Introdução
A educação é um fenômeno próprio da espécie humana e está presente em diferentes povos e culturas. Neste estudo, a educação é entendida como o processo de formação humana, ato intencional que transforma o sujeito biológico em um ser de cultura. O ato de educar compreende acionar os meios intelectuais de cada sujeito para que ele seja capaz de exercer o pleno uso de suas potencialidades intelectuais, físicas e morais para conduzir a continuidade da sua própria formação. Educar refere-se à preparação dos sujeitos para que se “capacitem intelectual e materialmente, para acionar, julgar e usufruir esse complexo de experiências com o mundo da vida” (Rodrigues, 2001, p. 234).
Diante da importância da educação para o ser humano, ela tornou-se direito fundamental na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que a assegura para todas as pessoas, independentemente das suas condições sociais, físicas, intelectuais, étnicas, culturais ou linguísticas (ONU, [1948]).
No Brasil, esse direito humano fundamental não foi estendido de forma igualitária a todos os segmentos da sociedade, pois a necessidade de manter as desigualdades sociais e os privilégios de uma determinada classe fez com que uma parcela expressiva da população ficasse sem o acesso à educação. Podemos citar as pessoas de classes econômicas menos favorecidas, negros, indígenas e pessoas com deficiência.
No caso das pessoas com deficiência, historicamente o direito à educação é marcado pela falta de acesso, pela segregação em instituições especializadas e em classes especiais (Bueno, 2011). Entretanto, a partir da promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1961) é discutida oficialmente a educação das pessoas com deficiência e instituída a denominação “educação dos excepcionais” (Mazzotta, 2005).
Desde o processo de redemocratização do estado brasileiro iniciado na década de 1980, especificamente com a promulgação da Constituição Federal de 1988, o direito à educação passa a ser garantido a todas as pessoas, inclusive àquelas que possuem algum tipo de deficiência. O artigo 205 estabelece que “[...] a educação é um direito de todos e dever do Estado e da família [...]” e garante o atendimento educacional especializado (AEE) às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino (Brasil, 1988).
Contudo, a partir da década de 1990, o movimento pela educação inclusiva, divulgado pela Declaração Mundial de Educação para Todos (Unesco, 1998) e apresentado especificamente na Declaração de Salamanca (Unesco, 1994), reorganiza o papel da educação especial no Brasil, fornece a base para a formulação de políticas educacionais que impulsionaram as redes de ensino a adotarem políticas com foco na perspectiva da educação inclusiva.
Nessa direção, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996), em seu artigo 59, determina que os sistemas de ensino assegurarão aos educandos com necessidades especiais, entre outros aspectos: currículos, métodos, técnicas, recursos educativos e organização específica para atender às suas necessidades (Brasil, 1996).
Mas é durante a década de 2000, especificamente no governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores (PT), que o movimento pela educação inclusiva ganha força. Diversas políticas e programas de educação especial na perspectiva inclusiva começaram a ser criados e implementados no contexto brasileiro (Brasil, 2007, 2009; Brasil. MEC, 2003, 2008).
No ano de 2008, foi aprovada a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (Brasil. MEC, 2008, p. 10), que tem por objetivo garantir o acesso, a participação e a aprendizagem dos alunos da educação especial (estudantes com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação), preferencialmente na escola comum.
Ao considerar que o Brasil é um país com dimensões continentais e possui uma pluralidade cultural expressiva, as políticas educacionais, principalmente as direcionadas para a área da educação especial, devem se adequar e reconhecer a diversidade e as particularidades presentes no sistema educacional brasileiro, como é o caso dos escolares indígenas com deficiência.
Estudos realizados com dados demográficos sobre a população indígena com deficiência são escassos, mas os poucos publicados, como os dos pesquisadores Dias Junior e Verona (2018), revelam que a prevalência da deficiência visual, auditiva e motora é quase sempre maior na população indígena. E o estudo realizado por Sá e Armiato (2020) evidenciou que 1,9% da população que se declarou indígena no censo demográfico de 2010 possuía algum tipo das seguintes deficiências: “deficiência visual - não consegue de modo algum”, “deficiência auditiva - não consegue de modo algum”, “deficiência motora - não consegue de modo algum” e “mental/intelectual”.
Com relação às políticas direcionadas à população indígena com deficiência, as primeiras preocupações foram manifestadas em âmbito internacional. A Declaração das Nações Unidas sobre os direitos dos povos indígenas (ONU, 2008) recomenda que os estados adotem medidas eficazes no sentido de assegurar a melhoria contínua das condições econômicas e sociais dos povos indígenas, com especial atenção aos direitos e às necessidades específicas de idosos, mulheres, jovens, crianças e pessoas indígenas com deficiência.
No Brasil, a discussão sobre a escolarização de pessoas indígenas com deficiência está presente em diferentes documentos normativos que fazem a interface da educação especial com a educação escolar indígena. Mas, antes de apresentar esses documentos, cabe esclarecer como se configura o processo educativo dos povos indígenas, que difere dos moldes da educação nacional.
