Introdução
A avaliação do desempenho docente, tratada há alguns anos por países como Estados Unidos, Cuba, Bolívia, Austrália, Portugal, dentre outros, foi sendo aprimorada ao longo da sua construção e efetivação. Alves e Machado (2010), Fernandes (2008b), Millman e Darling-Hammond (1990) e Wise et al. (1984), autores que pesquisam essa atividade em Portugal e nos Estados Unidos, mostram que a avaliação, quando utilizada a serviço da autonomia docente para refletir sobre e para a sua prática, revela-se como um instrumento capaz de responder positivamente ao desempenho do educando.
As competências que são próprias da ação docente se concretizam por meio da sua práxis, na lida com os problemas e com as decisões específicas do contexto do ensino e da aprendizagem. E a avaliação, na sua concepção formativa, conduz à regulação dos saberes próprios da docência - do conhecimento didático-pedagógico e da experiência (Libâneo, 1998; Pimenta, 1999; Tardif, 2002) - e das competências tanto do professor quanto do aluno (Perrenoud, 1999).
A concepção de práxis, neste estudo, representa o que Heidegger (2012) traz como o “ser no mundo”: o modo de ser de Dasein (“ser aí”) compreende, dentre tantas categorias, a temporalidade - como Dasein entende o mundo e as possibilidades de se “estar aí”. Diante disso, Oliveira (2015, p. 171) interpreta que esse mundo que Heidegger perscruta mostra, “[...] na práxis cotidiana, as dimensões da vida ativa: do prático da ação ao poético do produzir e do fabricar”. Nesse sentido, a práxis cotidiana se relaciona ao Dasein, pois, em sua factual forma de ver o mundo, a reflexão se projeta como atitude diante da ação, permitindo a sua constituição histórica.
A motivação para esta pesquisa se fez no desejo de ampliar a visão do ser professor, considerando para esse ator uma visão de avaliação da sua prática que fosse diferente daquela trazida pelos sistemas de avaliação do desempenho discente, já observada nos programas de políticas públicas e instituições educacionais no Brasil (Nobre, 2014; Rezende, 2012; Veras, 2016; Zatti, 2017).
O estudo da avaliação da práxis docente, como objeto de pesquisa, visou levantar dados sobre seus princípios, instrumentos e objetivos, bem como esclarecer, a partir da concepção do professor e de sua práxis, como poderia contribuir para o aperfeiçoamento da prática docente, beneficiando os processos de ensino e de aprendizagem na educação básica. Sendo essa uma prática formativa e de esclarecimento da reflexão do professor, na, para e da sua ação, questionou-se: é possível, a partir de anseios e necessidades do professor, definir aspectos relevantes para a construção de um processo de avaliação docente que possa contribuir para o aperfeiçoamento de sua práxis?
Essa questão surgiu da situação problemática que se esboça sobre as iniciativas de avaliação docente já encetadas no País. O contexto brasileiro apresenta experiência na avaliação do desempenho docente pautada na política de bonificação e remuneração dos professores relacionada a uma carreira profissional (Santos et al., 2012). De acordo com Bauer (2013), Bonamino (2013), Fleuri (2015) e Santos et al. (2012), em muitos casos, há bastante resistência por parte dos professores a se submeterem aos diferentes tipos de avaliação já propostos, isso porque, na maioria das situações, os professores não percebem nas propostas avaliativas possibilidades para melhorar sua prática ou valorizar sua carreira profissional. Inclusive, os modelos se distanciam da concepção e especificidade do “ser professor” e da natureza contextual do seu trabalho docente.
Como objetivo geral, por meio da presente pesquisa de enfoque fenomenológico e qualitativo, buscou-se investigar o entendimento de avaliação docente pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, partindo de fatores subjetivos da profissão associados aos próprios anseios e necessidades desses professores na análise sobre sua prática, estimando a reflexão e o aprimoramento. Com isso, foram desenvolvidas diretrizes de uma avaliação da práxis docente que visasse ao aperfeiçoamento dessa práxis, considerando os anseios e as necessidades dos professores diante do ato avaliativo.
Procedimentos metodológicos
Para se investigar o entendimento de avaliação docente pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, partindo de fatores subjetivos da profissão associados aos próprios anseios e necessidades desses professores na análise sobre sua prática, estimando a reflexão e o aprimoramento, fez-se necessário conhecer os fatores subjetivos da profissão docente, considerando o ser professor nos anos iniciais do ensino fundamental; compreender concepções, anseios e necessidades desses professores sobre a avaliação docente; e analisar os entendimentos sistematizados dos professores sobre a proposta de avaliação da práxis docente.
