Introdução2
A Língua Brasileira de Sinais - Libras é reconhecida como língua da Comunidade Surda brasileira desde abril do ano de 2002, e esse reconhecimento se deu graças a uma intensa mobilização da Comunidade Surda acolhida pela senadora Benedita da Silva que, no ano de 1996, apresentou o projeto de Lei no plenário do Senado Federal, de acordo com os estudos de Brito (2013).
Embora algumas pessoas afirmem que a Libras é a segunda língua oficial do Brasil, ela é na verdade uma língua reconhecida como “língua das comunidades surdas brasileiras” e esse reconhecimento se deu a partir da lei que resultou do referido Projeto da senadora, a Lei 10436/02, que em seu artigo 1º afirma: “É reconhecida como meio legal de comunicação e expressão a Língua Brasileira de Sinais - Libras e outros recursos de expressão a ela associados.”
Essa Lei traz em seu bojo que os surdos são seres legalmente bilíngues, isto é, ao mesmo tempo que reconhece a Libras como língua natural da comunidade Surda, também afirma que, vivendo no Brasil, precisam ter acesso à língua majoritária, nesse caso, a língua portuguesa, embora estabeleça que esta poderá ser aprendida apenas na modalidade escrita, visto que a modalidade oral é inacessível para as pessoas surdas. Isso pode ser confirmado no parágrafo único do Art.4º, que informa que “[...] A Língua Brasileira de Sinais - Libras não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa.”.
Essa medida dá liberdade para que os surdos sinalizadores possam exercer o direito de utilizar a língua (Libras) em todos os espaços e tentar superar os anos de oralismo, que estão descritos nos trabalhos de Skliar (1996); Sá (1999); Moura (2000), Vieira (2014) entre outros pesquisadores da área.
Para que a Lei 10436/02 pudesse ser viabilizada, em 2005 é promulgado o Decreto 5626, que a regulamenta e esclarece providências necessárias para que a Libras ganhe espaço, status e reconhecimento, em todos os setores da sociedade, incluindo principalmente os relacionados ao acesso à educação e à garantia dos direitos.
No ano de 2020, o Decreto 5626/05 completou 15 anos e podemos afirmar que muitos avanços foram conquistados a partir da sua promulgação, como por exemplo, o fato de a Libras ter se tornado disciplina obrigatória nos cursos de formação de professores. Este é um dos pontos que queremos abordar neste texto. O Decreto informa que:
Art. 3o A Libras deve ser inserida como disciplina curricular obrigatória nos cursos de formação de professores para o exercício do magistério, em nível médio e superior, e nos cursos de Fonoaudiologia, de instituições de ensino, públicas e privadas, do sistema federal de ensino e dos sistemas de ensino dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.
§ 1o Todos os cursos de licenciatura, nas diferentes áreas do conhecimento, o curso normal de nível médio, o curso normal superior, o curso de Pedagogia e o curso de Educação Especial são considerados cursos de formação de professores e profissionais da educação para o exercício do magistério.
§ 2o A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto (Brasil, 2005).
Podemos dizer que esse primeiro contato dos licenciandos com a realidade da trajetória dos surdos em sua luta por educação, assim como da complexidade da Libras é extremamente importante para que os processos de desenvolvimento da Comunidade sejam garantidos e principalmente para que a Língua de Sinais não seja banalizada, simplificada e/ou subordinada a Língua Portuguesa.
O Decreto ainda traz outras questões importantes como a garantia do ensino de surdos priorizando a L1 da Comunidade, a criação de espaços como salas de aulas bilíngues e a garantia de professores com fluência na Libras na educação Infantil e nos anos iniciais do Ensino Fundamental (Fund. I), assim como a presença de Tradutores Intérpretes de Libras/LP nos anos finais do Ensino Fundamental (Fund. II) e no Ensino Médio.
Podemos então dizer que, a partir desse documento, temos a Língua de Sinais - Libras - como primeira língua (L1) e a Língua Portuguesa como segunda língua (L2), na modalidade escrita garantidos, no entanto é importante realizar algumas ponderações de como tudo isso acaba sendo viabilizado no espaço escolar. Por isso, neste artigo, pretendemos trazer um pouco da experiência de professores da disciplina em universidades federais, um professor surdo e uma professora ouvinte. Além disso, analisaremos alguns dados produzidos em conversa com professores surdos de uma instituição escolar bilíngue, responsáveis pela mesma disciplina.
A partir dos discursos trazidos por esses atores, realizaremos uma análise baseada nos princípios da PCCol (Pesquisa Crítica de Colaboração), como diz Magalhães (2006), uma perspectiva metodológica que favorece a co-construção) dos participantes da pesquisa, além de favorecer uma construção coletiva da escola e da universidade, em processos formativos que buscam, nos discursos, as contradições e as negociações que nos permitem repensar ou conhecimentos, reelaborar conceitos. Essa visão revela, portanto, o compromisso dos autores como professor/a-pesquisador/a que consideram o trabalho na escola essencial para a produção de novos saberes e a reflexão sobre saberes já enraizados.
