Introdução
Este texto se origina em um programa de pesquisa alimentado por dois objetos de investigação, a história do currículo e o currículo do tempo presente, este último aqui investigado, teoricamente, pelo referencial (pós)crítico e, metodologicamente, por uma versão particular do método comparado, denominada “estudos comparados” (Silva, 2016, 2019). A versão é construída pelo/no cruzamento da educação comparada, da história comparada da educação (história e historiografia) e das ciências sociais comparadas, capaz de retratar/informar o giro discursivo/gramatical/ideológico produzido em/pelos objetos de pesquisa recém-referidos.
Objetivamos constatar a existência, ou não, de histórias incorporadas (Silva, 2021), na presença de histórias reificadas, difundidas pela Base Nacional Comum Curricular 2 (BNCC) e em textos/documentos curriculares (TDCs) locais, na região Centro-Oeste, especificamente aqueles das redes estaduais de ensino de Mato Grosso do Sul (MS) e Mato Grosso (MT) para os anos iniciais do ensino fundamental.
Observamos que a história reificada, informada como história coletiva, encontra-se remetida às estratégias do poder sobre o grupo a que se pretende dar existência, impondo-lhe princípios de visão e de divisão comuns; portanto, uma visão única de sua identidade e uma visão idêntica de sua unidade. Diante disso, está materializada em estruturas visíveis (estruturas estruturadas), que informam a compreensibilidade dos textos/documentos curriculares ao longo do tempo. A história incorporada, ou individual, projeta-se sobre os procedimentos prematuros de generalização teórica e seu rompimento com as filiações estritas - e, logo, restritas - a uma determinada explicação acerca do social, dada pelas reativações realizadas por diferentes agentes, ao apropriar-se da história reificada, para fazer com que ela ganhe vida e significado novamente.
A história reificada pauta-se nos princípios de visão e de divisão comuns, adotados no subcampo dos estudos curriculares, enquanto a história incorporada transita pela tentativa de acomodação desses princípios, aproximados da configuração das lutas hegemônicas por significação. Ou seja, subcampo de produção restrita, por configurar uma fórmula “necessária e inimitável” de histórias coletivas, em oposição às “fórmulas universalizadas” de histórias individuais, replicáveis na produção do “bom” currículo, fundamentalmente orientadas pelos clichês das “identidades/partes diversificadas”.
Nos limites das análises propostas, estamos orientados por concepções bourdieusianas, propondo a noção complementar de subcampo, como um campo dentro de outro, cujos sistemas de disposições internalizados carregam interesses particulares, ao mesmo tempo que se estabelecem objetivamente por meio das posições ocupadas pelos agentes no campo em que se situam. Ressalta-se que apreendemos o subcampo curricular no interior do campo acadêmico.
Mobilizamos, em particular, as disputas próprias do campo acadêmico, situadas em uma posição dominada no seio do poder e, também por isso, atravessadas pela necessidade dos campos englobantes (lucro escolar, econômico ou político). Regidos pelas disposições internalizadas dos agentes, que contêm em si o conhecimento e o reconhecimento das regras do jogo (habitus), entendemos que o subcampo curricular se constitui por relações de força entre os agentes e as instituições, os quais lutam pelo monopólio da autoridade - materializado na hierarquização dos capitais culturais em disputa.
Os TDCs eleitos apresentam-se alinhados à BNCC e são aqui assumidos como:
[...] fontes, particularmente escritas e dialógicas, ocupam de um lado, espaço privilegiado de reconstituição das ideologias ou mentalidades educativas subtraídas a uma projeção particular, oficial e; de outro se diferenciam de outras fontes, por contemplar propósito muito particularizado, isto é, o cumprimento de funções determinadas pela difusão e o desenvolvimento prático dos processos de escolarização, a partir de uma rede de intertextualidades que se alimenta desde a política educativa ao desenvolvimento dos processos educativos nas escolas e nas salas de aulas.
[...] Na condição de objetos, entendidos como impressos, que selecionam, legitimam e distribuem conhecimentos, mobilizam discursos na produção das verdades do processo de escolarização. E, nesse sentido, operam na seleção e distribuição dos conhecimentos que chegam às escolas, e na forma como os mesmos devem ser recebidos. Esse entendimento permite a análise de sua materialidade, isto é, suporte material da construção de práticas nos espaços educativos. (Silva, 2016, p. 214).
