Introdução
O artigo analisa as principais práticas de cura, suas formas de transmissão e de aprendizado em uma comunidade rural de Ibirité, Minas Gerais, entre as décadas de 1940 e 1970. Busca discutir os compartilhamentos e as tensões entre essas práticas e as prescrições realizadas em/por uma escola de formação de professores localizada no município - a Escola de Aperfeiçoamento, da Fazenda do Rosário. Os cursos oferecidos pela instituição visavam conferir um caráter científico à formação dos professores rurais no que se refere aos cuidados com a saúde e a higiene, no sentido de instrumentalizar as futuras professoras para que pudessem intervir nos modos de vida da população.
As principais fontes utilizadas foram depoimentos de pessoas que exerciam atividades relacionadas à saúde na comunidade e de ex-professoras e ex-alunas1 dos Cursos de Aperfeiçoamento. As entrevistas - no total de dez - foram realizadas com base nos pressupostos da História Oral (Ferreira; Amado, 1996; Portelli, 1997). Os documentos produzidos nos cursos, como os Diários dos Clubes de Saúde e as cadernetas de anotações, também foram usados como fontes. O relatório da pesquisa Várzea do Pantana: interação e transição2, a legislação educacional estadual e nacional, os impressos pedagógicos e os livros utilizados pelas professoras/alunas durante o curso, além de documentos institucionais, foram ainda mobilizados.
O estudo foi fundamentado, teórica e metodologicamente, nos pressupostos da História Cultural; em particular, nos conceitos de representação, na perspectiva de Roger Chartier (1990), e de táticas e estratégias, de Michel de Certeau (1998). Buscou-se, ainda, trabalhar em uma abordagem que não dicotomiza espaços complexos e multifacetados como o rural e o urbano (Martins, 1986; Williams, 1989).
O estudo histórico das tensões entre modos de curar de habitantes de comunidades rurais e prescrições pedagógicas baseadas no saber médico ainda é incipiente. Mesmo com as mudanças teóricas e metodológicas empreendidas nas últimas décadas no campo da História da Educação, são poucas as pesquisas sobre a educação rural, sua organização e as implicações desse processo em outras esferas da vida das populações residentes no campo (Faria Filho et al., 2005; Musial, 2011). Quando se trata do debate sobre a relação entre educação rural e saúde, observa-se um número ainda mais reduzido de trabalhos (Rosa, 2015). No entanto, é possível perceber, ao estudar o processo de institucionalização da escola no Brasil, a existência, desde o século 19, de uma forte relação entre educação e saúde. De acordo com Gondra (2004), no momento de organização do Estado Nacional, houve um projeto enunciado para a escola em nome da ciência e da razão. Esse projeto ganhou contornos a partir da ordem médica, sua institucionalização e seus agentes e, ao mesmo tempo, da exclusão de sujeitos, processos, práticas e modos de vida da maioria da população brasileira. A escola, pensada como lugar legítimo de formação das novas gerações, era considerada essencial para a intervenção não apenas no próprio espaço público da instituição, mas também nos espaços privados das casas.
Ao estudar os Cursos de Aperfeiçoamento para professores rurais na Fazenda do Rosário em Minas Gerais, entre os anos de 1947 a 1956, Pinho (2009) ressalta o papel importante da formação dos docentes na criação e na propagação de novos hábitos para o habitante do campo, possibilitando-lhe conhecimentos necessários para a racionalização e o desenvolvimento de seus padrões de vida e trabalho, tendo em vista a higienização de seus hábitos e costumes. Dessa forma, a escola assumiu um lugar fundamental na “cura” de uma sociedade “descrita nos marcos da incivilidade, desordem, feitiçaria, curandeirismos, práticas mágicas, curiosidade e desrazão”, tal como destaca Carvalho (2004, p. 12). Nos discursos produzidos por intelectuais e autoridades nas primeiras décadas do século 20, a má qualidade de vida da população rural era atribuída não apenas ao atraso econômico e educacional em que se encontrava, mas também às precárias condições sanitárias e de higiene e às práticas por ela vivenciadas em relação à saúde (Oliveira,, 2011; Pinho, 2009; Rocha, 2003). Para superar essa situação, os professores deveriam atuar na difusão de modos de preservação da saúde de seus alunos e da comunidade, de maneira que os sujeitos pudessem se prevenir de doenças. O programa dos Cursos de Aperfeiçoamento incluía conteúdos voltados para a saúde e a higiene e visitas às comunidades próximas, e os professores dessas disciplinas eram médicos, o que denota a presença do discurso médico na produção do discurso pedagógico (Pinho, 2009; Rosa, 2015). Os saberes sobre saúde praticados pelas populações rurais eram vistos como mágicos, incivilizados e sem a legitimidade dos conhecimentos médicos científicos.
Por outro lado, pouco se pesquisou sobre os saberes produzidos pela comunidade para cuidar da saúde e como a comunidade se relacionava com aqueles prescritos pela escola. Essas questões se tornam ainda mais instigantes quando constatamos que as professoras/alunas eram também oriundas do meio rural: como lidavam com as prescrições aprendidas sobre higiene e saúde diante dos saberes que traziam de suas comunidades de origem? Como o saber médico e os conhecimentos escolares eram compreendidos nas/pelas comunidades?