Assim, os procedimentos metodológicos, vinculados à abordagem qualitativa e ao método fenomenológico, por meio da hermenêutica heideggeriana, foram escolhidos a fim de apresentar o entendimento do ser professor a partir da visão dos próprios sujeitos investigados. Desvelando mediante categorias conceituais, os anseios e as necessidades dos docentes floresceram no descobrimento do Dasein (“ser aí”), quando eles discursaram sobre suas visões, suas concepções e seus modos de agir (práxis).
Os procedimentos foram divididos em três etapas, atendendo aos objetivos específicos elencados, conforme a Figura 1.
Etapa 1 - identificação: consistiu na busca dos fatores inerentes à profissão, sendo eles parte do perfil docente. Nessa etapa, aplicou-se a técnica de entrevista individual semiestruturada, conforme Severino (2007), com professores dos anos iniciais do ensino fundamental de uma escola da rede pública de educação básica do município de Horizonte, Ceará (CE).
Etapa 2 - conceituação: interpretação dos achados sistematizados na etapa 1 sobre o desenho e o valor da avaliação da práxis docente. Ocorreu com a elaboração de um instrumental sistematizado para preenchimento dos professores participantes na etapa 1, utilizando-se da técnica de categorização a partir da análise de conteúdo em Bardin (2011).
Etapa 3 - validação: confirmação dos achados sistematizados na etapa 2 sobre o desenho e o valor da avaliação docente. Ocorreu com a aplicação coletiva do instrumental de sistematização elaborado aos professores partícipes da pesquisa oriundo da etapa 2.
As técnicas de coleta de dados utilizadas foram: a entrevista individual, feita com 11 professores, e a oficina de trabalho, da qual resultaram, a partir da discussão coletiva, instrumentais de escala de importância de aspectos da avaliação docente (gerados com base nos aspectos analisados nas entrevistas individuais). Na oficina, participaram 13 professores.
Os sujeitos investigados2 foram professores de uma escola pública municipal dos anos iniciais e finais do ensino fundamental do município de Horizonte, localizado no Ceará. O recorte desses sujeitos delimitou-se ao perfil de atuação deles - os anos iniciais do ensino fundamental -, que caracteriza um perfil formativo específico na licenciatura em Pedagogia (Brasil, 1996). Ademais, a investida nesse município se deu a partir dos indicadores educacionais apresentados, que relacionavam tanto aspectos de alto desempenho discente quanto boas condições de trabalho docente nessa etapa de ensino. Além disso, o município já apresentava uma Política de Avaliação de Desempenho Docente, consonante ao artigo 67 da Lei nº 9.394/1996, o que introjetava uma globalidade dos conceitos de avaliação aos professores (Carvalho; Ribeiro, 2020).
Relacionada à fenomenologia hermenêutica de Heidegger e à técnica de análise de conteúdo, a análise dos dados permitiu desenvolver categorias de descobrimento do ser professor, compreendendo não somente a sua pessoalidade, mas o seu estar no mundo, considerando então a espacialidade e a profissionalidade docentes (Heidegger, 2012; Bardin, 2011). A visão dos sujeitos acerca da sua profissão e do seu agir docente resultou nas seguintes categorias de análise: retrato do perfil docente; atividade docente; profissionalidade docente; e avaliação docente (Figura 2).
Sendo o objetivo deste trabalho investigar o entendimento da avaliação docente pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, a propositiva da avaliação da práxis docente se relaciona à compreensão dessa profissão, especificamente da docência e de seus elementos, que perfazem, dentre outros fatores, a identidade docente, as atividades que instrumentalizam essa profissão e o itinerário formativo.
Portanto, cada uma dessas categorias apresentou subcategorias e unidades de análise que culminaram nas diretrizes norteadoras, pertinentes à avaliação da práxis docente, envolvendo a caracterização de uma avaliação docente que partiu de anseios e necessidades próprios da docência evidenciados pelos professores investigados. Serão, então, objeto de apresentação neste artigo as subcategorias de análise dos desvelamentos sobre avaliar e os princípios norteadores de uma avaliação da práxis docente, um recorte, portanto, da categoria “avaliação docente: do desempenho à práxis”. Tudo isso considerando atingir o objetivo central de investigar o entendimento da avaliação docente pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, partindo de fatores subjetivos da profissão associados aos próprios anseios e necessidades desses professores na análise sobre sua prática, estimando a reflexão e o aprimoramento com a propositiva de uma avaliação que esteja desenhada e valorada nesse entendimento.