A PCCol tem como bases teóricas as discussões de Vygotsky (1924-1934/1997), especialmente os seus conceitos de zona de desenvolvimento proximal (intervenção, contradição e mediação). Como afirma Hollosi (2019, p. 93):
A formação crítico-colaborativa de educadores, embasada na PCCol propõe uma definição que se aproxima da perspectiva sócio-histórica-cultural que assume (a linguagem de argumentação), que volta para os processos de construção e não nos resultados sendo os participantes coprodutores num processo de formação que é crítico- reflexivo.
O ensino de Libras no Ensino Superior: a experiência do Professor surdo
A experiência com o ensino de Libras, minha3 L1, como L2 para ouvintes, teve início em 2014, na universidade federal onde trabalho, no curso de Licenciatura em Letras. Atualmente, a disciplina de Libras está na grade curricular com carga horária de 60 horas, na modalidade presencial, ocupando parte da carga horária do 5º termo desse curso. É oferecida no 1º. semestre de cada ano. Além disso, é também oferecida cursos de Licenciatura em História, Ciências Sociais e Filosofia, no 2º. semestre de cada ano, ocupando o 8º. termo das referidas grades curriculares.
A organização da disciplina explora questões mais amplas da Cultura e da Identidade Surdas e da comunicação básica em Língua de Sinais. O curso sofre com a pequena quantidade de horas oferecida, dificultando o aprendizado real da língua, que se coloca contrário à demanda de formação de professores capacitados para a inclusão escolar de estudantes, público-alvo da educação especial inclusiva, nesse caso específico estudantes surdos.
Durante as aulas, são abordados aspectos da legislação, bem como seus fundamentos e, de forma bastante sintética, as práticas com os diferentes públicos. A disciplina desperta o interesse dos estudantes para a temática, trazendo-lhes informações novas e apresenta questões e realidades para as quais eles ainda não haviam olhado. Muitos não imaginavam a presença de estudantes com deficiência ou surdos em suas salas de aula. Os conteúdos teóricos são explorados a partir do Moodle (ferramenta existente para trabalho via EaD) e de aulas presenciais, sendo trabalhados paralelamente às experiências e situações cotidianas.
A disciplina procura não apenas mostrar caminhos trilhados até o momento na educação de surdos, mas tem também o papel de ser propositiva em termos de reunir princípios que refletem um jeito surdo de construir conhecimento. Mais do que apresentar técnicas e fórmulas prontas de como ensinar e o que interfere na aprendizagem, é importante que a produção de surdos tenha cada vez mais espaço para criar textos. Se uma ideia puxa outra ideia, um texto de um surdo puxa textos de muitos outros surdos. Por isso, o foco principal das aulas são as práticas da língua.
No entanto, além do baixo número de horas, há também o problema do grande número de alunos matriculados na disciplina a cada semestre. Há, em média, de 40 a 60 alunos por turma, dificultando o aprendizado e a qualidade das aulas, já que, se considerarmos que, para comunicar-se em Libras, os interlocutores precisam se ver, visualizando inclusive o espaço que vai da cabeça ao meio do tronco um do outro (pelo menos), o ideal seria que as classes tivessem em torno de 20 alunos no máximo. Além das aulas presenciais, há a articulação dessa disciplina com o grupo de estudos e pesquisas, denominado Identidade e Cultura Surdas (GEICS), vinculado ao CNPq e um projeto de extensão “Bate papo em Libras”, que, durante os anos de 2020 - 2021, reuniu-se semanalmente, na modalidade remota, recebendo pessoas de várias cidades e cursos do país.
Como metodologia para ministrar as aulas faz toda a diferença para que todos possam se entender, o docente utiliza bastante o projetor multimídia, pois os alunos precisam do visual para entender a língua de sinais. Também intensifica o uso da estratégia de perguntas e respostas, na qual o grupo interage e pode compartilhar informações. Além disso, fazemos atividades práticas em sala de aula para que cada um possa, em casa, continuar aprendendo. Se alguém tiver dúvida, usamos também técnicas de soletração.
É importante analisarmos como a produção textual em língua de sinais é uma relação que envolve uma dinâmica de inter-relação entre corpo, espaço e movimento. Portanto, diferente de uma dinâmica presente nas línguas orais, as línguas de sinais convivem com o cênico como um elemento de atribuição de sentidos. Por isso, o ambiente ou espaço físico não é um mero componente ou detalhe, é um elemento decisivo para a produção de sentidos.
A experiência da professora ouvinte
A minha experiência de ensino de Libras, diferentemente daquela do colega surdo, é ensino da minha L2 para ouvintes também como L2. E o que me coloca nesse lugar é o processo de formação, tanto da Língua de Sinais, quanto do Língua Portuguesa, porque é preciso um aprofundamento em ambas as línguas para poder realizar essa atividade.
Na universidade em que atuo, também uma instituição federal, os docentes todos precisam ser portadores do título de doutorado e por isso, o nosso concurso ficou aberto por anos, até que pudéssemos preencher essa vaga.