Pesquisas recentes sobre a história social das artes de curar no Brasil indicam que o próprio processo de constituição da medicina científica no País - do século 17 ao século 20 - também não se deu sem tensões. Nesse processo, houve conflitos no interior da corporação médica e com agentes externos que concorriam no exercício das artes de curar, como barbeiros, benzedeiros e curandeiros - frequentemente denominados de charlatões -, fortemente enraizados em diferentes grupos sociais e que tinham, diversas vezes, a preferência dos doentes (Chalhoub et al., 2003; Figueiredo, 2002). O respeito social e a credibilidade profissional dos médicos, geralmente sujeitos que se distinguiam pelos modos de falar, de se vestir e pela formação acadêmica, não se deram de forma direta e inquestionável, mas precisaram ser construídos, como mostra Figueiredo (2002). O hábito de consultá-los e o abandono do que a autora chama de práticas convencionais de cura foram produzidos de forma gradativa. Esse processo, embora tenha sido mais intenso no século 19 e nas décadas iniciais do século 20, adquire contornos próprios em cada situação específica e pode ser observado até recentemente, como aponta Carvalho (2005).
A comunidade rural de Ibirité
Mas a que comunidade rural estamos nos referindo no estudo? Ibirité, município criado em 1962, pertence, na atualidade, à região metropolitana de Belo Horizonte. Teve seu povoamento inicial ao longo do ribeirão do Pantana, no final do século 19, desenvolvendo-se principalmente depois da inauguração da Estrada de Ferro Central do Brasil, em 1917, e com a implantação da Fazenda do Rosário, por Helena Antipoff, em 1940. De acordo com dados da pesquisa realizada pelo Centro Regional de Pesquisas Educacionais de Minas Gerais - CRPE/MG (Watanabe et al., 1962), no início dos anos 1960, havia 85 casas no povoado que se situava no entorno da instituição, com um total de 469 moradores. A maioria da população era considerada branca, seguida da parda e depois da negra. Grande parte das casas era de adobe, tijolos ou de pau a pique, desprovida de forros e com chão de terra batida. O abastecimento de água era feito das nascentes e o número de cisternas era muito pequeno. As instalações sanitárias praticamente inexistiam - algumas casas possuíam fossas, poucas eram dotadas de privadas com descargas para os córregos da região. A iluminação elétrica, fornecida pela Companhia Energética de Minas Gerais, estava presente em 11 casas; nas demais, era realizada por lamparina e lampião de querosene.
Em relação aos cuidados com a saúde, a pesquisa realizada pelo CRPE/MG identificou que 25% das famílias buscavam ajuda na farmácia, 5% no médico e 2% não especificaram a quem recorriam no caso de tratamento de doenças. Informa, ainda, que um médico ia uma vez por semana à farmácia da comunidade para dar consultas (Watanabe et al., 1962). O farmacêutico foi citado várias vezes durante as entrevistas realizadas para a pesquisa que originou este artigo. Depoimentos de pessoas que exerciam atividades relacionadas à saúde na comunidade e de ex-professoras e ex-alunas da Escola de Aperfeiçoamento da Fazenda do Rosário também se referem ao farmacêutico como alguém que não havia se graduado no curso de Farmácia. Sr. José/Seu Zé/José Egídio é visto como uma pessoa que estava sempre disposta a ajudar, a qualquer hora. Lourdes, uma das entrevistadas, afirma que, mesmo quando ia ao pediatra para que sua filha se consultasse, depois ia à farmácia para confirmar se a recomendação médica estava correta ou se precisava mudar alguma coisa. Para Madalena, as pessoas acreditavam nele, “talvez mais que um médico, porque a experiência dele era tão grande, né?” Além do farmacêutico, na comunidade havia também o boticário, que era o pai da própria Lourdes. Sem formação escolar, tinha aprendido a aplicar injeções com o avô da entrevistada:
Então tinha uma tal de penicilina3 que entupia as agulhas e era um transtorno. Mas ele tinha um aparelhinho, tudo muito bem arrumadinho aonde ele fazia, desinfetava, fazia fervura, direitinho; quando não tinha ele usava às vezes até uma panela doméstica, mas era tudo muito bem arrumadinho, mas em casa era frequentemente as pessoas levando a injeção pra aplicar, ele só tinha a função de aplicar. (Entrevista, Lourdes, 2013).
De acordo com Lourdes, os medicamentos utilizados para a aplicação das injeções eram comprados em uma venda, onde se encontrava tudo o que era necessário. Os instrumentos eram todos esterilizados.
Havia, ainda, na comunidade, um posto de puericultura, inaugurado em 1952, nas modalidades fixa e volante, que funcionava uma vez por semana. Na primeira, eram oferecidos serviços de higiene infantil, pré-natal, serviço de imunização, controle e peso, distribuição de leite em pó e cozinha. As alunas da escola normal também participavam das atividades do posto aprendendo práticas de enfermagem e de puericultura. Na segunda modalidade, realizava-se o serviço de extensão, cujo foco era a escola rural, por ser o local onde estava o maior número de crianças. Também na Fazenda do Rosário havia, com frequência, médico e enfermeira disponíveis para atender a comunidade (Watanabe et al., 1962).
A pesquisa do CRPE/MG revelou, assim, que a procura por hospitais e médicos era muito rara por parte da população. Os motivos são justificados, de acordo com os pesquisadores, principalmente pela dificuldade de acesso, já que havia pouca disponibilidade de meios de transporte para que a população se deslocasse até bairros próximos que tivessem estrutura ou áreas centrais de Belo Horizonte, onde se concentrava a maior oferta de médicos e hospitais (Watanabe et al., 1962). No entanto, as entrevistas revelam que, além da dificuldade de acesso, a população tinha uma certa desconfiança em relação ao conhecimento médico, preferindo, muitas vezes, procurar saberes fundados na experiência e na tradição.