Segundo os estudos antropológicos, existem dois modelos de educação para os povos indígenas: a educação indígena e a educação escolar indígena. De acordo com Meliá (1979), a educação indígena é um processo global em que a cultura da comunidade é ensinada e aprendida por meio da socialização e transmitida pela tradição oral. A educação escolar indígena difere da educação indígena no sentido de se concretizar em local específico (na escola) e com práticas pedagógicas definidas e currículo preestabelecido. Apesar de ser sistematizada, a educação escolar indígena apresenta diferenças significativas quando comparada às escolas não indígenas. Segundo Cohn (2005), na educação escolar indígena é assegurada a inclusão da língua materna, da cultura e dos saberes indígenas nas práticas pedagógicas e no projeto da escola, e o respeito à particularidade cultural e étnica de cada povo, reunindo alunos e docentes da mesma etnia, sendo ofertada na escola indígena definida como diferenciada, específica, bilíngue e intercultural.
A educação escolar diferenciada está assegurada para os povos indígenas desde a Constituição Federal de 1988. No artigo 210, fica assegurado o direito de utilizarem suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem e abre
.[...] caminho para transformar a instituição escolar em um instrumento de valorização e sistematização de saberes e práticas tradicionais, ao mesmo tempo em que possibilite aos índios o acesso aos conhecimentos universais (Grupioni, 2000, p. 275)
Como pode ser observado, nas últimas décadas, tivemos avanços nas políticas educacionais tanto para as pessoas com deficiência como para os povos indígenas. E o desafio atual é refletir sobre as políticas que norteiam a escolarização dos alunos indígenas com deficiência dentro de uma perspectiva que respeite as particularidades culturais e linguísticas de cada povo.
O primeiro documento publicado na área da educação que faz a articulação entre a educação especial e a educação escolar indígena foi a Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva (Brasil. MEC, 2008). Nesse documento, definiu-se a educação especial como modalidade de ensino transversal que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, e ficou estabelecido, sobretudo, em seu texto, o direito à educação especial em interface com a educação escolar indígena e outras modalidades, como pode ser observado:
.A interface da educação especial na educação indígena, do campo e quilombola deve assegurar que os recursos, serviços e atendimento educacional especializado estejam presentes nos projetos pedagógicos construídos com base nas diferenças socioculturais desses grupos (Brasil. MEC, 2008, p. 17)
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a educação escolar indígena na educação básica (Brasil. CNE. CEB, 2012) reconhecem, corroborando com diversos documentos nacionais e internacionais, a educação como um direito humano e social, e asseguram aos povos indígenas o direito a uma educação escolar diferenciada. Em relação à educação especial, é reconhecida nesse documento como:
.Educação Especial é uma modalidade de ensino transversal que visa assegurar aos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e com altas habilidades e superdotação, o desenvolvimento das suas potencialidades socioeducacionais em todas as etapas e modalidades da Educação Básica nas escolas indígenas, por meio da oferta de Atendimento Educacional Especializado (AEE) (Brasil. CNE. CEB, 2012)
Sobre o AEE, as diretrizes instituem o dever desse atendimento de assegurar igualdade de condições para acesso, permanência e conclusão com sucesso no processo de escolarização dos educandos indígenas que dele necessitarem. Nesse documento ainda é estabelecido que os sistemas de ensino devam assegurar a acessibilidade aos escolares indígenas público-alvo da educação especial por intermédio de “[...] prédios escolares, equipamentos, mobiliários, transporte escolar, recursos humanos e outros materiais adaptados às necessidades desses estudantes” (Brasil. CNE. CEB, 2012).
O Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado pela Lei nº 13.005, de 2014, com vigência de dez anos, instituiu em sua Meta 4, ao tratar especificamente sobre a educação especial, o compromisso de universalizar para o público-alvo da educação especial na faixa etária de 4 a 17 anos o acesso à educação básica e ao AEE com a garantia de sistema educacional inclusivo. Além disso, fixou-se que, ao longo do PNE, as salas de recursos multifuncionais (SRM) devem ser implantadas nas escolas indígenas contando com o fomento, o acesso e a formação continuada para professores atuarem no AEE.
O direito à educação da população indígena com deficiência está garantido nos textos normativos, mesmo assim, existe uma parcela expressiva de pessoas indígenas com deficiência que estão à margem da sociedade hegemônica em uma dupla exclusão (ser indígena e pessoa com deficiência) e parecem estar invisíveis para a sociedade. Por esse motivo, torna-se necessário ampliar os estudos que trabalham com os indicadores educacionais da população indígena com deficiência para dar visibilidade a esse público. Os poucos estudos que abordaram os indicadores educacionais direcionados, especificamente para a população indígena com deficiência, tiveram recorte temporal de 2007 a 2010 (Sá; Cia, 2015) e 2007 a 2013 (Sá, 2015). Diante desse contexto, torna-se fundamental pesquisar os dados mais recentes sobre esse público para o acompanhamento das matrículas de escolares indígenas com deficiência em escolas indígenas e dos serviços ofertados para esse público.
Assim, o presente estudo teve como objetivo geral apresentar um retrato da escolarização de alunos indígenas com deficiência no Brasil a partir da análise dos dados do Censo Escolar da Educação Básica. Os objetivos específicos resultaram em identificar: a) o número de matrículas de escolares indígenas com deficiências; b) os tipos e a incidência das deficiências e do TEA nos escolares indígenas; c) a modalidade de ensino em que os escolares indígenas com deficiência estão matriculados; d) o número de escolares indígenas com deficiência que receberam AEE e o número de salas de recursos multifuncionais nas escolas indígenas.
A seguir, apresentaremos, em um primeiro momento, os estudos que abordam a escolarização de alunos indígenas com deficiência no Brasil; depois, apresentaremos o percurso metodológico, por fim, um retrato da escolarização dos alunos indígenas com deficiência no Brasil e alguns apontamentos finais sobre a escolarização desses alunos.