Os documentos selecionados, na condição de fontes ou objetos, expressam o currículo prescrito, que dá forma ao “testemunho público e visível das racionalidades escolhidas e da retórica legitimadora das práticas escolares” (Goodson, 2010, p. 21).
Dessa forma, favorecem, sem, no entanto, determinar, a compreensão nas escolas estaduais da região Centro-Oeste do Brasil, uma vez que o espaço escolar, por ser constituído por diversos atores, traz diferentes concepções de homem, de sociedade, de currículo, as quais orientam para diferentes leituras e interpretações nos textos/documentos curriculares.
Uma versão da comparação
A explicação sobre como procedemos quando comparamos não nos isenta de perguntar o que, na realidade, motiva-nos a fazer comparações no campo curricular. Isso porque não pretendemos promover uma operação de equiparação do outro (quase sempre estrangeiro) ao nosso, com base na dissolução de contrastes, mas, sim, por meio da comparação propriamente desenvolvida em macro e micro espaços e tempos curriculares.
Parece-nos fértil trabalhar com a hipótese de que a comparação ainda nos auxilia na busca pela “interpretação/representação do eu-outro” no conjunto das demandas em jogo, destacando que o eu-outro alimenta uma agenda de pesquisas, que transita entre o exercício de “des-hegemonização” de discursos e escritas na história da educação construída pelo/para o currículo no passado e no presente.
Essa perspectiva parece incidir na escrita e nos discursos que, para Schriewer (2010), tornam-se indicadores de que a análise se transforma em argumento explanatório, à medida que consegue identificar, por meio de reconstruções conceitualmente informadas, soluções de problemas historicamente efetivados como realizações particulares daquilo que, nos diferentes cenários - ou configurações - socioculturais, é estruturalmente possível.
Para tanto, temos construído configurações que colocam em tela a perspectiva do cruzamento entre teorias do conflito e do consenso, abordagens descritivas e conceituais (Nóvoa, 2010), teoria da reflexão ligada à reforma e teoria científica ligada à compreensão das diferenças entre sistemas educativos (Madeira, 2010) e/ou diferenças e semelhanças no encontro do sentido para os processos educacionais (Ferreira, 2008).
Aproximamos essas configurações da história da educação brasileira e deparamo-nos com os estudos historiográficos educacionais de maneira singular, ao admitirmos a existência de lacunas entre as práticas de pesquisa e sua escrita historiográfica. Isso porque tais lacunas parecem ser naturalizadas, diante dos equívocos de comparar o incomparável, ou de dar forma à justaposição, incorrendo no anacronismo, ao transpor automaticamente elementos de uma sociedade histórica para outra. De outro modo, são processo e produto de uma leitura forçada a enquadrar todas as realidades analisadas a um modelo determinado. É ilusão sincrônica crer que todas as sociedades que estão num mesmo momento histórico ou etapa de desenvolvimento são comparáveis e análogas, sem considerar o dinamismo do processo histórico (Barros, 2014).
A par disso, incursionamos pelas ciências sociais comparadas, agregando contribuições ao estudo da transição política, por meio de interpretações sociológicas, para as quais os processos sociais de transformação se ampliam na esfera institucional, penetrando o tecido das relações sociais e da cultura política gestadas, revelando as modificações que necessitam ser observadas.
Essa revelação, per se, alimenta-se do cruzamento proposto, guiado por princípios apropriados em função das redes de relações sociais que nos enquadram, assim como da cultura que produzem e nos transmitem. Esses princípios, no campo dos estudos curriculares propostos, encontram-se problematizados por discursos, escritas e práticas de comparação que, nos limites do programa de pesquisa citado, inspiram-se em três etapas.
A primeira etapa se ancora em um quadro de análise sócio-histórica que estuda os contextos específicos e socialmente estruturados nos quais as formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas; a segunda constitui a análise formal ou discursiva, que dá forma à análise interna e às próprias formas simbólicas; e a terceira consiste na interpretação/reinterpretação dos estudos sobre as historiografias construídas e em construção, conteúdo das operações de síntese.