As práticas de cura e os saberes cotidianos
Os saberes tradicionais de cura realizados pela comunidade de Ibirité raramente foram mencionados nas fontes escritas consultadas. Essa constatação nos faz inferir que, na tentativa de afirmar os conhecimentos da medicina erudita, a estratégia foi silenciar, ou seja, não dar voz e expressão às práticas tradicionais de cura ao longo da formação das professoras/alunas. Havia um ideal médico higienista que necessitava ser divulgado, apropriado pelos sujeitos; portanto, é esse discurso que vai circular nas prescrições que pautavam as aulas dos Clubes de Saúde. No entanto, nas entrevistas, fica evidente que o saber tradicional era fortemente utilizado como uma das formas de cuidado com a saúde. Mesmo que tenham sido recriadas, reinventadas e muitas vezes desqualificadas por práticas e saberes que passaram a circular por meio de discursos pedagógicos nos Cursos de Aperfeiçoamento e que legitimavam outros modos de pensar a saúde e a higiene das populações rurais que deveriam ser apropriados, as práticas de cura se mantiveram fortemente no cotidiano da comunidade.
Esses saberes e práticas, reconstruídos na pesquisa principalmente por meio dos depoimentos orais, eram utilizados para cuidar das mais variadas doenças, no tratamento de todos os tipos de machucados, fraturas e de qualquer sensação física ou emocional que, de algum modo, incomodasse as pessoas e as levasse a buscar conforto. Entre as práticas relatadas, podemos citar benzeções; uso de chás, xaropes, emplastos; cuidados com as gestantes e os recém-nascidos; cuidados gerais com a saúde, como tratamento de ferimentos, furúnculos, torções, traumatismos e luxações, tosses, febres, bernes e outros males. Dois fatores pareciam influenciar a população para que buscasse essas práticas: de um lado, esses saberes e cuidados, transmitidos intergeracionalmente, estavam mais próximos das crenças que circulavam no cotidiano; de outro, não havia na época, como vimos, uma grande oferta de médicos ou postos de saúde na comunidade. A ausência dos agentes oficiais de saúde na região e a dificuldade de a comunidade acreditar nos saberes que eles representavam pareciam se conjugar, portanto, para a permanência da legitimidade das práticas tradicionais de cura no período.
A benzeção
A benzeção foi citada por todas as entrevistadas e se apresentou como uma prática de cura muito utilizada4. A fé, a crença e a força social contida no ato de benzer são os elementos que movem as pessoas a procurar pelas benzedeiras. De acordo com Quintana (1999) e Oliveira (1985), a prática da benzeção é uma ferramenta que majoritariamente objetiva alcançar a solução de problemas ou doenças em indivíduos que a procuram; essa ação pode ainda se estender a terceiros ou até mesmo a objetos, animais e localidades. A benzeção pode ser entendida em um sentido amplo como a forma de pedir a interseção de forças divinas em prol da resolução de alguma demanda e para a proteção de algo ou de alguém, de algo pretendido para si e/ou para os outros. A definição pode ser bastante abrangente, estar associada a tradições de diferentes matrizes religiosas e englobar variados personagens sociais dentro de um mesmo grupo (Lins, 2013; Oliveira, 1985). De acordo com Valla (2001) e Quintana (1999), as benzedeiras representam, em muitas comunidades, papel semelhante ao do terapeuta, em virtude do auxílio que oferecem às pessoas no sentido de compreenderem o que sentem e as aflige, ajudando a restaurar a saúde física e espiritual. Na prática da benzedura, a benzedeira ou o benzedor exerce um papel de intermediação com o sagrado por meio da qual se alcançará a cura.
No momento em que se realiza a benzeção, as palavras ditas são consideradas mágicas e têm o poder de tirar o mal e curar (Gomes; Pereira, 2004; Quintana, 1999; Souza, 2003). O benzedor cria, desse modo, “mecanismos linguísticos que agem concretamente sobre os malefícios. Serve-se, ainda, de outros procedimentos que constituem os ritos das benzeções e garantem a eficácia das palavras” (Gomes; Pereira, 2004, p. 30).
Assim, ao lado da palavra, o gesto também compõe a arte de benzer. Para Gomes e Pereira (2004), benzer é uma linguagem gestual com a qual algumas pessoas, detentoras de poder especial, controlam as forças que contrariam a vida harmoniosa dos homens. Ao benzer ou “coser”, como é normalmente denominada a benção pelas benzedeiras, contra osso quebrado ou torcido, Madalena mostra a utilização de elementos que compõem o ritual:
Com agulha e linha, então começa a coser, a coser no paninho: ‘que coso? Carne quebrada, nervoso torto’; ‘Junta desconjuntada, assim mesmo eu coso, eu costuro com as três pessoas da Santíssima Trindade que lança uma coroa de flores e de graças’. (Entrevista, Madalena, 2013).
Outro aspecto importante na ação de benzer, para Gomes e Pereira (2004), é a presença de elementos da natureza, propriedades relevantes do domínio do mal, como água, ar, fogo, terra e vegetação. O ar representa o sopro, o invisível na cultura popular; a ligação entre ar/alma/vida. Soprar alguém é, metaforicamente, transferir-lhe a força vital que é coroada com um ramo verde agitado no ar para simbolizar o triunfo sobre o mal. Esse ramo deve, depois, ser jogado na água ou queimado, pois está contaminado com o mal. A vegetação é utilizada como o símbolo da unidade fundamental da vida, por possuir características cíclicas da existência, nascimento, maturação, morte e transformação. Madalena explica como utiliza os ramos verdes:
Quando a pessoa está com dor, dor de cabeça, dor de ouvido, então a gente pega um raminho verde. Não importa que seja arruda, que seja alecrim. Pega um copo, enche de água filtrada, e depois pega três raminhos e vai começar a benzer, fazendo o sinal da cruz: ‘Deus te criou, Deus te gerou, Deus acanha quem te acanhou, tira esse mal que no seu corpo entrou, com o poder de Deus e da virgem Maria, água da fonte, ramo do monte, Deus cria, mas não envia doença [...]’.