Produções científicas sobre a escolarização de alunos indígenas no Brasil
As primeiras publicações sobre a escolarização de alunos indígenas com deficiência no Brasil ocorreram durante a década de 2000. O estudo realizado por Sá e Caiado (2018) sobre as produções que fazem a interface da educação especial com a educação escolar indígena em programas de pós-graduação stricto sensu evidenciou que o primeiro trabalho defendido foi no ano de 2005 (Venere, 2005). No decorrer do período analisado pelas autoras (2000-2016) e no banco de dados utilizado (Catálogo de Dissertações e Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior − Capes) foram encontrados 14 trabalhos sobre a temática, sendo onze de mestrado e três de doutorado. As pesquisas de campo foram realizadas nos estados de Rondônia (1), Mato Grosso do Sul (8), São Paulo (1), Bahia (1), Amazonas (1), Paraná (1) e Santa Catarina (1).
De acordo com as autoras, os estudos discorreram sobre as seguintes temáticas: políticas públicas para a população indígena com deficiência; identificação e avaliação de escolares indígenas com deficiência visual e múltipla; surdez na população indígena; representação social da deficiência; AEE nas escolas indígenas; educação e inclusão de alunos indígenas; e formação de professores indígenas para o AEE (Sá; Caiado, 2018).
Após a publicação das autoras (Sá; Caiado, 2018), outros estudos foram defendidos sobre a temática. Em pesquisa realizada no Catálogo de Dissertações e Teses da Capes, no período de 20 de julho de 2022 a 13 de agosto de 2022, utilizando os mesmos descritores usados na pesquisa de Sá e Caiado (2018) (“índio deficiência”; “indígena deficiência”; “indígena educação especial”; “educação escolar indígena educação especial”; “educação escolar indígena atendimento educacional”; e “educação indígena inclusão escolar”) e acrescentando à busca novos descritores, como: “indígena surdo”; “indígena deficiência visual”; “indígena deficiência intelectual”; “indígena deficiência física”; “indígena Autismo”; “Educação Especial Inclusão Escola indígena”, foram identificados 36 trabalhos, conforme apresentados na Tabela 1:
Termo de busca | Quantitativo | Trabalhos novos |
---|---|---|
índio deficiência | 0 | 0 |
indígena deficiência | 5 | 2 |
indígena educação especial | 7 | 1 |
educação escolar indígena educação especial | 5 | 0 |
educação escolar indígena atendimento educacional | 3 | 1 |
educação indígena inclusão escolar | 5 | 1 |
indígena surdo | 1 | 0 |
indígena deficiência visual | 1 | 0 |
indígena deficiência intelectual | 1 | 0 |
indígena deficiência física | 2 | 0 |
indígena Autismo | 0 | 0 |
Educação Especial Inclusão Escola indígena | 6 | 1 |
Total geral | 36 | 6 |
Fonte: Elaboração própria com base no Catálogo de Teses e Dissertações da Capes.
Para as análises pretendidas neste artigo, foram selecionados seis trabalhos novos. Os critérios de inclusão dos trabalhos resultaram naqueles que abordassem a escolarização de estudantes indígenas com deficiência em escolas indígenas, defendidos a partir de 2017. E os critérios de exclusão foram retirar os trabalhos que não correspondessem à temática selecionada, não estivessem disponíveis on-line, os defendidos antes do ano de 2017, bem como aqueles duplicados cuja seleção já ocorresse em descritores anteriores. Dos 36 trabalhos identificados, apenas seis atenderam aos critérios de inclusão e exclusão e serão apresentados a seguir.
A pesquisa realizada por Eler (2017) com o título Mapeamento de sinais da educação escolar indígena dos surdos Paiter Suruí teve como objetivo principal mapear os sinais Paiter Suruí de alunos indígenas surdos nos processos próprios de ensino e aprendizagem na educação escolar indígena na aldeia. A pesquisa foi desenvolvida no estado de Rondônia e teve a participação de cinco adolescentes e duas crianças indígenas surdas que se comunicavam entre seus pares por meio de sinais próprios. A autora identificou 54 sinais emergentes criados por esses alunos indígenas para comunicação entre seus pares na escola. Ela destaca que os sinais foram influenciados pela visualidade, marca da cultura surda.
Outro estudo defendido foi o do pesquisador Araújo (2018) que se debruçou a pesquisar A escolarização de indígenas Terena surdos: desafios e contradições na atuação do tradutor e intérprete de línguas de sinais. A pesquisa foi realizada no estado de Mato Grosso do Sul e teve como objetivo identificar as ações de interpretação e tradução da Língua Brasileira de Sinais (Libras) junto aos estudantes indígenas surdos em escolas urbanas. Participaram do estudo três professores tradutores e intérpretes de língua de sinais (TILS) que atuaram ou atuam com escolares indígenas surdos em escolas não indígenas.
Os resultados do estudo de Araújo (2018) apontaram que os professores TILS indicaram dificuldades relacionadas à capacitação, no que se refere à educação indígena, à cultura indígena e às políticas de educação indígena. Embora os professores TILS respeitem a bagagem linguística dos estudantes indígenas surdos, reconhecem a necessidade da criação de sinais indígenas e/ou Terena em respeito à cultura dos alunos, mesmo que estes sejam alfabetizados na Libras. O autor concluiu que a interface entre a educação especial e a educação escolar destinada ao aluno indígena surdo é um campo novo e complexo de investigação e necessita que novas pesquisas sejam realizadas.