Avaliação docente: do desempenho à práxis
O trabalho docente pode ser mensurado? Há alguma forma de assegurar a avaliação formativa na melhoria profissional dos professores? De que maneira a avaliação docente está representada para os professores?
As pesquisas sobre avaliação docente no Brasil expressam a incompletude de uma sistematização sem uma organização precedente de um perfil docente que atenda à identidade e à profissionalidade do professor brasileiro (Barretto, 2013; Bauer, 2013; Bonamino, 2013; Fleuri, 2015). Além disso, a prática avaliativa dos professores se respalda na valorização dessa classe a partir de uma progressão na carreira, com isso a natureza e os aspectos relativos aos sistemas avaliativos são em torno da mensuração do desempenho docente com base em critérios quantificáveis (Rodrigues, 2012; Zatti, 2017).
Nesse sentido, as pesquisas e os estudos norteadores da avaliação docente que se despertam foram de ambientes estrangeiros, perceberam-se Estados Unidos e Portugal como locais de estima do processo avaliativo docente a conduzir aspectos precursores de um sistema próprio e contextual3 (Millman; Darling-Hammond,1990; Wise et al. 1984; Alves; Machado, 2010; Fernandes, 2008b).
O trabalho docente é de longe um exercício profissional quantificável; algumas atividades podem ser caracterizadas e sistematizadas, mas não orientadas sob uma prática de metas e indicadores quantitativos. As pesquisas que ancoram a abordagem até então apresentada de identidade, atividade e profissão docentes não quantificam as atribuições do professor, mas as qualificam, a entender a natureza interativa e subjetiva desse trabalho (Tardif; Lessard, 2014).
Diante disso, desenhar uma forma de avaliação docente indica um aparato sobre a regularização das atribuições da função, bem como dos aspectos reais que as envolvem. De acordo com a Lei Municipal de Horizonte/CE nº 359/2002, o Estatuto dos Profissionais do Magistério afirma que o:
Professor é o integrante do Quadro do Magistério que, no desempenho de suas funções, proporciona ao educando a formação necessária ao pleno desenvolvimento de suas potencialidades, como elemento de autorrealização, preparo para o trabalho e para o exercício consciente da cidadania e, ainda: I- participar da elaboração da proposta pedagógica do estabelecimento de ensino; II- elaborar e cumprir o Plano de Trabalho, segundo a proposta pedagógica da escola; III- zelar pela progressiva aprendizagem dos alunos; IV- estabelecer estratégias de recuperação para os alunos de menor rendimento; V- ministrar os dias letivos e as horas-aula estabelecidos, além de participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação do desempenho dos seus alunos (tarefas, participação, convivência social, interesse e progresso na aquisição de conhecimentos) e ao desenvolvimento profissional; VI- colaborar com as atividades de articulação da escola, com as famílias e a comunidade; VII- participar dos momentos de heteroavaliação do desempenho docente, com profissionalismo e consciência cidadã; VIII- exercer o acompanhamento, o controle e a avaliação da administração dos recursos materiais e financeiros a cargo da escola; IX- atualizar-se, permanentemente, garantindo o saber científico necessário à sua prática docente. (Horizonte, 2002, p. 18).
A partir da análise das funções que caracterizam a atividade docente, o predomínio delas se deu pela formação e pelo ensino. Este integrou funções relacionadas à organização do ensino e aos aspectos didático-pedagógicos, já a formação trouxe não somente as necessidades de autoformação acadêmica, mas de delineamento de estratégias à especificidade de um contexto discente.
Desse modo, as funções percebidas pelos professores investigados, quando do âmbito de integração à gestão e à instituição escolar, são vistas distanciadas. Os incisos II, VI, VII, VIII do Estatuto do Magistério foram aqueles mais distanciados na fala dos docentes entrevistados. Apesar de se caracterizar a rotina como um plano de trabalho, ela é entendida, nesse caso, como ação extrínseca ao contexto específico da escola e abrangente à conjuntura de todo o sistema municipal. Ao observar o inciso IX do estatuto, pode-se perceber a visão de importância à formação docente - de atualização do saber científico -, o que expressa a identidade profissional do ser professor imperfeita (Pimenta, 1999).
O processo de avaliação, remetido no inciso VII do estatuto, relaciona-se à avaliação do desempenho docente, que, por sua vez, vincula-se à progressão docente pela via acadêmica e não acadêmica; esta segunda considera fatores de atualização, aperfeiçoamento profissional e produção de trabalho (Carvalho; Ribeiro, 2020).