Na comunidade rural de Ibirité, segundo o depoimento de Lourdes, havia um benzedor para cada dor, “um para dor de cabeça, outro pra dor de dente”. Entre as mulheres entrevistadas, duas eram benzedeiras reconhecidas pela comunidade - outras, embora dominassem as artes de benzer, benziam apenas parentes próximos e alguns vizinhos. Esse dado é relevante porque, como indica Oliveira (1985), as benzedeiras exercem seu ofício de forma autônoma e seu reconhecimento não se dá apenas pela aceitação que cada uma tem de seu dom, mas também pelo reconhecimento da comunidade. O dom ganha força a partir das experiências vividas, dos resultados positivos e da força simbólica que representa ser herdeira daquele ofício. As benzedeiras entrevistadas eram filhas de pessoas que também benziam, o que facilitava o processo de reconhecimento da competência para o ofício, pois se acreditava que o dom era passado intergeracionalmente, constituindo-se em uma missão, em uma caridade a ser exercida na comunidade, que deveria ser acolhida pelo indivíduo. O dom estava associado à dimensão espiritual, como afirma Madalena: “eu acho que é um dom especial, mas dom de Deus sabe? [...]”. Ela, por exemplo, somente começou de fato a benzer após a morte da mãe, quando as pessoas passaram a procurá-la, e afirma que, desde esse momento, vive para a caridade e quase não tem tempo para cuidar da sua própria vida, estando sempre à disposição da comunidade.
Como, então, se aprendia e se ensinava a benzer? Os depoimentos mostram que esse processo ocorria, principalmente, nas sociabilidades cotidianas, por meio da escuta e da observação dos gestos, normalmente de mulheres mais velhas, como avós, vizinhas, tias e madrinhas. Aprendia-se, assim, mediante a participação em comunidades de prática, na perspectiva de Jean Lave (2015). Enquanto a benzeção era feita, aquelas que estavam em situação de aprendizes ficavam ao lado, escutando, repetindo, copiando, observando, acreditando no poder do ato, como fica nítido no relato de Lourdes: "é na escuta mesmo, é no tempo, é na vivência, é vendo, é acreditando que aquele menino foi lá, você vai lá com uma dor de barriga, depois a pessoa vai lá ‘olha, fulano, melhorou, foi bom demais!'" Aparecida, outra entrevistada, começou a benzer aos 14 anos. Uma tia a ensinou: “ela me ensinou a benzeção de quebrante, eu copiei, aí eu comecei a benzer as pessoas. Todo mundo que sabia benzer aguamento, vento virado, espinhela caída, eu fui pedindo pra me ensinar e eu aprendi nessas casas de Umbanda também [...]”. A conservação de textos orais se dá, segundo Zumthor (1997), sobretudo, pela memorização e a cada repetição. Esta em situações de rituais dá vida às benzeções, fortalece a memória individual e a coletiva e possibilita que o saber seja transmitido de modo intergeracional.
A análise dos depoimentos revela, portanto, que esses saberes raramente eram objeto de explicitação por parte de quem benzia em relação a quem aprendia: Madalena afirma que nunca foi ensinada por sua mãe - mediante sua presença nas práticas de benzer, decorou falas, rezas, gestualidade, ramos usados em cada um dos tipos de benzeções e suas finalidades. Esse aprendizado se tornava, ao longo do tempo, permanente, no movimento da própria experiência: a partir dos resultados alcançados, as benzedeiras iam aprendendo outras rezas e aumentando tanto seu repertório como sua credibilidade (Oliveira, 1985). Esse processo de aprendizado é também evidenciado nas experiências de Aparecida. Ela nos conta como foi aprendendo, aos poucos, outras rezas com as quais benzia as pessoas e enriquecendo seu repertório. Ao longo do tempo, a benzeção foi sendo recriada, mudaram-se algumas falas e o modo de usar os ramos e as ervas e alguns elementos foram introduzidos. Várias influências culturais - advindas de múltiplas matrizes religiosas - foram incorporadas em sua vivência.
Mas apesar de a oralidade, a observação e a repetição serem as formas mais comuns de aprendizado do ato de benzer, podemos verificar que, às vezes, a escrita também era um suporte para a transmissão e a realização das benzeções. Durante a pesquisa, essa dimensão foi revelada em três situações. Uma das entrevistadas - Sônia - relata que uma de suas sobrinhas, preocupada com o fato de que mais ninguém da sua família tinha o interesse em aprender as benzeções, sugeriu que ela registrasse, por escrito, o saber ensinado pela bisavó. Desse modo, seria possível garantir que o conhecimento fosse transmitido para outras pessoas da família, no momento em que Sônia não pudesse mais fazê-lo. Madalena também expressa o papel da escrita no processo de ensinar e de aprender a benzer. No início da entrevista, mostrou uma agenda na qual havia feito o registro escrito de todas as benzeções que aprendeu com a mãe. Sua preocupação era a de que pudesse esquecer o que havia aprendido, pois informou que andava muito esquecida e poderia ficar nervosa na hora da entrevista; garantiria, ao mesmo tempo, que o saber pudesse ser repassado mais facilmente para quem desejasse aprender. A terceira situação na qual o registro escrito apareceu como modo de transmissão dos conhecimentos foi relatada por Aparecida. Ela conta que algumas benzeções eram muito longas e não conseguia memorizá-las. O recurso utilizado era a leitura em um livro que tinha a oração escrita. Nesse caso, a escrita aparece não apenas como uma forma de registrar o saber, mas também como suporte para o ato de benzer. As três situações revelam o papel conferido à palavra escrita no registro, no armazenamento e na transmissão de informações, em sociedades e tempos - o da realização das entrevistas -, em que havia se tornado quase onipresente, sobretudo no processo de formação das novas gerações.