A pesquisa de Coelho (2019) intitulada A educação escolar de indígenas surdos Guarani e Kaiowá: discursos e práticas de inclusão teve como objetivo analisar os discursos que circulam nas comunidades pesquisadas sobre as diferenças dos sujeitos surdos e problematizar as experiências de ensino de estudantes surdos e as estratégias linguísticas e didáticas utilizadas.
O estudo foi realizado no estado de Mato Grosso do Sul, especificamente em seis escolas localizadas nas terras indígenas Amambai, Limão Verde, Taquaperi e Takuaraty/Yvykuarasu (Paraguassu). Participaram da pesquisa gestores da educação municipal, diretores das escolas, coordenadores pedagógicos das escolas e professores de uma estudante surda. Os resultados evidenciaram que, embora a proposta das escolas pesquisadas fosse o ensino do Guarani e do Kaiowá como primeira língua e o ensino da língua portuguesa como segunda língua, para os alunos surdos foi priorizada a alfabetização em língua portuguesa. Dessa forma, Coelho (2019) concluiu que o modelo educacional proposto para as escolas indígenas que prioriza o ensino da língua materna indígena como primeira língua e a língua portuguesa como segunda língua não se aplica aos estudantes indígenas surdos.
O estudo defendido por Portela (2019) teve como tema a “Identidade profissional do professor que atua na sala de recurso multifuncional: estudo a partir de uma Escola Estadual Indígena”. A pesquisa foi realizada no estado de Roraima e teve como objetivo principal analisar o processo de construção da identidade profissional do professor que atua nas SRM no contexto da escola indígena. A pesquisa contou com a participação dos responsáveis pela Divisão de Educação Especial e Divisão de Educação Indígena da Secretaria Estadual de Educação e de três professores de uma escola indígena. Os dados foram coletados por meio da técnica de entrevista semiestruturada que teve como objetivo conhecer o perfil de formação e atuação dos professores das SRM da escola indígena.
Os resultados evidenciaram que os professores indígenas que atuam na educação especial sentem-se despreparados, pois não possuem formação específica para a atuação na educação especial, e os cursos de formação continuada ofertados pela Divisão de Educação Especial não atendem de forma efetiva aos professores indígenas que atuam nas SRM em suas necessidades, pois o uso da língua materna não é alvo enquanto conteúdo a ser contemplado nesses cursos. Outro ponto destacado pela pesquisadora tem natureza de denúncia: é destacado que os profissionais que trabalham no contexto indígena sofrem com a falta de estruturas básicas e necessárias para assegurar a escolarização dos alunos indígenas com e sem deficiência.
Frente às questões apontadas, Portela (2019, p. 138) concluiu que os discursos dos docentes indígenas participantes evidenciaram que a atuação pedagógica no campo da educação especial é “[...] compreendida como uma ação complexa no contexto da escola indígena e que exige a apreensão de saberes de diferentes naturezas”.
No ano de 2020, Ferrari (2020) defendeu o estudo intitulado A construção de corpos com e sem deficiência nas práticas de circulação de conhecimento Xakriabá. A pesquisa foi realizada no estado de Minas Gerais e teve como objetivo principal “examinar como os corpos são constituídos com e sem deficiência, a partir das práticas de circulação do conhecimento Xakriabá” (Ferrari, 2020, p. 12).
A pesquisa foi realizada por meio de observação participante no Território Indígena Xakriabá, especificamente nas aldeias Barreiro Preto e Imbaúba. Para o exame dos dados foram descritos e analisados quatro episódios de circulação do conhecimento vivenciados na pesquisa de campo e registrados pela autora; dois envolveram práticas escolares regulares e interculturais e dois abordaram práticas cotidianas referentes às relações de parentela.
Os resultados da pesquisa evidenciaram que um mesmo corpo pode se constituir com e sem deficiência, o que é possível a partir das associações e afecções com os diversos agentes envolvidos, sejam humanos ou não. Ferrari (2020) concluiu apontando a importância das práticas comunitárias para a construção de corpos sem deficiência e a necessidade de se repensar as políticas educacionais direcionadas à educação especial dos povos indígenas que, segundo a pesquisadora, é uma demanda apresentada pelos Xakriabás há tempos.
Também, no ano de 2020, Oliveira (2020) defendeu o trabalho intitulado Indígenas com deficiência na escola: um estudo sobre a inclusão nas aldeias de Umariaçu I e II, no município de Tabatinga − Amazonas. O estudo foi realizado no estado do Amazonas e teve como objetivos investigar os fatores que dificultam o ensino na perspectiva inclusiva e a aquisição da aprendizagem dos alunos com deficiências nas escolas das aldeias e discutir os desafios para a implementação do AEE nas escolas indígenas. A pesquisa de campo foi realizada nas aldeias de Umariaçu I e II, no município de Tabatinga - AM. Foram entrevistados gestores, coordenadores e professores das escolas indígenas.
Os resultados apresentados por Oliveira (2020) revelam a ausência de infraestrutura física nas escolas e a falta de preparo dos docentes para lecionar aos alunos indígenas com deficiência. Com relação às políticas públicas existentes, a autora observou que não têm sido adotadas de maneira adequada para garantir o acesso e permanência dos estudantes indígenas com deficiência nas escolas indígenas. A autora conclui que a legislação vigente não garante o processo de inclusão no contexto das escolas indígenas investigadas, pois é preciso que existam, além dela, recursos humanos, pedagógicos e físicos para garantir resultados significativos.