TDCs de Mato Grosso do Sul e Mato Grosso3 para os anos iniciais do ensino fundamental: em busca das histórias incorporadas/individuais em comparação
Não é demais afirmar que a história do campo é a história da luta pelo monopólio da imposição das categorias de percepção e apreciação legítimas; é a própria luta que faz a história do campo; é pela luta que ele se temporaliza. (Bourdieu, 2012, p. 88, grifo do autor).
Forjamos comparações por aproximações, com a perspectiva de analisar as histórias incorporadas presentes, ou não, cujos destaques se ancoram na compreensão da relação entre o educativo, o social, o simbólico e o cultural, inseridos em um espaço relacional permeado por lutas de conservação e transformação das suas estruturas.
Desse modo, encaradas como estratégias e táticas, e não apenas como expressão da repetição de um discurso simplesmente reproduzido (histórias reificadas), mas como o conjunto de disposições que vem sendo recriado, atualizado e, portanto, continuamente reproduzido (produzido de novo) no decorrer dessas publicações.
Enfatizamos que recriação, atualização e reprodução respondem pela chamada parte diversificada, delineada por prescrições que incluem a expectativa de identificação das histórias incorporadas, “pautadas nas regionalizações, interessadas na/da formação escolar pretendida” (Silva, 2021, p. 3), em contraposição, por dentro, das histórias reificadas/coletivas. Estas últimas figuram nos TDCs das redes de ensino por meio de um discurso normativo, proposto pela BNCC, que delimita a significação do currículo e, em certa medida, da educação e da escola.
Isso posto, a comparação se volta à investigação das partes diversificadas nos TDCs anteriormente selecionados, por se identificarem pela capacidade de resposta à necessidade de destacar os saberes e a cultura local e de minimizar as desigualdades educacionais. Talvez, seja o único instrumento para se contrapor à homogeneidade e à ideia de igualdade reproduzida no sistema de ensino, configuradas/impostas na/pela BNCC.
Circunscrevemos, assim, a existência de histórias incorporadas (Silva, 2021) em TDCs locais e partimos do pressuposto da possibilidade de apreendê-las nas prescrições, significadas no cenário de produção de texto (Ball, 2004) e construídas mediante diferentes interesses e disputas. Diferenças e disputas que pautam os textos políticos e suas articulações com a linguagem, particularmente, a do interesse público mais geral (Mainardes, 2006), pelo qual as comunidades disciplinares4, presentes nas secretarias de educação, expressam o que entendem por “características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e dos educandos” (Brasil, 1996, art. 26).
Destarte, pautamo-nos na hipótese de que os TDCs se tornam retratos parciais de uma história incorporada, cujas respostas estão na consideração tanto das influências quanto das orientações em níveis macro e micro, de modo a manter a inter-relação entre os diferentes discursos produzidos e legitimados. Em outras palavras, naquele momento histórico, influenciados diretamente pela BNCC, os textos encontram-se, de um lado, orientados por uma compreensão da política curricular alimentada por novas maneiras de sociabilidade informadas por regulação baseada na avaliação, seguindo modelos privados de gestão; de outro, assentados em reinterpretações do contexto, dos discursos, da influência do Estado e das parcerias constituídas no processo, hegemonizando sentidos para a qualidade da educação.
Em termos de qualidade da educação, no contexto micro, a “política de fato” parece significar apenas a contextualização de temas locais, como parte diversificada, aos conteúdos formais:
[...] de fundamental importância para o ensino e aprendizagem dos estudantes, trazendo para sua vivência escolar conteúdos referentes a sua história, sua memória e sua identidade, estimulando assim, a implementação de um currículo diversificado mais dinâmico, criativo e inovador nas atividades curriculares e extracurriculares da educação básica. (Leão; Andrade, 2020, p. 399).
Buscamos analisar essa vivência nos TDCs eleitos, apreendendo-os nos dois segmentos em que projetamos o subcampo curricular, que se assemelham simbolicamente em sua vinculação a uma suposta seleção de conhecimentos próprios, mas que se diferem objetivamente nas práticas de transmissão, encarnadas nas “regularidades objetivas e nos mecanismos que regem a circulação da informação particular” (Bourdieu, 2001, p. 163).