No período no qual as mulheres entrevistadas aprenderam a benzer - entre os anos de 1940 e 1970 -, a escrita estava menos presente. Dados da pesquisa realizada pelo CRPE/MG (Watanabe et al., 1962) mostram que a leitura era pouco praticada na comunidade: somente 5,9% das famílias entrevistadas liam jornais e revistas semanalmente. Quanto a livros ou revistas infantis, essa taxa era de 2,4%. Outros materiais escritos também circulavam na comunidade, como revelam os depoimentos. Lourdes afirma que sua família adquiria, todo ano, um exemplar da Folhinha Mariana5. Esse impresso era utilizado como um instrumento para ter acesso a informações sobre o tempo, as fases da lua (as melhores para plantar e colher) e alguns cuidados com a saúde. No entanto, mesmo que a escrita já estivesse consolidada como uma prática escolar e fosse dominada pelas entrevistadas - que tiveram, com exceção de uma, escolarização longa para o período (o equivalente ao atual ensino médio) -, as mulheres com as quais elas aprenderam as artes de benzer não frequentaram a escola, como é o caso da mãe de Madalena e da avó de Sônia.
Esses modos de aprendizagem, baseados principalmente nas práticas orais, ao lado da pouca familiaridade dos membros da comunidade com a cultura escrita, contrastavam com as formas de ensinar e de aprender legitimadas pelas práticas escolares e pela ciência. Esse aspecto fica evidente nas aulas dos Clubes de Saúde, em que eram privilegiados os registros escritos da observação e as práticas de experimentação. Talvez esse aspecto também contribua para explicar os motivos que faziam com que a comunidade acreditasse mais nos saberes tradicionais do que no saber médico: eles se davam na experiência, no fazer cotidiano, e mostravam, em curto prazo, eficácia.
Ao mesmo tempo, a benzeção parece ter perdido um pouco sua legitimidade quando os saberes vinculados à ciência e à medicina erudita passaram a compor um novo conjunto de valores aprendidos pelas professoras/alunas no Curso de Aperfeiçoamento na Fazenda do Rosário. Em um trecho no qual Sônia relata a experiência da avó portuguesa ao benzer contra sapinho (candidíase oral), essa questão fica muito clara. Um dos gestos que compunha parte desse ritual de benzeção era o de molhar o dedo na lavagem que ficava no cocho do porco e passar na boca da criança após a reza. Sônia relata que, logo que começou a ter aulas com o Doutor Euzébio, no Clube de Saúde, pediu à avó que modificasse essa prática e recomendasse às pessoas a procurarem o posto de puericultura para cuidarem da saúde. Essa atitude mostra a força dos conhecimentos que estavam sendo prescritos em sua formação. A benzeção passa a ser vista como um saber que, apesar da importância nas práticas cotidianas da comunidade, poderia ser adaptado para não entrar em contradição com os novos aprendizados, o que revela a tensão vivida pelas professoras/alunas, no sentido de continuar a legitimar (ou não) esses saberes.
A coexistência de práticas de cuidado em relação à saúde fica ainda mais marcada quando Amélia - que foi diretora dos Cursos de Aperfeiçoamento - narra, em sua entrevista, que o Doutor Euzébio indicou a benzeção como uma possibilidade de tratar a erisipela. O médico admite que essa doença somente se curava com “reza”, revelando a legitimidade dos saberes da experiência, principalmente para aqueles de origem rural: “olha eu sou médico, mas eu sou da roça, curar isso. É erisipela, viu, tem que ser um homem pra benzer!” Ao mesmo tempo, o médico pediu que Amélia não comentasse a sua recomendação com outras pessoas: “num fala que eu falei, não, viu?”. A tensão e a coexistência entre práticas de saúde distintas aparecem na atitude do médico. Como era médico e professor do Curso de Aperfeiçoamento, ele se via como um agente difusor de um determinado discurso sobre saúde e higiene, no qual tais práticas de cuidado deveriam ser combatidas, pois eram não científicas e próprias de uma cultura baseada em crendices, considerada mágica e pouco eficiente. Esse episódio evidencia a presença ativa dos sujeitos em seu cotidiano, a forma como criavam, inventavam e reinventavam táticas para cuidarem de si. Como afirma Michel de Certeau (2006), ??? explicita a resistência que os sujeitos têm de mostrar movimentos potentes de vida, a partir da convicção que possuem de que as situações não são fixas e irresistíveis.
