não existe um consenso na comunidade científica sobre a especificidade e validade das ciências da educação, nem se quer relativamente a quais são as ciências da educação. Em seguida, abordaremos o problema da consistência epistemológica do conjunto de saberes que atualmente chamamos ‘ciências da educação’, investigando-o numa perspetiva histórico-conceitual. Reconstruiremos, por isso, em primeiro lugar as raízes históricas da constituição deste campo de saberes.
Observamos, antes de mais nada, que a elaboração de métodos cientificamente válidos para a pedagogia é uma exigência teórica que surge, na tradição do pensamento ocidental, no começo da época moderna e se afirma gradativamente durante tal época, levando entre o final do séc. XVIII e o começo do século XIX à definição de uma pedagogia entendida como disciplina científica. De acordo com isso, a pedagogia pretende se conformar ao modelo teórico-metodológico da ciência moderna, valorizando entre outros o critério de verificabilidade das teorias na experiência. Anteriormente a isso, o caráter experiencial da pedagogia era o de uma arte, baseada na prática individual e na transmissão do conhecimento do mestre para os seus discípulos. Como destaca Rossi (2001, p.31-32), a diferença entre a ciência moderna e a tradição científica anterior é marcada significativamente pelo modo diferente de ser relacionar ao mundo no processo de conhecimento: “a experiência de que falam os aristotélicos apela para o mundo do cotidiano a fim de exemplificar ou ilustrar teorias; as ‘experiências’ dos modernos são experimentos construídos artificialmente a fim de confirmar ou desmentir teorias”. A pedagogia moderna portanto, se configura, pelo menos idealmente, em analogia com as outras ciências modernas, como uma ciência eminentemente experimental.
Além disso, a fundamentação teórica da educação em épocas anteriores é de cunho estritamente filosófico. Tal fundamentação acontecia de acordo com princípios e modelos considerados válidos universalmente e determinados abstratamente3. A sua configuração como ciência permite à pedagogia definir o seu campo próprio de investigação e marca também a sua independência epistemológica da filosofia. O filósofo e pedagogo alemão Johann Friedrich Herbart (1776-1841) pode ser considerado o primeiro defensor de uma pedagogia cuja prática é fundada sobre um referencial teórico sistematicamente consistente, elaborado também através uma verificação empírica. Com efeito, de acordo com o filosofo e pedagogo alemão, existem duas vias para elaborar a reflexão pedagógica: além da síntese lógica, a partir de princípios, a metodologia pedagógica pode colocar como ponto de partida a experiência e as experimentações pessoais, assim como já tinham mostrado anteriormente os estudos pedagógicos de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827). Especialmente na Pedagogia Geral (1806), principal obra de teoria da educação de Herbart, se torna evidente que tal duplicidade metodológica pode ser utilizada de modo complementar. Além disso, se a primeira via (dos princípios à realidade) guia o pedagogo na determinação dos fins da educação e se carateriza portanto como filosófica e mais propriamente ética, a segunda via (da realidade ao modelo teórico) se baseia em pesquisas de cunho psicológico, desenvolvidas por sua vez a partir do estudo do substrato biológico das faculdades mentais. A alma é por Herbart, por muitos considerado o precursor da psicologia moderna, é algo real, que pode ser estudado cientificamente (LANDERER; HUEMER, 2018). De acordo com isso, é possível elaborar instrumentos de intervenção pedagógicas de forma cientificamente fundada (HILGENHEGER, 2010).
A abordagem positivista, a partir da segunda metade do século XIX, reforça e enriquece teoricamente a ideia de um estudo científico das questões pedagógicas e o nascimento da sociologia da educação, com Émile Durkheim, determina de forma definitiva a separação epistemológica entre filosofia e pedagogia: de acordo com Durkheim, com efeito, a educação é um problema que deve ser investigado com base no estudo científico da sociedade, e não apenas como questão de crescimento e desenvolvimento individual. Mais do que isso, o sociólogo francês considera o individuo produto da sociedade (e não vice-versa): o enfoque da pesquisa pedagógica vai incluindo cada vez mais questões sistémica (institucionais) e dinâmicas coletivas, se deslocando cada vez do seu enfoque originário, prescritivo-normativo e fortalecendo uma perspetiva de análise da educação como fenómeno sociopolítico também através de diferentes sistemas educativos, presentes e passados: “para definir a educação é necessário pois considerar os sistemas educativos que existem ou que existiram, aproximá-los, destrinchar as caraterísticas que lhe são comuns.” (DURKHEIM, 2007, p. 49.)