Assim como descreve o meu colega surdo, a disciplina na universidade acaba tendo um caráter mais de informação sobre o público, a história e suas lutas e conquistas do que uma aprendizagem da língua em si, uma vez que a carga horária dispensada é muito curta. No meu ingresso, eram 24 horas (dois créditos) e agora temos 48 horas (4 créditos) e mais duas disciplinas de 48 horas com ênfase em teoria e outra em prática.
Os estudantes mantêm um grande interesse e, logo no início, imaginam que vão aprender a língua porque, para a maioria deles, Libras significa sinalizar o Português. Assim que tomam conhecimento da complexidade dessa língua, eles nos auxiliam na luta pela divulgação e seriedade com a língua e passam a entender o surdo como sujeito com diferenças linguísticas.
Assim como acontece na universidade do colega surdo, os estudantes são convidados a participar do grupo de pesquisa vinculado ao CNPq intitulado SueLi (Surdos e Libras) com atividades de formação e eventos ao longo do ano. Uma das práticas bem marcantes do nosso grupo é a realização do Ciclo de Palestras UFABC Debate Surdos e Libras.
Resultados
A partir dessas realidades, fizemos um comparativo com a coleta de materiais de surdos professores de uma escola bilingue sobre a Libras, bem como de um questionário com nossos alunos da graduação sobre as expectativas de aprendizagem da língua.
Com as professoras que ministram a disciplina para jovens surdos do Ensino fundamental II e Médio, pudemos levantar um certo equívoco no que diz respeito ao ensino da língua. Uma delas nos disse:
No planejamento, a gente precisa ver com os professores das outras disciplinas o que eles vão trabalhar, porque aí a gente consegue dar os sinais que os alunos precisam. A gente trabalha utilizando os termos de acordo com o ano série e com as disciplinas que eles frequentam” (Professora Paula4 responsável pelo ensino de Libras para os estudantes de Ensino Médio - 2020).
Essa fala de Paula, surda, tem muitas coisas controversas porque, ao mesmo tempo em que afirma possuir uma identidade surda e ser usuária fluente da língua, desconhece que a língua deve ser ensinada em sua totalidade e no contexto; a língua não é meramente um instrumental para aprendizagem de outras disciplinas. Muito provavelmente por conta de suas experiências de aprendizado da Língua Portuguesa, utiliza as mesmas estratégias que foram empregadas com ela no momento da escolarização.
Já a outra professora surda, Débora5, embora apresente concepções parecidas, na atividade realizada, se mostrou mais aberta ao entendimento de que língua precisaria ser trabalhada na totalidade. Além disso, embora tenha, a princípio, dito exatamente o mesmo que Paula, na apresentação do plano de curso já demonstrou uma reflexão sobre a formação:
Quando eu fui pensar como era pra ensinar a Libras, eu pensei que a gente tinha que mostrar para os alunos como se portar, que tinha uma Libras que era mais formal e outra informal. Eles precisavam entender que, na hora de apresentar um trabalho, precisavam olhar qual tipo de linguagem estavam usando. Eu nunca tinha feito isso; só depois da nossa conversa percebi que tinha que ensinar isso e eu nunca tinha aprendido. (Débora responsável pelo ensino de Libras para os estudantes de Ensino Fundamental II - 2020).
Pensamento muito próximo ao das professoras percebemos nos estudantes da graduação que imaginaram, num primeiro momento, que iriam aprender todos os sinais e dessa forma substituir as palavras da Língua Portuguesa. Acreditam, portanto, que estariam aptos a ter fluência na comunicação com os surdos com algumas poucas horas de contato com a língua.
Considerações finais
O trabalho elaborado mais amplamente em Libras e incluído a seguir demonstra que, embora tenhamos o consenso de que é necessário o ensino de Libras para os graduandos, principalmente os licenciandos e embora isso já está previsto na legislação, ainda não se sabe com qual carga horária ou quais conteúdos devem ser trabalhados, ficando, dessa forma, ao cargo do professor e ou da instituição de ensino tomar a decisão final sobre esses assuntos - o que, por um lado, pode ser visto como liberdade de criação para a instituição, mas por outro, pode dificultar o entendimento das necessidades especificas da comunidade.
Ainda encontramos a visão do “ser nato” como “ser o professor”, ou seja, a visão do falante nativo como naturalmente habilitado a ensinar a língua. Dessa forma, muitos ainda não têm uma habilitação para exercer o cargo de professor, mas por causa da surdez assumem cargos de ensino, sem perceberem que não possuem os conhecimentos básicos para o ensino da língua, pois o usuário da língua não é naturalmente um professor.
Por fim, vale destacar que, no Brasil, ainda não há uma proposta curricular oficial para o ensino de Libras. Desse modo, as experiências devem ser socializadas para que seja possível elaborar propostas e programas mais adequados ao ensino dessa língua.
É importante destacar também que a Libras está ganhando espaço nas duas universidades em questão e, hoje, temos em ambas, estudantes surdos na graduação e pós-graduação o que nos coloca outra problemática que é a acessibilidade, que podemos debater em outro momento.