O TDC de Mato Grosso do Sul, publicado no ano de 20195 por meio de parceria entre o estado e seus respectivos municípios, tem o objetivo “[...] de garantir as especificidades locais na reestruturação de seus currículos, firmando um Termo de Intenção de Colaboração para a Co-Construção de um Currículo de Referência” (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 18, grifo nosso).
Tal garantia se fundamenta em um:
[...] currículo contextualizado com a diversidade sul-mato-grossense e norteado pelas dez competências gerais da BNCC, as quais visam à promoção das aprendizagens essenciais e indispensáveis a todos os sujeitos, na perspectiva da educação integral, que reflitam tanto na formação quanto no desenvolvimento humano. (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 20, grifo nosso).
Na mesma esteira, o TDC de Mato Grosso, publicado no ano de 20186 , também faz alusão ao regime de cooperação com os municípios, apresentando-se:
[...] como referência para a revisão das propostas pedagógicas, das políticas educacionais, das iniciativas de formação inicial e continuada e dos demais projetos educativos a serem planejados e implementados. Para isso, destaca-se a importância em considerar que os documentos curriculares são direcionadores e articuladores e não o currículo em si. Os currículos são produzidos, significados e ressignificados nas práticas sociais vivenciadas no contexto diário das escolas, sendo os documentos de referências curriculares elementos para tal produção. (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 13).
Ressaltamos que, além do TDC supracitado, incluímos o Documento de referência curricular para Mato Grosso: concepções para a educação básica, em virtude de respaldar:
[...] a construção do Documento de referência curricular para Mato Grosso. Com base nele, as escolas da rede pública estadual, assim como instituições de ensino de outras redes que dele fizerem uso, subsidiarão a reelaboração de seus projetos pedagógicos, a fim de adequá-los ao disposto na Base Nacional Comum Curricular (2017). (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 3).
Esse documento, com orientações para as etapas da educação infantil e do ensino fundamental, identifica as habilidades por um código alfanumérico, conforme prescreve a BNCC. Contudo, insere modificações quando o componente curricular traz “uma nova habilidade, ou quando se faz alguma alteração na proposta pela BNCC, com foco na contextualização dos aspectos regionais e locais” (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 17).
Por conseguinte, caracteriza o direcionamento do trabalho pedagógico para as questões regionais, com componentes curriculares introduzindo habilidades com a sigla MT, indicando a contextualização estadual, informada por habitus, como “princípio unificador e gerador das práticas”, representando o elemento subjetivo do processo de incorporação das disposições próprias da condição de ser da qual cada um de nós é originário (Bourdieu, 2007).
Tal condição se responsabiliza pelo tratamento das diversidades educacionais, a saber: educação especial na perspectiva da educação inclusiva; questões de gênero e diversidade sexual; educação do campo para educação básica em Mato Grosso; relações étnico-raciais na educação básica para Mato Grosso; educação de jovens e adultos; educação ambiental na educação básica mato-grossense; educação escolar quilombola para a educação básica em Mato Grosso; e currículo da educação escolar indígena (Mato Grosso. Seduc, 2018a).
Diferentemente, o TDC de Mato Grosso do Sul trata a diversidade informada por ações de planejamento, execução e avaliação, atendendo às especificidades de cada localidade (municipalidade), abrangendo, em sua proposta pedagógica, as seguintes temáticas:
o estudo da História e a cultura afro-brasileira e indígena;
direitos das crianças e dos adolescentes;
educação em direitos humanos;
educação ambiental;
educação para o trânsito;
educação alimentar e nutricional;
educação fiscal;
educação financeira;
saúde, sexualidade e gênero, vida familiar e social;
respeito, valorização e direitos dos idosos;
conscientização, prevenção e combate à intimidação sistemática (bullying);
cultura sul-mato-grossense e diversidade cultural;
superação de discriminações e preconceitos como racismo, sexismo, homofobia;
cultura digital, e outros. (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 15).
A fim de complementar essas temáticas, o documento lista os temas contemporâneos7 (TCs), incluídos no currículo com o intuito de:
[...] contemplar as características regionais e locais do estado de Mato Grosso do Sul, estabelecendo links entre a cultura, a economia e os sujeitos que formam o estado, além de ser ponto de fortalecimento das diversas comunidades, como também de partida para as discussões que englobem diversos temas do momento atual. Para tanto, o trabalho pedagógico deverá partir da interdisciplinaridade, da contextualização e da transversalidade. (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 35).