As tensões em torno da legitimidade das práticas de benzeção não se davam apenas em relação aos saberes escolares e/ou científicos, mas também diante das práticas religiosas institucionalizadas. Na medida em que essa terapêutica tem como processo principal, embora não exclusivo, o uso de algum tipo de prece, Oliveira (1985) indica que o benzedor, na maioria das vezes, utiliza orações oficiais, principalmente do catolicismo, como Ave Maria, Pai Nosso, Credo, Salve Rainha, como recursos complementares. Em Ibirité, muitas benzedeiras também as usavam, o que pode ser interpretado como uma forma de reforçar a legitimidade do seu ofício, por meio do prestígio que a religião tinha6. Assim, o ato de benzer não ficava apenas associado a crendices vinculadas às superstições e magias, mas também ao sagrado que era aceito institucionalmente. No entanto, essa utilização de orações católicas tradicionais nas benzeções nem sempre era bem vista pelos representantes da igreja. Sônia menciona, explicitamente, esse conflito: “A igreja católica, na ocasião, condenava! [...] o padre falava assim: ‘não procure benzedeira! Quem cura é Deus, não existe isso não’. Ele dizia que [...] a gente tinha que procurar um médico.” Souza (2003), ao estudar as rezas e benzeções e o processo de apropriação desses saberes em uma comunidade do norte de Minas Gerais, assevera que a atuação dos benzedores se dava fora dos espaços institucionais do catolicismo e da igreja, às vezes até em oposição a esses espaços. As próprias benzedeiras, muitas vezes, incorporam esse posicionamento. Madalena, por exemplo, durante toda a entrevista, afirmou que o “dom de Deus”, que caracteriza a benzeção, não deve ser visto como assemelhado à bruxaria - como, segundo ela, algumas pessoas da comunidade compreendiam -, mas à tradição cristã, expressa, em seu caso, pela menção à Bíblia, representada concretamente por um exemplar que se encontrava em cima da mesa da sala, no momento da entrevista. Na verdade, como vimos no depoimento de Aparecida, anteriormente citado, no ato de benzer confluíam, muitas vezes, práticas de diferentes matrizes religiosas.
A prática das parteiras
Na comunidade de Ibirité, de acordo com as entrevistas realizadas, as parteiras tiveram papel fundamental nas estratégias de produzir modos de as mulheres cuidarem de si, de sua saúde e, frequentemente, de sua sobrevivência e das crianças, sendo, às vezes, o único amparo que tinham em um momento tão intenso e importante como o do nascimento. Assim como no caso das benzedeiras, as parteiras contavam com a legitimidade da comunidade em relação ao seu ofício e aos saberes que haviam adquirido ao longo das suas experiências. Maria, uma das entrevistadas, mãe de oito filhos, deixa clara essa importância das parteiras na vida das mulheres: “eu ganhei o primeiro, o segundo, o terceiro, o quarto, o quinto, o sexto, tudo em casa. Com a parteira!” Embora o principal objetivo do posto de puericultura fosse o de amparar a maternidade e a infância da comunidade, fazendo, inclusive, atendimento pré-natal, segundo os pesquisadores do CRPE/MG (Watanabe et al., 1962), o serviço era muito restrito e não abrangia a realização de partos.
As parteiras, em Ibirité, eram mulheres da própria comunidade, que estavam sempre dispostas a ajudar e se solidarizavam com outras. Uma das parteiras mais importantes, mencionada por quase todas as entrevistadas, assim como na pesquisa realizada pelo CRPE/MG (Watanabe et al., 1962), era Alcina Campos Taitson, que foi, durante 30 anos, a única parteira e enfermeira do local. Era uma mulher muito conhecida na cidade, pertencente a uma família com alto poder aquisitivo e cultural7. As outras parteiras mencionadas eram mulheres simples, conciliavam a tarefa de partejar com o cuidado com suas casas ou com alguma atividade como a costura e tantas outras tarefas que ajudavam na subsistência da família.
Mas como as parteiras adquiriam/produziam esses saberes? Essas mulheres aprenderam a “partejar”, a “aparar” as crianças que chegavam ao mundo, por meio da experiência vivida cotidianamente, em comunidades de prática (Lave, 2015). Muitas vezes, desde crianças, presenciaram os partos de mães, tias, vizinhas, irmãs mais velhas ou madrinhas. O aprendizado de partejar era realizado nos momentos em que uma parteira mais experiente estava fazendo um parto. As mais novas quase sempre aprendiam ajudando no processo, tendo funções secundárias, como esquentar a água utilizada, esterilizar ou ferver os utensílios necessários, por exemplo, tesouras, bacias, cordões, toalhas, ou mesmo amparar, acolher a mulher que estava tendo o filho. Os instrumentos empregados eram caseiros. Colhiam-se ervas nos quintais e com elas eram feitos chás e emplastos. Usavam-se lençóis e toalhas que também eram utilizados no cotidiano das famílias e que passavam por fervuras para serem esterilizados.
Os partos eram realizados em casa, como relataram todas as entrevistadas. Elas evidenciam a presença marcante das parteiras e como elas iam produzindo seu ofício no cotidiano, entre muitas situações inusitadas e imprevisíveis, em qualquer hora do dia ou da noite. Maria narrou que um dos seus partos foi totalmente inesperado. Como era de costume, deixava a roupa do bebê, a sua e a do marido arrumadas para que fossem utilizadas quando chegasse a hora do nascimento. Mas a bolsa amniótica se rompeu - “a bolsa estourou”, em suas palavras - antes do tempo em que ela e a própria parteira achavam que o bebê nasceria. Ela conta do medo que sentiu pelo fato de a parteira chegar depois que o filho já havia nascido.