Do ponto de vista histórico, podemos, portanto, destacar a emergência progressiva de duas disciplinas, a psicologia e a sociologia, que foram se tornando cada vez mais importantes para o estudo da educação. Ambas desenvolvem, desde o século XX até hoje, teorias e métodos próprios, cientificamente fundados, que podem ser implementados em contexto educacional e reivindicam a sua independência epistemológica em relação à filosofia.
A instabilidade epistemológica das ciências da educação e a sua componente axiológica
Embora também não faltem teorias pedagógicas de inspiração eminentemente filosófica (por ex. o neo-idealismo do italiano Giovanni Gentile ou o neotomismo do francês Jacques Maritain), ao longo do século XX, se afirma e se difunde na comunidade acadêmica internacional a visão de que o estudo da educação necessita da elaboração e aplicação de teorias e métodos cientificamente fundamentados e que a questão educativa não pode ser enfrentada a partir de um modelo ideal de ser humano. De acordo com tal visão, a problemática educativa é abordada realizando intervenções pontuais e planejadas, de que se esperam resultados verificáveis e inspiradas numa lógica de experimentação e de controle científico. O método científico oferece um embasamento teórico sólido e rigoroso para a prática educativa, apresentando, pelo menos a primeira vista, maiores garantias de qualidade dos procedimentos e maior possibilidade de sucesso dos resultados do que ações pedagógicas realizadas de acordo com os princípios do senso comum. Entre o final do século XIX e o começo do século XX se afirma a pedagogia experimental: na Alemanha, inspirada na escola de psicologia experimental de Wilhelm Wundt, com Wilhelm August Lay e Ernst Meumann, fundadores da revista “A pedagogia experimental” (1905). Na França (Alfred Binet, Thomas Simon), na Bélgica (Raymond Buyse); na Suiça (Claparéde) vão se afirmando também pesquisas experimentais em campo pedagógico (CAMBI, 2008, p.962 ).
É sabido, contudo, que a confiança na visão de mundo sustentada por tal visão de ciência é destinada a se tornar objeto de questionamento para o debate epistemológico da segunda metade do século XX. O modelo cientificista é amplamente questionado e criticado, sobretudo no que se refere a sua lógica objetiva e objetivante, quando se trata de estudar o ser humano. No campo das ciências humanas e sociais, com efeito, não podem ser aplicados os mesmos critérios de objetividade utilizados pelas as ciências da natureza; a ação humana não possui o mesmo grau de previsibilidade dos fenómenos físicos. Na verdade, a própria “precisão” das assim chamadas ciências exatas é colocada em dúvida e outros modelos de ciências, diferentes do modelo moderno, surgem também no âmbito do conhecimento do mundo físico: “As mecânicas contemporâneas, a mecânica relativista, a mecânica quântica, a mecânica ondulatória, são ciências sem antepassados”, escreve o epistemólogo francês Gaston Bachelard (2006, p.204).