Acrescenta, ainda, que as práticas pautadas nos temas contemporâneos auxiliam o desenvolvimento das competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 49). Os temas são veiculados do seguinte modo:
Observamos que, em alguns componentes curriculares, não se incluem TCs. Nos componentes em que são indicados, não se destinam a todos os anos do ensino fundamental, além disso, não há a inclusão de todos os temas. Isso nos chama a atenção, visto que os TCs “não são exclusivos de um componente curricular, ou de uma área de conhecimento, mas perpassam a todos, de forma transversal e integradora” (Brasil. MEC, 2022, p. 8).
Como exemplo da não inclusão, temos o componente curricular Educação Física, para o 1º e o 2º anos do ensino fundamental, uma vez que se prescrevem orientações nas ações didáticas para “vivenciar a dança da cultura sul-mato-grossense, no contexto regional, por meio dos brinquedos cantados, das cirandas, entre outros” (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 360, grifo nosso); e, para o 3º, o 4º e o 5º anos, “realizar pesquisa de campo, ou com auxílio das tecnologias digitais de informação e comunicação, sobre as danças da cultura sul-mato-grossense” (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 366, grifo nosso). Fato semelhante ocorre em Matemática, que, embora não cite especificamente a inserção do TC “educação financeira”, estabelece, no 5º ano, que nos “[...] contextos de educação financeira, envolvendo a relação com sistema monetário (gastei 10% do previsto; paguei 50% à vista; usei 100% do meu dinheiro), envolve a relação das porcentagens com seu uso cotidiano” (Mato Grosso do Sul, 2019, p. 521).
Dessa forma, evidencia-se certa contradição entre os discursos que subsidiam o TC, especificamente pela condição de auxílio ao desenvolvimento das competências gerais da Base Nacional Comum Curricular, em virtude da ausência de identificação dos critérios de escolha para a inclusão de alguns temas e outros não. Tais critérios se tornam importantes para significar a escolha desses temas, ao mesmo tempo que informam aos estudantes a necessidade de:
[...] compreender questões diversas, tais como cuidar do planeta, a partir do território em que vive; administrar o seu dinheiro; cuidar de sua saúde; usar as novas tecnologias; entender e respeitar aqueles que são diferentes, quais seus direitos e deveres como cidadão, dentre outros, contribuindo assim para sua formação integral como ser humano. Tal missão torna-se uma das principais funções sociais da escola. (Brasil. MEC, 2019, p. 8).
O reconhecimento dessa contradição é um dos indícios da história reificada, em detrimento da história incorporada, mesmo que identificados pela adjetivação “sul-mato-grossense”. Arriscamos generalizar que o formato de tratamento da parte diversificada não se dá conta de que, antes de se tornarem temáticas, essas questões precisam ser particularizadas regionalmente (ou nos lugares e tempos em que acontecem). Dessa não particularização, presenciamos uma espécie de rebaixamento, em favor do argumento geral da escolarização, que preza por uma ideia de ruptura e de descontinuidade entre a cultura que suporta essa adjetivação e aquela necessária para ofertar respostas às transformações.
Esse mesmo tratamento perpassa o TDC de Mato Grosso, ao endereçar à educação especial, na perspectiva da educação inclusiva, o trabalho:
[...] com foco nas competências gerais trazidas pela BNCC e nas competências específicas dos diversos componentes curriculares e em seus campos de experiências, habilidades e objetos de conhecimentos. Sendo assim, imperioso, portanto, ressituar o estudante da educação especial na escola regular, nas classes comuns e vinculadas aos níveis formais de ensino, imprimindo, a seu modo e dentro do seu padrão de subjetividade, as peculiaridades legais e pedagógicas de cada um deles. É importante reconhecer o planejamento pedagógico e as intervenções docentes como os dois rumos prevalecentes da adequação curricular. (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 59-60, grifo nosso).
Esse foco se relaciona às questões de gênero e diversidade sexual e à educação do campo para educação básica em Mato Grosso. Para as primeiras, ressalta a consonância com:
[...] as políticas nacionais e internacionais que asseguram os direitos humanos para a população de identidade e orientações lésbicas, gays, bissexuais travestis e transexuais, o Documento de referência curricular para Mato Grosso, respaldado na Base Nacional Comum Curricular, firma o compromisso em garantir todos os direitos de seus estudantes e profissionais da educação no que se refere às questões de gênero e diversidade sexual. (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 61, grifo nosso).