Observa-se que as discussões iniciais sobre a escolarização de alunos indígenas com deficiência estão sendo desenvolvidas no Brasil nas diferentes regiões e estados, mas é um campo de investigação que precisa ser desbravado. Por esse motivo, torna-se necessário investigar, por meio de uma análise macro, a situação da educação de escolares indígenas com deficiência no Brasil. Nessa direção, vamos apresentar a seguir um retrato da realidade brasileira sobre a escolarização de alunos indígenas com deficiência com apoio na análise do censo escolar da educação básica.
Caminho metodológico
As desigualdades sociais presentes no Brasil poderiam ser ainda piores se não houvesse as informações estatísticas para nos auxiliar no mapeamento das realidades vivenciadas pelo ser humano. Nas palavras de Jannuzzi (2018, p. 1):
Não há como não reconhecer que parte das conquistas republicanas de universalização da educação básica, do acesso à água, redução da pobreza, promoção do desenvolvimento regional, ampliação da cobertura do emprego formal e da previdência pelo vasto território brasileiro deve-se à disponibilidade de informação estatística de boa qualidade e cobertura levantada pelo IBGE e outras instituições como o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais, os departamentos de estatísticas e pesquisas dos Ministérios e órgãos subnacionais de planejamento e estatística.
Os dados censitários possibilitam estudos minuciosos. Por exemplo, compreender a realidade educacional de um município, de um determinado público ou escola, assim como de uma abrangência maior, com análises de países, regiões, ou grupos etários.
Anualmente, todas as escolas brasileiras da educação básica são obrigadas a declarar os dados sobre os estabelecimentos de ensino, gestores, turmas e matrículas. Regulamentado por instrumentos normativos, o censo escolar é um instrumento que nos auxilia na análise da situação educacional e na avaliação das políticas públicas 1.
A materialização histórica da desigualdade social pode ser ilustrada com a pesquisa realizada por Raupp et al. (2017) ao analisarem estatisticamente, no censo demográfico de 2010, a infraestrutura de saneamento básico de indígenas que vivem nas áreas urbanas brasileiras. Com a perda dos territórios tradicionais, e a implementação e efetivação das políticas públicas, os povos indígenas estão nos centros urbanos em precariedade habitacional, com as menores frequências de infraestrutura sanitária, em situação de vulnerabilidade e pobreza.
Ferraro (2011) indica que, com o reconhecimento das culturas e dos povos indígenas no período de redemocratização da década de 1980, houve uma ampliação das escolas, das matrículas de indígenas e do corpo docente, mas problematiza as condições de infraestrutura nas escolas, o bilinguismo, a formação docente, a garantia dos estudos além dos anos iniciais do ensino fundamental. Concordamos com o autor, ao enfatizar que:
.[...] é preciso lembrar que ainda persistem, em maior ou menor medida, os velhos preconceitos, as acentuadas desigualdades sociais, as práticas discriminatórias e, apesar de todos os avanços nas concepções e na legislação, as velhas práticas de extermínio, com violências recorrentes não só nas ou relacionadas com as ditas Terras Indígenas, mas também no meio urbano, onde, há não tantos anos, para jovens de classe média, jogar gasolina e atear fogo num índio na Capital Federal não passava de uma brincadeira (Ferraro, 2011, p. 23)
Práticas discriminatórias e de violência como mencionadas pelo autor não podem ser naturalizadas em nossa sociedade. Precisamos desconstruir o imaginário e as ideias preconceituosas sobre a realidade e a cultura dos povos indígenas.
Outro estudo censitário apresentou as características sociodemográficas dos indígenas brasileiros. Marinho, Caldas e Santos (2017) analisaram os residentes em domicílios no ano de 2010 segundo as categorias “permanente”, “improvisado” e “coletivo”. O número de indígenas em domicílios “improvisados” era o dobro comparado com a população geral, enfatizando a vulnerabilidade socioeconômica, sobretudo no contexto urbano e fora das terras indígenas.
Diante da breve contextualização censitária, escolhemos discutir sobre a situação escolar dos povos indígenas no Brasil, especificamente dos alunos da educação especial, por meio de compilações dos microdados da educação básica, os quais foram trabalhados por meio do software IBM SPSS. As variáveis utilizadas foram de matrícula, localização diferenciada da escola, região de localização da escola, modalidade de ensino, tipo de turma, tipo de necessidade especial, bem como a disponibilidade de SRM. O recorte temporal aplicado foi de 2010, 2015 e 2020.
Inicialmente, foram filtrados os dados de matrículas em escolas situadas em terras indígenas, por região geográfica do País. Entre os estudantes indígenas da educação especial, foram selecionadas somente as matrículas daqueles que apresentassem deficiência ou TEA, a saber: baixa visão, cegueira, deficiência auditiva, deficiência física, deficiência intelectual, deficiência múltipla, surdez, surdocegueira, síndrome de Asperger e autismo (as duas últimas foram agrupadas sob a sigla TEA, para fins de análise)2. Posteriormente, extraímos os dados de matrículas conforme a modalidade de ensino, seja regular, especial ou na educação de jovens e adultos (EJA).