O século XX é, complexivamente, época de reconstrução de paradigmas e referências epistémicas e valores absolutos. A própria anomalia, como ressalta a filósofa italiana Franca D’Agostini (1999) no título de uma “breve história da filosofia do século XX”, se torna paradigmática. O novecento é a época da “pluralidade sem centro” e o que há de coerente e unitário, na época da globalização, é justamente a falta de coerência e unidade. No entanto, de acordo com D’Agostini (1999, p. XI-XII) três ‘verdades’ se afirmam, de modo paradoxal, na medida em que elas colocam em questão o critério da verdade absoluta: o historicismo (“a historicidade da verdade é também uma verdade histórica?”), o relativismo (“a universal relatividade das crenças e aquisições é ela mesma uma crença ou uma aquisição relativa?”); o contextualismo (“é a contextualidade das regras o princípio de uma regra contextual?”). Tal crise epistemológica perpassa também a pedagogia contemporânea. A pluralidade de abordagens teóricos e modelos que carateriza o debate filosófico entorno questões metafísicas, éticas, políticas e sociais se expressam também numa vertente pedagógica. Modelos como o analítico, o estruturalista-crítico, o dialético, o hermenêutico estão presentes na reflexão sobre educação. A partir dos anos 80, também as teorias feministas, ecologistas e o interculturalismo darão contribuições fundamentais para pensar a educação. O que inicialmente parecia ser a solução para a pedagogia, a saber, ganhar o estatuto de verdadeira ciência, se transforma, de fato, no seu maior desafio epistemológico. Qual modelo de ciência adequado para o estudo dos problemas educativos? Quais ciências podem compor o campo das ciências da educação? Quais abordagens teóricas, modelos e métodos devem ser utilizados para pensar, produzir e fazer educação?
Ao começo do século XX, surge um novo campo do conhecimento e a esse campo são dados vários nomes: “Educational Studies, Educational Science(s) ou Research, Child Psychology, Child Study, Erziehungswisseschaft(en), Pädagogik, Experimentelle Pädagogik/ Didaktik, Kinder- und Jugendkunde, pédologie, Science(s) de l’education, psychologie de l’enfant, pédagogie expérimentale, recherche éducationnelle, Investigación educativa, Педаґоґіка.” (HOFSTETTER, 2012, p.318). A emergência do campo do conhecimento corresponde, na prática à sua estruturação disciplinar e institucional, com a abertura de institutos e pesquisa e ensino superior, cursos, laboratórios, faculdades e disciplinas dedicados ao estudo da criança e da educação. Há, como foi estudado para a história europeia e norteamericana e mereceria ser investigado mais profundamente no Brasil (ROMANELLI, 1986), uma certa especificidade nacional (DEPAEPE, 2001; TENORTH, 2001; CHARLOT 2001; CRIBLEZ, 2001).
Atualmente há uma multiplicidade de disciplinas que se ocupam de problemas educativos. Psicologia e sociologia são nomeadamente as duas ciências que podem reivindicar a maior tradição no campo da ciência da educação4, há muitas outras disciplinas que escolheram a educação como uns dos objetos privilegiados da sua investigação e desenvolveram estudos significativos nesse âmbito. Fundamentais, por exemplo, se tornaram os estudos sobre os nexos entre economia e educação; se interessam também de educação a biologia, as neurociências, a genética, a fisiologia, a estatística, a psicanálise, e mais recentemente, a cibernética e a proxêmica. Entre as ciências humanas, temos que mencionar a história, a antropologia, a etnologia e a filosofia (ARRUDA ARANHA, 1996, p.150; CAMBI, 2008, p.556; MARS, 2017).
Embora seja fácil verificar que hoje em dia a educação é objeto de estudo pluridisciplinar, problemático ainda é mostrar se há algo que dá unidade a tais investigações. Com efeito, cada uma destas disciplina reflete sobre a educação primeiramente a partir do seu próprio campo epistemológico, quer dizer, utiliza um seu próprio repertório de teorias e métodos, inclusive um próprio modo de construir o objeto que vem a definir como ‘educação’. Dentro da mesma disciplina, é óbvio, teremos também posições conflitantes e interpretações divergentes dos problemas educativos. Diferente é, além disso, o modo em que cada ciência (e cada cientista) entende o seu próprio contributo à compreensão e a solução de tais problemas. Tal complexidade, portanto, se torna ela própria um tema para a reflexão em campo educacional. Tudo isso nós leva a questionar se um certo princípio de unidade de um campo que parece ser constitutivamente multifacetado e marcado pela complexidade, pluralidade e historicidade não deva ser procurado por outros caminhos, que não são determinados por critério estritamente epistêmico, mas sim incluem também a dimensão axiológica. É essa questão que nós ocupará no próximo parágrafo.