Para a outra, o seguimento dos:
[...] princípios construídos para o processo político educacional do campo, estes por sua vez vão dialogar com a visão empírica, ou seja, de acordo com o cotidiano do ser humano que habita esse espaço. [...] sustenta esse processo, as teorias: construtivista voltada para o processo cognitivo da aprendizagem, do desenvolvimento e do conhecimento, que se fundamenta em Jean Piaget; a sócio-histórica que se embasa no tratado de Lev Vigotski; que possivelmente dialoga e adentra com a teoria crítica de Saviani, completando-se com a questão multicultural proposta por Tomaz Tadeu da Silva em seu tratado: Documentos e identidade: uma introdução à teoria do currículo, 2010, quando ele entrelaça o conhecimento ao currículo. (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 68-69, grifo nosso).
Entre as políticas nacionais e internacionais que asseguram os direitos humanos, até a visão empírica acerca do cotidiano, do ser humano que habita o campo, não flagramos qualquer informação sobre essas populações no estado de Mato Grosso. Isso, per se, constitui-se como indício da história reificada, aproximada da construção de um comum, para pensar e enfrentar os debates e desafios que instituem e atravessam o subcampo curricular, mas sem a capacidade de politizar o regional/municipal, capaz de reconhecer a força e o papel crucial dessa contingência nessas identificações. “Na realidade, vivemos a tragédia do não comum” (Dardot; Laval, 2017, p. 14, grifo dos autores).
A dimensão fundamental das tensões, ou dos conflitos, dentro das identificações buscadas pela inclusão de “Mato Grosso” como espaço, parece não se limitar a ele e ao direito de dizer quais são esses limites e a quem pertence esse espaço social particular. Evidentemente, segundo a posição de cada um desses sujeitos, a definição muda entre o modo de vida representado pela origem social e aquele informado pelo currículo, em uma espécie de deserção autorizada.
Essa definição se encontra relativizada no espaço das relações étnico-raciais na educação básica, com a mesma inclusão:
O(A) negro(a) e o(a) indígena na história do Brasil e de Mato Grosso;
Espaços e territórios quilombolas e indígenas;
A diversidade cultural dos povos indígenas em Mato Grosso;
Diversidade cultural e religiosa no estado e no País;
Contribuições negras e indígenas na linguagem local e nacional;
Religiosidade e Mitologia Indígena e Africana na composição cultural brasileira considerando o sincretismo religioso (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 89-90, grifo nosso).
Identificamos tal relativização no pensamento de que existe uma classificação única e objetiva, sem considerar que há uma luta de classificação, uma luta para a classificação. Um dos elementos mais essenciais para pensar que as lutas de classe, que regem e organizam o mundo socioeconômico, sempre se traduzem em (ou se nutrem das) lutas de classificação, é o direito de dizer a sua própria identidade ou a do outro.
Incorrem, nesse direito, as formas pelas quais as comunidades disciplinares destacam as especificidades educacionais, de populações reconhecidas nessa região, indígenas e quilombolas, sobretudo nas partes diversificadas. Especificidades remetidas a um contexto de forte reprodução social amparada no cultivo e na valorização de certo conformismo e resignação com a própria condição. Exemplifica isso:
As questões gerais sobre a cultura e história africana, afro-brasileira e quilombola serão tratadas em todas as áreas do conhecimento do Documento de referência curricular para Mato Grosso. A inclusão da parte diversificada, Ciências e Saberes Quilombolas com suas respectivas disciplinas, se delineia a partir das discussões em torno da realidade social e cultural das comunidades. (Mato Grosso. Seduc, 2018a, p. 91, grifo nosso).
[...] na temática História e cultura afro-brasileira e indígena, determina que conteúdos sejam abordados em especial nas áreas em que se concentram a Arte, a Literatura e a História do Brasil. Reconhece-se para essa temática a Resolução CNE/CP nº 1, de 17 de junho de 2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana [...]. (Mato Grosso do Sul. SED, 2019, p. 35, grifo nosso).