Além das modalidades de ensino, coletamos o número de matrículas no AEE, o que foi possível por meio da variável do tipo de turma, e coletamos dados referentes ao número de salas de recursos disponíveis em escolas indígenas. Cabe pontuar que os estudantes matriculados no AEE são registrados de forma dúplice pelo censo escolar, pois o Decreto nº 6.253/2007, para fins de financiamento da educação especial, permitiu que fosse contabilizada a matrícula no AEE sem prejuízo da efetivada no ensino regular (Brasil, 2007)3. Entretanto, ressaltamos que, neste estudo, as matrículas duplicadas do AEE não foram computadas no quantitativo total de estudantes.
A análise dos dados foi realizada com a perspectiva de que as dimensões de qualidade e quantidade não se contrapõem, mas se compõem em uma unidade (Ferraro, 2012). Para isso, descrevemos os dados quantitativos e os analisamos ancorados na literatura, especificamente em estudos sobre indicadores sociais (Caiado; Meletti, 2011; Góes, 2014; Gonçalves; Sá; Mantovani, 2017; Bueno; Santos, 2021); educação especial (Bueno, 2011; Mendes; Malheiro, 2012); educação escolar indígena e sua interface com a educação especial (Sá, 2015; Sá; Cia, 2015; Silva; Bruno, 2019).
Os dados foram sistematizados e organizados em dois gráficos e duas tabelas, apresentados a seguir.
Escolares indígenas com deficiência no contexto brasileiro
A população indígena no Brasil é representada por um grande contingente de povos indígenas das mais diversas etnias e línguas. De acordo com o Censo Demográfico (IBGE, 2012), essa população, desde a década de 1990, aumentou expressivamente. No ano de 1991, estimava-se a população indígena em 294 mil pessoas, e no censo demográfico de 2010, mais de 800 mil pessoas declararam ser indígenas de 305 etnias diferentes e falantes de mais de 270 línguas indígenas. Segundo a mesma fonte, 57,7% dessa população moravam em terras indígenas reconhecidas oficialmente (IBGE, 2012).
Ao contrário de outras populações mundiais que estão na transição demográfica, com baixos índices de fecundidade e de mortalidade, os povos indígenas da América Latina apresentam um crescimento populacional com a “valorização das identidades étnicas” (Azevedo, 2008, p. 20). A autora mostra que a população indígena brasileira, no censo demográfico de 2000, estava distribuída com 29% no Norte, 24% no Nordeste, 22% no Sudeste, 18% no Centro-Oeste e 7 % no Sul.
De acordo com dados do Censo Escolar da Educação Básica de 2020, existiam no Brasil 3.365 escolas indígenas, onde estavam matriculados 250.820 alunos. Tais matrículas encontravam-se assim distribuídas: 132.114 na região Norte, 58.769 no Nordeste, 38.509 no Centro-Oeste, 14.503 no Sul e 6.925 no Sudeste do País. No que tange aos indivíduos com deficiência ou TEA, buscamos retratar as configurações da sua escolarização a partir de indicadores construídos com microdados do Censo Escolar. O Gráfico 1 traz o quantitativo dessas matrículas por região do País.
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (Brasil. Inep, [s.d.]).
Os dados apresentados no Gráfico 1 apontam um aumento no número das matrículas de escolares indígenas com deficiência ou TEA em todas as regiões brasileiras, com concentração nas regiões Nordeste e Norte, seguidas pelo Centro-Oeste, Sul e Sudeste. Apesar de contar com o menor número de alunos, a região Sudeste apresentou aumento de 795% nesse quantitativo, o maior do período analisado.
Interessante notar ainda que, embora a região Norte conte com a maior população de escolares indígenas, é o Nordeste que vem registrando maiores índices de estudantes com deficiência ou TEA. Esse fato também foi observado no estudo realizado por Sá e Armiato (2020) sobre a população indígena com deficiência no Brasil. A partir da análise dos dados do censo demográfico de 2010, os autores identificaram que a região Norte tem o maior número de pessoas que se declaram indígenas, entretanto, na região Nordeste foi encontrado o maior número de pessoas indígenas com deficiência. Essa situação merece ser investigada; assim, sugere-se que pesquisas sejam realizadas in loco para identificar os motivos das divergências das incidências entre as regiões.
No intuito de especificar essas matrículas, apresentamos a Tabela 2 com a caracterização das matrículas de indígenas com deficiência ou TEA no Brasil.
NEE | Ano | ||
2010 | 2015 | 2020 | |
Baixa visão | 95 | 211 | 293 |
Cegueira | 8 | 20 | 28 |
Deficiência auditiva | 63 | 119 | 166 |
Deficiência física | 99 | 324 | 504 |
Deficiência intelectual | 210 | 1.129 | 1.901 |
Deficiência múltipla | 36 | 122 | 235 |
Surdez | 67 | 103 | 149 |
Surdocegueira | 0 | 3 | 4 |
TEA | 6 | 55 | 225 |
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (Brasil. Inep, [s.d.]).
Nota: NEE - necessidade educacional especial; TEA − transtorno do espectro do autismo.
*A somatória do quantitativo de matrículas por deficiência ou TEA não corresponde necessariamente ao total de matrículas, haja vista existirem estudantes incluídos em duas ou mais categorias.
Todas as matrículas de estudantes indígenas com deficiência e TEA tiveram ampliações nos anos analisados, o que merece uma reflexão e uma ação coletiva no campo da educação especial, tangenciando a esfera política, financeira, pedagógica, formativa e considerando as especificidades culturais, haja vista que o histórico nesse campo do conhecimento foi direcionado para a população urbana (Caiado; Meletti, 2011).