A prática educativa como objeto das ciências da educação
Defendemos a tese que o que embasa à possibilidade (e à necessidade) do estudo científico da educação e justifica a existência das “ciências da educação”, enquanto conjunto consistente de saberes e não como um agrupamento aleatório de conhecimentos ou de disciplinas, envolve uma discussão sobre valores e pode ser abordado exclusivamente através uma referência à prática educativa, em quanto finalidade das ciências da educação. Como destaca Tenorth (2014, p.5) a história da pedagogia sempre foi marcada por disputas sobre o que são “o estatuto e a tarefa desta disciplina a serem considerados cientificamente corretos e adequados ”. Aborda-se constantemente nestas controvérsia o problema da relação entre fatos e valores no estudo da educação e a questão das finalidades da pedagogia: Melanctone falava de quanto fizesse falta para a humanidade uma “scientia educandorum liberorum”.Desde o século XVIII a ciência empírica, baseada na observação entra em competição com a pedagogia filosófica e o escritor e ensaísta alemão Karl Philiph Moritz (1756-1793), por exemplo, deplora a “tagarelice moral” entorno à educação (TENORTH, 2014, p.6).
Em seguida pretendemos destacar dois momentos significativos na história do estudos pedagógicos através a referência a dois autores clássicos, a saber, Herbart e Dewey. Não queremos com isso, nós apropriar integralmente das teorias pedagógicas defendidas por cada um destes pensadores, nem considerá-los como únicos autores a terem proposto teses significativas sobre o assunto da cientificidade e da especificidade da pedagogia. Pelo contrário, se sugere aqui uma pista interpretativa que se pretende, futuramente, aprofundar e integrar também com reflexões desenvolvidas por outros autores5.
De acordo com a recente leitura de Dalbosco (2018), tal especificidade pode ser detectada já no pensamento de Herbart: “para que consiga cumprir essa tarefa de formação intelectual múltipla, a educação não pode ser deduzida, como mostra o autor na própria introdução da Pedagogia geral, nem do sistema filosófico especulativo e nem do método científico experimental moderno. Independente da metafísica e da ciência experimental, a educação precisa de uma Pedagogia independente, que possa investigar autonomamente o conteúdo da ação formativa humana. Como afirma Herbart, seria melhor se a Pedagogia “pudesse refletir com base em seus próprios conceitos (einheimischen Begriffe), cultivando pensamento independente” (HERBART, 1965, p. 21).
Como se ressaltou anteriormente, a pedagogia pode então proceder de forma análoga às ciências, no que diz ao desenvolvimento dos métodos pedagógico-didáticos e se apoiar na filosofia, relativamente à definição dos fins. Há algo, contudo, que está vinculado ao próprio ato pedagógico. O ato de educar requer, por assim dizer, uma operação autorreflexiva, que não pode ser delegada a agentes externos à ação pedagógica, na medida em que esta autorreflexão possui um valor orientador pela prática educacional e a sua idealização.
Uma reflexão que vai também nesse sentido aparece no trabalho de Dewey, quando, em 1929, em um texto dedicado ao estudo das fontes da educação, o filósofo norte-americano destaca que o que norteia o estudo da educação é a própria prática educativa, e não umas construções teóricas, elaboradas por disciplinas científicas. De acordo com Dewey, a fonte primária das ciências da educação são os processos e os resultados educativos. Lá os cientistas da educação acham os dados, os argumentos que constituem os problemas da sua investigação e lá ele tem que voltar para verificar a qualidade das suas pesquisas. Por isso, o que determina o valor e a utilidade de uma descoberta científica no contexto das ciências da educação, de acordo com Dewey, são as finalidades educativas. Ao contrário, porém, não é possível determinar cientificamente tais finalidades. Retomado também por Teixeira (1977), o posicionamento de Dewey insiste sobre o fato do que o estudo da educação por parte dos cientistas da educação não tem como objetivo tornar a educação um problema científico, mas sim abordar questões educativas de acordo com princípios científicos. Também na perspetiva deweyana podemos detectar então um tensionamento entre ciência e prática educacional, umas dinâmicas de ação recíproca (da prática à teoria, da teoria à prática), que ganha sua própria especificidade somente se temos em vista a finalidade pedagógica do estudo da educação.