Ao comparar tais pressupostos com os indicadores atribuídos pelo “Documento de Reflexão Crítica” do Decreto-Lei nº 139-A, de 28 de abril de 1990 (Portugal, 1990), do Estatuto da Carreira dos Educadores da Infância e dos Professores dos Ensinos Básico e Secundário de Portugal4, constatou-se que muitos fatores nessas atribuições do estatuto de Horizonte carecem da profissionalidade e da identidade docente, são eles: distribuição do serviço docente; relação pedagógica com os alunos; desempenho de outras funções educativas; participação em projetos da escola (Santos, 2009).
Com isso, percebeu-se que o processo de avaliação do desempenho docente investigado não confere aspectos respeitantes ao trabalho docente, principalmente quando exclui fatores como tomada de decisão e desenvolvimento de pessoas daqueles subjetivos próprios do fazer docente, conforme constatado na fala dos professores analisados. As pesquisas portuguesas sobre as inovações legislativas e as ações da avaliação do desempenho docente apontam que há a necessidade de se trabalhar com os professores o conceito de avaliação e, com isso, perceber a cultura avaliativa sob um viés social (Fernandes, 2008b; Nóvoa, 1992).
Portanto, considerar as interpretações docentes acerca do ato de avaliar é a primeira ação a ser respeitada quando da proposição de uma avaliação da práxis docente, observando as diferentes finalidades e propósitos que julgam as avaliações do desempenho e da prática docente (trabalho docente).
Desvelamentos sobre avaliar
Submergem na prática docente traços das experiências vivenciadas pelos professores em sua tradição cultural do fazer escola na posição de aluno, que posteriormente, diante da formação inicial, culminam na função de professor. Em Heidegger (2012, p. 85), a tradição transmite um “[...] poder-ser-entendido-por-si-mesmo, obstruindo o acesso às ‘fontes’ originárias [...]”, por isso, a prática docente no aspecto avaliativo carece de uma reflexão e de uma formação que a sugira no pensar ou fazer pedagógico.
Destaca-se o ato avaliativo pela ausência de formação necessária quanto a essa atividade do professor em específico, seja nos cursos de formação inicial de professores, como ressalta a pesquisa documental dos projetos do curso de Pedagogia de algumas universidades brasileiras (Carvalho; Benfatti; Silva, 2017), seja nos cursos de formação continuada, conforme ressaltou um dos professores investigados (P9) ao se utilizar do espaço aberto da entrevista para propor um curso de formação em avaliação da aprendizagem dos alunos: “O que eu tenho para falar é que o que tu estás fazendo é voltado para a avaliação dos professores; uma coisa que nós, professores, temos muita dificuldade é sobre avaliação dos alunos, entendeu? Principalmente dos alunos da inclusão: como avaliar esses alunos?”.
Por isso, há que se retomar conceitos e rituais próprios da sala de aula no seu entendimento epistemológico, a fim de que o enunciado básico de senso comum - “a ideia de que ser professor é relativamente fácil desde que se ‘saiba’ a matéria e se consiga ‘controlar’ os alunos... Esta é, como sabemos, uma representação de senso comum muitíssimo generalizada” (Roldão, 2005, p. 114) - seja desvelado e transformado.
Quando questionados sobre o que é avaliar, os professores investigados responderam mencionando sua vivência nos processos avaliativos (de sala de aula, em larga escala, de acompanhamento pedagógico) e sua prospecção sobre os fundamentos avaliativos que acreditavam ser mais significativos para a melhoria tanto do aluno quanto do professor.
Nas falas dos professores investigados (P1, P2, P6, P8, P9 e P11), percebeu-se o caráter relacional da prática avaliativa como componente da organização do ensino, sendo, pois, uma função docente, uma responsabilidade de conferir se o sujeito (“objeto de seu trabalho”) apresenta desenvolvimento em suas características.
Em outra fala do professor investigado (P1), notou-se similaridade do processo avaliativo com aquele percebido nas avaliações em larga escala. A cultura do teste, disseminada nos anos de 1990 com as políticas de avaliação, trouxe a característica ao trabalho docente de perceber a avaliação da aprendizagem (no caso estadual, o Sistema Permanente de Avaliação da Educação Básica do Ceará - Spaece5) como um instrumento produtor de informações acerca dos níveis proficientes do aluno com relação a uma matriz de referência. Infere-se essa acepção do ponto de vista de P1 ao relacionar o Spaece às características de uma avaliação interna da aprendizagem cuja natureza é diferente.