Os dados também indicam o predomínio das matrículas de alunos com deficiência intelectual, os quais perfaziam 41% em 2010 e passaram a representar 64% do total de estudantes com deficiência ou TEA em 2020. Em 2015, Sá e Cia publicaram um estudo sobre as matrículas de alunos da educação especial nas escolas de educação básica indígenas no Brasil, no período de 2007 a 2010, e identificaram um aumento de 46% dessas matrículas, com a predominância da deficiência intelectual seguida pela baixa visão e a deficiência física.
Com relação à predominância da deficiência intelectual, essa tendência também foi identificada no cenário brasileiro da educação básica urbana e rural (Góes, 2014; Gonçalves; Sá; Mantovani, 2017). O estudo realizado por Bueno e Santos (2021) aponta que as matrículas de alunos com deficiência intelectual na educação básica, no ano de 2019, corresponderam a 42% a mais do que a estimativa mais generosa de sua prevalência na população geral. Segundo os autores, essas discrepâncias evidenciam a representação desproporcional dos estudantes com deficiência intelectual, tanto em relação à população em geral, quanto ao total de alunos com deficiência. Destacam críticas sobre os processos dos diagnósticos e a associação da deficiência intelectual ao baixo rendimento escolar, que se abate fundamentalmente sobre os alunos das camadas populares. Ainda de acordo com os autores, a condição de ser pessoa com deficiência intelectual coloca essa população em desvantagem social, pois esse estigma “[...] produz efeitos negativos nas possibilidades de socialização qualificada e na qualidade de vida dessa população” (Bueno; Santos, 2021, p. 19).
Silva e Bruno (2019) problematizaram a complexidade do diagnóstico de deficiência para as comunidades indígenas, em especial a intelectual. De acordo com os autores, na cultura dos Guarani e Kaiowá, por exemplo, o conceito de deficiência intelectual não se faz presente e a hipótese levantada indica dificuldades de aprendizagem por fatores linguísticos e culturais ou ainda por situação de vulnerabilidade social das crianças indígenas.
Outro ponto que merece ser destacado é o aumento das matrículas dos alunos surdos nas escolas indígenas. Estudos realizados com esse público evidenciaram a importância do reconhecimento linguístico e político dos índios surdos como pessoas pertencentes às minorias linguísticas (Coelho, 2019; Vilhalva, 2009). Entretanto, a pesquisa realizada por Coelho (2019) revela que as estratégias de ensino utilizadas invisibilizam as línguas de sinais e as diferenças culturais dos estudantes surdos.
A Tabela 3 apresenta a distribuição das matrículas de indígenas com deficiência ou TEA, segundo as modalidades de ensino.
Ano | Total de matrículas | Classes comuns | Classes especiais ou escolas exclusivas | EJA |
2010 | 510 | 453 | 5 | 52 |
2015 | 1.825 | 1.720 | 0 | 105 |
2020 | 2.959 | 2.763 | 0 | 196 |
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (Brasil. Inep, [s.d.]).
Os indicadores sinalizam que, em 2010, dos 510 alunos com deficiência ou TEA, 453 estavam matriculados em classes comuns, cinco em classes especiais ou escolas exclusivas, e 52 na EJA. Já no ano de 2015, não foi registrada qualquer matrícula em ambientes segregados, de modo que os 1.825 alunos estavam concentrados em classes comuns, com 1.720 matrículas, e na EJA com 105. No último ano analisado, os dados apontam para um total de 2.959 alunos, sendo 2.763 matriculados em classes comuns e 196 na EJA. Assim como em 2015, não foram levantados estudantes em classes especiais ou escolas exclusivas.
Em termos percentuais, o alunado matriculado em classes comuns do ensino regular representa a maior parte desses sujeitos, sendo que, nos três anos em questão, superaram, ao menos, 80% do total. Por outro lado, observa-se a ausência de matrículas em ambientes segregados em dois dos três recortes realizados, o que pode indicar a influência das políticas de inclusão, que ganharam força, principalmente a partir de 2008. Outra hipótese que pode ser levantada é a possibilidade de esses alunos estarem sendo encaminhados para atendimento escolar fora das comunidades indígenas, como por exemplo em escolas não indígenas, classes especiais ou escolas exclusivas. Neste estudo não foi possível fazer esse tipo de análise porque selecionamos para a investigação apenas escolas indígenas, mas sugerimos que estudos futuros sejam desenvolvidos com alunos indígenas com deficiência em espaços segregados de ensino como classes especiais e escolas exclusivas que não ofertem a educação escolar indígena. Também merece investigar, em estudos futuros, se os alunos indígenas com deficiência ou TEA estão sendo encaminhados para a EJA, pois, como podemos verificar no período analisado, essa modalidade de ensino teve aumento expressivo de matrículas de alunos indígenas, público da educação especial. A esse respeito, o estudo realizado por Gonçalves, Bueno e Meletti (2013) apontou que a EJA tem ampliado o atendimento aos alunos da educação especial. Destacamos que a EJA, constituída pelo movimento de luta diante de um histórico de déficit educacional, não pode se tornar um espaço de “desaparecimento” das pessoas da educação especial reportando-se ao assistencialismo, secundarizando o cunho pedagógico e a educação formal.