Chegando à contemporaneidade, podemos destacar, de acordo com Mars (2017, p. 90) que as “ciências da educação diferenciam-se de outras ciências essencialmente por abordarem assuntos de natureza educativa com objetivos pedagógicos e formativos”. Em outras palavras, o que torna “ciências da educação” um conjuntos de ciências que se ocupam de problemas de educação é, novamente, a finalidade com que estas ciências abordam o problema da educação. Não é então (apenas) pelo fato de abordar questões educacionais que uma ciência pode ser incluída entre as ciências da educação. Em outras palavras, apenas um teórico comprometido com a prática educativa (seja ele um filósofo, um psicólogo, ou um sociólogo etc.) é capaz de produzir uma reflexão significativa para tal prática. Diferentemente, ele poderá tratar de problemas educacionais sob outros enfoques e perspectivas: nada impede isso, questionável, contudo, é se tal reflexão pode ser situada dentro do campo das ciências da educação. Com efeito, a prática é o início e o fim de toda a reflexão científica sobre educação.
Se for assim, isso significa que o problema de uma fundamentação do saber das ciências da educação inclui um componente axiológico que não é possível contornar: o que consideramos “ciências da educação” depende dos objetivos pedagógicos e formativos que nós consideramos adequados. Em outras palavras, nas ciências da educação precisamos de uma meta-análise que inclua também uma reflexão sobre objetivos éticos, sociais, culturais e políticos da educação, justamente para poder voltar cada vez novamente à consideração da realidade pedagógica, à prática com instrumentos de análise e reflexão refinados, sem perder contudo o nexo com a complexidade e e a riqueza do real. A pedagogia é “um saber complexo, que pode ser interpretado através de diversos paradigmas (ou modelos) teóricos, que deve confrontar-se de forma articulada e dialética (não linear e plural), como constituído de elementos diversos que só um metacontrole (uma epistemologia, uma metateoria) permite fixar, reconhecer, e não eliminar, não caindo no erro de querer reduzir a complexidade/riqueza/variedade e o pluralismo/conflitualidade da Pedagogia (CAMBI, 1999, p-637).
Em lugar de uma conclusão: a abordagem transdisciplinar nas ciências da educação
Autores tem questionado a falta de aproximação das ciências da educação com a prática educativa (Mazzotti, Oliveira, 2000; Dias de Carvalho, 2002; Pimenta, 2011). Mazzotti e Oliveira (2000, p. 30) escrevem que “dificilmente os professores poderão ser melhores porque conhecem muito de psicologia, sociologia, antropologia, caso não sejam capazes de interagir com os seus alunos de maneira significativa”. Já Dias de Carvalho (2011) afirma que as ciências da educação oferecem um aparente estatuto de cientificidade à educação, pois se remetem prioritariamente às suas referentes ciências humanas definidas previamente e independentemente da sua intervenção no fenômeno educativo. E ainda, segundo Pimenta (2011), as ciências da educação tem pouco valor para a investigação pedagógica, pois apenas aplicam os seus conceitos e métodos próprios à educação. Para ela, a descrição, a explicação, a interpretação que essas ciências oferecem não são suficientes para captar o real educativo.
Argumentando de acordo com diferentes perspetivas, todos esses autores colocam o enfoque da reflexão na relação entre ciências da educação e prática educativa, identificando-a como deficitária. Distinguiremos em seguida dois nível para abordar esta questão: um primeiro nível, político-institucional (e pragmático, da atuação) e um segundo, novamente, em perspectiva epistemológica. De acordo com um primeiro enfoque podemos observar que é uma tendência internacional privilegiar o a aprendizagem de competências profissionais técnicas: as ciências da educação tem perdido o espaço na formação e preocupado especialistas. O que acontece é que que sem definição de sua especificidade e sendo acusadas de distanciamento do fenômeno educativo (Carvalho, 2002; Nóvoa, 2001; Mazzotti e Pimenta 2011), as ciências da educação tem sido engolidas pelas reformas internacionais que caminham, cada vez mais, para o enxugamento das competências mais interpretativas. Trata-se então de pensar novamente como aproximar as ciências da educação à prática, ou como mostrar como tal proximidade já existe, mesmo se desconhecida num nível divulgativo.