As falas dos professores investigados (P6, P8 e P9) também trouxeram o caráter diagnóstico da avaliação da aprendizagem, atrelado a uma perspectiva construtivista da aprendizagem.
Já na fala de outro professor (P2), houve o caráter conceitual do ato avaliativo: a leitura se faz demasiadamente em torno do ensino como aspecto de progressão conceitual, voltada para os conhecimentos científicos. Essa é uma característica tradicional da avaliação, na qual “[...] os alunos são comparados e depois classificados em virtude de uma norma de excelência, definida no absoluto ou encarnada pelo professor e pelos melhores alunos” (Perrenoud, 1999, p. 13). Essa postura tradicional de perceber o processo de aprendizagem remonta à historicidade vivida por ela, quando “[...] a configuração histórica do modo de agir com os exames tornou-se resistente às mudanças, pois ela oferece um modo confortável de ser [...]” (Luckesi, 2011, p. 69).
A representação evolutiva mencionada pela fala do professor investigado (P11) trouxe à tona dois papéis da avaliação, um formativo e outro somativo. Entender esses papéis é necessário para ponderar acerca das decisões a serem tomadas, seja no desenvolvimento, seja no “término” do processo de ensino do educando naquele ano (Vianna, 2000).
Em algumas pesquisas, como na de Carvalho (2011, 2014), Freire (2012), Maia (2010), Munhoz (2012) e Ribeiro (2011), o caráter diagnóstico das avaliações em larga escala é ressaltado ao longo de programas e políticas públicas em âmbito nacional e estadual que intensificaram informações pertinentes ao contexto docente, de conhecimento por parte do professor das diversas situações de aprendizagem presentes em sala de aula e das possíveis intervenções que isso pode gerar (Lemov, 2016).
Ademais, as falas dos professores sobre o que é avaliar ressaltaram a importância do “retorno” da avaliação do rendimento do aluno ao seu desempenho como docente, pontuando ora o feedback gerado pelos resultados dos alunos com relação aos objetivos motivados na organização do ensino, ora uma autoavaliação para a aprendizagem pessoal e profissional do professor.
As falas dos professores investigados (P3, P5 e P10) trouxeram o significado de planejar com objetivos específicos, com o fito de que possam facilitar a análise avaliativa do próprio plano ou execução da aula. “Um objetivo eficaz deve ser escrito de forma que o seu sucesso em alcançá-lo possa ser medido, idealmente, logo depois da aula. Com essa avaliação, você mesmo pode entender o que funcionou e o que não funcionou na implementação do seu plano de aula” (Lemov, 2016, p. 79). E o professor só se perceberá nesse processo quando tiver autonomia de julgar e conceber os objetivos como parâmetros para avaliar o seu trabalho de ensino.
As falas dos professores investigados (P4, P6, P7 e P11) remeteram à autocrítica e à melhoria da identidade e da profissionalidade docente por meio da avaliação diária e contínua. Nesse sentido, as falas dos professores ilustraram a autoavaliação (Wise; Gendler, 1990).
Todavia, as formas de avaliação de que se tem referência em contexto nacional servem apenas para um desenvolvimento profissional articulado à progressão na carreira, com uma suposta proporção financeira agregada (tendo em vista a classificação dos professores em determinado nível e classe para a manutenção da porcentagem do ajuste financeiro). Essas formas de avaliação contribuem para uma cultura tradicional de avaliação, somando valor a aspectos profissionais referentes a apenas uma parte da profissionalização docente.
Nesse sentido, a cultura avaliativa em torno do perceber a avaliação - em específico, a docente - deve ser construída a partir de uma prática em que se assegure a função da avaliação e seus propósitos formativos ao desenvolvimento pessoal e profissional do ser professor.
Assim como Alves e Machado (2010, p. 94) asseveram para o contexto português, aqui também há semelhanças, “[...] daí que, para os professores, a avaliação do desempenho seja um tema central, por ser um tema de difícil consensualidade e pela existência de uma débil cultura de avaliação, nomeadamente no nosso país”.
Ao entender a identidade docente segundo as características da pessoalidade, espacialidade e profissionalidade, a propositiva de avaliação desse profissional versa sobre aspectos formativos. A observação das dimensionalidades do percurso formativo docente para uma política de Estado, por exemplo, compreende uma prática avaliativa cujo desempenho docente seja ponderado, congregando dados que justifiquem as devidas mudanças curriculares, organizacionais e formativas, apesar de esses dados serem vislumbrados em fatores mais extrínsecos à prática docente.