Todavia, o aumento de escolares indígenas com deficiência ou TEA levanta o questionamento sobre como tem ocorrido a oferta de recursos e serviços para sua escolarização. Mendes e Malheiro (2012) afirmaram que a educação especial no Brasil tem o AEE como principal serviço, o qual, a despeito de outras possibilidades, é disponibilizado exclusivamente nas SRM, assumindo caráter remediativo, que não consegue satisfazer as necessidades dos estudantes que frequentam tal espaço.
Visando explorar esse cenário, apresentamos o Gráfico 2, que exibe o quantitativo de matrículas no AEE de estudantes indígenas com deficiência ou TEA no Brasil.
Fonte: Elaboração própria com base nos microdados do Censo Escolar da Educação Básica (Brasil. Inep, [s.d.])
Analisando os dados presentes no Gráfico 2, percebemos que o movimento de aumento nas matrículas no AEE, que iniciaram com 16 em 2010, passaram por 505 em 2015 e atingiram 750 no ano de 2020. Apesar desses índices, o crescimento não ocorreu na mesma proporção dos números gerais de alunos. A diferença mais acentuada ocorreu de 2015 a 2020, quando o total de matrículas aumentou 62%, enquanto, no mesmo período, o quantitativo de escolares no AEE foi expandido em 48%.
A tendência de crescimento no número das matrículas no AEE pode estar atrelada, entre outros fatores, ao fomento de instalação de SRM. De acordo com os dados coletados no censo escolar, no ano de 2010, existiam seis escolas com salas de recursos em terras indígenas. No ano de 2015, o quantitativo passou a 58 e, em 2020, atingiu 92. No período investigado, portanto, foi registrado um aumento no número de escolas com SRM, fato que pode ter influenciado o crescimento dos atendimentos de alunos indígenas com deficiência ou TEA no AEE. Ressalta-se, no entanto, que o percentual de instituições com tal estrutura, mesmo em 2020, representava somente 2,7% do total de escolas indígenas no País.
Entre os estudantes indígenas com deficiência ou TEA, aqueles que recebiam AEE em 2020 somavam 25% do total. Tal dado sinaliza para o contingente de alunos que podem estar sem qualquer atendimento específico para suas particularidades de escolarização.
A expansão desse atendimento demonstra o êxito das políticas públicas de educação especial na perspectiva inclusiva, tendo em vista que muitos indígenas que, até então, encontravam barreiras para sua escolarização, passam a ter mais uma possibilidade (ou menos uma barreira) com a oferta do AEE. Entretanto, estudos como o de Silva e Bruno (2016) salientaram as dificuldades estruturais, culturais e políticas para colocar em prática esse atendimento em aldeias indígenas. Problematizaram também a forma como é pensado e ofertado, por vezes reproduzindo modelos não indígenas no atendimento desse alunado.
O estudo de Silva (2014) sobre a formação de professores para o atendimento educacional especializado em escolas indígenas evidenciou a necessidade de formação de docentes indígenas em uma perspectiva diferenciada, comunitária e intercultural para atuarem no AEE. Nessa mesma direção, Silva e Bruno (2019) apontaram que a construção da interface da educação especial com a educação escolar indígena na oferta do AEE precisa ser ressignificada por meio de um trabalho coletivo realizado por professores indígenas, pais, alunos e comunidade.
Diante desse contexto, verifica-se a necessidade de elaboração de políticas públicas efetivas para o atendimento dos alunos com deficiência nas salas de recursos multifuncionais e isso requer investimentos por parte do poder público em recursos humanos, infraestrutura e materiais pedagógicos.
Considerações finais
Como pode ser observado no decorrer deste estudo, a deficiência entre os indígenas é uma realidade presente em todas as regiões do Brasil. Entretanto, as dificuldades são inúmeras, principalmente porque as pesquisas sobre esse público são incipientes e não há políticas públicas para atender às especificidades desse contingente populacional.
Promover as condições necessárias para o atendimento escolar dos alunos indígenas com deficiência tem se tornado um grande desafio para o sistema educacional brasileiro. Como apresentado neste estudo, ocorreu um aumento expressivo no número de matrículas de alunos com deficiências nas escolas indígenas de todas as regiões do Brasil. No entanto, o AEE, garantido na legislação brasileira, não está disponível para grande parte desses alunos. No ano de 2020, por exemplo, apenas 25% dos alunos indígenas com deficiência ou TEA recebiam esse tipo de atendimento.
Em outras palavras, os dados apresentados indicam a não efetivação de ações e políticas públicas para a população indígena com deficiência. Neste ponto, salientamos que a educação não se encontra isolada no cenário social, daí a importância de estudos futuros e ações políticas que preconizem sua interseccionalidade com saúde, assistência social, moradia, entre outros direitos humanos fundamentais.
Na atual conjuntura brasileira, não se tem discutido políticas de educação especial direcionadas para o atendimento dos povos indígenas. Embora a política de educação especial vigente preconize que o AEE esteja de acordo com as especificidades socioculturais de cada grupo indígena (Brasil. MEC, 2008), essa situação não tem sido suficiente para garantir a escolarização de alunos indígenas com deficiência e o atendimento especializado adequado às especificidades socioculturais de cada grupo.
O caminho percorrido pelos povos indígenas para garantir uma educação escolar diferenciada foi, com muitas lutas, balizando com resistência os riscos dos retrocessos. Por esse motivo, torna-se fundamental a abertura de espaços para se discutir a educação especial no contexto da educação escolar indígena para elaboração de uma Política de Educação Especial construída em conjunto com os diferentes povos indígenas, cada qual com as suas especificidades, tradições, crenças e singularidades a serem reconhecidas.