De acordo com o segundo enfoque, vários autores destacaram o caráter pluridisciplinar das ciências da educação: “As ciências da educação são um “campo pluri-interdisciplinar autônomo e insubstituível que tem por função produzir saberes específicos sobre essa realidade altamente complexa” (LENOIR, 2016, p. 4). Ao mesmo tempo, foi questionado o princípio que poderia qualificar uma definição se não unitária pelo menos consistente do saberes educacionais. Hofstetter (2011, p.325), retomando umas teses de Stichweh (1987, 1994), considera o processo de surgimento das ciências educacionais um processo de disciplinarização de caráter secundário (secundary disciplinarisation): trata-se de “disciplinas originadas por campos profissionais de referência já existentes, em que já se acumulou o conhecimento profissional. Esses campos disciplinares estão intimamente ligados às profissões em seu campo de referência, a partir do qual por razões socioprofissionais, as demandas sociais, moldarão poderosamente o desenvolvimento do campo.” A estruturação disciplinar do campo acontece então - diferentemente do caso da disciplinarização de caráter primário (primary disciplinarisation) - através de uma referência explicita ao campo profissional, e não por razões meramente teóricas e científicas.
Por isso, a necessidade da inclusão no campo das ciências da educação do estudo da educação em perspetiva histórica, filosófica, antropológica e sociológica; o trabalho de análise sobre a consistência epistêmica do campo das ciências da educação; o debate sobre as finalidades da educação e a importância das ciências da educação para a formação de professores e educadores: são todos aspectos a serem enfrentados no contexto das próprias disciplinas educacionais e espaços acadêmicos da área. Tal debate não podem ser considerado hoje, para retomar as palavras de Moritz, apenas uma “tagarelice moral”, mas faz parte da tentativa de uma definição cientificamente fundamentada e socialmente compartilhada do que é educação. Entendemos como Mellowki e Gauthier (2004, p. 544),
que os educadores não podem ser meros técnicos, pois tem a obrigação de estarem sempre em situação e em estado de reflexão, de estarem sempre atentos, de analisarem as situações, de decodificarem as intenções e de adivinharem o significado dos comportamentos de todos os seus alunos, ao mesmo tempo em que procuram resolver as questões, dificuldades ou problemas de- correntes dessas situações, intenções e comportamentos.
Segundo os autores, embora os educadores tenham que recorrer inevitavelmente as técnicas para ensinar, eles não possuem uma fórmula mágica que se possa aplicar na sala de aula para que o ensino e a aprendizagem transcorram perfeitamente. As técnicas seriam apenas meios por intermédio dos quais os professores tentam colocar os conhecimentos gerais e disciplinares ao alcance dos alunos. Para que aprendizagem aconteça de verdade, ela deve agir como um intérprete, um tradutor e um divulgador (MELLOWKI; GAUTHIER, 2004). Em relação a isso, Flickinger (2014, 52) nos alerta dizendo que
na medida em as instituições clássicas de educação concentram-se na educação como processo prioritariamente dirigido à profissionalização mais eficiente possível dos jovens, obedecendo, assim, às exigências da economia e do mercado de trabalho, elas perdem de vista outras necessidades de sua ‘clientela’, a saber: auto-estima, liberdade de decisão ou orientação ético-moral.
É no sentido do educador se tornar interprete, tradutor e divulgador da realidade é que justificamos a relevância de uma reflexão sobre a articulação conceitual das ciências humanas que continua incluindo uma perspetiva dialógico-reflexiva, de comunicação discursiva entre as várias ciências. Se defendemos que a educação não tem apenas finalidades mercadológicas, mas também sociais, culturais e humanas, as ciências da educação deveriam se voltar para as demandas do mundo da vida, podendo encontrar na conversação discursiva a possibilidade de continuar cumprindo com o seu papel diante dos desafios sempre novos da formação humana.