Considerando então uma reflexão sobre as atividades profissionais do professor, bem como sobre o seu dirigir-se a correspondente à sua constituição de ser professor, a avaliação, sob a perspectiva formativa - avaliação da práxis docente -, deve ser observada. Cabe ressaltar que ambas as avaliações (do desempenho e da prática) se complementam para um cotidiano de Dasein em sua práxis, pois revelam características constituintes de um sujeito que, de forma intrínseca (profissionalidade) e extrínseca (profissionalismo), se manifesta no mundo, conforme categorizadas na análise de conteúdo das entrevistas coletadas. Pois, a práxis, nesse sentido, é ressaltada pela “[...] vinculação entre o pensar e o agir [que] pressupõe a unicidade, a inventividade, a irrepetibilidade da prática pedagógica” (Candau; Lelis, 2008, p. 69).
O desenvolvimento deste trabalho a respeito da visão de uma avaliação remetida aos aspectos da quarta geração (Guba; Lincoln, 1989) corrobora uma visão emancipatória e formativa da avaliação docente. Contudo, entender a perspectiva dos sujeitos atinente a uma avaliação que indique e regule a sua melhoria profissional compreende princípios para se construir uma avaliação do desempenho docente com foco na melhoria da práxis desses sujeitos.
No contexto brasileiro, a avaliação do desempenho docente faz referência às experiências de aspecto somativo da avaliação (Alves; Machado, 2010; Santos et al., 2012), a exemplo do que já ocorre no município investigado, conforme Carvalho e Ribeiro (2020). E a avaliação da prática docente se relaciona com os objetivos e os princípios considerados em uma avaliação formativa docente, que serve para a reflexão e a intervenção na e sobre a própria prática (Bauer, 2013).
Na interpretação hermenêutica heideggeriana, a práxis compreende várias dimensões da vida cotidiana, portanto ambas as subcategorias - da avaliação do desempenho e da prática docente - se relacionam ao modo como o Dasein (ser aí) compreende o mundo e as possibilidades de existir (Heidegger, 2012). Nesse sentido, a visão dos professores acerca da avaliação do desempenho docente é aquela já vivenciada por eles no município, e a avaliação da prática docente seria aquela em que os anseios fossem privilegiados - de refletir sobre a prática e aprimorar-se a partir de um feedback (Baehr, 2010; Duke; Stiggins, 1990; Fernandes, 2008a). Então, como seria uma avaliação da práxis docente entendendo essas duas tipologias?
Princípios norteadores de uma avaliação da práxis docente
A avaliação da práxis docente está apresentada sob o aporte dos desenhos da avaliação do desempenho docente (ADD) e da avaliação da prática docente (APD), desenhos advindos da diferenciação reconhecida na fala dos professores investigados entre avaliação do desempenho e da prática. Contribuíram nessa propositiva os anseios e as necessidades docentes sobre a avaliação desde a entrevista semiestruturada à conceitualização dos desvelamentos com a produção de um instrumento que discriminou desenho e valor dessa avaliação perpassando pela validação dele com os mesmos professores investigados. Denotando, então, a especificidade entre as duas avaliações - ADD e APD e o seu caráter integral diante da natureza do trabalho docente - APxD. A Figura 3 apresenta a proposta constitutiva da avaliação da práxis docente (APxD).
Ressalta-se que a constituição da APxD compreende aspectos das duas formas de avaliação, a primeira voltada para o ser professor diante da legislação e das políticas educacionais e a segunda, para o ser professor diante da sua ação específica de administrar os processos de ensino e de aprendizagem em sala de aula, o que resultou no desenho das diretrizes norteadoras da APxD, conforme a Figura 4.
A APxD considera aspectos inerentes ao diagnóstico de uma política de valorização docente, assim como de aprimoramento da prática docente, estabelecendo a possibilidade de ações e intervenções que auxiliem o professor na sua constituição profissional e atuação - na práxis. De acordo com a Figura 4, a APxD é retroalimentada em um nível global, em que a participação se faz compartilhada com uma contextualização integralizada e a profissionalidade docente. Essas características perpassam por: desenho necessário para uma avaliação, sendo considerados tipo, período, função, princípios e critérios; e valoração da avaliação - aspectos intrapessoais, interpessoais e institucionais (Wise; Gendler, 1990), conforme a Figura 5.