Mesmo nos momentos de tensão e de medo, principalmente quando havia alguma complicação - por exemplo, a criança se encontrar sentada -, as parteiras tinham a confiança das mulheres. Nesses casos, recorriam também às simpatias, às rezas e às benzeções. Havia ocasiões, no entanto, em que se vê claramente no discurso das entrevistadas que a ausência de acesso a agentes oficiais de saúde poderia provocar até mesmo a morte dos bebês e das parturientes. Lourdes, ao falar das experiências que presenciou quando era criança em relação aos partos de sua mãe, conta:
[...] minha irmã mais velha [...] quase morreu porque ficou mais de 24 horas em trabalho de parto, não sabia se nascia se não nascia, mas também não tinha pra onde levar, era esperar mesmo a vontade de Deus e as mãos dos amigos, dos parentes e das parteiras.
Divina narra que tinha muito medo em seus partos, visto que uma de suas irmãs teve o nervo auditivo arrebentado ao nascer, pois a parteira teria puxado com muita força a cabeça na hora do nascimento, segundo diagnóstico feito pelo médico consultado anos depois.
Em alguns casos, também o médico ia à casa da parturiente. A presença dele parecia tornar o nascimento um evento ainda mais especial. Uma das experiências contadas pela Divina ilustra essa importância. Ela afirma que a roupa do seu marido estava muito bem lavada e “arrumada” à espera do médico, que não pôde realizar o parto por estar viajando. A própria parteira, chamada para auxiliar o médico8, via na presença do profissional uma oportunidade para se legitimar em seu ofício, revelando, uma vez mais, as tensões entre os saberes tradicionais e os científicos: “ela passava talco [...], ficava passando na cara, pra quando o médico chegasse. [...] ‘quando o médico chegar você pede uma carta pra mim de parteira’”.
Fica evidente, no depoimento de Divina, o prestígio que a figura do médico representava, mesmo quando compartilhava o ofício com as parteiras, que são criticadas pela entrevistada. O interessante é que, em seguida, ela faz comentários nos quais a atuação do médico também a deixava com medo, por outras razões, como o fato de ter “mão grossa e cabeluda”, utilizada para virar a criança caso estivesse sentada: “Eu falei: ‘nossa senhora Doutor Paulo, o senhor enfiou a mão lá dentro de mim!’ [...] E não usava fórceps, naquele tempo não tinha fórceps”. O incômodo de Divina pode estar relacionado muito mais ao fato de o médico ser do sexo masculino do que, necessariamente, por ter feito um procedimento invasivo. Nesse episódio, fica explícita a questão do processo de construção do “médico de senhoras”, salientado por Marques (2005), pois havia muito constrangimento em relação ao corpo feminino. O processo de legitimação dessa especialidade médica foi longo e teve que romper barreiras referentes às proibições morais e religiosas às quais o corpo feminino era submetido.
Na narrativa de Divina, encontra-se, assim, uma polifonia discursiva (Bakthin, 1997), em que também se observa a presença da voz dos saberes disseminados pela Escola de Aperfeiçoamento. Naquele período, conhecimentos que eram respaldados pela medicina, relacionados sobretudo à higiene, começaram a compor uma nova realidade que se queria criar. No Curso de Aperfeiçoamento, as aulas do Clube de Saúde tinham como um dos seus focos o ensino da puericultura. Muitas eram aulas que produziam outros saberes como legítimos para o cuidado com a gestante e com os bebês. A linguagem, os instrumentos e os procedimentos passaram a criar outro cenário: o do saber médico, da medicina erudita. Na fala de Divina, o uso dos termos e das práticas médicas é claramente mobilizado.
O processo de medicalização do parto coloca em cena a sobreposição do saber científico dos médicos, os especialistas, em detrimento do saber popular das parteiras, as guardiãs da tradição, como aponta Giddens (1995). Para o autor, o que diferencia os guardiões da tradição e os especialistas nas sociedades modernas é que, na ordem tradicional, o fortalecimento daqueles advém mais de seu status do que de uma ideia de competência, a qual constitui o aspecto mais importante na ordem moderna. De modo geral, a confiança não é mais caracterizada pelo envolvimento face a face, pois está assentada em sistemas abstratos, descentralizados e desincorporados. O processo e a construção desses novos modos de cuidar da saúde e higiene que estavam sendo prescritos na comunidade de Ibirité vêm corroborar um movimento que já desde o século 19 estava presente em vários países do mundo: o de legitimidade da medicina científica, com a obrigação de higienizar a cidade. A partir desse momento, no Brasil9, esse movimento assumiu como objeto de investigação diversas situações, entre elas a prática da parturição, que passou a ser chamada de arte obstétrica. Para Jordan (1993), nesse processo, a medicina se torna um saber autorizado e, para isso, deslegitima e desautoriza outras formas de conhecimento. As parteiras passam a ser acusadas de praticar a parturição sem a mínima condição de higiene e assepsia; assim, foram aos poucos proibidas de aparar as crianças e suas mães.
O uso de chás, xaropes e emplastos: as plantas medicinais nas práticas de cura
O uso de plantas medicinais, chás, emplastos e xaropes feitos com ervas também estava muito presente nas práticas de cura realizadas na comunidade de Ibirité e, ao mesmo tempo, na Fazenda do Rosário. A pesquisa constatou que esses saberes eram os que menos tensionavam com os conhecimentos escolares e médicos.