Contudo, no TDC de Mato Grosso, as questões relacionadas aos quilombolas estão restritas aos conhecimentos de Matemática, “de forma transversal, transdisciplinar e integradora, considerando a diversidade humana e a especificidade de ensino” (Mato Grosso. Seduc, 2018b, p. 12), e de Geografia: “permite conferir sentido às dinâmicas das relações entre pessoas e grupos sociais e, desses, com a natureza” (Mato Grosso. Seduc, 2018b, p. 109). No TDC de Mato Grosso do Sul, não localizamos nenhuma orientação para a abordagem dessa temática nos anos iniciais do ensino fundamental, nas áreas em que se concentram a Arte, a Literatura e a História do Brasil.
Esses registros concretizam a hipótese que nos orienta na comparação dos TDCs, por explicitarem a submissão ou o desaparecimento da história incorporada, em função de uma história reificada, cuja reprodução esvazia tensões e conflitos, colocando no epicentro a ruptura das modalidades de agrupamento social como fonte de consciência e conduta.
Dessa forma, desconfigura-se cada agente como um animal symbolicum, que habita um mundo vivido e construído por meio do prisma de construtos da linguagem, do mito, da religião, da ciência e de conhecimentos variados. De um lado, negando o “ir de baixo para cima, o guindar-se, trepar e trazer as marcas ou os estigmas desse esforço” (Bourdieu, 2007, p. 137), de outro, fazendo emergir e consolidar uma história reificada, em que a competição deixa de existir, na qual os agentes são controlados mediante a illusio da disputa por diversas espécies de poder ou de “capital”.
Considerações finais
Finalizamos retomando uma análise necessária, ao localizar os gestores dos estados e seus respectivos partidos políticos, para afirmar que o sistema político estadual se responsabiliza por certo grau de fidelização às políticas educacionais nacionais e, especificamente, às curriculares. Tal fidelização é ampliada nos regimes de cooperação com os municípios, que adquirem importância na política local e na construção de contextos e projetos de escolarização.
Para essa construção, não desconhecemos que estavam presentes organizações intermediárias, representadas no Movimento pela Base8, que inferem redes de relações entre agentes, organizações e políticas públicas, pacificando as fronteiras entre público e privado, desafiando os métodos sobre a privatização da educação e estimulando a produção de análises menos focalizadas no “governo” e mais na “governança”.
Talvez seja sob as experiências dessa governança que as histórias reificadas “engolem” as incorporadas, diluindo localidades, desconstruindo indivíduos únicos e singulares e dando lugar à ideia de parte integrante de um sistema maior, de um plano que transcende e forja vínculos horizontais e verticais que globalizam diferenças, diversidades e desigualdades. Aproximadas de fantasias, de imagens, de símbolos aos quais se prendem os indícios da história incorporada, ao mesmo tempo, que aliadas da formação de um único repertório de ações baseado no pertencimento.
Parece ser da escolarização e, especialmente, dos TDCs a função de incrementar a política mais ampla da formação de grupos, em uma espécie de alquimia sociossimbólica, distância e dependência entre poder material e simbólico, mediante a qual um construto mental, que existe abstratamente nas mentes de pessoas individuais, torna-se uma realidade social concreta, que adquire veracidade existencial, bem como potência histórica fora e acima dela.
Sob a perspectiva das comparações operadas, apreendemos as condições de determinação da estrutura das prescrições (modelização retórica), da função das apropriações (da materialidade dos suportes e meios de circulação dos discursos e das escritas) e dos valores dos usos dos TDCs produzidos (materialidade do consumo produtivo).
Em síntese, entre as modelizações teóricas, as funções das apropriações e as materialidades dos consumos assumidas, evidenciamos histórias reificadas sobrepujando histórias incorporadas, na ausência do valor culturalmente diferenciado das escolas, das sociedades e das histórias e saberes locais, mas na afirmação do desejo do provável (internalização de uma representação da igualdade) e da exclusão do impossível (trânsfugas). Ou melhor, não se deixa a individualidade impunemente, porque o fenômeno do distanciamento das origens, raciais, étnicas, culturais, econômicas, entre outras, não se opera somente pela sua resultante (a de transformar-se), antes, pela própria experiência, de negá-la no processo de acesso aos conhecimentos legitimados.