Com relação ao tipo do desenho da APxD, verificaram-se nos dados coletados: a avaliação da prática do professor (observação), a avaliação pela instituição escolar e a autoavaliação. A exemplo da prática de avaliação docente de Ontário (Canadá), Tardif e Faucher (2010, p. 47) expressam que, “[...] na avaliação da profissionalidade dos professores, as observações e as intenções das pessoas - diretores, colegas, conselheiros ou orientadores pedagógicos, pais, alunos, etc. - envolvidas neste processo de avaliação devem ser ponderadas, umas em relação às outras”.
Diante disso, os docentes investigados também discutiram e sugeriram outra opção à avaliação da prática do professor pela observação dos colegas em sala, ou seja, dos seus pares. Com isso, o compartilhamento das práticas em sala de aula pelos pares torna-se objeto de uma aprendizagem colaborativa e ao mesmo tempo assegurada na confiança de que o observador-avaliador é aquele que partilha do mesmo contexto, dos intervenientes socioculturais daquela comunidade escolar.
Corroborando a expectativa do compartilhamento de práticas e da atividade de observação registrada pelos professores investigados, Tardif e Faucher (2010) ressaltam que o portfólio é um instrumento capaz de gerar informações substanciais sobre a prática docente e com ela a reflexão se faz instrumento considerado para a prática da autoavaliação docente.
Com relação ao período do desenho da APxD, as opções anual, semestral e mensal foram consideradas pelos professores investigados. A exemplo das avaliações dos outros países, o intervalo anual, além de destacado, assevera um período que assiste a um progresso, uma evolução. Nos Estados Unidos, há um intervalo de cinco anos; no Chile, de quatro anos; e, em Portugal, de dois em dois anos (Assaél; Pavez, 2008; NBPTS, 2016; Portugal, 2008).
Os princípios e os critérios no desenho da APxD mesclam aspectos fomentados na ADD e na APD. Os princípios foram organizados por embasamento legal (processos, atores e adesão); contextualização institucional e docente; feedback colaborativo e representativo.
Sobre o embasamento legal, incorporam-se:
A avaliação do desempenho deve se basear nos documentos legais (Ministérios da Educação, Secretarias Estadual e Municipal de Educação) sobre o trabalho docente.
O processo avaliativo deve ser divulgado e explicado por completo.
O professor deve ser consultado sobre a sua participação e aceitação de todo o processo avaliativo.
O professor deve autorizar os procedimentos de avaliação quando ciente deles.
Sobre a contextualização institucional e docente, estão:
A avaliação deve possuir representatividade da comunidade escolar (núcleo gestor, pais e alunos).
O processo de avaliação deve ser conduzido por uma equipe multiprofissional.
A avaliação deve considerar a orientação pedagógica do professor.
Sobre o feedback colaborativo e representativo, estão:
Os resultados das avaliações deverão gerar ações e encaminhamentos de melhorias para a prática educacional.
O avaliador deve possuir notável reconhecimento acadêmico e profissional.
A avaliação deve ser contínua e processual.
A avaliação deve apresentar feedback (pontos positivos, a melhorar e sugestões).
A avaliação permite o diagnóstico das dificuldades da ação docente.
Os critérios, de acordo com os professores investigados, devem observar o retrato docente (perfil, formação e competências); a função e as atribuições (ações desempenhadas na escola e na sala de aula); e a caracterização institucional. Assim evidenciados:
O perfil e formação docente, as competências profissionais, as ações ou atividades a desenvolver na instituição escolar e o aprimoramento dos estudos e formação continuada são dimensões a serem avaliadas.
A avaliação deve considerar a orientação pedagógica do professor.
A avaliação deve identificar os fatores intervenientes da prática em sala de aula - fatores internos e externos (quanto ao professor, quanto aos alunos e quanto à instituição escolar).
Os critérios e os parâmetros da avaliação serão pautados no trabalho docente (planejamento, execução e avaliação da aula); nas características docentes (perfil, formação e competências); e no contexto institucional (condições de trabalho e público-alvo).
Percebeu-se dos professores investigados o compromisso social e ético com a prática avaliativa de sua práxis. Ao considerar os princípios e critérios elencados, Fernandes (2008a) traz as características de avaliação permeadas pelos fundamentos da quarta geração da avaliação:
Utilização de várias estratégias e técnicas no avaliar, considerando os intervenientes do processo de ensino-aprendizagem.
Avaliação formativa como função privilegiada ao fazer pedagógico.
Feedback como processo indispensável à prática do ensino e da aprendizagem.
Avaliação para melhoria, para auxílio no crescimento das pessoas em seus diferentes aspectos.