A prática de usar plantas aparece com muita frequência na vivência da comunidade, fato que pode ser atribuído tanto à legitimidade que possuía na cura de doenças e no conforto emocional quanto à dificuldade de acesso aos remédios. Na maioria das vezes, o conhecimento sobre plantas medicinais simbolizava o único recurso terapêutico de muitas comunidades. Lourdes ressalta que “a nossa farmacinha tinha de tudo, remédios pra dores, então, nós usávamos.” As plantas utilizadas eram aquelas que cada família tinha em casa ou, em alguns casos, na Fazenda do Rosário, como o funcho, a erva doce, a perpétua e artemísia, “que era muitíssimo usado pra crianças e cólicas em geral [...] uma planta grande dá uma coisa branca, é quase uma touceira ... amarga! [...]”. Lourdes afirma que havia, ainda, no período “o que eles chamam de penicilina, é uma plantinha com a folhinha mais ou menos desse tamanho que também era pra dor, a gente usava muito, o poejo, a hortelã”. As plantas, como discutimos em outro momento deste artigo, também eram utilizadas nos rituais das benzeções.
O uso das plantas medicinais ocorria em um contexto de relações de solidariedade entre pessoas da comunidade. De modo diverso do que acontecia no tocante aos conhecimentos das benzedeiras e das parteiras, reconhecidas como possuidoras de um ofício, os saberes relativos às plantas eram disseminados mais amplamente no conjunto da população, embora alguns moradores fossem vistos como autoridades na matéria. Lourdes enfatiza a importância da ajuda que recebia de uma de suas vizinhas nos momentos em que precisava de cuidados para sua filha doente.
Na Fazenda do Rosário, como citado, esses saberes também eram disseminados. Amélia foi diretora dos cursos e nos informa que havia um canteiro na instituição onde se plantavam ervas. Madalena, ex-aluna e professora, afirma que a própria Helena Antipoff incentivava o uso dessas práticas na escola: "Dona Helena gostava de saber que tinha uma horta, tanto que ela, quando eu falei assim que eu gostei, da coisa de benzer, arruda, aquelas coisas, a Dona Helena mandou fazer um hortozinho só de planta medicinal".
Lúcia também menciona a forte tradição no uso e na indicação de chás nos cursos e que, nesse aspecto, aprendia muito com as pessoas da comunidade que sempre indicavam chás para todos os males e ensinavam sobre o cultivo e o modo de utilizar as plantas. Segundo ela, “a gente aprendia muito com a comunidade: ah! chá disso é bom, chá disso aqui é bom para isso, hortelã é calmante, é isso, então, toda a casinha que você ia tinha uma hortinha plantada”.
O pai de Lourdes, conhecido como boticário, como referido, além da tarefa de aplicar injeção, tratava os casos em que as pessoas tinham fraturas, fazendo talas para imobilizar os membros afetados, habilidade também aprendida com o avô da entrevistada:
Olha, eu nunca vi um caso errado, que deu errado. Todos, eu num sei se por sorte dele, ou das pessoas, né? Todos até munheca quebrada, que eles falam que é muito difícil, né? Essa parte da mão, todas deram certo, que hoje costuma você ir ao médico, né? (...) E num tirava radiografia não. Era colocar no lugar, às vezes arrumava outra pessoa pra ajudar a colocar no lugar, era pelo tato mesmo. (Entrevista, Lourdes, 2013).
Nesse relato, é interessante observar que Lourdes aponta que, mesmo que o pai não contasse com recursos próprios da medicina erudita, os procedimentos realizados por ele “davam certo”, ou seja, havia êxito na sua ação. Essa observação denota o conflito que se estabelecia entre a prática do boticário e a dos médicos.
Em relação aos emplastos, o pai de Lourdes, que prescrevia chás e garrafadas somente para pessoas da família, fazia e aplicava nas pessoas da comunidade. Maria relata situações em que o emplasto era utilizado, como na ocasião em que um vizinho se queimou quando trabalhava em um caminhão de gás e, com o uso do emplasto, teve a queimadura completamente curada, sem necessidade da cirurgia plástica prescrita pelo médico. Em outra situação, afirma que, quando seu marido queimou a perna com álcool, ia todos os dias ao posto médico para trocar o curativo e as intervenções eram sempre feitas no sentido de cortar a pele, o que, segundo ela, acabava por piorar cada vez mais o estado da queimadura. Ela, então, procurou sua comadre para aprender a receita de emplasto. O depoimento revela uma certa tensão entre o saber popular de cura - que poderia parecer “estranho” - e a necessidade concreta do doente.
Esses saberes eram passados de geração em geração, principalmente por meio da oralidade, de mãe para filhas, de vizinhas para vizinhas, de pais para filhas e filhos. Às vezes, eram aprendidos por meio da consulta a livros e impressos. Mesmo nesse último caso, os saberes escritos eram mediados pela interpretação dos conhecimentos tradicionais que já circulavam na comunidade. Como mostraram outros estudos, plantas e medicamentos podem ser efetivos não apenas em função de sua ação farmacológica, mas em função do significado cultural que lhes é atribuído (Hoeffel et al., 2011).
Considerações finais
As entrevistas realizadas para a pesquisa com as mulheres da comunidade e com as ex-professoras/alunas deram visibilidade a um conjunto de práticas pautadas nos saberes que eram repassados de geração para geração. Foi possível identificar que em Ibirité, em meados do século 20, a força dos saberes tradicionais relativos aos cuidados com a saúde estava pautada na crença que a comunidade tinha em relação a esses conhecimentos e em laços de solidariedade nos quais se apoiavam. Mesmo com a presença cada vez mais forte e institucionalizada de práticas de saúde e com todos os discursos e princípios rígidos para se impor como legítima, a prática médica baseada na ciência teve de conviver e negociar com os saberes tradicionais e produzir sua legitimidade junto à população, em um jogo de forças, ora compartilhando, ora disputando espaços.