Avaliação a partir de uma construção social, de atores que perpassam pelos contextos e processos da sala de aula (cognitivos, sociais e culturais).
Predominância de métodos qualitativos em detrimento dos quantitativos nesse proceder avaliativo.
A valoração da APxD, nesse caso, apresenta como os professores se avaliam, entendendo as seguintes subunidades de sentido: aspectos intrapessoais, interpessoais e institucionais. Com relação ao valor da avaliação, foi resultado também da valoração atribuída às avaliações ADD e APD. A Figura 6 apresenta a proposta de APxD no tocante ao seu valor.
Esses aspectos refletiram sobre mudanças pessoais e profissionais, desde o reconhecimento do sujeito autônomo e reflexivo até a relação com os alunos e seus pares na disposição do compartilhamento de ideias e práticas. É notório o compromisso social do trabalho docente a partir dos aspectos institucionais, desde a sensibilização das famílias e da participação na aprendizagem dos filhos até a interlocução com outros pares na atividade formativa.
Portanto, espera-se que a valoração dessa avaliação se dê: nos aspectos intrapessoais, na reflexão do professor em seu aprimoramento pessoal; nos aspectos interpessoais, na contextualização da ação docente diante de seus ambientes e relações (sala de aula, escola e políticas educacionais); e nos aspectos institucionais, diante do conhecimento desse contexto e do ambiente circundante à educação escolar, ante a sala de aula, a escola e as legislações e políticas que se inserem no patamar institucional da ação docente.
Assim, o reconhecimento desses aspectos deve iluminar a elaboração e/ou implantação de padrões estabelecidos da profissão, ou seja, das competências docentes que estarão relacionadas às variáveis elencadas do valor da avaliação, conforme a Figura 6.
Considerações finais
A presente pesquisa teve como principal objetivo investigar o entendimento da avaliação docente pelos professores dos anos iniciais do ensino fundamental, partindo de fatores subjetivos da profissão associados aos próprios anseios e necessidades desses professores na análise sobre sua prática, estimando a reflexão e o aprimoramento. Para isso, a pesquisa, de enfoque fenomenológico e qualitativo, permitiu a caracterização dos achados e o norte das análises em torno da compreensão de uma avaliação da práxis docente.
Pensar em uma avaliação docente requer a compreensão do que seja primeiramente o ser professor, que, envolto de saberes e subjetividades, se apresenta no contexto escolar a partir de um escopo experiencial e científico de relevância inestimável. Ao caminhar por uma profissionalidade, a identidade docente se forma e transforma-se. Entender esse sujeito em sua ação pedagógica requer uma análise sobre a dimensão do seu ser, considerando, então, a sua pessoalidade, espacialidade e profissionalidade.
A importância de uma avaliação docente que observe os aspectos intrapessoais, interpessoais e institucionais da profissão confere à avaliação preservação dos fatores subjacentes da profissão. Entende-se que, a depender dos distintos cenários, a ação docente responde à melhoria do ensino, e isso pode ser reconhecido até certo ponto. Nesse sentido, uma avaliação docente de caráter diagnóstico e formativo requer de seu avaliando participação e contribuição, pois a avaliação, sob o ponto de vista da regulação, permite ao docente manifestar-se em verdade, considerando, para além da objetividade ou padronização da sua ação, o seu ser, a sua realidade e o seu cotidiano.
A avaliação da práxis docente (APxD) observou então essa análise provocada pelas opiniões dos professores no tocante a uma avaliação que eles pudessem implementar para a melhoria da sua prática. Foram relacionados aspectos relativos à subjetividade docente, à contextualização de fatores intervenientes na aprendizagem, às políticas e às legislações de um sistema educacional público. Notou-se, com isso, que não há uma distância colossal entre os países que já congregam políticas de avaliação docente, pois eles incorporam aspectos semelhantes aos que foram encontrados, a exemplo de Portugal e Estados Unidos.
Doravante, esta pesquisa implica compreender a complexidade da avaliação docente que germina a partir dos próprios anseios e necessidades dos professores, viabilizando a idealização de instrumentos e propostas avaliativas que considerem as nuances desse ser professor, independentemente do contexto em que se encontre, além do que as diretrizes para uma avaliação não desvendam um perfil profissional padrão, interpelando então se, de fato, existe um padrão profissional de professor (standard) no contexto brasileiro.
A propositiva de instrumentos e documentos compósitos de um repertório de realização de uma APxD será fruto de pesquisas possíveis, a partir do reconhecimento das diretrizes que o atual artigo desvelou.